domingo, junho 15, 2025

A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA



Certa vez, de posse do livro de contos Sagarana, de Guimarães Rosa, me dispus à tarefa de ler o conto de "A Hora e Vez de Augusto Matraga", para, em seguida, assistir à adaptação fílmica, que é algo que me dá muito prazer. Meu mestrado se deu em torno de adaptações/traduções da literatura para o cinema e esse prazer de pensar o filme à luz da obra literária, ou vice-versa, acontece desde a aurora de minha cinefilia: lembro de quando vi no cinema A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER, de Philip Kaufman, tendo ainda fresquinho na memória o romance homônimo de Milan Kundera; ou quando li O Cemitério, de Stephen King, meses depois de ter visto no cinema CEMITÉRIO MALDITO, de Mary Lambert. Ou seja, o caminho inverso também é muito interessante, embora possa atrapalhar quando pensamos nas feições do ator ou da atriz do filme enquanto lemos o texto literário.

Pois bem. Acontece que tive uma tristeza ao pegar a cópia então disponível na internet de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (1965), de Roberto Santos. A cópia existente até então tinha um som muito ruim, quase indecifrável. E foi isso que me fez desistir de ver o filme. Não entender o que os personagens estão dizendo, mesmo que em português, me incomoda bastante. (Aconteceu o mesmo quando tentei ver A ILHA, de Walter Hugo Khouri.) Eis que neste ano, um fórum de compartilhamento de filmes disponibilizou a versão restaurada em 2K do filme, uma versão que até tem algumas falhas no áudio, mas é por causa do master em 35 mm presente nos arquivos da Cinemateca Brasileira, que já estava danificado em alguns poucos trechos. Foi ele que serviu de base, já que os negativos originais estavam em pior estado. Assim, essa remasterização é o que há de mais próximo da beleza da fotografia original, a cargo de Hélio Silva, o mesmo de O GRANDE MOMENTO (1958), um dos títulos anteriores (e muito celebrados) de Santos.

A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA é um dos mais belos filmes que já vi na vida. Sem dúvida alguma. E ainda sonho em poder vê-lo na telona, quando for possível um relançamento nessa nova cópia, que está, ao que parece, no limbo da distribuição. Roberto Santos faz uma obra tão à altura do conto de Guimarães Rosa que é de deixar a gente de queixo caído. Dizem que o próprio Guimarães amou o filme e que considerou várias partes até melhor que seu conto.

A obra fílmica já impressiona desde as primeiras imagens, quando percebemos o trabalho incrível de mise-en-scène e a música de abertura cantada por Geraldo Vandré, que diz "Se alguém tem que morrer que seja pra melhorar". E isso é representativo da trajetória do herói, Augusto Matraga, antes um homem com a maldade na alma, mas não tão diferente assim dos demais homens de mais posses daquele sertão mineiro violento. É preciso que ele "morra" (e uma morte muito cruel, muito dolorosa de se ver, e muito impressionante para um filme de 1965) para que renasça num novo homem.

É tudo tão perfeito no filme de Santos que é quase um milagre sua existência, uma dessas coisas que parecem ter nascido de uma conjunção astral muito particular. Leonardo Villar está em estado de graça como o personagem-título e Jofre Soares está incrível como o pistoleiro Joãozinho Bem-Bem. A luta na igreja entre Augusto e João é de tal beleza épica que me fez lembrar do confronto entre Heitor e Aquiles no clássico Ilíada, de Homero. O sorriso no rosto dos dois homens, mesmo que ensanguentados, ao estarem enfrentando adversários por quem têm muito respeito, chega a ser tocante.

E para que se chegue até esse momento, toda a trajetória de renascimento de Augusto é cheia de beleza, entrega, indignação, consternação, dor, alegria, compreensão da própria força, como na cena da disputa de força física entre Augusto e um burrinho selvagem. Quando Augusto monta o burrinho sem ter que segurá-lo é como se ele soubesse naquele instante que seu lado animal estava não apenas domado, mas também pronto novamente para enfrentar. Mas agora ele é um outro Augusto, um Augusto que encontrou Deus, que foi salvo por um casal de agricultores muito humildes que cuidou dele como a filho, e por isso mesmo sua visão de mundo passa a ser mais espiritual, ainda que também mais conflitiva. Por isso na cena que ele se aproxima da igreja que está sendo invadida pelo bando de Joãozinho Bem-Bem, sua presença representa uma espécie de resposta às preces de quem está dentro da igreja. Melhor ainda: da definição de seu papel no mundo.

Ver A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA é perceber a beleza dos planos e o cuidado com os travellings. Adoro aquele em que o homem que cobiça Dionóra (Maria Ribeiro), a esposa de Matraga, passeia pela casa enquanto a mulher está à janela. E o que dizer do gesto do servo de Matraga, vivido por Flávio Migliaccio, ao lutar contra os inimigos do patrão, mesmo sabendo que não terá a menor chance? E tudo isso em cortes perfeitos a cargo do montador Silvio Renoldi, poucos anos antes de montar clássicos do cinema brasileiro, como O BANDIDO DA LUZ VERMELHA, AS DEUSAS e LÚCIO FLÁVIO, O PASSAGEIRO DA AGONIA, entre tantos outros.

Essa junção da direção acertada de Santos, com o texto sobrenatural e fabuloso de Guimarães, do roteiro de Santos com Gianfrancesco Guarnieri que completa com sabedoria o texto literário, da fotografia em preto e banco de Hélio Silva que destaca as sombras dos interiores e dos momentos mais sombrios e a luz intensa do sol do sertão, das interpretações inspiradas do elenco, da música de Vandré, tudo isso faz com que queiramos rever o filme, saboreando cada momento com atenção: cada frame, cada detalhe, cada olhar e cada gesto. Não é todo dia que se vê algo assim, não.

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MANAS

Usam muito o termo "coming of age" para descrever histórias que apresentam o processo de amadurecimento de um menino ou uma menina. Mas ao ver agora, rapidamente, alguém descrevendo MANAS (2024) desta forma vi o quanto não vi o filme dessa maneira, de tão porrada que ele é. Pra começar, não é nada fácil ver filmes sobre abusos cometidos a menores, mas também vejo o quanto um trabalho como este é importante e necessário. Mas a grande vantagem deste terceiro longa-metragem de Marianna Brennand é que não se trata apenas de um filme-denúncia, mas que também tem seus valores estéticos que saltam aos olhos: há uma cena, por exemplo, em que Marcielli (Jamilli Correa), a menina protagonista, é abordada pelo pai e um jogo de sombra faz lembrar M – O VAMPIRO DE DÜSSELDORF, de Fritz Lang. E há muitas sequências brilhantemente pensadas para na posição da câmera e no essas mesmas cenas aparecem de forma mais impactante por causa dessas escolhas, como nas cenas na casa onde a família mora, uma casa simples em que todos dormem num mesmo lugar, com apenas uma cama e várias redes. Além de tudo tem isso: a apresentação de um universo que é novo para a maioria dos brasileiros, a Ilha de Marajó. MANAS é um daqueles filmes que chamam de "slow burn", mas quando pega fogo mesmo mexe muito com a gente. Adorei o papel de Dira Paes, como a policial federal que procura ajudar Marcielli.

