domingo, setembro 28, 2025

UMA BATALHA APÓS A OUTRA (One Battle after Another)



Ando um pouco carente de ver filmes. Nesta semana foram apenas dois vistos no cinema, e ainda no esquema de tentar lutar contra um tipo de sonolência que vem mais de algum problema na garganta, creio eu, do que de cansaço ou de privação de sono. Vou buscar saber o que está acontecendo. Para ver UMA BATALHA APÓS A OUTRA (2025), o novo e aguardado trabalho de Paul Thomas Anderson, me muni de uma série de coisas: uma soneca de cerca de uma hora antes de ir ao cinema, um expresso duplo antes da sessão e um outro grande durante, sendo que antes disso tomei um suco verde que supostamente teria gengibre. Enfim, consegui ficar consciente durante a sessão, ainda que sempre com aquela sensação de que rever o filme num futuro próximo seria muito interessante.

Gosto muito de PTA, mas nem sempre seus filmes me “pegam”. O anterior, LICORICE PIZZA (2021), me traz algumas boas recordações de certas sequências, mas não me encantou por completo. Assim como foi o caso de VÍCIO INERENTE (2014), mas este ainda acredito que pode melhorar numa revisão. Achei-o confuso, mas talvez seja por causa da adaptação do romance de Thomas Pinchon, de seu texto original, que dizem ser um pouco mais complicado para traduções para o cinema.

A boa notícia para quem não curtiu muito VÍCIO INERENTE é que esta segunda adaptação que Paul Thomas Anderson faz de um romance de Pinchon é muito mais animadora e bem-sucedida. Talvez por ser uma adaptação mais livre, inspirada no romance Vineland (1990) do celebrado escritor. Então o cineasta pôde tomar mais liberdades e trazer a história e seus personagens para um país muito mais próximo de um regime fascista, como são os Estados Unidos da era Trump, em que se mascara menos a supremacia branca e em que certos absurdos são normalizados por mais pessoas.

O caos que impera na história também é algo abraçado por PTA e o humor é muito bem-vindo, em especial para destacar o jeito desastrado de ser do personagem de Leonardo DiCaprio, alguém que já foi membro de um grupo de combatentes revolucionários, mas que, passados 16 anos, não sabe como voltar ao ritmo. Falando em caos, eu lembro de quando saí com dor de cabeça da sessão de EMBRIAGADO DE AMOR (2002) e de quando saí atordoado, mas também muito feliz, na época que vi no cinema MAGNÓLIA (1999). Então, o caos é um lugar ou um ambiente em que o cineasta se sente em casa. Por isso, é interessante já ir ao cinema esperando uma experiência divertida, mas nesse sentido. Mas claro: é um caos controlado, já que tudo que filma é muito bem pensado e planejado.

No caso de UMA BATALHA APÓS A OUTRA, por mais que vejamos o filme como uma obra muito mais de esquerda, há também uma crítica àquilo que deu errado no comportamento da geração da contracultura e no modo como suas lutas foram perdendo espaço para um esvaziamento de utopias. Não que seja isso exatamente o que o filme se propõe dizer, mas é algo que pode ser lido, assim como também podemos vê-lo simplesmente como um misto de thriller de ação e comédia feito por um dos cineastas mais sofisticados da atualidade, e, só por isso, só pela forma, já vale a pena ser visto. Já é o suficiente para agradar os fãs do cinema de gênero.

Paradoxalmente, por mais que seja o filme de PTA com mais ação e dinamismo de sua carreira, talvez seja o que mais convida a reflexões políticas e sociais de seu país e do mundo. Lembrei em alguns momentos dos filmes de Quentin Tarantino: do não ter medo de matar ótimos personagens (KILL BILL), de tirar sarro de nazistas (BASTARDOS INGLÓRIOS) ou de usar o gore na estrada (À PROVA DE MORTE). Tanto que em diversos momentos consegui visualizar Tarantino adaptando este romance, mas ao mesmo tempo me sentindo muito grato por ter um cara como PTA comandando um projeto dessa envergadura, com essa vontade de retomar ao Vistavision.

Só que, diferentemente de O BRUTALISTA, PTA usa muito mais close-ups, valorizando mais as expressões faciais e as performances de seus atores: destaque, claro, para DiCaprio e Sean Penn, mas também para Benicio Del Toro e duas atrizes que roubam as cenas, que interpretam mãe e filha, Teyana Taylor e a estreante Chase Infinity, respectivamente. E falando em elenco, soube que por pouco Leonardo DiCaprio não trabalhou com PTA em BOOGIE NIGHTS – PRAZER SEM LIMITES (1997), um de meus favoritos do diretor, e só não o fez pois acabou indo fazer TITANIC, de James Cameron. Mas a admiração mútua dos dois permaneceu ao longo dos anos e finalmente tiveram a chance de trabalhar juntos. E com a vantagem de ter agora um DiCaprio muito mais maduro, com experiências distintas com diretores como Martin Scorsese, Quentin Tarantino e Steven Spielberg.

O resultado da soma do trabalho dos dois é um dos melhores filmes do ano, desses que dá vontade de ver de novo (as 2h40min de duração, mal se sente). Além do mais, vale destacar também a trilha sonora de Jonny Greenwood, colaborador de PTA desde SANGUE NEGRO (2007).

+ TRÊS FILMES

A ESPIÃ (Zwartboek)

Rever A ESPIÃ (2006) com a Giselle me fez redescobrir aquele que considerei o melhor lançamento nos cinemas de 2008. Nunca tinha revisto e ver no BluRay caprichado da Versátil foi de dar gosto. Além do mais, é sempre bom retornar ao cinema controverso e sensual de Paul Verhoeven. A ESPIÃ é um retorno ao tema de SOLDADO DE LARANJA (1977), só que muito mais vigoroso e com uma produção maior (até hoje é a produção cinematográfica mais cara dos Países Baixos). Revê-lo também ajuda a torná-lo mais claro: uma trama de espionagem costuma ser um pouco confusa, mas aqui o diretor opta pela clareza, por mais que haja surpresas o bastante ao longo da narrativa. Na trama, jovem mulher judia troca de nome depois de sobreviver a um ataque violento a sua família e amigos e tenta sobreviver numa Holanda sob o domínio dos nazistas, nos anos de 1944-45. Sobreviver e também atuar numa célula da resistência do país, chamada pelos nazistas de grupo terrorista. Nessa sua atuação, o principal destaque é seu envolvimento com um oficial nazista, por quem ela nutre um sentimento forte. Gosto de como Verhoeven foge das obviedades e do preto no branco, além de tocar na ferida do povo neerlandês. Carice van Houten está incrível como a heroína e o filme passa voando: são 2h20min que não são sentidos. Pelo visto foi uma ótima escolha para que a gente inaugurasse o nosso cinema em casa.

