
Certa vez, de posse do livro de contos Sagarana, de Guimarães Rosa, me dispus à tarefa de ler o conto de "A Hora e Vez de Augusto Matraga", para, em seguida, assistir à adaptação fílmica, que é algo que me dá muito prazer. Meu mestrado se deu em torno de adaptações/traduções da literatura para o cinema e esse prazer de pensar o filme à luz da obra literária, ou vice-versa, acontece desde a aurora de minha cinefilia: lembro de quando vi no cinema A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER, de Philip Kaufman, tendo ainda fresquinho na memória o romance homônimo de Milan Kundera; ou quando li O Cemitério, de Stephen King, meses depois de ter visto no cinema CEMITÉRIO MALDITO, de Mary Lambert. Ou seja, o caminho inverso também é muito interessante, embora possa atrapalhar quando pensamos nas feições do ator ou da atriz do filme enquanto lemos o texto literário.
Pois bem. Acontece que tive uma tristeza ao pegar a cópia então disponível na internet de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (1965), de Roberto Santos. A cópia existente até então tinha um som muito ruim, quase indecifrável. E foi isso que me fez desistir de ver o filme. Não entender o que os personagens estão dizendo, mesmo que em português, me incomoda bastante. (Aconteceu o mesmo quando tentei ver A ILHA, de Walter Hugo Khouri.) Eis que neste ano, um fórum de compartilhamento de filmes disponibilizou a versão restaurada em 2K do filme, uma versão que até tem algumas falhas no áudio, mas é por causa do master em 35 mm presente nos arquivos da Cinemateca Brasileira, que já estava danificado em alguns poucos trechos. Foi ele que serviu de base, já que os negativos originais estavam em pior estado. Assim, essa remasterização é o que há de mais próximo da beleza da fotografia original, a cargo de Hélio Silva, o mesmo de O GRANDE MOMENTO (1958), um dos títulos anteriores (e muito celebrados) de Santos.
A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA é um dos mais belos filmes que já vi na vida. Sem dúvida alguma. E ainda sonho em poder vê-lo na telona, quando for possível um relançamento nessa nova cópia, que está, ao que parece, no limbo da distribuição. Roberto Santos faz uma obra tão à altura do conto de Guimarães Rosa que é de deixar a gente de queixo caído. Dizem que o próprio Guimarães amou o filme e que considerou várias partes até melhor que seu conto.
A obra fílmica já impressiona desde as primeiras imagens, quando percebemos o trabalho incrível de mise-en-scène e a música de abertura cantada por Geraldo Vandré, que diz "Se alguém tem que morrer que seja pra melhorar". E isso é representativo da trajetória do herói, Augusto Matraga, antes um homem com a maldade na alma, mas não tão diferente assim dos demais homens de mais posses daquele sertão mineiro violento. É preciso que ele "morra" (e uma morte muito cruel, muito dolorosa de se ver, e muito impressionante para um filme de 1965) para que renasça num novo homem.
É tudo tão perfeito no filme de Santos que é quase um milagre sua existência, uma dessas coisas que parecem ter nascido de uma conjunção astral muito particular. Leonardo Villar está em estado de graça como o personagem-título e Jofre Soares está incrível como o pistoleiro Joãozinho Bem-Bem. A luta na igreja entre Augusto e João é de tal beleza épica que me fez lembrar do confronto entre Heitor e Aquiles no clássico Ilíada, de Homero. O sorriso no rosto dos dois homens, mesmo que ensanguentados, ao estarem enfrentando adversários por quem têm muito respeito, chega a ser tocante.
E para que se chegue até esse momento, toda a trajetória de renascimento de Augusto é cheia de beleza, entrega, indignação, consternação, dor, alegria, compreensão da própria força, como na cena da disputa de força física entre Augusto e um burrinho selvagem. Quando Augusto monta o burrinho sem ter que segurá-lo é como se ele soubesse naquele instante que seu lado animal estava não apenas domado, mas também pronto novamente para enfrentar. Mas agora ele é um outro Augusto, um Augusto que encontrou Deus, que foi salvo por um casal de agricultores muito humildes que cuidou dele como a filho, e por isso mesmo sua visão de mundo passa a ser mais espiritual, ainda que também mais conflitiva. Por isso na cena que ele se aproxima da igreja que está sendo invadida pelo bando de Joãozinho Bem-Bem, sua presença representa uma espécie de resposta às preces de quem está dentro da igreja. Melhor ainda: da definição de seu papel no mundo.
Ver A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA é perceber a beleza dos planos e o cuidado com os travellings. Adoro aquele em que o homem que cobiça Dionóra (Maria Ribeiro), a esposa de Matraga, passeia pela casa enquanto a mulher está à janela. E o que dizer do gesto do servo de Matraga, vivido por Flávio Migliaccio, ao lutar contra os inimigos do patrão, mesmo sabendo que não terá a menor chance? E tudo isso em cortes perfeitos a cargo do montador Silvio Renoldi, poucos anos antes de montar clássicos do cinema brasileiro, como O BANDIDO DA LUZ VERMELHA, AS DEUSAS e LÚCIO FLÁVIO, O PASSAGEIRO DA AGONIA, entre tantos outros.