UM OUTRO FRANCISCO

"Partiu Cannes!" Sabia que ia ter a oportunidade de dizer, mas pelo menos agora a Cannes que visitei, com este filme, foi a cidade romeira de Canindé, no Ceará, onde se passa a maior parte da jornada de dois fotógrafos italianos dispostos a usar a arte e a técnica da fotografia para flagrar e compreender a festa de São Francisco que acontece na cidade, com demonstrações de fé dos fiéis, além de outros espaços da cidade, como um parque de diversões ou até um abatedouro. Em UM OUTRO FRANCISCO (2022) discute-se questões éticas do fotógrafo ao registrar alguém que está doente ou em situação de miséria moral ou financeira. E também discute-se diferenças culturais quando se compara o culto a São Francisco na cidade de Assis, na Itália, e como se dá em Canindé. A diretora Margarita Hernández, no que parece ser seu primeiro longa para cinema, consegue entrevistas com personagens carismáticos, como a mulher que adora fotografar, ou os meninos que confundem a câmera com uma arma, ou a adolescente que se vê mãe tão cedo. Um belo trabalho.

RITAS

Gosto muito de sair de uma cinebiografia gostando mais ainda do biografado. Então, por mais que eu já admirasse Rita Lee, já achasse linda e talentosa, neste doc a gente passa a ver Rita também como uma mulher linda por dentro: corajosa e ousada na construção de suas canções, defensora dos animais, uma capricorniana sábia e sensível. RITAS (2025), de Oswaldo Santana, é costurado a partir do relato da própria cantora e compositora, inclusive com imagens inéditas dela falando para a câmera como se já deixasse aquilo de registro para ser visto postumamente, como se já soubesse que era uma despedida: não à toa, ela dizer "Hello, goodbye" no prólogo não é apenas uma citação aos Beatles. E em outro momento ela também se refere à vida dela no passado. Mas o filme é cheio de vitalidade, cheio de energia: a energia do sol (dos cabelos vermelhos) e da luz (dos cabelos brancos), como ela destaca. Há poucos momentos na fase com os Mutantes, mas foi melhor assim: até para que o filme centrasse na tão rica carreira solo dela, e também em várias aparições da artista em programas de televisão, filmes e em shows de artistas de alto gabarito, como Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina e João Gilberto. As entrevistas que ela dá revelam sempre uma pessoa muito feliz e muito disposta a enfrentar o establishment, principalmente na época da censura, na ditadura militar, mas não apenas. Ela sabia que vivia numa sociedade extremamente conservadora, e ela insistia em desafiar essa sociedade com sua arte, tão cheia de sensibilidade e também com uma sexualidade lindamente aflorada. Hoje também posso dizer que tive muita sorte de ter ido a um show da Rita Lee, nos meus tempos de faculdade, nos anos 1990, na turnê de Santa Rita de Sampa (1997). E foi incrível.

sábado, junho 07, 2025

MISSÃO: IMPOSSÍVEL – O ACERTO FINAL (Mission: Impossible – The Final Reckoning)



A franquia Missão: Impossível nasceu num momento em que Tom Cruise estava construindo uma carreira perfeita, a partir da parceria feita com grandes cineastas autores. Nesse período, que vai dos anos 1980 até os anos 2000, ele trabalhou com gigantes como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Ridley Scott, Tony Scott, Oliver Stone, Neil Jordan, Steven Spielberg, Michael Mann, Stanley Kubrick e Paul Thomas Anderson. Por isso que os três (ou quatro?) filmes da franquia Missão: Impossível foram dirigidos por gente como Brian De Palma, John Woo, J.J. Abrams e Brad Bird. A ideia, até então, era que cada filme tivesse a cara de seu diretor.

Eis que tudo muda com MISSÃO: IMPOSSÍVEL – NAÇÃO SECRETA (2015), dirigido por Christopher McQuarrie, que dirigiria também os próximos três filmes da cinessérie. Tom Cruise havia gostado de trabalhar com McQuarrir em JACK REACHER – O ÚLTIMO TIRO (2012), mas na verdade McQuarrie já era um roteirista presente em vários outros filmes estrelados pelo astro – desde OPERAÇÃO VALQUÍRIA (2008). E essa parceria acabou dando muito certo num momento em que Cruise assumiu de vez a posição de astro de filmes de ação, e não mais aquele cara que quer ganhar o Oscar ou ficar “à sombra” de um grande autor. Agora ele é dono de seus filmes, o produtor. E um produtor muito exigente, que faz questão até de, ele mesmo, estar presente em cenas bem perigosas, quando poderia usar um dublê.

MISSÃO IMPOSSÍVEL – NAÇÃO SECRETA também foi o filme que trouxe pela primeira vez a belíssima atriz sueca Rebecca Ferguson no papel de Ilsa Faust, uma personagem moralmente ambígua, uma ex-agente de inteligência empregada pelo MI6. Infelizmente Ilsa morre em MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO DE CONTAS: PARTE UM (2023) e pra mim fez muita falta no último filme da série, sua continuação direta, mas uma obra mais ambiciosa, MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO FINAL (2025), que não conta com o mesmo ritmo frenético do anterior e que traz temas mais sérios e exige um pouco mais de concentração por parte do espectador, por mais que a maior parte da informação repassada possa ser relevada, como acontece em muitos filmes de espionagem, quando o que importa é conseguir concluir a missão, muitas vezes só compreendida quando ela já está sendo executada – esse recurso é até inteligente, pois evita repetições e mais blá-blá-blá e até traz algumas boas surpresas na hora da ação.

No sétimo e no oitavo filmes da franquia, Tom Cruise e seu fiel escudeiro, o diretor Christopher McQuarrie, sentiram o desejo de fazer um grande épico, a mais longa aventura de Ethan Hunt, e isso acabou beneficiando mais a primeira parte, de 2023. Nesta segunda, há uma intenção de tornar a ameaça cibernética, uma inteligência artificial chamada A Entidade, como algo maior que um mero mcguffin, e por isso há longos e confusos diálogos a respeito, alguma tentativa de estabelecer certo vínculo com o atual momento geopolítico e certa crítica à dependência que temos do mundo digital e da internet, por mais que no fim das contas saibamos que Missão: Impossível é mesmo sobre obstáculos extremamente difíceis a ser superados.

Inclusive para o próprio Tom Cruise, que até já quebrou o tornozelo uma vez, nas filmagens de um dos mais festejados títulos da cinessérie, MISSÃO: IMPOSSIVEL – EFEITO FALLOUT (2017). O ACERTO FINAL tem o problema de se levar a sério demais e entregar uma quantidade menor de cenas empolgantes, diferente do anterior – além de terem matado uma personagem muito querido no filme passado. A sorte é que, ainda assim, este aqui ainda tem duas atrizes bem carismáticas, Hayley Atwell, a ladra, e Pom Klementieff, a assassina, ambas apresentadas no filme anterior.

As duas cenas de ação mais importantes são a do submarino (bem longa, mas também bem tensa e marcante) e a dos bimotores. E são cenas que se beneficiam do realismo do estilo antigo de filmar, com bem menos uso de CGI. Não deixa de ser um mérito e tanto para os dias de hoje em Hollywood, que faz com que saiamos das sessões de aventuras com a impressão de ter visto uma produção toda feita em computador. Claro que, além da vontade, é preciso muito dinheiro para executar esse tipo de projeto, mais analógico.