RUAS SELVAGENS (Savage Streets)

Este é, muito provavelmente, o patinho feio do box Cinema Exploitation 3. Seu chamariz é a presença de Linda Blair, famosa por ser a garota possuída de O EXORCISTA, mas que não teve uma carreira muito boa no cinema. Uma produção como a de RUAS SELVAGENS (1984) já foi muito difícil, por mais barata que tenha sido. Foi interrompida com três dias de filmagens para depois ser retomada com um novo produtor. Hoje se diz ser um filme antiviolência em sua mensagem, mas obviamente o apelo à nudez e às cenas de violência são feitas com o objetivo de divertir, o que gera sentimentos ambíguos. Trata-se de um rape & revenge cuja vingança não é feita pela moça violentada, mas por sua irmã (a personagem de Blair). O filme de Danny Steinmann começa a ficar melhor em sua terça parte, quando essa vingança toma forma e ela sai à caça da gangue de delinquentes, tão malvados quanto caricatos. Aliás, talvez seja por causa desse teor de interpretações ruins (só escapa o ator John Vernon, que faz o diretor da escola) que o filme foi ganhando também certo culto ao longo dos tempos. Na época, eram de produções de baixo orçamento que surgiam obras mais ousadas do ponto de vista da nudez e da violência gráfica. São obras como essas que têm a coragem de mostrar brigas de mulheres em banheiro feminino, por exemplo. Além do mais, ao que parece, não havia tantos filmes com mulheres encabeçando o papel de vigilantes naquela época. E esse detalhe foi algo que chamou a atenção de Blair para abraçar o projeto. Ela aparece nos extras do DVD se mostrando muito orgulhosa de ter trabalhado em RUAS SELVAGENS.

A ARTE DO CAOS (Verbrannte Erde)

Este já é o décimo longa de Thomas Arslan e talvez o primeiro que chega ao circuito brasileiro. Trata-se da sequência de NAS SOMBRAS (2010), o filme que apresentou o personagem Trojan, vivido pelo ator alemão de ascendência croata Mišel Matičević. Trojan é um ladrão que vive nas sombras e de vez em quando sai para executar um roubo bem planejado e que lhe ajude a se manter por uns seis meses ou um ano. A ARTE DO CAOS (2024) lembra muito o polar, o cinema policial francês dos anos 1950-70, como também lembra o cinema de Michael Mann. Ou seja, é um filme que se preocupa muito com a cenografia e como os personagens se dispõem na tela, muitas vezes escondidos nas sombras, como que para enfatizar um tipo de vida amaldiçoada pelas escolhas e pelo próprio dinheiro. Aqui Trojan recebe um convite de integrar um bando que irá roubar um quadro valioso para um milionário misterioso, mas as coisas não saem como o planejado. Gosto muito de como Trojan é um personagem de aspecto físico pouco expressivo, mas que talvez por isso mesmo esteja tão bem no papel, ainda que muitas vezes seja eclipsado pelo maior vilão, um capanga que não hesita em matar, vivido por Alexander Fehling. Gosto do tom bastante sério do filme, e de como a música, ouvida apenas pontualmente, pois os silêncios também são importantes, de como essa música enfatiza tanto o mistério quanto o ar trágico que se constrói ao longo da narrativa - confesso que até lembrei de alguns trabalhos de Angelo Badalamenti para David Lynch em certos momentos. A violência, até por ser econômica, é intensa quando surge, trazendo mais realismo e aspereza para as cenas, mas sem deixar de lado a beleza plástica da fotografia e da direção de arte. Só peço que venham mais filmes de Thomas Arslan. Por favor. Agradecimentos a Luiz Soares Júnior por dar o toque sobre o filme.

quinta-feira, setembro 11, 2025

O SEGREDO DAS JOIAS (The Asphalt Jungle)



Mais de um mês depois da publicação anterior, consigo uma brechinha para escrever para o blog. Mas posso dizer que tenho boas razões para isto: minha mudança com a Giselle para um apartamento só nosso (ainda que tenha que ficar revezando com minhas irmãs na casa de minha mãe em alguns dias). Então, está uma delícia, mas mexeu com toda a rotina, o que é natural. Então, estamos numa fase de adaptação e de retomada de uma nova rotina, além de ser uma fase também de realização pessoal muito boa. Como não quero deixar este espaço abandonado, vou fazer o possível para atualizá-lo sempre que puder.

O filme brindado dentre tantos que eu tenho para falar a respeito, filmes ótimos que não ganharão espaço aqui com um texto maior, já que o trabalho em escola de tempo integral cada vez me é mais cansativo e cada vez mais suga minha energia, é o clássico O SEGREDO DAS JOIAS (1950), de John Huston. Aliás, é quase uma coincidência eu ter visto esse filme no mesmo ano que vi pela primeira vez também o ainda mais melancólico OS DESAJUSTADOS (1961), que também traz Marilyn Monroe no elenco, agora uma estrela consolidada, mas, infelizmente, prestes a deixar este mundo pouco tempo depois das filmagens.

Huston, depois de ter criado o que talvez tenha sido a base do que se passou a chamar film noir com RELÍQUIA MACABRA (1941), aqui ele cria a base para os heist movies, os filmes de roubo previamente planejados, arquitetados. Devido à cadência mais lenta do estilo de Huston, eu até fiquei surpreso com o quanto se inicia até que rapidamente a cena do roubo à joalheria. Que é uma cena muito empolgante e cheia de suspense, em que nos vemos torcendo pelos ladrões, já que são eles os pobres coitados desesperados por uma chance na vida. Talvez seja difícil sentir dó apenas do aristocrata falido que contrata, por assim dizer, os serviços, mas não dos demais. Isso porque o aristocrata é um sujeito que usa de má fé com os colegas e não tem uma moralidade íntegra como os demais.

