sábado, agosto 02, 2025

QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS (The Fantastic Four – First Steps)



Quando vejo minha regularidade na escrita nos anos de 2014 e 2015, quando escrevia sobre praticamente todo filme que via, fico um pouco triste com o fato de não conseguir estar fazendo mais isso agora. Mas a verdade é que tudo começou a ficar mais difícil lá em 2017, quando assumi dois turnos na escola. E que piorou ainda mais a partir de 2023, quando passei a ser professor de escola de tempo integral, muito mais desgastante. E os atuais momentos andam sendo ainda mais difíceis, com desafios de ordem familiar e tudo mais. Enfim, a gente faz o que pode e ao menos pequenos textos para cada filme visto, eu tenho feito – embora, para mim, não seja o suficiente, pois são textos muito rápidos e sem um tempo mínimo para reflexão e pesquisa.

Falemos de QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS (2025), um dos melhores filmes dos estúdios Marvel, o melhor desde GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 (2023), que já era uma exceção no meio de tantos filmes ruins ou meia-boca que o estúdio andava despejando, sob o risco de perder seu público – e era o que estava acontecendo, especialmente quando a Marvel também começou a produzir séries para o Disney Plus. E foi na época das séries que tivemos o prazer de ver a melhor delas, WANDAVISION (2021), dirigida por Matt Shakman.

Shakman é basicamente um homem da televisão. Pode-se dizer que é um veterano, tendo dirigido episódios de diversas séries desde o início dos anos 2000, como ONCE AND AGAIN, JUSTIÇA SEM LIMITES, A SETE PALMOS, TODO MUNDO ODEIA O CHRIS, CHUCK, HOUSE, MAD MEN, FARGO, GAME OF THRONES, THE BOYS etc. Mas ele foi sempre uma espécie de operário.

Mesmo em WANDAVISION ele não participou do time de roteiristas, mas a Marvel confiou a ele a direção de todos os nove episódios. Tudo bem que a gente sabe que a Marvel tem essa característica de, com frequência, investir em diretores não-autores, mas o sucesso dessa série acabou dando uma moral para Shakman, já que o projeto de séries de televisão do estúdio acabou sendo um fracasso no fim das contas, mas todo mundo lembra com carinho da série da Feiticeira Escarlate e do Visão, ambos vivendo com seus filhos numa espécie de sitcom típica dos anos 1950.

Por mais que QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS não seja perfeito em suas ambições tem tanto uma ambientação de dar gosto quanto uma boa construção dos personagens. Finalmente um filme do Quarteto em que a ideia de família se apresenta de forma tão enfática – como deve ser. E, assim como SUPERMAN, de James Gunn, a intenção de Shakman e do time de roteiristas é aproximar seus heróis de suas décadas de surgimento. Ou do espírito delas. 

No caso do novo filme do Quarteto, a ambientação e o visual retrofuturista é do início dos anos 1960, e isso é algo que agrada bastante, assim como a fotografia bastante colorida e a escolha do elenco para interpretar a família mais importante e querida do universo Marvel. Destaco principalmente Vanessa Kirby, que é o coração do filme, como Sue Storm, que logo no início da trama, se descobre grávida ao fazer um teste de gravidez no banheiro da suíte. Aliás, é difícil não fazer uma conexão da cena do parto neste filme com a cena de PIECES OF A WOMAN. Pedro Pascal está muito bem também como Reed Richards. É um ator de fato carismático, e por mais que sua escalação para viver o Senhor Fantástico tenha sido estranha a princípio, ele tirou de letra.

A montagem é outro destaque: o filme é enxuto, passa rápido e nos convida a ficar sempre interessados em cada momento. Agora, claro que a ameaça de Galactus poderia ter sido mais dramática, ter causado mais impacto, mas ficou suficientemente boa, ainda que não tão boa quanto a história original do Surfista Prateado encontrando o Quarteto nos quadrinhos de Stan Lee e Jack Kirby.

Aliás, não ficou ruim trocarem o gênero do Surfista aqui, vivida por Julia Garner. Achei interessante darem um maior destaque ao personagem do Tocha Human (Joseph Quinn). Johnny Storm até mesmo consegue o que Reed Richards não consegue, ao aprender a língua do planeta da Surfista Prateada. A mudança de gênero, acredito que foi necessária para não trazer uma lembrança mais forte com o filme de 2007.

Este novo é superior em todos os aspectos e toda a sequência dentro da nave é bem empolgante, resgatando a ligação do grupo com a ficção científica, mas sem largar mão de toda as questões familiares. Já quero uma sequência.

+ TRÊS FILMES

EXTERMÍNIO – A EVOLUÇÃO (28 Years Later)

Tenho pouca lembrança dos dois primeiros filmes da franquia Extermínio (2002, 2007), mas isso se deve ao tempo que os vi na telona. Porém, tenho impressão de que gostei mais deste terceiro filme, com o retorno de Danny Boyle na duração e Alex Garland no roteiro, do que dos anteriores, talvez por subverter as expectativas, por trazer algo de novo dentro do subgênero “filme de zumbi”. Antes de mais nada, o menino vivido por Rocco Hayes tem muito carisma e é o coração do filme. Na primeira parte de EXTERMÍNIO – A EVOLUÇÃO (2025), ele e o pai vão para uma espécie de ritual de amadurecimento, em que ele terá que conhecer o mundo habitado por zumbis, o mundo em quarentena, que corresponde basicamente a toda a Grã-Bretanha. Não apenas conhecer, mas atirar em zumbis com arco e flecha. Nisso, Boyle é Garland mostram os zumbis alfa, muito mais mortais e com o detalhe de andarem nus. E há outra novidade que não vou contar para não estragar as surpresas. Sobre os demais segmentos do filme, achei incrível o momento de descoberta dele com a mãe (Jodie Comer), o encontro com o médico, o momento mori, que dá todo um tom mais melancólico e o filme ainda tem espaço para o humor. Também se destaca o estilo de composição visual gerado pelas câmeras digitais e pela montagem nervosa. Filmão.

TERREMOTO EM LISBOA (O Melhor dos Mundos)

Achei um barato saber que em Portugal se fala "terramoto" e não "terremoto". O mais curioso deste thriller português que busca se assemelhar aos americanos na estrutura, com direito a trilha sonora de tensão quase convencional, é que há tanto o tempero lusitano quanto a falta de recursos para fazer um disaster movie ou uma sci-fi apocalíptica. No mais, gosto do quanto há um destaque às relações humanas, como no casal que trabalha junto e na preocupação com os pais da protagonista, que devem sair de Lisboa o quanto antes. Em certo momento, eu me lembrei de GODZILLA, o original japonês dos anos 1950. Mas só por um momento, e só por causa desse quesito. Em TERREMOTO EM LISBOA (2024), o menos é mais no trabalho de Rita Nunes, e é com isso que se obtém um belo trabalho, com direito a uma ótima performance da protagonista, Sara Barros Leitão. Gosto muito das cenas finais, com toda a expectativa.