Esse ar de maior ambição (e de saudosismo) deste novo filme vem também de uma vontade de fazer uma auto-homenagem, trazendo cenas de títulos anteriores e fazendo uma conexão direta com a história do primeiro e hoje clássico MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996), dirigido por Brian De Palma. As imagens em forma de flashbacks rápidos servem para dar um tom de despedida à franquia e trazer também uma dúvida sobre o futuro da carreira de Cruise. Será que ele vai deixar os filmes de ação e ingressar em filmes de autores consagrados novamente? É possível, já que a idade chega e também há o projeto já em andamento para o ano que vem, sob direção de Alejandro G. Iñarritú, cujo O REGRESSO deu finalmente um Oscar a Leonardo DiCaprio.

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BAILARINA (Ballerina)

Talvez se este filme tivesse sido lançado antes do primeiro John Wick, aqui chamado de DE VOLTA AO JOGO (2014), ele fosse visto como sendo algo mais interessante e até inovador, mas a ideia de um spin-off sem muita inventividade e protagonizado por Ana de Armas (talvez por sua boa cena de ação em 007 – SEM TEMPO PARA MORRER) teria funcionado se os criadores da franquia original, principalmente Chad Stahelski, tivessem assumido a direção e o comando também de BAILARINA (2025). Entregar para um cara apagado e sem talento como Len Wiseman ( ANJOS DA NOITE - UNDERWORLD, 2003) é como entregar o ouro ao bandido, ou então não estar muito interessado na reputação tão boa que a franquia estrelada por Keanu Reeves alcançou de público e crítica. Aqui temos uma história de vingança que também não funciona muito bem como história de vingança. Ou funciona em parte, já que no momento em que ela chega no KG do chefe da organização criminosa o filme começa a ficar mais interessante - gosto especialmente de uma cena envolvendo fogo e água, que é simbólica do feminino contra o masculino. Outro problema é que John Wick representa um momento de transição do cinema de ação americano, que passou a olhar mais atenciosamente para as produções de ação de Hong Kong e talvez também da Tailândia para a elaboração das cenas. O que fica em BAILARINA é o ar de familiaridade com o que já conhecíamos: o hotel Continental, os personagens de Ian McShane e Lance Reddick, as moedas de ouro e, claro, a participação de Keanu Reeves. Ana de Armas tem, sim, um grande carisma e já tem um currículo invejável, mas merecia um diretor melhor, até para ter, finalmente, um bom filme inteiramente protagonizado por ela.

O ESQUEMA FENÍCIO (The Phoenician Scheme)

Acompanho Wes Anderson no cinema desde TRÊS É DEMAIS (1998), quando ele ainda não havia sedimentado seu estilo. A partir de OS EXCÊNTRICOS TENEBAUMS (2001), porém, seu estilo ficou inconfundível e sua direção de arte e seu trabalho de simetria tornariam sua assinatura de fácil identificação. Acho incrível o quanto o diretor segue fazendo seu cinema sem concessões e aparentemente livre de interferência de produtores e estúdios. E ainda com elencos invejáveis, com os atores provavelmente trabalhando com salários bem menores para que as produções sejam possíveis. E nem se trata de ser a mesma trupe de amigos: a cada filme, novos nomes talentosos se juntam a seu time. O ESQUEMA FENÍCIO (2025) faz uma homenagem às antigas aventuras rocambolescas dos anos 1920-40, e em especial ao trabalho do diretor e produtor Alexander Korda, de O LADRÃO DE BAGDÁ. O filme é estrelado por Benicio Del Toro, que faz o papel de um chefão do crime que é constantemente alvo de tentativas de assassinato por parte de vários inimigos. O ESQUEMA FENÍCIO não me pegou tanto quanto o anterior ASTEROID CITY (2023), onde eu consegui penetrar no aparente jogo racional de Anderson. Mas acredito que posso ter visto num dia ruim. De todo modo, é difícil não admirar o trabalho do diretor, suas obsessões e seu estilo narrativo semelhante a um livro e às vezes a uma pintura, mas essencialmente cinematográfico.

VINGANÇA (The Assignment)

Quando soube da premissa deste filme já fiquei logo interessado em ver. É mais ou menos como se a personagem-vítima de A PELE QUE HABITO, de Pedro Almodóvar, fosse partir para a vingança depois de ter sido capturada e transformada em mulher numa cirurgia de mudança de sexo. Ou seja, é um tipo de filme que se arrisca no mau gosto, em ser acusado de transfóbico, inclusive, mas ao mesmo tempo é sempre muito atraente. Ou talvez por isso mesmo seja atraente, assim como também chama muito a atenção seu dinamismo como filme de ação criminal, com uma narração em voice-over da protagonista que às vezes lembra um Frank Castle (o Justiceiro, da Marvel), sendo que o nome do personagem é Frank Kitchen. Ainda bem que as cenas de Michelle Rodriguez de barba são poucas, pois são as que menos funcionam, embora uma cena de prótese seja importante para enfatizar o membro perdido, mas depois a atriz entrega muito bem como a pessoa atormentada e disposta a partir pra cima dos responsáveis pelo que lhe aconteceu. Gosto das transições entre cenas, quando Walter Hill, cujo auge como cineasta aconteceu nos anos 1970 e 80, faz brincadeiras com desenho e uso de íris, o que acaba tornando a apreciação deste VINGANÇA (2016) quase como uma leitura de um quadrinhos. Sigourney Weaver interpreta a cirurgiã responsável pela operação, e principal condutora da narrativa. Uma bela surpresa. Valeu pela dica, Cristian Paiva!

sábado, maio 31, 2025

O QUIMONO ESCARLATE (The Crimson Kimono)



Creio que acompanhar a filmografia de Samuel Fuller neste ritmo de um por mês não está sendo tão benéfico assim para que eu possa apreender e compreender melhor os temas e as obsessões do cineasta. Na época da pandemia pude me dar ao luxo de ver um filme a cada dois dias de Abel Ferrara, por exemplo; ou um filme a cada três dias de Fritz Lang. Mas aqueles eram outros tempos e havia a situação do distanciamento social, e da maior possibilidade de adentrar mais leituras e mais filmes noite adentro. E também uma produção maior de escrita de minha parte. Hoje me vejo num emprego que consome minha energia e não sei se torço para a chegada logo de minha aposentadoria ou se aproveito enquanto não tenho ainda 60 anos de idade para agradecer pela vitalidade razoável de que disponho.

Mesmo assim, teimo em seguir nessa tarefa de abraçar a filmografia de Fuller, ainda que, confesso, não esteja tão entusiasmado quanto na época do Ferrara, do Lang e do Brian De Palma, para citar os três últimos diretores que escolhi acompanhar a obra em ordem cronológica. De Palma, sempre amei, na verdade, e a maioria dos filmes eram revisões; mas revisões muito bem-vindas e necessárias. Já Fuller é aquele diretor que ganha mais meu coração após o término do filme, ao pensar em sua obra, do que durante a apreciação. Até porque ele às vezes confunde mesmo. 

Acho O QUIMONO ESCARLATE (1959) um dos títulos de Fuller que tem mais cara de filme B (até porque ele vinha de uma fase de cinema de guerrilha, após sua parceria com a Fox). O filme começa como um thriller policial sobre a investigação da morte de uma stripper (é ótima a cena da moça correndo de lingerie pela rua ao se ver em perigo) e depois vira a chave e se transforma num melodrama bastante carregado sobre um triângulo amoroso que arrisca romper a amizade entre dois amigos detetives de polícia e, mais importante, injeta um tipo de sentimento de rejeição (não necessariamente existente) no personagem nipo-americano, que faz com que passemos a ver um filme sobre autopercepção, sobre sensação de não pertencimento.

