
Creio que acompanhar a filmografia de Samuel Fuller neste ritmo de um por mês não está sendo tão benéfico assim para que eu possa apreender e compreender melhor os temas e as obsessões do cineasta. Na época da pandemia pude me dar ao luxo de ver um filme a cada dois dias de Abel Ferrara, por exemplo; ou um filme a cada três dias de Fritz Lang. Mas aqueles eram outros tempos e havia a situação do distanciamento social, e da maior possibilidade de adentrar mais leituras e mais filmes noite adentro. E também uma produção maior de escrita de minha parte. Hoje me vejo num emprego que consome minha energia e não sei se torço para a chegada logo de minha aposentadoria ou se aproveito enquanto não tenho ainda 60 anos de idade para agradecer pela vitalidade razoável de que disponho.
Mesmo assim, teimo em seguir nessa tarefa de abraçar a filmografia de Fuller, ainda que, confesso, não esteja tão entusiasmado quanto na época do Ferrara, do Lang e do Brian De Palma, para citar os três últimos diretores que escolhi acompanhar a obra em ordem cronológica. De Palma, sempre amei, na verdade, e a maioria dos filmes eram revisões; mas revisões muito bem-vindas e necessárias. Já Fuller é aquele diretor que ganha mais meu coração após o término do filme, ao pensar em sua obra, do que durante a apreciação. Até porque ele às vezes confunde mesmo.
Acho O QUIMONO ESCARLATE (1959) um dos títulos de Fuller que tem mais cara de filme B (até porque ele vinha de uma fase de cinema de guerrilha, após sua parceria com a Fox). O filme começa como um thriller policial sobre a investigação da morte de uma stripper (é ótima a cena da moça correndo de lingerie pela rua ao se ver em perigo) e depois vira a chave e se transforma num melodrama bastante carregado sobre um triângulo amoroso que arrisca romper a amizade entre dois amigos detetives de polícia e, mais importante, injeta um tipo de sentimento de rejeição (não necessariamente existente) no personagem nipo-americano, que faz com que passemos a ver um filme sobre autopercepção, sobre sensação de não pertencimento.
Não que seja um trabalho cheio de psicologismos, já que o cinema do Fuller é muito urgente, muito herdeiro de sua formação jornalística, mas mostrar essas pessoas que são ou se sentem rejeitadas é um tema caro a Fuller, que sempre gostou dos fracassados, vide EU MATEI JESSE JAMES (1949), ANJO DO MAL (1953), NO UMBRAL DA CHINA (1957) e RENEGANDO MEU SANGUE (1957). Embora eu goste mais das cenas de tensão dramática entre o trio, é nas cenas de ação que o cineasta mostra mais sua força. Tanto que a opção por apresentar a raiva que consome o personagem de James Shigeta é melhor explodida na luta de kendô com seu colega, o policial vivido por Glenn Corbert.
Os dois detetives de polícia acabam se apaixonando pela mesma mulher, a pintora Chris, vivida por Victoria Shaw. Ela está sob os cuidados deles, sob risco de, ao fazer o retrato falado do principal suspeito, entrar na mira dos criminosos. No momento que ela fica hospedada no mesmo quarto de hotel dos dois, acontece uma química mais explosiva, que infelizmente não parece tão bem desenvolvida, já que a opção de Fuller é por cenas curtas, cortes rápidos. Inclusive, aqui ele se antecipa a Jean-Luc Godard com o uso dos jump cuts em ACOSSADO.
Queria ter me envolvido mais com os personagens, com a trama e com o filme em si, mas comecei também a prestar atenção até em mudanças de luz e tons de preto e branco entre os cortes, o que faz transparecer uma produção muito modesta (trata-se de um de seus filmes mais baratos). É como se Fuller fosse uma espécie de José Mojica Marins, pegando pedaços diferentes de celuloide para dar conta de sua obra. Assim, ora vemos uma imagem de uma tonalidade, ora de outra; ora mais, ora menos nítida. O que não deixa de ser algo charmoso.
Também é destaque em O QUIMONO ESCALARTE o uso das chamadas stolen shots, ou seja, cenas filmadas às escondidas, sem autorização, como uma no final, no meio de uma festa japonesa nas ruas de Los Angeles, no bairro de Little Tokyo, um espaço que é ao mesmo tempo estranho e parte da paisagem da cidade. O respeito que Fuller já havia deixado explícito pelo povo asiático em filmes anteriores, como CASA DE BAMBU (1955) e NO UMBRAL DA CHINA, ganha novos contornos neste melodrama policial que se passa, desta vez nos Estados Unidos, mas privilegiando mais o ponto de vista do policial japonês que se imagina (e muitas vezes é mesmo) como alguém inferiorizado ou até mesmo um inimigo dos brancos americanos do que dos outros dois protagonistas.