ANIMALE

Do ponto de vista do que se espera do gênero horror, temos aqui uma variação do filme de lobisomem, com a mudança de animal. Gosto mais dos aspectos plásticos do filme do que de sua ideia e desenvolvimento. Há no início de ANIMALE (2024) o desconforto de vermos a estupidez de uma tourada (que eu não sabia que existia na França) e os maus tratos aos animais, mas depois vemos que isso faz parte da trama e será um elemento importante para a transformação física e psicológica da protagonista, que inclusive é apresentada logo no começo marcando um touro a ferro. De certa forma, o modo como a diretora Emma Benestan apresenta aquele universo é até de certa forma menos violento do que se esperaria, talvez por que hoje as plateias são mais sensíveis a esse tema. A protagonista, vivida por Oulaya Amamra (vista no excelente O SAL DAS LÁGRIMAS, de Philippe Garrel), se doa ao papel da mulher que vive num mundo extremamente masculino e também muito animal. No meio dos homens, ela diz não se interessar por namoros e querer seguir a vida de toureira. Há outro tema que o filme perpassa, mas que acaba ficando ambíguo dentro da narrativa principal, que é o tema do estupro. É bem-vindo como mais um exemplar de filme de horror que trata da violência masculina, mas poderia ter sido mais eficiente.

domingo, julho 27, 2025

BLACK MIRROR – SÉTIMA TEMPORADA (Black Mirror – Series 7)



Acho curioso como uma temporada tão bacana quanto esta sétima (2025) não esteja recebendo tantos elogios. Tudo bem que nem todos os episódios são tão incríveis assim, mas todos são no mínimo muito bons e interessantes, alguns bastante tocantes; outros, empolgantes. Esta nova temporada de BLACK MIRROR volta com mais força ao campo da ficção científica, algo que a anterior (2023) havia se desviado um pouco, ficando mais próxima do horror, coisa que também me agradou, aliás. Falo abaixo um pouco sobre cada episódio desta temporada, vistos num intervalo de tempo maior do que eu gostaria. 

Common People

Adorei a arte do cartaz deste "Common People", um dos episódios mais pedradas de BLACK MIRROR. O marido (Chris O'Dowd) tentando beijar a esposa (Rashida Jones) que se apresenta como se estivesse com o corpo se desfazendo como um metal líquido. Na história, os dois são pessoas que vivem em empregos simples e mal remunerados. O dinheiro mal dá para eles atravessaram para a outra cidade no dia do aniversário da relação dos dois para comerem um hambúrguer num lugar chamado San Junipero (referência a um dos episódios mais cultuados da série). Certo dia, ela passa mal e se descobre com um câncer no cérebro. Sua alternativa de vida aparece numa nova experiência de uma empresa, que diz que a cirurgia é grátis, mas que o casal terá que pagar mensalidades. "Common People" tem muitas camadas e pode se referir a diversas coisas: é fácil pensar diretamente nos planos de saúde, mas também nos serviços de streaming e, indo mais fundo, na própria vida que levamos hoje, muito dependente da tecnologia. Aqui a tecnologia aparece como um vampiro de almas, por assim dizer. O final só não é mais devastador porque, em determinado momento, a vontade de viver daquele jeito se torna mínima.

Bête Noire

Acho que o mais curioso deste episódio é que eu, pelo menos não cheguei a acreditar na protagonista, embora também não confiasse na loira que aparece no escritório para desestabilizar seu mundo. Na trama, Maria (Siena Kelly) é uma garota especialista em doces (na verdade, sua empresa é mais sofisticada do que apenas uma doceria). Ela fica bastante incomodada quando uma ex-colega dos tempos de escola chega para trabalhar em seu mesmo espaço profissional. Estranhas coisas começam a acontecer e Maria passa a achar que é essa mulher, Verity (Rose McEwen), que, de alguma maneira, está fazendo algo para lhe prejudicar. Ao longo do episódio sabemos alguns motivos. A melhor parte é o embate final entre as duas. Pode não ser dos melhores episódios da série, mas é bem interessante como uma variação de À MEIA LUZ, O BEBÊ DE ROSEMARY e outros filmes sobre gaslighting.

Hotel Reverie

Segundo mais longo episódio desta sétima temporada, "Hotel Reverie" parece uma mistura de A ROSA PÚRPURA DO CAIRO com o belo "San Junipero" (olha ele de novo!). Mas aqui não é a personagem do filme que sai da tela, mas uma atriz que invade a realidade de um filme clássico, a partir de uma nova tecnologia que permite que um ator consiga contracenar com personagens de inteligência artificial gerados a partir de conceitos dos filmes-alvo. A ideia então é abraçada pela atriz vivida por Issa Rae, cansada de fazer papéis secundários em grandes produções e de trabalhar como protagonista apenas em filmes indie. No filme dentro do filme, ela conhece a personagem que não sabe que é uma personagem (Emma Corrin), até que em algum momento essa falta de consciência é quebrada. Em algum momento este pequeno filme, que não é tão pequeno assim, começa a cansar, mas gosto do epílogo, embora não goste tanto assim da conclusão da situação das duas mulheres dentro da nova versão do filme dentro do filme. De todo modo, é sempre bom ver uma boa ideia sendo desenvolvida. E ideias não têm faltado a Charlie Brooker.

Plaything

Um dos mais interessantes desta nova temporada, este "Plaything" já começa intrigante, com o personagem de Peter Capaldi se deixando prender numa loja simples e numa civilização avançada o suficiente para capturar pessoas que têm ficha criminal com um exame de DNA imediato. Mas isso é o de menos: o mais importante surge no depoimento do personagem na delegacia, que nos levará para sua juventude, quando teve contato com uma criação de inteligência artificial com visual de videogames antigos. Muito legal o tom retrô, afinal, boa parte da trama se passa mais ou menos nos anos 1990. Dos episódios da série, é o que mais se aproxima de um cyberpunk. O diretor David Slade já havia comandado um episódio especial da série-antologia: "Bandersnatch" (2018), que ouvi dizer que estaria saindo da Netflix, sem que os demais saiam. O que me pareceu um bocado estranho.

Eulogy

Este é um dos mais melancólicos episódios de BLACK MIRROR, e que bom que a série pôde contar com um ator tão bom quanto Paul Giamatti. Aqui ele é um homem solitário que recebe a visita de uma moça que fala sobre o falecimento de uma ex-namorada dele. A lembrança dessa mulher logo traz um impacto grande no protagonista. Como aqui se trata de BLACK MIRROR, a tecnologia está aí para perturbar, mas também para nos deixar muito empolgados com a criatividade da história. A ideia da filha da mulher falecida é criar, a partir de memórias de quem a conheceu, a partir de um equipamento chamado "eulogy", capaz de fazer com que a pessoa busque numa foto borrada que seja a memória daquele momento. É também uma história de dor imensa e de reconexão com um passado que a pessoa até então queria esquecer. É como se fosse a um pequeno filme sobre um reencontro amargo com um amor perdido.

USS Callister – Into Infinity

Acho engraçado que eu tenha tão pouca lembrança de "USS Callister", episódio da quarta temporada (2017) de BLACK MIRROR. Resolvi encarar esta continuação desse episódio sem rever o anterior e achei absolutamente fascinante. Não sei se melhor, mas talvez seja. Talvez porque a personagem de Cristin Milioti (PALM SPRINGS) seja tão boa e de tão fácil simpatia por parte do espectador que seu carisma é quase o bastante. Temos ela como duas personagens: a original, que trabalha na empresa Infinity, e a sua clone, que está presa numa nave espacial junto com outros clones. "USS Callister - Into Infinity" ainda traz um interessante flashback do dia que os personagens de Jesse Plemons (o inventor) e Jimmi Simpson (o dono da companhia) se conhecem. É interessante notar que esta temporada explora muito bem universos alternativos. Acontece com "Plaything", com "Hotel Revery", um pouco com "Eulogy" e finalmente com "USS Callister - Into Infinity". E isso não chega a ser uma novidade na série de Charlie Brooker. Há, inclusive, uma referência mais uma vez a "San Junipero" (2014), um dos mais celebrados da série, aqui aparecendo como nome de um hospital. De certa forma, parece ser uma obsessão de Brooker apresentar personagens presos em circunstâncias cruéis: talvez o pior/melhor exemplo seja o de "White Christmas" (2014).

domingo, julho 20, 2025

DREAMS (Drømmer)



Aproveitar a melancolia deste domingo para falar de um filme que tem algo de melancólico e de meditativo, mas também de positivo na percepção do viver intensamente as paixões, da valorização dos sentimentos. DREAMS (2024), de Dag Johan Haugerud, é sobre isso e muito mais. É um filme muito falado, o que pode incomodar o público que não gosta muito de ler legendas, mas é uma fala tão boa, e ainda com a vantagem de ser também cinema de ótima qualidade e grande sensibilidade. Além do mais, os diálogos são fluidos e dinâmicos. DREAMS faz parte de uma trilogia sobre intimidade física e emocional. É o terceiro dos três a ser lançado e o grande vencedor do Urso de Ouro em Berlim em 2025. Os demais filmes são SEX e LOVE, também de 2024.