Não que seja um trabalho cheio de psicologismos, já que o cinema do Fuller é muito urgente, muito herdeiro de sua formação jornalística, mas mostrar essas pessoas que são ou se sentem rejeitadas é um tema caro a Fuller, que sempre gostou dos fracassados, vide EU MATEI JESSE JAMES (1949), ANJO DO MAL (1953), NO UMBRAL DA CHINA (1957) e RENEGANDO MEU SANGUE (1957). Embora eu goste mais das cenas de tensão dramática entre o trio, é nas cenas de ação que o cineasta mostra mais sua força. Tanto que a opção por apresentar a raiva que consome o personagem de James Shigeta é melhor explodida na luta de kendô com seu colega, o policial vivido por Glenn Corbert.

Os dois detetives de polícia acabam se apaixonando pela mesma mulher, a pintora Chris, vivida por Victoria Shaw. Ela está sob os cuidados deles, sob risco de, ao fazer o retrato falado do principal suspeito, entrar na mira dos criminosos. No momento que ela fica hospedada no mesmo quarto de hotel dos dois, acontece uma química mais explosiva, que infelizmente não parece tão bem desenvolvida, já que a opção de Fuller é por cenas curtas, cortes rápidos. Inclusive, aqui ele se antecipa a Jean-Luc Godard com o uso dos jump cuts em ACOSSADO.

Queria ter me envolvido mais com os personagens, com a trama e com o filme em si, mas comecei também a prestar atenção até em mudanças de luz e tons de preto e branco entre os cortes, o que faz transparecer uma produção muito modesta (trata-se de um de seus filmes mais baratos). É como se Fuller fosse uma espécie de José Mojica Marins, pegando pedaços diferentes de celuloide para dar conta de sua obra. Assim, ora vemos uma imagem de uma tonalidade, ora de outra; ora mais, ora menos nítida. O que não deixa de ser algo charmoso.

Também é destaque em O QUIMONO ESCALARTE o uso das chamadas stolen shots, ou seja, cenas filmadas às escondidas, sem autorização, como uma no final, no meio de uma festa japonesa nas ruas de Los Angeles, no bairro de Little Tokyo, um espaço que é ao mesmo tempo estranho e parte da paisagem da cidade. O respeito que Fuller já havia deixado explícito pelo povo asiático em filmes anteriores, como CASA DE BAMBU (1955) e NO UMBRAL DA CHINA, ganha novos contornos neste melodrama policial que se passa, desta vez nos Estados Unidos, mas privilegiando mais o ponto de vista do policial japonês que se imagina (e muitas vezes é mesmo) como alguém inferiorizado ou até mesmo um inimigo dos brancos americanos do que dos outros dois protagonistas.

Visto no box A Arte de Samuel Fuller.

+ TRÊS FILMES

VIRGÍNIA E ADELAIDE

Yasmin Thayná estreia na direção de longas – mas com um histórico de obras abordando a negritude e o racismo no Brasil – ao lado de um cineasta já consagrado desde os anos 1980. Para VIRGÍNIA E ADELAIDE (2024), Jorge Furtado carrega a brincadeira enciclopédica que costura a conversa e as sessões de terapia entre as duas mulheres, remetendo principalmente a ILHA DAS FLORES (1989). Reparamos que em nossa sessão havia bastante gente do meio da psicologia e da psicanálise e o filme também busca chamar atenção dos estudiosos e interessados nas questões de raça. Na trama, Virgínia está na faculdade e quer fazer terapia com a única mulher psicoterapeuta do Brasil, uma judia alemã fugida do nazismo na Alemanha dos anos 1930. As duas atrizes estão muito bem, embora eu tenha demorado a me acostumar com o sotaque de Sophie Charlotte e sua personagem mais sisuda - em geral ela faz personagens mais sorridentes. O filme pode trazer, direta ou indiretamente, alguns questionamentos para o próprio espectador, a partir das angústias da personagem de Gabriela Correia. Outro destaque é o quanto aquilo que poderia ser teatro filmado se transforma em cinema, com uso de split-screen, escolhas de esconder ou mostrar o rosto de uma delas, ou nas cenas em que o filme se mixa a um documentário.

BETÂNIA 

Uma das vantagens de um filme como BETÂNIA (2024), de Marcelo Botta, existir está principalmente em mostrar o quanto o Brasil é imenso, o quanto temos vários brasis, e o quanto o cinema maranhense e a própria cultura popular do Maranhão ainda se faz distante do que é veiculado em nossas salas de exibição. A história se passa em vilarejos nos Lençóis Maranhenses, que se mostram tão belos quanto ameaçadores em sua grandiosidade. Diria que se trata de um filme-coral que se pretende maior do que consegue ser em sua capacidade de trazer sensibilidade ao drama dos personagens, encabeçados principalmente por Betânia (Diana Mattos), uma parteira de 65 anos que não quer sair da casa onde cresceu, e que quase perde o protagonismo para Tonhão (Caçula Rodrigues), o guia de turismo responsável pela cena mais divertida. Achei curiosa a escolha por uma fotografia pouca luminosa, como que não aproveitando a luz do estado. Ou talvez tenha sido essa a intenção: trazer mais lusco-fusco do que sol a pino. E de certa forma isso representa um pouco do espírito agridoce do filme.

PELE FINA

A princípio, PELE FINA (2022), de Arthur Lins, me lembrou o inglês BRUXAS, de Elizabeth Sankey, por começar com imagens de outros filmes que retratam a mulher em situações de angústia ou algo parecido. Mas depois essas imagens (ricas) saem de cena e um texto incomodamente teatral começar a dar as cartas, especialmente quando a personagem de Ingrid Trigueiro, uma dramaturga buscando inspiração para trabalhar numa cidade litorânea da Paraíba, passa a explorar tanto suas próprias aflições quanto o texto da dramaturga inglesa Sarah Kane, que se suicidou aos 28 anos e que começa a assombrar a protagonista. O filme sai de vez em quando desse registro mais teatral quando deixa as falas e mostra o mar e o mistério da noite, mas isso não quer dizer que tenha me ganhado. O que eu gosto e admiro, além de algumas cenas com Tavinho Teixeira, é essa coisa de ser cinema de guerrilha, feito com poucos recursos e muita vontade de pôr para as telas aquilo que lhe é caro.

domingo, maio 18, 2025

EMMANUELLE



São tantos os filmes vistos e que eu gostaria de refletir mais aprofundadamente a respeito, que eu fico até zonzo diante de qual escolher. E aí se junta a uma fase um tanto diferente da minha vida que me chama também para resolver coisas práticas, situações familiares e de organização de minha vida presente e futura. Mas aproveito esta tarde de domingo para escrever um pouco sobre este filme que me deixou particularmente intrigado. Serve tanto para pensarmos o olhar feminino sobre o desejo sexual, como também sobre nossas próprias expectativas quanto ao erotismo, que durante muito tempo foi produzido e idealizado quase que exclusivamente pelos homens. O que não quer dizer que eu tenha mudado minha relação com BABYGIRL, de Halina Reijn, que continuo achando um filme constrangedor em muitos aspectos.