Visto no box A Arte de Samuel Fuller.
+ TRÊS FILMES
VIRGÍNIA E ADELAIDE
Yasmin Thayná estreia na direção de longas – mas com um histórico de obras abordando a negritude e o racismo no Brasil – ao lado de um cineasta já consagrado desde os anos 1980. Para VIRGÍNIA E ADELAIDE (2024), Jorge Furtado carrega a brincadeira enciclopédica que costura a conversa e as sessões de terapia entre as duas mulheres, remetendo principalmente a ILHA DAS FLORES (1989). Reparamos que em nossa sessão havia bastante gente do meio da psicologia e da psicanálise e o filme também busca chamar atenção dos estudiosos e interessados nas questões de raça. Na trama, Virgínia está na faculdade e quer fazer terapia com a única mulher psicoterapeuta do Brasil, uma judia alemã fugida do nazismo na Alemanha dos anos 1930. As duas atrizes estão muito bem, embora eu tenha demorado a me acostumar com o sotaque de Sophie Charlotte e sua personagem mais sisuda - em geral ela faz personagens mais sorridentes. O filme pode trazer, direta ou indiretamente, alguns questionamentos para o próprio espectador, a partir das angústias da personagem de Gabriela Correia. Outro destaque é o quanto aquilo que poderia ser teatro filmado se transforma em cinema, com uso de split-screen, escolhas de esconder ou mostrar o rosto de uma delas, ou nas cenas em que o filme se mixa a um documentário.
BETÂNIA
Uma das vantagens de um filme como BETÂNIA (2024), de Marcelo Botta, existir está principalmente em mostrar o quanto o Brasil é imenso, o quanto temos vários brasis, e o quanto o cinema maranhense e a própria cultura popular do Maranhão ainda se faz distante do que é veiculado em nossas salas de exibição. A história se passa em vilarejos nos Lençóis Maranhenses, que se mostram tão belos quanto ameaçadores em sua grandiosidade. Diria que se trata de um filme-coral que se pretende maior do que consegue ser em sua capacidade de trazer sensibilidade ao drama dos personagens, encabeçados principalmente por Betânia (Diana Mattos), uma parteira de 65 anos que não quer sair da casa onde cresceu, e que quase perde o protagonismo para Tonhão (Caçula Rodrigues), o guia de turismo responsável pela cena mais divertida. Achei curiosa a escolha por uma fotografia pouca luminosa, como que não aproveitando a luz do estado. Ou talvez tenha sido essa a intenção: trazer mais lusco-fusco do que sol a pino. E de certa forma isso representa um pouco do espírito agridoce do filme.
PELE FINA
A princípio, PELE FINA (2022), de Arthur Lins, me lembrou o inglês BRUXAS, de Elizabeth Sankey, por começar com imagens de outros filmes que retratam a mulher em situações de angústia ou algo parecido. Mas depois essas imagens (ricas) saem de cena e um texto incomodamente teatral começar a dar as cartas, especialmente quando a personagem de Ingrid Trigueiro, uma dramaturga buscando inspiração para trabalhar numa cidade litorânea da Paraíba, passa a explorar tanto suas próprias aflições quanto o texto da dramaturga inglesa Sarah Kane, que se suicidou aos 28 anos e que começa a assombrar a protagonista. O filme sai de vez em quando desse registro mais teatral quando deixa as falas e mostra o mar e o mistério da noite, mas isso não quer dizer que tenha me ganhado. O que eu gosto e admiro, além de algumas cenas com Tavinho Teixeira, é essa coisa de ser cinema de guerrilha, feito com poucos recursos e muita vontade de pôr para as telas aquilo que lhe é caro.
PELE FINA
A princípio, PELE FINA (2022), de Arthur Lins, me lembrou o inglês BRUXAS, de Elizabeth Sankey, por começar com imagens de outros filmes que retratam a mulher em situações de angústia ou algo parecido. Mas depois essas imagens (ricas) saem de cena e um texto incomodamente teatral começar a dar as cartas, especialmente quando a personagem de Ingrid Trigueiro, uma dramaturga buscando inspiração para trabalhar numa cidade litorânea da Paraíba, passa a explorar tanto suas próprias aflições quanto o texto da dramaturga inglesa Sarah Kane, que se suicidou aos 28 anos e que começa a assombrar a protagonista. O filme sai de vez em quando desse registro mais teatral quando deixa as falas e mostra o mar e o mistério da noite, mas isso não quer dizer que tenha me ganhado. O que eu gosto e admiro, além de algumas cenas com Tavinho Teixeira, é essa coisa de ser cinema de guerrilha, feito com poucos recursos e muita vontade de pôr para as telas aquilo que lhe é caro.