Foi uma alegria poder descobrir o cinema deste realizador, cujos filmes, exceto os dessa trilogia, estão inéditos em nosso circuito (penso eu). DREAMS conta, de maneira muito delicada, o despertar da paixão de uma adolescente por uma de suas professoras. Achei de cara muito agradável que o filme seja verborrágico, sem falar que a narração da garota não é redundante. Isso, inclusive, fica explícito na cena em que a professora reza um "Pai Nosso" em seu apartamento. Ou seja, as imagens e a narração podem até andar em paralelo, mas não dizem a mesma coisa. 

Além do mais, ouvir a voz da narradora é como saborear um livro que não conseguimos largar. Mais ou menos como os próprios escritos da jovem protagonista indo parar nas mãos da avó e da mãe. O filme pode ser dividido em três partes bem visíveis: a primeira começa quando a jovem Johanne (Ella Øverbye), 17 anos, lê um livro que descreve a paixão de um personagem por outro e ela sente um impacto físico em seu corpo. Logo em seguida, ela vê essa professora, cujo nome é parecido com o seu, Johanna (Selome Emnetu), pela primeira vez, e não consegue parar de pensar nela em momento nenhum de seus dias, até a cena do fechar da porta. Esse seria o fim do primeiro ato.

O segundo ato é o que se passa alguns meses após os eventos do primeiro e que se utiliza de flashbacks e de muita conversa para aprofundar a importância agora dos escritos de Johanne sobre sua experiência de paixão. Aliás, essa obsessão nos é apresentada de maneira tão intensa que é como invadíssemos o universo interior da personagem, quase como se estivéssemos fazendo algo errado, de tão íntimos que são aqueles seus pensamentos e sentimentos, que ela demoraria a contar para alguma pessoa. O terceiro ato funciona como uma conclusão para a história, com mais um salto temporal.

Uma coisa que me pegou muito no filme foi o guardar, foi o ato da personagem fazer questão de contar em palavras a sua experiência de estar apaixonada pela professora: seus atos, sua descrição encantada de partes específicas do corpo da mulher desejada, suas aflições, o medo de ser descoberta até mesmo quando sonha com a professora, seus pequenos momentos de alegria ao estar pertinho da pessoa que ama, ainda que seja apenas por um breve toque no corpo.

Mais adiante, o filme foca também nas discussões entre mãe, avó e até uma editora de livros sobre a força de seus escritos e sobre a própria vida, sobre a menina estar vivendo tão intensamente, que a avó chega a dizer que queria ter vivido mais, queria ter tido mais parceiros etc. Nesse sentido, vejo DREAMS também como um filme sobre a força das palavras. Não apenas como um meio de guardar recordações, mas também de mexer com o leitor.

Vendo o filme, e sobre o guardar e o sentimento de paixão que vem junto com esse ato, lembrei deste poema de Antonio Cícero:

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.


+ TRÊS FILMES

JOVENS AMANTES (Les Amandiers)

A princípio pensei se tratar de um trabalho sobre a experiência com um homem abusador, como THE SOUVENIR, de Joanna Hogg, mas este belo filme semi-autobiográfico sobre a juventude da diretora Valeria Bruni Tedeschi se iniciando na atuação no teatro e a vivência com seus colegas é mais uma narrativa coral, embora haja uma personagem que se destaque mais. Há, sim, um relacionamento no mínimo complicado da protagonista com um colega viciado em heroína, mas há também os dramas dos demais jovens da escola de teatro, na década de 1980, quando a AIDS chegou demolindo estruturas e destruindo vidas. Em JOVENS AMANTES (2022), Louis Garrel interpreta Patrice Chéreau, mais lembrado hoje como o diretor do excelente A RAINHA MARGOT, aqui com a missão de iniciar os jovens calouros na montagem de uma peça de Tchekhov. A jovem Nadia Tereszkiewicz (vista em O CRIME É MEU, de François Ozon) está ótima como a menina frágil, rica e disposta a ajudar o colega viciado por quem se apaixona. O filme tem uma cadência gostosa e trata seus personagens com carinho, passando sentimentos mais de amor do que de traumas daquele momento importante de sua vida. A propósito, tenho achado curioso alguns filmes franceses da safra de 2022 só estarem chegando ao circuito brasileiro neste ano: é o caso também de ENTRE DOIS MUNDOS, estrelado por Juliette Binoche.

AUCUN REGRET

Quando gostamos muito de um diretor e vamos começando a gabaritar sua filmografia, é uma alegria quando descobrimos que ainda temos algumas obras suas para ver. No caso de Emmanuel Mouret, ele tem sete curtas listados no IMDB. Um deles é este, feito após o delicioso ROMANCE À FRANCESA (2015) e que traz um sabor dos filmes da Nouvelle Vague, especialmente de Rohmer e de Truffaut. Na trama de AUCUN REGRET (2016), Aurélie (a bela Katia Miran) é uma jovem que conhece um rapaz na universidade e sua amiga diz que ele tem má reputação. Ou seja, ele tem por hábito sair com as meninas e logo depois desaparecer, deixando-as na mão quando se apaixonam. A história é muito simples, mas também fácil de ser identificável. Sem falar que há uma beleza de dar gosto quando os dois estão em seus momentos de intimidade, com um cuidado especial para o uso da luz.

TRÊS AMIGAS (Trois Amies)

Sou entusiasta do cinema de Emmanuel Mouret desde que vi FAÇA-ME FELIZ! (2009) numa divertida sessão no Varilux, com o público gargalhando a valer. Era uma comédia que lembrava LEVADA DA BRECA e outras screwball comedies, mas já aproximava a persona de Mouret com Woody Allen, algo que foi aumentando no trabalho seguinte, A ARTE DE AMAR (2011). Suas obras posteriores buscaram equilibrar o humor com o drama, até incorporar o melodrama a sua poética. Este TRÊS AMIGAS (2024) é o filme de que menos gostei do realizador, mas ter visto com sono não ajudou muito, é verdade. Aqui temos o filme que ele mais usa mulheres comuns, por assim dizer: a maior parte dos demais trabalhos dele trazia uma ou mais beldades. É também um filme bastante despojado plasticamente, algo que não se esperava depois de vermos CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (2022), seu trabalho anterior, bastante sofisticado na forma e também caprichado nos diálogos. TRÊS AMIGAS, assim como outras obras de Mouret, fala de traição, de triângulos amorosos, de medo de magoar o outro, de insegurança, das complexidades nos relacionamentos. É um filme que tem certa leveza, mas suas personagens estão quase sempre angustiadas, insatisfeitas, incompletas. Uma das amigas mais chegadas é amante do marido da outra; uma delas quer acabar com o casamento porque parou de amar o marido (o narrador do filme, o ótimo Vincent Macaigne); uma delas acredita que o segredo de seu casamento é ela fazer de conta que ama o marido; e por aí vai. Então, até há momentos de riso, mas dá saudade dos filmes mais felizes de Mouret, ou mesmo de melodramas mais carregados, como UM NOVO DUETO (2013) ou MADEMOISELLE VINGANÇA (2018). Não ficou um gosto muito bom para mim, mas quem sabe numa revisão eu passo a gostar mais, dadas as circunstâncias em que o vi.