Já EMMANUELLE (2024), de Audrey Diwan, já vejo de outra maneira. A intenção da diretora do soco no estômago chamado O ACONTECIMENTO (2021) talvez nem seja fazer um filme erótico. Ou melhor, não como aquele lá de 1974, de Justin Jaeckin, que supostamente teria servido de base para a realização deste novo, pelo olhar de uma cineasta feminista e com interesse em discutir temas não apenas contemporâneos, mas urgentes e necessários. Sendo que o filme de Diwan é muito distinto, sem falar que não tem interesse em promover tanto a exploração do corpo feminino, o que para alguns expectadores pode ser frustrante, mas hoje em dia vivemos noutro tempo: com nudez e erotismo na palma da mão (me refiro ao celular, para deixar claro). Então, falta de opção para ver o sexo fora do cinema não falta. 

Se O ACONTECIMENTO tratou do aborto de maneira chocante, urgente e humanista, em EMMANUELLE a cineasta trata do desejo de uma mulher, e faz isso com muita elegância e com sequências até intrigantes, como a cena da falta de energia no hotel ocasionada por uma tempestade. Essa cena me fez pensar sua importância no contexto do filme como um todo, mas é uma das melhores e uma das que mais pode trazer simbolismos sobre as aflições dessa mulher, vivida por Noémie Merlant, atriz mais lembrada pelo ótimo RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS, de outra cineasta contemporânea que soube explorar muito bem o erotismo, Céline Sciamma.

EMMANUELLE é um filme claramente de blocos. Começa com a cena no avião, com a heroína sentindo atração por um passageiro ao lado e criando uma fantasia sexual dentro do toalete da aeronave; depois há as várias cenas no hotel em Hong Kong, as conversas com a gerente, vivida por Naomi Watts, os encontros com a jovem garota de programa (Chacha Huang) que usa o lugar com a permissão não declarada dos gestores do hotel, com as conversas com o homem misterioso por quem ela se sente atraída (Will Sharp). E é com este homem que acontecerá a cena mais interessante, inclusive do ponto de vista erótico, do filme.

Audrey Diwan pode até nunca mais fazer uma obra tão poderosa quanto O ACONTECIMENTO, mas recebi esta sua reinvenção de EMMANUELLE de peito aberto, possivelmente já considerando que o tipo de erotismo apresentado é de outra natureza: menos gráfico, menos exploratório, como era de se esperar, mas não menos interessante se o aceitarmos como ele é e não como gostaríamos que fosse.

Trata-de um filme sobre a solidão de uma mulher, de sua frustração com as amarras de sua vida de fiscalizadora de hotéis de luxo e de seu encontro com um homem que lida com o desejo de forma diferente dela. E é a relação que se constrói entre eles que torna a última terça parte do filme especial, com pelo menos uma cena que muito provavelmente será uma das mais lembradas do ano. Sem falar que eu adoro o jeito como o filme termina, como numa provocação inteligente para o cinema pornô de olhar e interesse muito mais masculino.

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AS AVENTURAS DE UMA FRANCESA NA COREIA (Yeohaengjaui Pilyo)

Desde A MULHER QUE FUGIU (2020) que não víamos um filme do Hong Sang-soo em nosso circuito. Acho que o problema é que as distribuidoras não conseguem acompanhar o seu ritmo: desde A MULHER... foram seis longas e dois curtas até chegar neste AS AVENTURAS DE UMA FRANCESA NA COREIA (2024), que acredito que só tenha sido adquirido pela distribuidora brasileira por causa da presença de Isabelle Huppert. E gosto do filme, mas é também possível entender o cansaço de ver suas repetições (tanto a repetição de ideias quanto de estrutura). E o interessante é que gosto do filme enquanto ele trabalha de maneira mais explícita com essas repetições. Quando chega a mãe de um dos personagens e bagunça a ordem do que estava sendo mostrado, deixei de me interessar tanto assim. Interessante como Sang-soo gosta de mostrar os coreanos como pessoas idiotas frente a um estrangeiro ou pelo menos a uma mulher bonita, como a Huppert. O filme trata da dificuldade de expor seus sentimentos e isso fica ainda mais claro quando se tenta fazer isso através de uma língua estrangeira de pouco domínio. Cada vez que Huppert pega o caderninho para escrever sua tradução do que a pessoa falou ela escreve de forma mais aprofundada, já que escreve com sua língua materna. O inglês aqui é língua franca, mas uma língua que também provoca confusão entre os falantes, caso de quando a personagem de Huppert não entende o significado de guinea pig.

SIDONIE NO JAPÃO (Sidonie au Japon)

Da série "não sei se conto como visto, por causa do sono", SIDONIE NO JAPÃO (2023), de Élise Girard, filme curioso estrelado por Isabelle Huppert não me pegou no melhor momento do dia. Ainda assim, deixo registrado, por mais que até sonhos meus tenham se misturado com a história desta escritora que parou de escrever, mas aceita o convite para estar presente em uma reedição de seu primeiro livro no Japão. Enquanto aprecia a cultura nipônica, ela é constantemente visitada pelo fantasma de seu falecido marido. Trata-se de um filme sobre mortes e renascimentos, mas principalmente mortes, já que o próprio Japão é um país que cresce à sombra (e sob a proteção) de seus antepassados.

LISPECTORANTE

Este é o quinto longa-metragem de Renata Pinheiro. Só havia visto dela o simpático AMOR, PLÁSTICO E BARULHO (2013), o bom terror psicológico AÇÚCAR (2017), coassinado por Sérgio Oliveira, principal diretor, e CARRO REI (2021), filme premiado, mas que está bem longe de ter me ganhado. Então, não sabia muito o que esperar desse drama estrelado por Marcélia Cartaxo. Na verdade (e infelizmente), ela segue em LISPECTORANTE (2024) o caminho de CARRO REI, até mesmo com uma cena que lembra uma sci-fi de baixo orçamento. Achei bem difícil me envolver com a história de Glória (Cartaxo), mulher recém-separada que volta para a casa da família e vê que sua tia está sofrendo os maus tratos de um homem também da família (Tavinho Teixeira). Ao mesmo tempo, ela começa a se envolver afetivamente com um sujeito que mora na rua e vive de vender artesanato estilo hippie. Pra mim o filme funciona pouco nas cenas das relações humanas e funciona menos ainda quando experimenta um registro mais surrealista ou algo parecido. Quanto a Clarice Lispector, explicitamente há muito pouco dela.

sábado, maio 17, 2025

TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE (All the President's Men)



No início de minha cinefilia, uma das sessões que mais me deu prazer foi a de ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA (1990), no saudoso Cine Fortaleza. Lembro que fiquei encantado com o clima do filme, com o tom da fotografia, com o aspecto mais adulto do enredo. Inclusive, é um filme que seria interessante rever. Na época, acho que já sabia dos filmes de paranoia e política que o diretor Alan J. Pakula havia realizado na década de 1970. Havia visto A TRAMA (1974) na televisão, mas até hoje não vi KLUTE – O PASSADO CONDENA (1971), apesar de seu cartaz tão atraente. E só agora há pouco terminei de ver TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE (1976), de um BluRay da Warner que meu amigo Zezão havia me emprestado há séculos e acho que deve até ter se esquecido.