E que cena mais linda e mais triste, a da despedida de Sterling Hayden em cena, hein. Que plano magnífico! Acontece algo ali que faz com que o filme saia do ambiente urbano e entre no rural, que simboliza uma espécie de paraíso, de fuga da “selva de asfalto” do título original. Essa cena ganha uma conotação espiritual, em especial com os movimentos de câmera e com o distanciamento que essa mesma câmera dá de seu corpo. Huston mais uma vez se mostra um artista que se solidariza com os perdedores, com os marginalizados, com os espíritos que caíram, mas que ainda lutam contra os obstáculos imensos para atingirem seus objetivos, para alcançarem seus sonhos.

Nesse sentido, os personagens que mais amamos são os de Sterling Hayden, que faz o papel de Dix Handley, um brutamontes de bom coração que sonha voltar para o campo, logo depois que conseguir um serviço bom o suficiente para que ele saia desse círculo vicioso de precisar fazer pequenos bicos e ainda dever à máfia; e o de Jean Hagan, que faz Doll, a mulher de coração partido e sem ter onde morar que vai parar no apartamento de Dix. As cenas em que os dois personagens conversam ou estão juntos são particularmente devastadoras, em especial as cenas de fuga, quando ela se revela disposta a ser também procurada pela polícia para ficar com ele.

A trilha sonora é outra belezura, a cargo de Miklós Rózsa, que já havia trabalhado no fundamental PACTO DE SANGUE, de Billy Wilder. Quanto a Marilyn Monroe, seu papel é bem pequeno, mas já antecipa o que ela faria a seguir, com muita sensibilidade, inclusive na parceria futura com Huston  na pedrada que é OS DESAJUSTADOS. Ainda assim, seu papel também é brilhante. A cena que ela é encurralada pela polícia ajuda e muito a perceber o quanto ali estava uma grande estrela.

Vale destacar também a fotografia de Harold Rosson, que foge um bocado ao estilo comumente adotado nos noirs da época, com muita utilização de sombras e muita estilização. Rosson e Huston optam por um estilo mais cru, mais realista, o que ajuda a conferir um pouco mais de intensidade dramática à obra, uma vez que não estamos ficando deslumbrados com algum jogo de sombras. O que não quer dizer que Huston também não impressione na direção, em especial no uso dos close-ups, que conferem mais urgência ao drama desses personagens. Sobre Rosson, é bom lembrar que ele é um diretor de fotografia de filmes tão distintos quanto CANTANDO NA CHUVA e EL DORADO.

Na trama de O SEGREDO DAS JOIAS, Sam Jaffe interpreta um velho especialista em grandes assaltos, que conseguiu a liberdade depois de um tempo atrás das grades. Sua primeira ação é consultar uma pessoa que possa financiar seu próximo trabalho: um roubo a uma joalheria. Para isso, ele precisará de certo capital, mas também de alguém especialista em cofres, um homem forte para o caso de enfrentar a polícia e um motorista, além de um sujeito que forneça o dinheiro necessário. O filme valoriza cada um desses atores da ação. Os atores-personagens da ação e os atores em si – suas interpretações. E Huston faz isso abrindo mão de um elenco estelar. Não há nenhum ator de fato de primeiro escalão nessa sua obra, e foi sua escolha. E não é porque é um filme B: Huston já havia trabalhado com astros classe A, como Humphrey Bogart, Bette Davis, Edward G. Robinson, Jennifer Jones e Lauren Bacall. Ele escolhe seus atores não por seu currículo em grandes produções, mas por eles se encaixarem nos personagens do romance de W.R. Burnett, mesmo autor do livro que seria traduzido no cinema em SEU ÚLTIMO REFÚGIO, de Raoul Walsh. 

Filme visto no box em BluRay Clássicos Noir.

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LADRÕES (Caught Stealing)

É interessante ver Darren Aronofsky fazendo um filme menos pretensioso na temática, já que é um diretor que gosta de abordar, com frequência, diferentes tipos de religiosidade, mas sem deixar de lado sua solidariedade a pessoas vivendo infernos pessoais. Foi assim com RÉQUIEM PARA UM SONHO (2000), com O LUTADOR (2008) e mais recentemente com A BALEIA (2022). Em LADRÕES (2025), ele até busca um tipo de humor que torna as desventuras do personagem de Austin Butler um pouco mais leves. Butler é um homem que trabalha como barman, e que vive a frustração de não poder ser um jogador de beisebol profissional por causa de um traumático acidente na juventude. Certo dia, ao tomar conta do gato do apartamento vizinho, apanha feio de um grupo de criminosos, e isso vai mudar sua vida, uma vida que até então tinha como prioridade as campanhas de seu time de beisebol do coração. Aronofsky constrói aqui um personagem cativante e outros personagens secundários igualmente bons, como é o caso do interesse amoroso do herói, a jovem vivida por Zöe Kravitz. Mas o que salta aos olhos deste filme é sua dinâmica narrativa, sua montagem e o quanto um roteiro de certa forma simples, mesmo com os plot twists, ganha força com a condução. Gosto muito da última cena do herói, bem representativa da mudança que se opera em sua vida e de seu crescimento pessoal depois de tanto sofrimento, tantas perdas. No mais, adorei a trilha sonora anos 90.

OS ENFORCADOS

Um tempo atrás estreou um filme que muita gente resolveu jogar pedras, A FLORESTA QUE SE MOVE, de Vinícius Coimbra, baseado na tragédia Macbeth, de Shakespeare. Eu achei bem interessante e talvez até mais do que este trabalho de um outro diretor com Coimbra no sobrenome, o homem por trás do ótimo O LOBO ATRÁS DA PORTA (2013). Em OS ENFORCADOS (2024) ele repete a parceria bem-sucedida com Leandra Leal e muda um bocado o registro: sai o realismo mais cru e violento e entra um outro tipo de violência, igualmente grotesca, mas com um toque de humor mórbido, como que para suavizar um pouco para o espectador. Além do mais, Coimbra usa diversas referências, do corpo preso numa parede de um conto de Poe a um banho de sangue de filmes como os de Brian De Palma e horror europeu. Talvez o que eu mais tenha gostado foram as cenas interiores de Leandra Leal andando pela casa reformada e com ares de assombração, com imagens que remetem aos filmes noir americanos clássicos. Já Irandhir Santos, é o homem que herda a fortuna do tio por meios nada recomendáveis. Assim como a própria peça shakespeariana e tantos outros filmes que tratam de matar para obter dinheiro ou poder, OS ENFORCADOS é um conto moral, que às vezes funciona muito bem, mas que carece de mais personalidade. Irandhir Santos está gigante na cena em que demonstra sua psicopatia na quadra da escola de samba, logo após a confirmação da morte do tio (por ele, a partir da ideia de sua Lady Macbeth, Regina). 