quarta-feira, julho 16, 2025

SUPERMAN



Fiquei feliz quando a Giselle trouxe a proposta de vermos SUPERMAN (2025) no sábado. No estado em que eu estava na sessão de quinta-feira, e com a desvantagem de ser em 3D horroroso que atrapalha a beleza das cores vivas da fotografia, ficaria difícil pra mim fazer um julgamento justo do filme, não importando se eu estava vendo no IMAX. E de fato é um belo trabalho de James Gunn, agora como líder da reformulação da DC no cinema. Ele já havia trabalhado para a DC/Warner com o ótimo O ESQUADRÃO SUICIDA (2021), que trazia seu humor característico e anárquico, de modo a desfazer o equívoco que foi o filme de David Ayer. Saiu da Marvel com o pé direto, com o lindo GUARDIÕES DA GALÁXIA – VOL. 3 (2023) para assumir uma baita responsabilidade, já que os fãs do Homem de Aço são exigentes. Ele tinha três públicos para satisfazer, além de si mesmo: os fãs dos quadrinhos da DC, os cinéfilos e o público em geral, que embarcou e muito com o clássico SUPERMAN – O FILME, de Richard Donner. A julgar pela boa recepção da Giselle, que se encaixa mais na terceira categoria, o filme de Gunn foi um sucesso.

Acredito que poderia ser mais redondo e as partes que deveriam causar mais emoção poderiam ser mais emocionantes, como o beijo final com Lois ou a cena da chegada da Gangue da Justiça no país fictício oprimido que representaria muito provavelmente a Palestina, atualmente sofrendo o genocídio perpetrado por Israel. Gunn faz uso muito bom de seu estilo para sair do lugar comum de uma filmagem mais clássica, como quando evita o uso do campo-contracampo e faz muito o movimento de câmera nos diálogos entre os personagens, causando uma sofisticação que agrada aos olhos. E essa sofisticação ele traz também para as cenas de luta, mesmo as mais longas, como no embate do herói com seu principal nêmesis físico, o Ultraman, que lá no final saberemos quem ou o que se trata.

Falando em vilão, Nicholas Hoult está ótimo como Lex Luthor, o grande arqui-inimigo do Superman, que já foi encarnado por atores como Gene Hackman, Kevin Spacey e Jesse Eisenberg em outras versões do herói para o cinema. Hoult faz o clássico vilão que fala demais, como nos quadrinhos pré-revolução dos anos 1980 nos quadrinhos. A intenção, acredito, é trazer um ar retrô que aproxime essa versão de 2025 com os anos de sua criação, no final dos anos 1930 e posteriores. Esse aspecto mais expositivo pode incomodar um pouco, mas é só comprar e aceitar a ideia e encarar esse tipo de diálogo mais como homenagem do que como sátira. Até porque percebe-se o interesse de Gunn em trazer o máximo de dignidade ao herói.

Já a Lois Lane de Rachel Brosnahan (da série MARAVILHOSA SRA. MAISEL) é um acerto e tanto. Não só por tirar a personagem o máximo possível de donzela em perigo para um lugar de agente da ação, como também porque ela faz embates com o próprio Superman/Clark Kent. Aliás, trazer o Superman mais como Clark Kent do que como Kal-El, embora muito pouco caracterizado como seu disfarce, o aproxima mais de um ser terreno e próximo dos valores de alguém deste planeta, mais de valores que transcendam os valores americanos, já que ele não se vê como cidadão americano e não tem que seguir ordens do presidente dos Estados Unidos. Essas e outras questões têm tornado o filme bem pouco querido pela extrema direita, que o chama de Superman Woke.

No mais, vale destacar a presença de outros coadjuvantes que roubam a cena: o cãozinho Krypto, todo feito em CGI, mas que parece um cão de verdade; o Sr. Incrível, vivido por Edi Gathegi, que é o personagem mais cool do filme; Isabel Merced como a Mulher-Gavião, apesar de aparecer pouco; e Sara Sampaio como a agente dupla Eve Teschmacher, personagem, aliás, criada originalmente para o filme de Richard Donner, mas que depois seria incorporada nos quadrinhos.

Ah, e antes que eu me esqueça, David Corenswet manda muito bem como o novo Superman. Imprime um tipo de bondade que às vezes se confunde com ingenuidade, como deixa claro numa das conversas que ele tem com Lois. Essa repaginação do Superman depois de uma tendência às sombras de Zack Snyder é muito bem-vinda. Não que eu prefira um ao outro, mas pela necessidade de mudança mesmo. E Gunn sabe o que faz, embora precise estar menos engessado no próximo filme.

+ TRÊS FILMES

JURASSIC WORLD – RECOMEÇO (Jurassic World – Rebirth)

Há uma cena em JURASSIC WORLD – RECOMEÇO (2025), de Gareth Edwards, que define bem o seu espírito: é quando a personagem de Scarlett Johansson, que vive uma mercenária especialista em missões perigosas, aceita o acordo de ir até à ilha proibida dos dinossauros pela soma incrível em dinheiro proposta pela empresa farmacêutica que pretende usar DNA dos dinos para criar remédios. A cena em si é ruim do ponto de vista da dramaturgia, mas pra esse tipo de filme isso não importa muito. A questão é que ela funciona como uma metáfora para o topa tudo por dinheiro de Hollywood em se aceitar projetos assim, que não apresentam nada de novo e que também não funcionam como boas aventuras com cenas assustadoras. Tudo é reciclado sob desculpa de homenagem ao original de 1993 de Steven Spielberg, até a trilha memorável de John Williams. O filme, enquanto foca na preparação para a missão do grupo principal, demora a engrenar. Melhora um pouco quando entra em cena uma família que está fazendo um passeio por águas próximas às da ilha proibida. Há, inclusive, uma homenagem interessante a TUBARÃO. Essa família traz também um alívio cômico que o grupo principal não havia conseguido até então. Em alguns momentos o filme parece produzido por uma IA, de tão sem humanidade que é. Há uma certa covardia por parte do diretor (ou de quem o comandou) em não fazer cenas um pouco mais gráficas do ataque dos dinossauros aos humanos e há uma ineficiência em saber recriar cenas do anterior em outro contexto. De todo modo, a gente entende que há um senso de moral necessário para esse tipo de produção, como punir os maus (e os coadjuvantes com pouca função) e salvar os bons, inclusive uma criança. Enfim, mais um filme sem alma para esta franquia.

F1 – O FILME (F1 – The Movie)

Não curto muito Fórmula 1, assim como não sou entusiasta de nenhum esporte. Até tentei ver algumas corridas nos anos 90, e buscar entender o que estava acontecendo, mas sentia dificuldade, em parte por alguma incapacidade das várias câmeras darem conta de captar de forma inteligível para mentes menos observadoras. No caso de F1 – O FILME (2025), há a voz do narrador nas corridas e há uma edição bem rápida e dinâmica, de modo que nos deixa ligados o suficiente para não nos cansarmos em suas mais de 2h30 de metragem. Brad Pitt está ótimo como o cinquentão que teve seu auge nos anos 90 e que é convidado pelo dono de uma das equipes (vivido por Javier Bardem, sempre ótimo, mas aqui em modo mais de pura diversão) a integrar o grupo como um dos dois pilotos de corrida. O outro é um jovem cheio de si que logo se vê ameaçado pela persona cool do piloto com histórico de fracasso, mas com segurança e interesse em dar o melhor para a equipe, inclusive ajudando na questão da melhoria dos carros, tidos como umas latas velhas. Vale muito ver o filme numa tela IMAX, afinal trata-se de um trabalho feito para exibição nesse tipo de sala e a bela fotografia de Claudio Miranda, que já havia trabalho com Joseph Kosinski em TOP GUN - MAVERICK (2022). Não é filme para se ficar dias pensando a respeito, mas é divertido e melhor do que o trailer dava a entender, até por conta da questão da idade do personagem de Pitt, que acaba sendo essencial para a própria trama. Na trilha sonora, vários clássicos do rock ajudam a trazer animação para a trama e a trilha sonora de Hans Zimmer é ótima.