Senti vontade de ver finalmente o filme ao ouvir por esses dias um episódio antigo do Podcast Filmes Clássicos (um achado, esse podcast!), sem medo de spoilers ou coisa do tipo. E meu retorno ao filme neste momento (retorno, pois cheguei a comer a vê-lo meses atrás, ou anos) foi ótimo pois pude perceber com mais atenção certos detalhes, seja a fotografia do "Príncipe das Trevas" Gordon Willis, que valoriza tanto a escuridão quanto a profundidade de campo na redação do jornal, sejam as interpretações magistrais de Robert Redford e Dustin Hoffman (principalmente Hoffman, com seu estilo mais elétrico). É também admirável a montagem, de Robert L. Wolfe, parceiro de Sam Peckinpah, e que em TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE consegue fazer com que um filme que se passa num jornal consiga ganhar ares de suspense intenso, graças a cortes espertos e escolhas muito inventivas.

O grau de verdade que eles passam para a história é incrível e vendo os extras sobre os bastidores da produção, tudo fica ainda mais impressionante. O idealizador do projeto é Robert Redford, que leu o livro e ficou interessado em fazer um filme protagonizado não pelas pessoas que trabalharam com Richard Nixon e foram implicadas, mas com o próprio ofício, com a investigação dos dois. Assim, Redford e Hoffman passaram um tempo junto com os verdadeiros jornalistas de modo a ficarem mais parecidos com eles. Houve também todo um interesse em fazer o mais próximo possível de uma rotina de um jornal, muito diferente do que Hollywood até então mostrara. Alan J. Pakula foi escolha de Redford, ele entraria depois da escolha dos atores. Foi escolhido por seu estilo mais clássico. E também, muito provavelmente por seus dois thrillers de paranoia que fizeram história.

Ficar um bocado perdido com tantos nomes e tantas conexões que os jornalistas ligam faz parte dessa sensação de estar buscando uma agulha num palheiro. É fascinante ver como era aquele mundo pré-internet, com dados tendo que ser buscados em cada pequeno documento, como cartões de biblioteca, em cada declaração pessoal sequer dita com todas as palavras por testemunhas temerosas de denunciar o maior escândalo da história da política americana, o que levou Richard Nixon a renunciar. Achei também interessante mostrar os dois repórteres investigadores como homens solteiros totalmente devotados a seu ofício, quase não dormindo, com tanta coisa para ser investigada, tantas peças para montar um quebra-cabeças que demora até a fazer sentido quando a narrativa vai chegando a princípio para o editor-chefe do jornal, vivido por Jason Robards.

TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE foi indicado ao Oscar de melhor filme no mesmo ano de TAXI DRIVER, de Martin Scorsese, REDE DE INTRIGAS, de Sidney Lumet, ROCKY, UM LUTADOR, de John G. Avildsen, e ESTA TERRA É MINHA TERRA, de Hal Ashby. Foi um ano incrível. O filme de Pakula e Redford ganhou em quatro categorias: melhor ator coadjuvante para Jason Robards, melhor roteiro adaptado para William Goldman, melhor direção de arte e melhor edição de som. Inclusive, como vi em som DTS-HD, fiquei impressionado com esse trabalho em especial.

+ TRÊS FILMES

VITÓRIA

Fernanda Montenegro está maravilhosa como uma senhora idosa e muito frágil que ousa filmar os crimes acontecendo na janela de seu apartamento, uma vez que ninguém parece querer fazer nada a respeito (dos tiroteios, do tráfico de drogas, das crianças pegando em armas). Quando até a polícia é corrupta, o que fazer? Embora tenha gostado do resultado, fiquei me perguntando como seria se Breno Silveira tivesse conseguido tocar o projeto. A morte precoce de um diretor tão sensível é muito triste. Mas Andrucha Waddington faz, sim, um belo trabalho em VITÓRIA (2025), sabendo colocar a câmera nos locais certos para nos deixar em estado de aflição até numa simples passagem para o outro lado da rua da personagem de Fernandona. Mas a cena que mais me tocou acontece no final, depois que a protagonista passa por todo o sufoco e abraça a amiga vivida por Linn da Quebrada. Que lindo que é aquela cena. Alan Rocha, como o repórter investigativo, também está muito bem. Parece ser um personagem saído dos filmes americanos de jornalismo. E falo isso como um elogio.

OSTENDE

É difícil ver TRENQUE LAUQUEN (2022) e não ficar interessado na filmografia pregressa de Laura Citarella. E vendo os títulos que ela já realizou, este OSTENDE (2011) foi o que mais me chamou a atenção: primeiramente por também trazer Laura Paredes, certamente uma das melhores atrizes da Argentina e provavelmente da América Latina, e depois por também ser uma história ambientada numa cidade pequena e com um plot de suspense, mas aquele tipo de suspense mais cheio de poros, de respiros, mas com uma clara influência de Hitchcock, em especial de JANELA INDISCRETA. Na trama, Paredes é uma jovem mulher que espera o namorado num hotel à beira-mar e enquanto isso percebe o comportamento estranho de certos hóspedes, principalmente de um homem velho que está junto a duas mulheres mais jovens. Destaco pelo menos duas cenas: uma em que a protagonista está em seu quarto e ouve barulhos estranhos no quarto ao lado, e outra, em que ela persegue o velho e uma das mulheres, com a câmera fazendo um jogo interessantíssimo de foco e desfoco. Há um momento também especialmente incômodo, mas acredito que é proposital, que é a do longo monólogo do atendente da lanchonete e sua ideia para um filme. Citarella economiza na trilha sonora, o que confere ao filme até um mistério maior, e utiliza a música de forma pontual e acertada. OSTENDE não está no mesmo nível de TRENQUE LAUQUEN, mas é bem possível que a obra-prima da realizadora não existisse se não fosse a experiência dela com este trabalho de 2011.

QUEM A VIU MORRER? (Chi L'ha Vista Morire?)

Dos dois gialli de Aldo Lado este segue um padrão mais próximo do estabelecido nos anos de ouro do subgênero. E talvez por isso eu ainda prefira A BREVE NOITE DAS BONECAS DE VIDRO (1971), seu trabalho anterior, bem mais inventivo e original, da estrutura à premissa. Este tem também o seu charme e há uma semelhança com a trama de INVERNO DE SANGUE EM VENEZA, de Nicolas Roeg, que só seria lançado no ano seguinte. Nos extras do box Giallo Vol. 8 há um comentário muito interessado de um crítico americano em que ele faz um rápido mas muito curioso paralelo entre os dois filmes. Em QUEM A VIU MORRER? (1972), George Lazenby é um escultor divorciado cuja filha pequena vai visitá-lo em Veneza. Logo essa menina será vitima do mesmo assassino (ou assassina) de crianças que mata uma menina no prólogo. O fato de ser um assassino com roupas de mulher acaba lembrando PSICOSE, e o filme vai seguindo uma linha natural de deixar pistas e personagens para imaginarmos quem é o assassino. Diferente do filme de Roeg, este não é exatamente um filme sobre luto: há um gosto maior pelo gênero, pela fixação nas mortes e no mistério e na construção cênica do que nos sentimentos dos personagens, ou mesmo no terror em si. A personagem de Anita Strindberg (NO QUARTO ESCURO DE SATÃ) é bem subaproveitada, quase como se não soubessem o que fazer com ela.

domingo, maio 04, 2025

PROIBIDO! (Verboten!)