MILÃO CALIBRE 9 (Milano Calibro 9)

Nos extras do box Eurocrime, da Versátil, ao ver Fernando Di Leo falando sobre a influência do filme noir para os poliziotteschi, e mais precisamente para seus filmes, só então, quando repensei a estrutura de MILÃO CALIBRE 9 (1972), vi que realmente tem tudo a ver. E não só pela femme fatale (aqui vivida por Barbara Bouchet), mas pela figura do herói solitário, que no caso é também um criminoso (o parrudo Gastone Moschin). Ele é Ugo, um homem recém-saído da prisão, depois de uma estadia de três anos, após um assalto a banco. Todos acreditam que ele esconde 300 mil dólares, tanto a polícia quanto a máfia para quem ele trabalhava, mas ele nega de forma bem convincente. O que se destaca de diferente neste filme, se compararmos com os policiais americanos, mesmo os da década de 70, é o grau de violência, que não se apresenta apenas nas ações de seus personagens, como num PERSEGUIÇÃO IMPLACÁVEL, por exemplo, mas na própria poética, na própria maneira de usar a câmera, nos cortes, na sonoplastia, nos closes. O murro que é desferido contra a câmera, é como se o próprio espectador sentisse a agressão. Ainda assim, quando penso no nome de Fernando Di Leo, o que ainda vou recordar com mais intensidade, carinho e terror é de VINTE ANOS (1978), seu trabalho marcante com Gloria Guida e Lilli Carati.

sábado, agosto 02, 2025

QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS (The Fantastic Four – First Steps)



Quando vejo minha regularidade na escrita nos anos de 2014 e 2015, quando escrevia sobre praticamente todo filme que via, fico um pouco triste com o fato de não conseguir estar fazendo mais isso agora. Mas a verdade é que tudo começou a ficar mais difícil lá em 2017, quando assumi dois turnos na escola. E que piorou ainda mais a partir de 2023, quando passei a ser professor de escola de tempo integral, muito mais desgastante. E os atuais momentos andam sendo ainda mais difíceis, com desafios de ordem familiar e tudo mais. Enfim, a gente faz o que pode e ao menos pequenos textos para cada filme visto, eu tenho feito – embora, para mim, não seja o suficiente, pois são textos muito rápidos e sem um tempo mínimo para reflexão e pesquisa.

Falemos de QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS (2025), um dos melhores filmes dos estúdios Marvel, o melhor desde GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 (2023), que já era uma exceção no meio de tantos filmes ruins ou meia-boca que o estúdio andava despejando, sob o risco de perder seu público – e era o que estava acontecendo, especialmente quando a Marvel também começou a produzir séries para o Disney Plus. E foi na época das séries que tivemos o prazer de ver a melhor delas, WANDAVISION (2021), dirigida por Matt Shakman.

Shakman é basicamente um homem da televisão. Pode-se dizer que é um veterano, tendo dirigido episódios de diversas séries desde o início dos anos 2000, como ONCE AND AGAIN, JUSTIÇA SEM LIMITES, A SETE PALMOS, TODO MUNDO ODEIA O CHRIS, CHUCK, HOUSE, MAD MEN, FARGO, GAME OF THRONES, THE BOYS etc. Mas ele foi sempre uma espécie de operário.

Mesmo em WANDAVISION ele não participou do time de roteiristas, mas a Marvel confiou a ele a direção de todos os nove episódios. Tudo bem que a gente sabe que a Marvel tem essa característica de, com frequência, investir em diretores não-autores, mas o sucesso dessa série acabou dando uma moral para Shakman, já que o projeto de séries de televisão do estúdio acabou sendo um fracasso no fim das contas, mas todo mundo lembra com carinho da série da Feiticeira Escarlate e do Visão, ambos vivendo com seus filhos numa espécie de sitcom típica dos anos 1950.

Por mais que QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS não seja perfeito em suas ambições tem tanto uma ambientação de dar gosto quanto uma boa construção dos personagens. Finalmente um filme do Quarteto em que a ideia de família se apresenta de forma tão enfática – como deve ser. E, assim como SUPERMAN, de James Gunn, a intenção de Shakman e do time de roteiristas é aproximar seus heróis de suas décadas de surgimento. Ou do espírito delas. 

No caso do novo filme do Quarteto, a ambientação e o visual retrofuturista é do início dos anos 1960, e isso é algo que agrada bastante, assim como a fotografia bastante colorida e a escolha do elenco para interpretar a família mais importante e querida do universo Marvel. Destaco principalmente Vanessa Kirby, que é o coração do filme, como Sue Storm, que logo no início da trama, se descobre grávida ao fazer um teste de gravidez no banheiro da suíte. Aliás, é difícil não fazer uma conexão da cena do parto neste filme com a cena de PIECES OF A WOMAN. Pedro Pascal está muito bem também como Reed Richards. É um ator de fato carismático, e por mais que sua escalação para viver o Senhor Fantástico tenha sido estranha a princípio, ele tirou de letra.

A montagem é outro destaque: o filme é enxuto, passa rápido e nos convida a ficar sempre interessados em cada momento. Agora, claro que a ameaça de Galactus poderia ter sido mais dramática, ter causado mais impacto, mas ficou suficientemente boa, ainda que não tão boa quanto a história original do Surfista Prateado encontrando o Quarteto nos quadrinhos de Stan Lee e Jack Kirby.

Aliás, não ficou ruim trocarem o gênero do Surfista aqui, vivida por Julia Garner. Achei interessante darem um maior destaque ao personagem do Tocha Human (Joseph Quinn). Johnny Storm até mesmo consegue o que Reed Richards não consegue, ao aprender a língua do planeta da Surfista Prateada. A mudança de gênero, acredito que foi necessária para não trazer uma lembrança mais forte com o filme de 2007.

Este novo é superior em todos os aspectos e toda a sequência dentro da nave é bem empolgante, resgatando a ligação do grupo com a ficção científica, mas sem largar mão de toda as questões familiares. Já quero uma sequência.