PREMONIÇÃO 6 – LAÇOS DE SANGUE (Final Destination – Bloodlines)

Lá em 2011, quando saiu PREMONIÇÃO 5, a franquia já demonstrava sinais de cansaço e era aquele tipo de diversão que só chegava ao cinema por causa dos efeitos 3D. Já tinha cara de produção direto para vídeo. A New Line trazer de volta a franquia, tomando de assalto várias salas classe A em todo mundo (aqui estreou na IMAX), é uma prova de que a Warner acreditava no poder da nostalgia. Embora a cena inicial de PREMONIÇÃO 6 – LAÇOS DE SANGUE (2025) seja boa, a protagonista, quando acorda do pesadelo e vai até sua família, não é boa o suficiente para segurar a narrativa, que nem existe. O resultado é sonolento, aborrecido e as cenas mais gráficas são fracas. Ainda assim, são as cenas de morte que nos acordam do sono, especialmente quando surgem de maneira mais inesperada. Os diretores Zach Lipovsky e Adam B. Stein vieram de produções para a TV da Disney e de um filme pouco conhecido chamado ABERRAÇÕES (2018).

domingo, julho 06, 2025

JUNE E JOHN (June & John)



Os últimos dias não têm sido fáceis. Sinto falta de escrever: a última vez que consegui produzir um texto maior foi no dia 15 de junho. O restante do mês foi como se eu estivesse sendo atropelado por um trem, com o perdão da hipérbole. E tudo ficou mais tenso com o internamento de minha mãe. Aliás, escrevo neste momento na enfermaria, do lado dela, mesmo sabendo que serei interrompido daqui a pouco.

Desses dias que tenho passado aqui, desde o dia 23 de junho, revezando principalmente com minhas irmãs e meu sobrinho, um momento que me deixou especialmente feliz ontem foi quando a Giselle subiu para visitar minha mãe por uns minutos. A Giselle tem uma energia incrível, uma alegria contagiante e eu fiquei muito feliz ao ver minha mãe surpresa, feliz e sorrindo quando a viu. E, mais ainda, ao ouvir as palavras de fé e de esperança que minha noiva trouxe a ela, emprestando um pouco de sua fortaleza à minha mãe, que esteve bem mais lúcida e melhor ao longo do dia, mas também bastante sonolenta e sem expressar um sorriso sequer.

Por isso, para retomar meus textos para o blog, e escrevendo do celular mesmo, escolho, dentre os filmes vistos recentemente, JUNE E JOHN (2025), de Luc Besson. Isso porque a personagem de June (vivida por Matilda Price) é um pouco do que a Giselle representa pra mim, no sentido de se acordar mais para a beleza do mundo real, e não só a beleza, mas também os aspectos mais sombrios até então invisíveis, e sair um pouco do torpor e do automatismo cotidiano. June tem “essa pressa de viver” descrita por Belchior em “Coração Selvagem”. E também guarda um segredo.

Nunca fui grande fã de Besson - e acho que a maioria dos cinéfilos não é -, mas de vez em quando um filme dele mexe comigo, como aconteceu com NIKITA – CRIADA PARA MATAR (1990) e JOANA D’ARC (1999). Dos mais recentes, gosto de LUCY (2014) e VALERIAN E A CIDADE DOS MIL PLANETAS (2017). E uma coisa que dá para perceber em suas obras é sua opção por destacar mulheres jovens, belas e fortes. June ajuda a trazer fortaleza a John, mas também carinho, amor e excitação em vivenciar aventuras.

O que me encantou em JUNE E JOHN foi o quanto ele é uma representação não só do amor louco, da paixão ardente, mas também de libertação. Da libertação do jovem funcionário de um banco (Luke Stanton Eddy) que vive uma vida à base de remédios para ansiedade e muita solidão. Até o dia que ele encontra, justo num daqueles dias que dá tudo errado, numa estação de metrô, uma jovem mulher de cabelos vermelhos chamada June. Não dá tempo de pegar o telefone dela, mas ele consegue contornar esse problema com a ajuda da internet e de muita força de vontade.

Vejo June como uma espécie de versão espelhada da femme fatale dos noirs dos anos 1940/50, ou seja, ela é a mulher que representa a destruição da vida do rapaz. Mas uma destruição bem-vinda, no caso, já que para renascer é preciso morrer, ainda que simbolicamente. O filme rende também muitas risadas e muita diversão, especialmente quando vira um road movie, e esse rir é também uma porta de entrada para outras emoções que virão na terça parte final. Acho especialmente linda a cena do casamento.

JUNE E JOHN também retrata a situação da Los Angeles dos dias atuais, lotada de sem-tetos vivendo nas mesmas calçadas onde se erigem arranha-céus de megamilionários. Nesse sentido, o filme também funcionará no futuro como um documentário sobre esse tempo.

Quanto à história principal, a história de amor entre o jovem comedido John e a promessa de felicidade June, é tão simples quanto bela. As cenas finais, em Las Vegas e no deserto do sudoeste americano, são lindas demais. E o filme sabe acabar no momento certo. Para além da estética publicitária e de videoclipe, Besson aqui está todo coração. E é uma coisa linda demais de ver. Tão belo quanto o sorriso de Matilda Price, tão deliciosamente incerto quanto a estrada que atravessa o deserto cheio de Joshua Trees.

Texto dedicado a meu grande amor, Giselle.

+ TRÊS FILMES

LEVADOS PELAS MARÉS (Feng Liu Yi Dai)

O último longa de ficção de Jia Zhang-ke havia sido AMOR ATÉ AS CINZAS (2018), um filme que já não havia me conquistado no quesito "importar-se com os personagens". E talvez até por isso, e por aceitar LEVADOS PELAS MARÉS (2024) como um projeto muito mais experimental, aceitei de bom grado o distanciamento para apreciação do filme, que contém cerca de 2/3 de imagens aproveitadas de dois outros títulos de Jia, PRAZERES DESCONHECIDOS (2002) e EM BUSCA DA VIDA (2006), ambos com as presenças de Tao Zhao e Zhubin Li. Eu estava gostando da brincadeira da colagem de filmes para criar uma nova história, e até gostaria que entrassem também cenas de outros filmes do diretor, como UM TOQUE DE PECADO (2013), mas entendo que a tentativa tornaria a colagem mais problemática. Ter uma terça parte final mais amarga com os dois ex-amantes se reencontrando num mundo ainda vivendo sob a pandemia da Covid-19 foi muito interessante. O personagem masculino, com sequelas de um AVC, surge mais frágil nesse momento, em comparação com a personagem feminina, forte o suficiente para participar de uma corrida nas ruas, o deixando "a rua deserta", como diria Caetano Veloso. Pena que essa colagem, por mais interessante que seja, não possui uma liga orgânica suficiente para que essa história de amores partidos seja cruel ou desoladora. O que senti foi mesmo indiferença. E não vejo isso como algo positivo, por melhor que seja rever imagens de filmes de Jia, além de trechos documentais interessantes, como a cena do sujeito que resgata um retrato pintado de Mao Tsé-Tung. De todo modo, LEVADOS PELAS MARÉS funciona como uma ótima apresentação de uma China em constante transformação, sempre alvo de críticas por parte do diretor, mas hoje uma nação digna de admiração pela gigante que conseguiu se tornar no mundo hoje.