“At the most basic level, Fuller’s films revolve around the themes of war and marriage, reciprocity of hate and reciprocity of love”.
Peter Wollen em
Samuel Fuller (editado por David Will e Peter Wollen)

Curioso que só agora, lendo esse trecho acima do livro-ensaio de Wollen sobre Samuel Fuller, que comecei a perceber o quanto o casamento também é um tema caro ao cineasta. No caso de PROIBIDO! (1959), isso fica mais evidente. Afinal, a trama é sobre um soldado americano que, durante um tiroteio na Alemanha ainda não vencida pelos aliados, se abriga numa casa e é salvo por uma mulher alemã, por quem se apaixona e deseja se casar, apesar de todo o tabu existente entre relacionamentos entre americanos e alemães na época. A opinião geral é que todo alemão seria necessariamente um nazista. Outros filmes de Fuller que tratam do casamento de forma mais explícita: O BARÃO AVENTUREIRO (1950), CASA DE BAMBU (1955), NO UMBRAL DA CHINA (1957) e RENEGANDO O MEU SANGUE (1957).

O que chama a atenção logo de cara em PROIBIDO! é que se trata de um filme de guerra de Fuller que se passa na guerra que ele próprio lutou, a Segunda Guerra: em seus trabalhos de guerra anteriores, ele optou por lidar com outros conflitos, como a Guerra da Coreia (CAPACETE DE AÇO e BAIONETAS CALADAS, 1951), da Indochina (NO UMBRAL DA CHINA), a guerra fria dentro de um submarino (TORMENTA SOB OS MARES, 1954) ou a situação de um país dominado por outro no pós-guerra, retratado no excelente CASA DE BAMBU (1955).

Assim, temos agora Fuller, que por mais que tenha feito muitos filmes de guerra era contrário à política armamentista americana e considerava a guerra uma espécie de insanidade organizada, falando sobre um tema que o distanciaria um pouco das acusações de ser um fascista. A história se passa nos dias finais da guerra, e depois no período de ocupação americana na Alemanha, quando líderes da resistência nazista ainda tentaram fazer um grupo para incitar um novo levante, a organização Werwolf. De certa forma, acaba sendo mais confortável para Fuller lidar com essa relação entre americanos e alemães do que lidar com o comunismo ou com a simpatia a um soldado confederado, como é o caso de RENEGANDO MEU SANGUE.

A primeira trama de PROIBIDO! gira em torno do relacionamento entre um soldado (e depois ex-soldado) americano com uma mulher alemã, o que era algo considerado "verboten", ou seja, proibido. Para os americanos, aquela mulher só queria se aproveitar das boas condições do jovem americano, não seria um relacionamento nascido do amor. E em determinado momento também passamos a pensar assim também, o que é curioso pois tira o filme de uma aparente simplicidade de abordar uma paixão proibida. Tanto que depois essa questão é deixada de lado na segunda metade do filme, mais focada na política e nesse grupo de neonazistas.

Gosto de como Fuller utiliza cenas reais enxertadas em seu filme, dando tanto um ar de realismo e um tom documental, quanto deixa claro a produção modesta do filme, já que Fuller havia deixado a Fox e também age como produtor aqui. PROIBIDO! é menos virtuoso do que DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957), seu trabalho anterior, mas tem uma cara muito própria. Além do mais, PROIBIDO! é um dos primeiros filmes a tratar do Julgamento de Nuremberg, inclusive trazendo imagens de arquivo do próprio julgamento e dos campos de concentração nazistas.

+ TRÊS FILMES

ANTÔNIO BANDEIRA – O POETA DAS CORES

Um caso de filme que adota uma estrutura tradicional de documentário e que por isso fica refém de seu conteúdo. E acaba fazendo com que gostar ou não dependa de nosso interesse por artes plásticas, pela história do artista ou até mesmo pelo contexto histórico em que seu drama acontece. Eu não conhecia Antonio Bandeira de ouvir falar; muito por minha ignorância em pintura, e por isso o filme preenche uma boa lacuna. Mas ANTÔNIO BANDEIRA – O POETA DAS CORES (2024), de Joe Pimentel, chega a incomodar um pouco o excesso de tom laudatório em torno do artista, como se fosse um vídeo institucional. Gosto das partes em que vemos (ouvimos, melhor dizendo) sobre sua chegada na França do imediato pós-guerra, assim como acho curioso seu trabalho artístico, ainda que não tenha simpatizado muito com os textos do artista, talvez por serem muito conscientes de sua grandeza.

SEM CHÃO (No Other Land)

Eu diria que SEM CHÃO (2024), do coletivo formado por Yuval Abraham, Basel Adra e Hamdan Ballal, é mais um filme necessário do que exatamente bom em seus aspectos formais e artísticos. E é necessário não apenas por mostrar as atrocidades que o Estado genocida de Israel faz com o povo palestino, mas por trazer visibilidade quando há tão pouca. Não adianta os telejornais falarem de guerra quando o que existe nem é uma guerra, mas um extermínio cruel. O filme vencedor do Oscar de melhor documentário (e isso sim foi bom para dar visibilidade ao trabalho) nem chegou a mostrar o horror dos últimos anos em Gaza, já que o que é apresentado é de filmagens até 2023 e em um território de nome Masafer Yatta, que consiste num habitado (ou que era habitado) por vilarejos palestinos. Ao lado deles, alguns colonos israelenses do outro lado de uma cerca, vendo e depois "participando" do massacre de famílias, que são primeiro desprovidas de casa e depois de outras necessidades básicas. SEM CHÃO pode até não mudar a realidade do que está acontecendo, mas pode ajudar a somar ao tanto de indignação que já existe diante de tanta desumanidade.

AS CORES E AMORES DE LORE

Acho que os momentos que mais me interessaram em AS CORES E AMORES DE LORE (2024) foram aqueles em que a pintora Eleonore Koch, em entrevista ao diretor Jorge Bodanzky, busca, como numa sessão de terapia, encontrar respostas nem sempre fáceis para as perguntas, como por exemplo, a escolha por não ter casado ou suas confidências sobre os amores da juventude ou da vida anterior à velhice. Gostei mais da vida do que da arte, a pintura em si, embora ter explorado esse aspecto também seja fundamental, já que a pintura foi a razão de viver da mulher. Também gosto de como Bodanzky faz um cruzamento da vida de Koch com a vida de sua mãe, que foram contemporâneas e viveram na Alemanha, sendo que ambas tiveram que fugir e se exilar no Brasil por causa da caça aos judeus pelos nazistas. É um filme que parece incompleto, que demorou tanto a ser feito que é como uma pintura cujo artista resolve finalizar depois de muito olhar para ela, muito mexer nela. O que não quer dizer que não tenha um bom epílogo.

sábado, maio 03, 2025

THUNDERBOLTS*



Os anos 2000 foram gloriosos para a Marvel. Até porque a editora vinha de uma quase falência e se reergueu quando passada para mãos que souberam muito bem o que fazer. Da equipe criativa, o grande nome da companhia que fez acontecer foi Brian Michael Bendis, que comandou os títulos dos Novos Vingadores, do Demolidor, da Jessica Jones (Alias) e do Homem-Aranha Ultimate, além de comandar sagas que foram geralmente mal-aproveitadas no cinema e na televisão, como Invasão Secreta, Dinastia M, Guerra Civil e Reinado Sombrio.

As ideias para os Vingadores que ele teve para os dois títulos dos maiores super-heróis da Terra, que funcionavam como eixo para os demais títulos, inclusive do Capitão América de Ed Brubaker e o Thor e o Homem-Aranha, ambos de Straczynski, entre outros, foram as mais utilizadas nos filmes dos estúdios Marvel. E continuam sendo, conforme pudemos atestar neste THUNDERBOLTS* (2025), assinado por um nome pouco conhecido, Jake Schreier, de CIDADES DE PAPEL (2015). 