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EXTERMÍNIO – A EVOLUÇÃO (28 Years Later)

Tenho pouca lembrança dos dois primeiros filmes da franquia Extermínio (2002, 2007), mas isso se deve ao tempo que os vi na telona. Porém, tenho impressão de que gostei mais deste terceiro filme, com o retorno de Danny Boyle na duração e Alex Garland no roteiro, do que dos anteriores, talvez por subverter as expectativas, por trazer algo de novo dentro do subgênero “filme de zumbi”. Antes de mais nada, o menino vivido por Rocco Hayes tem muito carisma e é o coração do filme. Na primeira parte de EXTERMÍNIO – A EVOLUÇÃO (2025), ele e o pai vão para uma espécie de ritual de amadurecimento, em que ele terá que conhecer o mundo habitado por zumbis, o mundo em quarentena, que corresponde basicamente a toda a Grã-Bretanha. Não apenas conhecer, mas atirar em zumbis com arco e flecha. Nisso, Boyle é Garland mostram os zumbis alfa, muito mais mortais e com o detalhe de andarem nus. E há outra novidade que não vou contar para não estragar as surpresas. Sobre os demais segmentos do filme, achei incrível o momento de descoberta dele com a mãe (Jodie Comer), o encontro com o médico, o momento mori, que dá todo um tom mais melancólico e o filme ainda tem espaço para o humor. Também se destaca o estilo de composição visual gerado pelas câmeras digitais e pela montagem nervosa. Filmão.

TERREMOTO EM LISBOA (O Melhor dos Mundos)

Achei um barato saber que em Portugal se fala "terramoto" e não "terremoto". O mais curioso deste thriller português que busca se assemelhar aos americanos na estrutura, com direito a trilha sonora de tensão quase convencional, é que há tanto o tempero lusitano quanto a falta de recursos para fazer um disaster movie ou uma sci-fi apocalíptica. No mais, gosto do quanto há um destaque às relações humanas, como no casal que trabalha junto e na preocupação com os pais da protagonista, que devem sair de Lisboa o quanto antes. Em certo momento, eu me lembrei de GODZILLA, o original japonês dos anos 1950. Mas só por um momento, e só por causa desse quesito. Em TERREMOTO EM LISBOA (2024), o menos é mais no trabalho de Rita Nunes, e é com isso que se obtém um belo trabalho, com direito a uma ótima performance da protagonista, Sara Barros Leitão. Gosto muito das cenas finais, com toda a expectativa.

ANIMALE

Do ponto de vista do que se espera do gênero horror, temos aqui uma variação do filme de lobisomem, com a mudança de animal. Gosto mais dos aspectos plásticos do filme do que de sua ideia e desenvolvimento. Há no início de ANIMALE (2024) o desconforto de vermos a estupidez de uma tourada (que eu não sabia que existia na França) e os maus tratos aos animais, mas depois vemos que isso faz parte da trama e será um elemento importante para a transformação física e psicológica da protagonista, que inclusive é apresentada logo no começo marcando um touro a ferro. De certa forma, o modo como a diretora Emma Benestan apresenta aquele universo é até de certa forma menos violento do que se esperaria, talvez por que hoje as plateias são mais sensíveis a esse tema. A protagonista, vivida por Oulaya Amamra (vista no excelente O SAL DAS LÁGRIMAS, de Philippe Garrel), se doa ao papel da mulher que vive num mundo extremamente masculino e também muito animal. No meio dos homens, ela diz não se interessar por namoros e querer seguir a vida de toureira. Há outro tema que o filme perpassa, mas que acaba ficando ambíguo dentro da narrativa principal, que é o tema do estupro. É bem-vindo como mais um exemplar de filme de horror que trata da violência masculina, mas poderia ter sido mais eficiente.

domingo, julho 27, 2025

BLACK MIRROR – SÉTIMA TEMPORADA (Black Mirror – Series 7)



Acho curioso como uma temporada tão bacana quanto esta sétima (2025) não esteja recebendo tantos elogios. Tudo bem que nem todos os episódios são tão incríveis assim, mas todos são no mínimo muito bons e interessantes, alguns bastante tocantes; outros, empolgantes. Esta nova temporada de BLACK MIRROR volta com mais força ao campo da ficção científica, algo que a anterior (2023) havia se desviado um pouco, ficando mais próxima do horror, coisa que também me agradou, aliás. Falo abaixo um pouco sobre cada episódio desta temporada, vistos num intervalo de tempo maior do que eu gostaria. 

Common People

Adorei a arte do cartaz deste "Common People", um dos episódios mais pedradas de BLACK MIRROR. O marido (Chris O'Dowd) tentando beijar a esposa (Rashida Jones) que se apresenta como se estivesse com o corpo se desfazendo como um metal líquido. Na história, os dois são pessoas que vivem em empregos simples e mal remunerados. O dinheiro mal dá para eles atravessaram para a outra cidade no dia do aniversário da relação dos dois para comerem um hambúrguer num lugar chamado San Junipero (referência a um dos episódios mais cultuados da série). Certo dia, ela passa mal e se descobre com um câncer no cérebro. Sua alternativa de vida aparece numa nova experiência de uma empresa, que diz que a cirurgia é grátis, mas que o casal terá que pagar mensalidades. "Common People" tem muitas camadas e pode se referir a diversas coisas: é fácil pensar diretamente nos planos de saúde, mas também nos serviços de streaming e, indo mais fundo, na própria vida que levamos hoje, muito dependente da tecnologia. Aqui a tecnologia aparece como um vampiro de almas, por assim dizer. O final só não é mais devastador porque, em determinado momento, a vontade de viver daquele jeito se torna mínima.

Bête Noire

Acho que o mais curioso deste episódio é que eu, pelo menos não cheguei a acreditar na protagonista, embora também não confiasse na loira que aparece no escritório para desestabilizar seu mundo. Na trama, Maria (Siena Kelly) é uma garota especialista em doces (na verdade, sua empresa é mais sofisticada do que apenas uma doceria). Ela fica bastante incomodada quando uma ex-colega dos tempos de escola chega para trabalhar em seu mesmo espaço profissional. Estranhas coisas começam a acontecer e Maria passa a achar que é essa mulher, Verity (Rose McEwen), que, de alguma maneira, está fazendo algo para lhe prejudicar. Ao longo do episódio sabemos alguns motivos. A melhor parte é o embate final entre as duas. Pode não ser dos melhores episódios da série, mas é bem interessante como uma variação de À MEIA LUZ, O BEBÊ DE ROSEMARY e outros filmes sobre gaslighting.