AINDA NÃO É AMANHÃ

A opção de Milena Times em AINDA NÃO É AMANHÃ (2024) é contar uma história de maneira simples sobre uma jovem optando pelo aborto, sendo que é uma opção nada fácil, lembrando que o Brasil ainda é um país em que a interrupção da gravidez ainda é crime. Falo em simples, pois não há a intenção de fazer um libelo feminista como UMA CANTA, A OUTRA NÃO, de Agnès Varda; ou um drama extremamente tenso como O ACONTECIMENTO, de Audrey Diwan; ou uma tragédia de dimensões clássicas como 4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS, de Cristian Mungiu; ou uma jornada extremamente delicada, como NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE, de Eliza Hittman. A história de Janaína é mais comum, mais ordinária, no sentido de que acontece o tempo todo no Brasil, só que é algo muito pouco comentado. Na cena em que Janaína conta para a colega de classe que está grávida, ela fica admirada ao saber que a colega também já passou por isso antes. O que a diretora mais destaca em seu filme é a sororidade, é o quanto a mulher mais recebe ajuda de suas amigas e familiares do sexo feminino do que do namorado. Não que o filme vilanize a figura do rapaz, mas no fim das contas essa é uma história em que a mulher é a protagonista. Embora talvez não devesse ter que ser sempre assim.

EVIDÊNCIAS DO AMOR 

Filme divertido que opera (bem) mais na chave da comédia, mas que também pode ser visto como uma história dramática sobre um homem em busca dos motivos por que seu relacionamento se perdeu. Para isso, o destino lhe dá o mecanismo de acessar as memórias a partir da audição de "Evidências", clássico dos karaokês. EVIDÊNCIAS DO AMOR (2024) começa, aliás, num karaokê, em que os personagens de Fábio Porchat e Sandy Leah se conhecem e engatam um namoro. Sobre a natureza fantástica do filme, lembrei-me de CLICK, com Adam Sandler, em alguns momentos, inclusive. A brincadeira em torno da canção é divertida, e, por mais que Porchat e Sandy não tenham tanta química juntos como casal, como eles passam a maior parte do tempo separados, o drama da separação acaba funcionando. (Curiosamente, Porchat funcionou muito bem quando trabalhou como par romântico de Miá Mello nos dois MEU PASSADO ME CONDENA, mas talvez isso se dê devido a uma natureza diferente dos filmes). No caso do filme de Pedro Antônio, há uma leve estranheza que me agrada e me fez ficar interessado do início ao fim - a montagem é acertada, mal se vê o tempo passar. Quando a sessão acabou, teve até coro de espectadores cantando "Evidências" enquanto subiam os créditos.

domingo, junho 15, 2025

A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA



Certa vez, de posse do livro de contos Sagarana, de Guimarães Rosa, me dispus à tarefa de ler o conto de "A Hora e Vez de Augusto Matraga", para, em seguida, assistir à adaptação fílmica, que é algo que me dá muito prazer. Meu mestrado se deu em torno de adaptações/traduções da literatura para o cinema e esse prazer de pensar o filme à luz da obra literária, ou vice-versa, acontece desde a aurora de minha cinefilia: lembro de quando vi no cinema A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER, de Philip Kaufman, tendo ainda fresquinho na memória o romance homônimo de Milan Kundera; ou quando li O Cemitério, de Stephen King, meses depois de ter visto no cinema CEMITÉRIO MALDITO, de Mary Lambert. Ou seja, o caminho inverso também é muito interessante, embora possa atrapalhar quando pensamos nas feições do ator ou da atriz do filme enquanto lemos o texto literário.

Pois bem. Acontece que tive uma tristeza ao pegar a cópia então disponível na internet de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (1965), de Roberto Santos. A cópia existente até então tinha um som muito ruim, quase indecifrável. E foi isso que me fez desistir de ver o filme. Não entender o que os personagens estão dizendo, mesmo que em português, me incomoda bastante. (Aconteceu o mesmo quando tentei ver A ILHA, de Walter Hugo Khouri.) Eis que neste ano, um fórum de compartilhamento de filmes disponibilizou a versão restaurada em 2K do filme, uma versão que até tem algumas falhas no áudio, mas é por causa do master em 35 mm presente nos arquivos da Cinemateca Brasileira, que já estava danificado em alguns poucos trechos. Foi ele que serviu de base, já que os negativos originais estavam em pior estado. Assim, essa remasterização é o que há de mais próximo da beleza da fotografia original, a cargo de Hélio Silva, o mesmo de O GRANDE MOMENTO (1958), um dos títulos anteriores (e muito celebrados) de Santos.

A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA é um dos mais belos filmes que já vi na vida. Sem dúvida alguma. E ainda sonho em poder vê-lo na telona, quando for possível um relançamento nessa nova cópia, que está, ao que parece, no limbo da distribuição. Roberto Santos faz uma obra tão à altura do conto de Guimarães Rosa que é de deixar a gente de queixo caído. Dizem que o próprio Guimarães amou o filme e que considerou várias partes até melhor que seu conto.

A obra fílmica já impressiona desde as primeiras imagens, quando percebemos o trabalho incrível de mise-en-scène e a música de abertura cantada por Geraldo Vandré, que diz "Se alguém tem que morrer que seja pra melhorar". E isso é representativo da trajetória do herói, Augusto Matraga, antes um homem com a maldade na alma, mas não tão diferente assim dos demais homens de mais posses daquele sertão mineiro violento. É preciso que ele "morra" (e uma morte muito cruel, muito dolorosa de se ver, e muito impressionante para um filme de 1965) para que renasça num novo homem.

É tudo tão perfeito no filme de Santos que é quase um milagre sua existência, uma dessas coisas que parecem ter nascido de uma conjunção astral muito particular. Leonardo Villar está em estado de graça como o personagem-título e Jofre Soares está incrível como o pistoleiro Joãozinho Bem-Bem. A luta na igreja entre Augusto e João é de tal beleza épica que me fez lembrar do confronto entre Heitor e Aquiles no clássico Ilíada, de Homero. O sorriso no rosto dos dois homens, mesmo que ensanguentados, ao estarem enfrentando adversários por quem têm muito respeito, chega a ser tocante.

E para que se chegue até esse momento, toda a trajetória de renascimento de Augusto é cheia de beleza, entrega, indignação, consternação, dor, alegria, compreensão da própria força, como na cena da disputa de força física entre Augusto e um burrinho selvagem. Quando Augusto monta o burrinho sem ter que segurá-lo é como se ele soubesse naquele instante que seu lado animal estava não apenas domado, mas também pronto novamente para enfrentar. Mas agora ele é um outro Augusto, um Augusto que encontrou Deus, que foi salvo por um casal de agricultores muito humildes que cuidou dele como a filho, e por isso mesmo sua visão de mundo passa a ser mais espiritual, ainda que também mais conflitiva. Por isso na cena que ele se aproxima da igreja que está sendo invadida pelo bando de Joãozinho Bem-Bem, sua presença representa uma espécie de resposta às preces de quem está dentro da igreja. Melhor ainda: da definição de seu papel no mundo.