E que bom que desta vez a Marvel acertou, e justo quando menos esperávamos algo minimamente interessante, depois do horrível resultado de CAPITÃO AMÉRICA – ADMIRÁVEL MUNDO NOVO, o filme que daria um restart nessa parada estratégica da companhia. O último resultado realmente positivo havia sido com GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3, dirigido pelo cara que foi para a Distinta Concorrência. Agora o chefe de criação do estúdio precisou repensar muita coisa depois de ter pisado no freio e arriscou, quem diria, um filme sobre depressão. O que é algo que vai na direção contrária do tom geralmente mais engraçadinho do Universo Cinematográfico Marvel.

Não que não haja momentos para fazer rir, mas eles são eclipsados pela dor dos personagens, por seus traumas, que chegam, inclusive, a uma mente não muito saudável, que é de um personagem muito importante dos quadrinhos da Marvel dos anos 2000, e que aparece de maneira criativa em THUNDERBOLTS*. Como tenho percebido nas críticas que muitos estão evitando dizer quem é o personagem, então, vou tentar evitar algum spoiler, mas posso adiantar que, para quem gosta do personagem, e de como ele também veio de uma ideia genial de Bendis para os Vingadores, embora não tenha sido uma criação sua, o resultado no filme é muito satisfatório.

Não acredito que a escolha do diretor para o filme tenha sido pensando em sua obra pregressa. É possível que a Marvel tenha desistido de queimar muitos autores que são tolhidos de suas obsessões em prol de um filme para a indústria e em vez disso optam por uma pessoa que dê conta do recado, sendo comandado pelas rédeas dos produtores. Talvez o que conte mais seja o roteiro, que conta com a presença de Kurt Busiek, grande mestre das HQs, de obras como a longeva Astrocity e a marcante minissérie Marvels. Ou seja, é a Marvel do cinema precisando se render ao talento dos roteiristas dos quadrinhos até no resultado para o cinema.

Afinal, a fonte pode secar se as mais novas histórias da Marvel (dos quadrinhos) não se tornarem tão atraentes e boas quanto foram nos anos 2000, que ainda é, como pode se ver neste filme, a maior inspiração para a criação desses filmes – para os anos 2010, a Marvel ainda pode beber na fonte de quadrinhos do Surfista Prateado, do Imortal Hulk e do Gavião Arqueiro, se forem espertos o suficiente.

As cenas de ação de THUNDERBOLTS* são boas e não apelam para a montagem picotada, valorizando as cenas de combate corporal. Porém, os diálogos não ficam muito atrás: na verdade, eles são a base de sustentação do filme, são de onde saem as aflições de Yelena Belova, John Walker e do personagem de Lewis Pullman, entre outros. Ao que parece, filmes como os da franquia John Wick têm mostrado que aquele estilo de ação picotada não está mais sendo apreciada pelos espectadores, que querem assistir as lutas. Nesse sentido, Florence Pugh está mandando muito bem, assim como Sebastian Stan e Wyatt Russell.

Esses atores, inclusive, além do já citado Lewis Pullman, que faz o Bob, conferem um tipo de “realidade” que é muito bem-vindo a um subgênero de filme geralmente escapista. Não que você saia do cinema deprimido, como se sai com BATMAN, de Matt Reeves, esse sim um filme depressivo: THUNDERBOLTS* estaria mais naquele meio termo, em que somos lembrados dos demônios interiores, que nos arrastam para lugares terríveis da mente e até para a morte, em casos crônicos, mas que há no ar algo de doce. E está aí a força deste filme aparentemente mais modesto da Marvel: saber lidar com os tormentos da vida real, transferindo-os para personagens de um mundo colorido. Em certo momento, temos a impressão de estarmos vendo um filme de horror.

Eis um filme bem resolvido, bem orquestrado e que funciona tanto como obra à parte quanto mais um tijolinho nesse universo que a Marvel/Disney insiste em manter de pé. E com razão, se julgarmos o hype em torno de QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS, que vem aí em julho. E por falar nisso, não deixe de ficar até a última cena pós-créditos.

+ TRÊS FILMES

UNTIL DAWN – NOITE DE TERROR (Until Dawn)

Que bom que David F. Sandberg voltou para o terror depois de ter dirigido dois filmes do SHAZAM!, (2019, 2023). Ele ainda não é um diretor que tem um grande filme no currículo, mas curiosamente ele tem se especializado, por assim dizer, em adaptações ou continuações ou prequels. Casos de QUANDO AS LUZES SE APAGAM (2016) e ANNABELLE 2 – A CRIAÇÃO DO MAL (2017). Até considero o filme da boneca diabólica seu trabalho mais elegante e eficiente. Mas UNTIL DAWN – NOITE DE TERROR (2025) é bem interessante. Aproveita a ideia do game da Playstation e constrói uma espécie de slasher com uma história de loop temporal. Ou seja, desde o início já me ganha, e até os personagens são bem-desenvolvidos, até onde se pode desenvolver dentro de uma narrativa rápida, embora irregular. Sandberg sabe fazer uma boa conclusão, quando a repetição do loop começava a cansar. Gostei muito da scream queen Ella Rubin, que apareceu discretamente em ANORA. É uma moça que tem presença de cena e que deve ter um belo futuro.

A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS (La Plus Précieuse des Marchandises)

O mais bacana de A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS (2024), de Michel Hazanavicius, é que é um filme que talvez não funcionasse tão bem se não fosse apresentado assim, em animação, e usando um tipo de traço muito próprio, que enfatiza tanto o tom fabular quanto as imersões na realidade brutal, especialmente quando nos mostra imagens do holocausto. Desde o começo, o tom fabular se destaca, com a bebê surgindo para ser criada pela esposa do lenhador, que demoraria um tanto para aceitar a criança. Depois ficamos sabendo do contexto histórico em que a criança é judia, e portanto odiada pela população daquele vilarejo. Como a a história se passa durante a Segunda Guerra, é possível perceber que o antissemitismo já havia se instalado nas mentes daquelas pessoas. Gosto da conclusão, de como se reflete sobre a natureza verídica ou mítica de certas histórias.

BRUXAS (Witches)

Meu maior interesse pelo documentário BRUXAS (2024), de Elizabeth Sankey, foi pelo passeio pelas (belas) imagens de filmes que mostram a representação de mulheres como bruxas ao longo de várias décadas de cinema (e um pouco até da televisão). Tanto que quando o filme fica mais quadrado e foca na experiência da diretora com depressão pós-parto, a narrativa trava um pouco, perde um bocado da força, por mais que muitas das histórias e depoimentos sejam bem impactantes. De todo modo, gosto de como a terceira parte volta a se conectar com as bruxas e faz isso de maneira muito inteligente, e nos faz perceber o quanto o fato de haver uma alta taxa de suicídio de mulheres no Reino Unido pode estar associado a um passado de séculos de queima e suicídio de mulheres, de perda do papel da mulher como curandeira, enfermeira, parteira e detentora de conhecimentos milagrosos, a partir da chegada dos médicos homens profissionais, na transição do mundo medieval para o período moderno. Quanto às imagens apresentadas, sempre bom quando aparece um filme do Bava, ou uma relação com O MÁGICO DE OZ e outros tantos filmes, principalmente de horror e de fantasia.