Hotel Reverie

Segundo mais longo episódio desta sétima temporada, "Hotel Reverie" parece uma mistura de A ROSA PÚRPURA DO CAIRO com o belo "San Junipero" (olha ele de novo!). Mas aqui não é a personagem do filme que sai da tela, mas uma atriz que invade a realidade de um filme clássico, a partir de uma nova tecnologia que permite que um ator consiga contracenar com personagens de inteligência artificial gerados a partir de conceitos dos filmes-alvo. A ideia então é abraçada pela atriz vivida por Issa Rae, cansada de fazer papéis secundários em grandes produções e de trabalhar como protagonista apenas em filmes indie. No filme dentro do filme, ela conhece a personagem que não sabe que é uma personagem (Emma Corrin), até que em algum momento essa falta de consciência é quebrada. Em algum momento este pequeno filme, que não é tão pequeno assim, começa a cansar, mas gosto do epílogo, embora não goste tanto assim da conclusão da situação das duas mulheres dentro da nova versão do filme dentro do filme. De todo modo, é sempre bom ver uma boa ideia sendo desenvolvida. E ideias não têm faltado a Charlie Brooker.

Plaything

Um dos mais interessantes desta nova temporada, este "Plaything" já começa intrigante, com o personagem de Peter Capaldi se deixando prender numa loja simples e numa civilização avançada o suficiente para capturar pessoas que têm ficha criminal com um exame de DNA imediato. Mas isso é o de menos: o mais importante surge no depoimento do personagem na delegacia, que nos levará para sua juventude, quando teve contato com uma criação de inteligência artificial com visual de videogames antigos. Muito legal o tom retrô, afinal, boa parte da trama se passa mais ou menos nos anos 1990. Dos episódios da série, é o que mais se aproxima de um cyberpunk. O diretor David Slade já havia comandado um episódio especial da série-antologia: "Bandersnatch" (2018), que ouvi dizer que estaria saindo da Netflix, sem que os demais saiam. O que me pareceu um bocado estranho.

Eulogy

Este é um dos mais melancólicos episódios de BLACK MIRROR, e que bom que a série pôde contar com um ator tão bom quanto Paul Giamatti. Aqui ele é um homem solitário que recebe a visita de uma moça que fala sobre o falecimento de uma ex-namorada dele. A lembrança dessa mulher logo traz um impacto grande no protagonista. Como aqui se trata de BLACK MIRROR, a tecnologia está aí para perturbar, mas também para nos deixar muito empolgados com a criatividade da história. A ideia da filha da mulher falecida é criar, a partir de memórias de quem a conheceu, a partir de um equipamento chamado "eulogy", capaz de fazer com que a pessoa busque numa foto borrada que seja a memória daquele momento. É também uma história de dor imensa e de reconexão com um passado que a pessoa até então queria esquecer. É como se fosse a um pequeno filme sobre um reencontro amargo com um amor perdido.

USS Callister – Into Infinity

Acho engraçado que eu tenha tão pouca lembrança de "USS Callister", episódio da quarta temporada (2017) de BLACK MIRROR. Resolvi encarar esta continuação desse episódio sem rever o anterior e achei absolutamente fascinante. Não sei se melhor, mas talvez seja. Talvez porque a personagem de Cristin Milioti (PALM SPRINGS) seja tão boa e de tão fácil simpatia por parte do espectador que seu carisma é quase o bastante. Temos ela como duas personagens: a original, que trabalha na empresa Infinity, e a sua clone, que está presa numa nave espacial junto com outros clones. "USS Callister - Into Infinity" ainda traz um interessante flashback do dia que os personagens de Jesse Plemons (o inventor) e Jimmi Simpson (o dono da companhia) se conhecem. É interessante notar que esta temporada explora muito bem universos alternativos. Acontece com "Plaything", com "Hotel Revery", um pouco com "Eulogy" e finalmente com "USS Callister - Into Infinity". E isso não chega a ser uma novidade na série de Charlie Brooker. Há, inclusive, uma referência mais uma vez a "San Junipero" (2014), um dos mais celebrados da série, aqui aparecendo como nome de um hospital. De certa forma, parece ser uma obsessão de Brooker apresentar personagens presos em circunstâncias cruéis: talvez o pior/melhor exemplo seja o de "White Christmas" (2014).

domingo, julho 20, 2025

DREAMS (Drømmer)



Aproveitar a melancolia deste domingo para falar de um filme que tem algo de melancólico e de meditativo, mas também de positivo na percepção do viver intensamente as paixões, da valorização dos sentimentos. DREAMS (2024), de Dag Johan Haugerud, é sobre isso e muito mais. É um filme muito falado, o que pode incomodar o público que não gosta muito de ler legendas, mas é uma fala tão boa, e ainda com a vantagem de ser também cinema de ótima qualidade e grande sensibilidade. Além do mais, os diálogos são fluidos e dinâmicos. DREAMS faz parte de uma trilogia sobre intimidade física e emocional. É o terceiro dos três a ser lançado e o grande vencedor do Urso de Ouro em Berlim em 2025. Os demais filmes são SEX e LOVE, também de 2024.

Foi uma alegria poder descobrir o cinema deste realizador, cujos filmes, exceto os dessa trilogia, estão inéditos em nosso circuito (penso eu). DREAMS conta, de maneira muito delicada, o despertar da paixão de uma adolescente por uma de suas professoras. Achei de cara muito agradável que o filme seja verborrágico, sem falar que a narração da garota não é redundante. Isso, inclusive, fica explícito na cena em que a professora reza um "Pai Nosso" em seu apartamento. Ou seja, as imagens e a narração podem até andar em paralelo, mas não dizem a mesma coisa. 

Além do mais, ouvir a voz da narradora é como saborear um livro que não conseguimos largar. Mais ou menos como os próprios escritos da jovem protagonista indo parar nas mãos da avó e da mãe. O filme pode ser dividido em três partes bem visíveis: a primeira começa quando a jovem Johanne (Ella Øverbye), 17 anos, lê um livro que descreve a paixão de um personagem por outro e ela sente um impacto físico em seu corpo. Logo em seguida, ela vê essa professora, cujo nome é parecido com o seu, Johanna (Selome Emnetu), pela primeira vez, e não consegue parar de pensar nela em momento nenhum de seus dias, até a cena do fechar da porta. Esse seria o fim do primeiro ato.