Ver A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA é perceber a beleza dos planos e o cuidado com os travellings. Adoro aquele em que o homem que cobiça Dionóra (Maria Ribeiro), a esposa de Matraga, passeia pela casa enquanto a mulher está à janela. E o que dizer do gesto do servo de Matraga, vivido por Flávio Migliaccio, ao lutar contra os inimigos do patrão, mesmo sabendo que não terá a menor chance? E tudo isso em cortes perfeitos a cargo do montador Silvio Renoldi, poucos anos antes de montar clássicos do cinema brasileiro, como O BANDIDO DA LUZ VERMELHA, AS DEUSAS e LÚCIO FLÁVIO, O PASSAGEIRO DA AGONIA, entre tantos outros.

Essa junção da direção acertada de Santos, com o texto sobrenatural e fabuloso de Guimarães, do roteiro de Santos com Gianfrancesco Guarnieri que completa com sabedoria o texto literário, da fotografia em preto e banco de Hélio Silva que destaca as sombras dos interiores e dos momentos mais sombrios e a luz intensa do sol do sertão, das interpretações inspiradas do elenco, da música de Vandré, tudo isso faz com que queiramos rever o filme, saboreando cada momento com atenção: cada frame, cada detalhe, cada olhar e cada gesto. Não é todo dia que se vê algo assim, não.

+ TRÊS FILMES

MANAS

Usam muito o termo "coming of age" para descrever histórias que apresentam o processo de amadurecimento de um menino ou uma menina. Mas ao ver agora, rapidamente, alguém descrevendo MANAS (2024) desta forma vi o quanto não vi o filme dessa maneira, de tão porrada que ele é. Pra começar, não é nada fácil ver filmes sobre abusos cometidos a menores, mas também vejo o quanto um trabalho como este é importante e necessário. Mas a grande vantagem deste terceiro longa-metragem de Marianna Brennand é que não se trata apenas de um filme-denúncia, mas que também tem seus valores estéticos que saltam aos olhos: há uma cena, por exemplo, em que Marcielli (Jamilli Correa), a menina protagonista, é abordada pelo pai e um jogo de sombra faz lembrar M – O VAMPIRO DE DÜSSELDORF, de Fritz Lang. E há muitas sequências brilhantemente pensadas para na posição da câmera e no essas mesmas cenas aparecem de forma mais impactante por causa dessas escolhas, como nas cenas na casa onde a família mora, uma casa simples em que todos dormem num mesmo lugar, com apenas uma cama e várias redes. Além de tudo tem isso: a apresentação de um universo que é novo para a maioria dos brasileiros, a Ilha de Marajó. MANAS é um daqueles filmes que chamam de "slow burn", mas quando pega fogo mesmo mexe muito com a gente. Adorei o papel de Dira Paes, como a policial federal que procura ajudar Marcielli.

UM OUTRO FRANCISCO

"Partiu Cannes!" Sabia que ia ter a oportunidade de dizer, mas pelo menos agora a Cannes que visitei, com este filme, foi a cidade romeira de Canindé, no Ceará, onde se passa a maior parte da jornada de dois fotógrafos italianos dispostos a usar a arte e a técnica da fotografia para flagrar e compreender a festa de São Francisco que acontece na cidade, com demonstrações de fé dos fiéis, além de outros espaços da cidade, como um parque de diversões ou até um abatedouro. Em UM OUTRO FRANCISCO (2022) discute-se questões éticas do fotógrafo ao registrar alguém que está doente ou em situação de miséria moral ou financeira. E também discute-se diferenças culturais quando se compara o culto a São Francisco na cidade de Assis, na Itália, e como se dá em Canindé. A diretora Margarita Hernández, no que parece ser seu primeiro longa para cinema, consegue entrevistas com personagens carismáticos, como a mulher que adora fotografar, ou os meninos que confundem a câmera com uma arma, ou a adolescente que se vê mãe tão cedo. Um belo trabalho.

RITAS

Gosto muito de sair de uma cinebiografia gostando mais ainda do biografado. Então, por mais que eu já admirasse Rita Lee, já achasse linda e talentosa, neste doc a gente passa a ver Rita também como uma mulher linda por dentro: corajosa e ousada na construção de suas canções, defensora dos animais, uma capricorniana sábia e sensível. RITAS (2025), de Oswaldo Santana, é costurado a partir do relato da própria cantora e compositora, inclusive com imagens inéditas dela falando para a câmera como se já deixasse aquilo de registro para ser visto postumamente, como se já soubesse que era uma despedida: não à toa, ela dizer "Hello, goodbye" no prólogo não é apenas uma citação aos Beatles. E em outro momento ela também se refere à vida dela no passado. Mas o filme é cheio de vitalidade, cheio de energia: a energia do sol (dos cabelos vermelhos) e da luz (dos cabelos brancos), como ela destaca. Há poucos momentos na fase com os Mutantes, mas foi melhor assim: até para que o filme centrasse na tão rica carreira solo dela, e também em várias aparições da artista em programas de televisão, filmes e em shows de artistas de alto gabarito, como Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina e João Gilberto. As entrevistas que ela dá revelam sempre uma pessoa muito feliz e muito disposta a enfrentar o establishment, principalmente na época da censura, na ditadura militar, mas não apenas. Ela sabia que vivia numa sociedade extremamente conservadora, e ela insistia em desafiar essa sociedade com sua arte, tão cheia de sensibilidade e também com uma sexualidade lindamente aflorada. Hoje também posso dizer que tive muita sorte de ter ido a um show da Rita Lee, nos meus tempos de faculdade, nos anos 1990, na turnê de Santa Rita de Sampa (1997). E foi incrível.

sábado, junho 07, 2025

MISSÃO: IMPOSSÍVEL – O ACERTO FINAL (Mission: Impossible – The Final Reckoning)



A franquia Missão: Impossível nasceu num momento em que Tom Cruise estava construindo uma carreira perfeita, a partir da parceria feita com grandes cineastas autores. Nesse período, que vai dos anos 1980 até os anos 2000, ele trabalhou com gigantes como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Ridley Scott, Tony Scott, Oliver Stone, Neil Jordan, Steven Spielberg, Michael Mann, Stanley Kubrick e Paul Thomas Anderson. Por isso que os três (ou quatro?) filmes da franquia Missão: Impossível foram dirigidos por gente como Brian De Palma, John Woo, J.J. Abrams e Brad Bird. A ideia, até então, era que cada filme tivesse a cara de seu diretor.

Eis que tudo muda com MISSÃO: IMPOSSÍVEL – NAÇÃO SECRETA (2015), dirigido por Christopher McQuarrie, que dirigiria também os próximos três filmes da cinessérie. Tom Cruise havia gostado de trabalhar com McQuarrir em JACK REACHER – O ÚLTIMO TIRO (2012), mas na verdade McQuarrie já era um roteirista presente em vários outros filmes estrelados pelo astro – desde OPERAÇÃO VALQUÍRIA (2008). E essa parceria acabou dando muito certo num momento em que Cruise assumiu de vez a posição de astro de filmes de ação, e não mais aquele cara que quer ganhar o Oscar ou ficar “à sombra” de um grande autor. Agora ele é dono de seus filmes, o produtor. E um produtor muito exigente, que faz questão até de, ele mesmo, estar presente em cenas bem perigosas, quando poderia usar um dublê.

MISSÃO IMPOSSÍVEL – NAÇÃO SECRETA também foi o filme que trouxe pela primeira vez a belíssima atriz sueca Rebecca Ferguson no papel de Ilsa Faust, uma personagem moralmente ambígua, uma ex-agente de inteligência empregada pelo MI6. Infelizmente Ilsa morre em MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO DE CONTAS: PARTE UM (2023) e pra mim fez muita falta no último filme da série, sua continuação direta, mas uma obra mais ambiciosa, MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO FINAL (2025), que não conta com o mesmo ritmo frenético do anterior e que traz temas mais sérios e exige um pouco mais de concentração por parte do espectador, por mais que a maior parte da informação repassada possa ser relevada, como acontece em muitos filmes de espionagem, quando o que importa é conseguir concluir a missão, muitas vezes só compreendida quando ela já está sendo executada – esse recurso é até inteligente, pois evita repetições e mais blá-blá-blá e até traz algumas boas surpresas na hora da ação.