Essa junção da direção acertada de Santos, com o texto sobrenatural e fabuloso de Guimarães, do roteiro de Santos com Gianfrancesco Guarnieri que completa com sabedoria o texto literário, da fotografia em preto e banco de Hélio Silva que destaca as sombras dos interiores e dos momentos mais sombrios e a luz intensa do sol do sertão, das interpretações inspiradas do elenco, da música de Vandré, tudo isso faz com que queiramos rever o filme, saboreando cada momento com atenção: cada frame, cada detalhe, cada olhar e cada gesto. Não é todo dia que se vê algo assim, não.
+ TRÊS FILMES
MANAS
Usam muito o termo "coming of age" para descrever histórias que apresentam o processo de amadurecimento de um menino ou uma menina. Mas ao ver agora, rapidamente, alguém descrevendo MANAS (2024) desta forma vi o quanto não vi o filme dessa maneira, de tão porrada que ele é. Pra começar, não é nada fácil ver filmes sobre abusos cometidos a menores, mas também vejo o quanto um trabalho como este é importante e necessário. Mas a grande vantagem deste terceiro longa-metragem de Marianna Brennand é que não se trata apenas de um filme-denúncia, mas que também tem seus valores estéticos que saltam aos olhos: há uma cena, por exemplo, em que Marcielli (Jamilli Correa), a menina protagonista, é abordada pelo pai e um jogo de sombra faz lembrar M – O VAMPIRO DE DÜSSELDORF, de Fritz Lang. E há muitas sequências brilhantemente pensadas para na posição da câmera e no essas mesmas cenas aparecem de forma mais impactante por causa dessas escolhas, como nas cenas na casa onde a família mora, uma casa simples em que todos dormem num mesmo lugar, com apenas uma cama e várias redes. Além de tudo tem isso: a apresentação de um universo que é novo para a maioria dos brasileiros, a Ilha de Marajó. MANAS é um daqueles filmes que chamam de "slow burn", mas quando pega fogo mesmo mexe muito com a gente. Adorei o papel de Dira Paes, como a policial federal que procura ajudar Marcielli.
UM OUTRO FRANCISCO
"Partiu Cannes!" Sabia que ia ter a oportunidade de dizer, mas pelo menos agora a Cannes que visitei, com este filme, foi a cidade romeira de Canindé, no Ceará, onde se passa a maior parte da jornada de dois fotógrafos italianos dispostos a usar a arte e a técnica da fotografia para flagrar e compreender a festa de São Francisco que acontece na cidade, com demonstrações de fé dos fiéis, além de outros espaços da cidade, como um parque de diversões ou até um abatedouro. Em UM OUTRO FRANCISCO (2022) discute-se questões éticas do fotógrafo ao registrar alguém que está doente ou em situação de miséria moral ou financeira. E também discute-se diferenças culturais quando se compara o culto a São Francisco na cidade de Assis, na Itália, e como se dá em Canindé. A diretora Margarita Hernández, no que parece ser seu primeiro longa para cinema, consegue entrevistas com personagens carismáticos, como a mulher que adora fotografar, ou os meninos que confundem a câmera com uma arma, ou a adolescente que se vê mãe tão cedo. Um belo trabalho.
RITAS
Gosto muito de sair de uma cinebiografia gostando mais ainda do biografado. Então, por mais que eu já admirasse Rita Lee, já achasse linda e talentosa, neste doc a gente passa a ver Rita também como uma mulher linda por dentro: corajosa e ousada na construção de suas canções, defensora dos animais, uma capricorniana sábia e sensível. RITAS (2025), de Oswaldo Santana, é costurado a partir do relato da própria cantora e compositora, inclusive com imagens inéditas dela falando para a câmera como se já deixasse aquilo de registro para ser visto postumamente, como se já soubesse que era uma despedida: não à toa, ela dizer "Hello, goodbye" no prólogo não é apenas uma citação aos Beatles. E em outro momento ela também se refere à vida dela no passado. Mas o filme é cheio de vitalidade, cheio de energia: a energia do sol (dos cabelos vermelhos) e da luz (dos cabelos brancos), como ela destaca. Há poucos momentos na fase com os Mutantes, mas foi melhor assim: até para que o filme centrasse na tão rica carreira solo dela, e também em várias aparições da artista em programas de televisão, filmes e em shows de artistas de alto gabarito, como Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina e João Gilberto. As entrevistas que ela dá revelam sempre uma pessoa muito feliz e muito disposta a enfrentar o establishment, principalmente na época da censura, na ditadura militar, mas não apenas. Ela sabia que vivia numa sociedade extremamente conservadora, e ela insistia em desafiar essa sociedade com sua arte, tão cheia de sensibilidade e também com uma sexualidade lindamente aflorada. Hoje também posso dizer que tive muita sorte de ter ido a um show da Rita Lee, nos meus tempos de faculdade, nos anos 1990, na turnê de Santa Rita de Sampa (1997). E foi incrível.