O segundo ato é o que se passa alguns meses após os eventos do primeiro e que se utiliza de flashbacks e de muita conversa para aprofundar a importância agora dos escritos de Johanne sobre sua experiência de paixão. Aliás, essa obsessão nos é apresentada de maneira tão intensa que é como invadíssemos o universo interior da personagem, quase como se estivéssemos fazendo algo errado, de tão íntimos que são aqueles seus pensamentos e sentimentos, que ela demoraria a contar para alguma pessoa. O terceiro ato funciona como uma conclusão para a história, com mais um salto temporal.

Uma coisa que me pegou muito no filme foi o guardar, foi o ato da personagem fazer questão de contar em palavras a sua experiência de estar apaixonada pela professora: seus atos, sua descrição encantada de partes específicas do corpo da mulher desejada, suas aflições, o medo de ser descoberta até mesmo quando sonha com a professora, seus pequenos momentos de alegria ao estar pertinho da pessoa que ama, ainda que seja apenas por um breve toque no corpo.

Mais adiante, o filme foca também nas discussões entre mãe, avó e até uma editora de livros sobre a força de seus escritos e sobre a própria vida, sobre a menina estar vivendo tão intensamente, que a avó chega a dizer que queria ter vivido mais, queria ter tido mais parceiros etc. Nesse sentido, vejo DREAMS também como um filme sobre a força das palavras. Não apenas como um meio de guardar recordações, mas também de mexer com o leitor.

Vendo o filme, e sobre o guardar e o sentimento de paixão que vem junto com esse ato, lembrei deste poema de Antonio Cícero:

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.


+ TRÊS FILMES

JOVENS AMANTES (Les Amandiers)

A princípio pensei se tratar de um trabalho sobre a experiência com um homem abusador, como THE SOUVENIR, de Joanna Hogg, mas este belo filme semi-autobiográfico sobre a juventude da diretora Valeria Bruni Tedeschi se iniciando na atuação no teatro e a vivência com seus colegas é mais uma narrativa coral, embora haja uma personagem que se destaque mais. Há, sim, um relacionamento no mínimo complicado da protagonista com um colega viciado em heroína, mas há também os dramas dos demais jovens da escola de teatro, na década de 1980, quando a AIDS chegou demolindo estruturas e destruindo vidas. Em JOVENS AMANTES (2022), Louis Garrel interpreta Patrice Chéreau, mais lembrado hoje como o diretor do excelente A RAINHA MARGOT, aqui com a missão de iniciar os jovens calouros na montagem de uma peça de Tchekhov. A jovem Nadia Tereszkiewicz (vista em O CRIME É MEU, de François Ozon) está ótima como a menina frágil, rica e disposta a ajudar o colega viciado por quem se apaixona. O filme tem uma cadência gostosa e trata seus personagens com carinho, passando sentimentos mais de amor do que de traumas daquele momento importante de sua vida. A propósito, tenho achado curioso alguns filmes franceses da safra de 2022 só estarem chegando ao circuito brasileiro neste ano: é o caso também de ENTRE DOIS MUNDOS, estrelado por Juliette Binoche.

AUCUN REGRET

Quando gostamos muito de um diretor e vamos começando a gabaritar sua filmografia, é uma alegria quando descobrimos que ainda temos algumas obras suas para ver. No caso de Emmanuel Mouret, ele tem sete curtas listados no IMDB. Um deles é este, feito após o delicioso ROMANCE À FRANCESA (2015) e que traz um sabor dos filmes da Nouvelle Vague, especialmente de Rohmer e de Truffaut. Na trama de AUCUN REGRET (2016), Aurélie (a bela Katia Miran) é uma jovem que conhece um rapaz na universidade e sua amiga diz que ele tem má reputação. Ou seja, ele tem por hábito sair com as meninas e logo depois desaparecer, deixando-as na mão quando se apaixonam. A história é muito simples, mas também fácil de ser identificável. Sem falar que há uma beleza de dar gosto quando os dois estão em seus momentos de intimidade, com um cuidado especial para o uso da luz.

TRÊS AMIGAS (Trois Amies)

Sou entusiasta do cinema de Emmanuel Mouret desde que vi FAÇA-ME FELIZ! (2009) numa divertida sessão no Varilux, com o público gargalhando a valer. Era uma comédia que lembrava LEVADA DA BRECA e outras screwball comedies, mas já aproximava a persona de Mouret com Woody Allen, algo que foi aumentando no trabalho seguinte, A ARTE DE AMAR (2011). Suas obras posteriores buscaram equilibrar o humor com o drama, até incorporar o melodrama a sua poética. Este TRÊS AMIGAS (2024) é o filme de que menos gostei do realizador, mas ter visto com sono não ajudou muito, é verdade. Aqui temos o filme que ele mais usa mulheres comuns, por assim dizer: a maior parte dos demais trabalhos dele trazia uma ou mais beldades. É também um filme bastante despojado plasticamente, algo que não se esperava depois de vermos CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (2022), seu trabalho anterior, bastante sofisticado na forma e também caprichado nos diálogos. TRÊS AMIGAS, assim como outras obras de Mouret, fala de traição, de triângulos amorosos, de medo de magoar o outro, de insegurança, das complexidades nos relacionamentos. É um filme que tem certa leveza, mas suas personagens estão quase sempre angustiadas, insatisfeitas, incompletas. Uma das amigas mais chegadas é amante do marido da outra; uma delas quer acabar com o casamento porque parou de amar o marido (o narrador do filme, o ótimo Vincent Macaigne); uma delas acredita que o segredo de seu casamento é ela fazer de conta que ama o marido; e por aí vai. Então, até há momentos de riso, mas dá saudade dos filmes mais felizes de Mouret, ou mesmo de melodramas mais carregados, como UM NOVO DUETO (2013) ou MADEMOISELLE VINGANÇA (2018). Não ficou um gosto muito bom para mim, mas quem sabe numa revisão eu passo a gostar mais, dadas as circunstâncias em que o vi.