No sétimo e no oitavo filmes da franquia, Tom Cruise e seu fiel escudeiro, o diretor Christopher McQuarrie, sentiram o desejo de fazer um grande épico, a mais longa aventura de Ethan Hunt, e isso acabou beneficiando mais a primeira parte, de 2023. Nesta segunda, há uma intenção de tornar a ameaça cibernética, uma inteligência artificial chamada A Entidade, como algo maior que um mero mcguffin, e por isso há longos e confusos diálogos a respeito, alguma tentativa de estabelecer certo vínculo com o atual momento geopolítico e certa crítica à dependência que temos do mundo digital e da internet, por mais que no fim das contas saibamos que Missão: Impossível é mesmo sobre obstáculos extremamente difíceis a ser superados.

Inclusive para o próprio Tom Cruise, que até já quebrou o tornozelo uma vez, nas filmagens de um dos mais festejados títulos da cinessérie, MISSÃO: IMPOSSIVEL – EFEITO FALLOUT (2017). O ACERTO FINAL tem o problema de se levar a sério demais e entregar uma quantidade menor de cenas empolgantes, diferente do anterior – além de terem matado uma personagem muito querido no filme passado. A sorte é que, ainda assim, este aqui ainda tem duas atrizes bem carismáticas, Hayley Atwell, a ladra, e Pom Klementieff, a assassina, ambas apresentadas no filme anterior.

As duas cenas de ação mais importantes são a do submarino (bem longa, mas também bem tensa e marcante) e a dos bimotores. E são cenas que se beneficiam do realismo do estilo antigo de filmar, com bem menos uso de CGI. Não deixa de ser um mérito e tanto para os dias de hoje em Hollywood, que faz com que saiamos das sessões de aventuras com a impressão de ter visto uma produção toda feita em computador. Claro que, além da vontade, é preciso muito dinheiro para executar esse tipo de projeto, mais analógico.

Esse ar de maior ambição (e de saudosismo) deste novo filme vem também de uma vontade de fazer uma auto-homenagem, trazendo cenas de títulos anteriores e fazendo uma conexão direta com a história do primeiro e hoje clássico MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996), dirigido por Brian De Palma. As imagens em forma de flashbacks rápidos servem para dar um tom de despedida à franquia e trazer também uma dúvida sobre o futuro da carreira de Cruise. Será que ele vai deixar os filmes de ação e ingressar em filmes de autores consagrados novamente? É possível, já que a idade chega e também há o projeto já em andamento para o ano que vem, sob direção de Alejandro G. Iñarritú, cujo O REGRESSO deu finalmente um Oscar a Leonardo DiCaprio.

+ TRÊS FILMES

BAILARINA (Ballerina)

Talvez se este filme tivesse sido lançado antes do primeiro John Wick, aqui chamado de DE VOLTA AO JOGO (2014), ele fosse visto como sendo algo mais interessante e até inovador, mas a ideia de um spin-off sem muita inventividade e protagonizado por Ana de Armas (talvez por sua boa cena de ação em 007 – SEM TEMPO PARA MORRER) teria funcionado se os criadores da franquia original, principalmente Chad Stahelski, tivessem assumido a direção e o comando também de BAILARINA (2025). Entregar para um cara apagado e sem talento como Len Wiseman ( ANJOS DA NOITE - UNDERWORLD, 2003) é como entregar o ouro ao bandido, ou então não estar muito interessado na reputação tão boa que a franquia estrelada por Keanu Reeves alcançou de público e crítica. Aqui temos uma história de vingança que também não funciona muito bem como história de vingança. Ou funciona em parte, já que no momento em que ela chega no KG do chefe da organização criminosa o filme começa a ficar mais interessante - gosto especialmente de uma cena envolvendo fogo e água, que é simbólica do feminino contra o masculino. Outro problema é que John Wick representa um momento de transição do cinema de ação americano, que passou a olhar mais atenciosamente para as produções de ação de Hong Kong e talvez também da Tailândia para a elaboração das cenas. O que fica em BAILARINA é o ar de familiaridade com o que já conhecíamos: o hotel Continental, os personagens de Ian McShane e Lance Reddick, as moedas de ouro e, claro, a participação de Keanu Reeves. Ana de Armas tem, sim, um grande carisma e já tem um currículo invejável, mas merecia um diretor melhor, até para ter, finalmente, um bom filme inteiramente protagonizado por ela.

O ESQUEMA FENÍCIO (The Phoenician Scheme)

Acompanho Wes Anderson no cinema desde TRÊS É DEMAIS (1998), quando ele ainda não havia sedimentado seu estilo. A partir de OS EXCÊNTRICOS TENEBAUMS (2001), porém, seu estilo ficou inconfundível e sua direção de arte e seu trabalho de simetria tornariam sua assinatura de fácil identificação. Acho incrível o quanto o diretor segue fazendo seu cinema sem concessões e aparentemente livre de interferência de produtores e estúdios. E ainda com elencos invejáveis, com os atores provavelmente trabalhando com salários bem menores para que as produções sejam possíveis. E nem se trata de ser a mesma trupe de amigos: a cada filme, novos nomes talentosos se juntam a seu time. O ESQUEMA FENÍCIO (2025) faz uma homenagem às antigas aventuras rocambolescas dos anos 1920-40, e em especial ao trabalho do diretor e produtor Alexander Korda, de O LADRÃO DE BAGDÁ. O filme é estrelado por Benicio Del Toro, que faz o papel de um chefão do crime que é constantemente alvo de tentativas de assassinato por parte de vários inimigos. O ESQUEMA FENÍCIO não me pegou tanto quanto o anterior ASTEROID CITY (2023), onde eu consegui penetrar no aparente jogo racional de Anderson. Mas acredito que posso ter visto num dia ruim. De todo modo, é difícil não admirar o trabalho do diretor, suas obsessões e seu estilo narrativo semelhante a um livro e às vezes a uma pintura, mas essencialmente cinematográfico.

VINGANÇA (The Assignment)

Quando soube da premissa deste filme já fiquei logo interessado em ver. É mais ou menos como se a personagem-vítima de A PELE QUE HABITO, de Pedro Almodóvar, fosse partir para a vingança depois de ter sido capturada e transformada em mulher numa cirurgia de mudança de sexo. Ou seja, é um tipo de filme que se arrisca no mau gosto, em ser acusado de transfóbico, inclusive, mas ao mesmo tempo é sempre muito atraente. Ou talvez por isso mesmo seja atraente, assim como também chama muito a atenção seu dinamismo como filme de ação criminal, com uma narração em voice-over da protagonista que às vezes lembra um Frank Castle (o Justiceiro, da Marvel), sendo que o nome do personagem é Frank Kitchen. Ainda bem que as cenas de Michelle Rodriguez de barba são poucas, pois são as que menos funcionam, embora uma cena de prótese seja importante para enfatizar o membro perdido, mas depois a atriz entrega muito bem como a pessoa atormentada e disposta a partir pra cima dos responsáveis pelo que lhe aconteceu. Gosto das transições entre cenas, quando Walter Hill, cujo auge como cineasta aconteceu nos anos 1970 e 80, faz brincadeiras com desenho e uso de íris, o que acaba tornando a apreciação deste VINGANÇA (2016) quase como uma leitura de um quadrinhos. Sigourney Weaver interpreta a cirurgiã responsável pela operação, e principal condutora da narrativa. Uma bela surpresa. Valeu pela dica, Cristian Paiva!