quarta-feira, julho 16, 2025

SUPERMAN



Fiquei feliz quando a Giselle trouxe a proposta de vermos SUPERMAN (2025) no sábado. No estado em que eu estava na sessão de quinta-feira, e com a desvantagem de ser em 3D horroroso que atrapalha a beleza das cores vivas da fotografia, ficaria difícil pra mim fazer um julgamento justo do filme, não importando se eu estava vendo no IMAX. E de fato é um belo trabalho de James Gunn, agora como líder da reformulação da DC no cinema. Ele já havia trabalhado para a DC/Warner com o ótimo O ESQUADRÃO SUICIDA (2021), que trazia seu humor característico e anárquico, de modo a desfazer o equívoco que foi o filme de David Ayer. Saiu da Marvel com o pé direto, com o lindo GUARDIÕES DA GALÁXIA – VOL. 3 (2023) para assumir uma baita responsabilidade, já que os fãs do Homem de Aço são exigentes. Ele tinha três públicos para satisfazer, além de si mesmo: os fãs dos quadrinhos da DC, os cinéfilos e o público em geral, que embarcou e muito com o clássico SUPERMAN – O FILME, de Richard Donner. A julgar pela boa recepção da Giselle, que se encaixa mais na terceira categoria, o filme de Gunn foi um sucesso.

Acredito que poderia ser mais redondo e as partes que deveriam causar mais emoção poderiam ser mais emocionantes, como o beijo final com Lois ou a cena da chegada da Gangue da Justiça no país fictício oprimido que representaria muito provavelmente a Palestina, atualmente sofrendo o genocídio perpetrado por Israel. Gunn faz uso muito bom de seu estilo para sair do lugar comum de uma filmagem mais clássica, como quando evita o uso do campo-contracampo e faz muito o movimento de câmera nos diálogos entre os personagens, causando uma sofisticação que agrada aos olhos. E essa sofisticação ele traz também para as cenas de luta, mesmo as mais longas, como no embate do herói com seu principal nêmesis físico, o Ultraman, que lá no final saberemos quem ou o que se trata.

Falando em vilão, Nicholas Hoult está ótimo como Lex Luthor, o grande arqui-inimigo do Superman, que já foi encarnado por atores como Gene Hackman, Kevin Spacey e Jesse Eisenberg em outras versões do herói para o cinema. Hoult faz o clássico vilão que fala demais, como nos quadrinhos pré-revolução dos anos 1980 nos quadrinhos. A intenção, acredito, é trazer um ar retrô que aproxime essa versão de 2025 com os anos de sua criação, no final dos anos 1930 e posteriores. Esse aspecto mais expositivo pode incomodar um pouco, mas é só comprar e aceitar a ideia e encarar esse tipo de diálogo mais como homenagem do que como sátira. Até porque percebe-se o interesse de Gunn em trazer o máximo de dignidade ao herói.

Já a Lois Lane de Rachel Brosnahan (da série MARAVILHOSA SRA. MAISEL) é um acerto e tanto. Não só por tirar a personagem o máximo possível de donzela em perigo para um lugar de agente da ação, como também porque ela faz embates com o próprio Superman/Clark Kent. Aliás, trazer o Superman mais como Clark Kent do que como Kal-El, embora muito pouco caracterizado como seu disfarce, o aproxima mais de um ser terreno e próximo dos valores de alguém deste planeta, mais de valores que transcendam os valores americanos, já que ele não se vê como cidadão americano e não tem que seguir ordens do presidente dos Estados Unidos. Essas e outras questões têm tornado o filme bem pouco querido pela extrema direita, que o chama de Superman Woke.

No mais, vale destacar a presença de outros coadjuvantes que roubam a cena: o cãozinho Krypto, todo feito em CGI, mas que parece um cão de verdade; o Sr. Incrível, vivido por Edi Gathegi, que é o personagem mais cool do filme; Isabel Merced como a Mulher-Gavião, apesar de aparecer pouco; e Sara Sampaio como a agente dupla Eve Teschmacher, personagem, aliás, criada originalmente para o filme de Richard Donner, mas que depois seria incorporada nos quadrinhos.

Ah, e antes que eu me esqueça, David Corenswet manda muito bem como o novo Superman. Imprime um tipo de bondade que às vezes se confunde com ingenuidade, como deixa claro numa das conversas que ele tem com Lois. Essa repaginação do Superman depois de uma tendência às sombras de Zack Snyder é muito bem-vinda. Não que eu prefira um ao outro, mas pela necessidade de mudança mesmo. E Gunn sabe o que faz, embora precise estar menos engessado no próximo filme.

+ TRÊS FILMES

JURASSIC WORLD – RECOMEÇO (Jurassic World – Rebirth)

Há uma cena em JURASSIC WORLD – RECOMEÇO (2025), de Gareth Edwards, que define bem o seu espírito: é quando a personagem de Scarlett Johansson, que vive uma mercenária especialista em missões perigosas, aceita o acordo de ir até à ilha proibida dos dinossauros pela soma incrível em dinheiro proposta pela empresa farmacêutica que pretende usar DNA dos dinos para criar remédios. A cena em si é ruim do ponto de vista da dramaturgia, mas pra esse tipo de filme isso não importa muito. A questão é que ela funciona como uma metáfora para o topa tudo por dinheiro de Hollywood em se aceitar projetos assim, que não apresentam nada de novo e que também não funcionam como boas aventuras com cenas assustadoras. Tudo é reciclado sob desculpa de homenagem ao original de 1993 de Steven Spielberg, até a trilha memorável de John Williams. O filme, enquanto foca na preparação para a missão do grupo principal, demora a engrenar. Melhora um pouco quando entra em cena uma família que está fazendo um passeio por águas próximas às da ilha proibida. Há, inclusive, uma homenagem interessante a TUBARÃO. Essa família traz também um alívio cômico que o grupo principal não havia conseguido até então. Em alguns momentos o filme parece produzido por uma IA, de tão sem humanidade que é. Há uma certa covardia por parte do diretor (ou de quem o comandou) em não fazer cenas um pouco mais gráficas do ataque dos dinossauros aos humanos e há uma ineficiência em saber recriar cenas do anterior em outro contexto. De todo modo, a gente entende que há um senso de moral necessário para esse tipo de produção, como punir os maus (e os coadjuvantes com pouca função) e salvar os bons, inclusive uma criança. Enfim, mais um filme sem alma para esta franquia.

F1 – O FILME (F1 – The Movie)

Não curto muito Fórmula 1, assim como não sou entusiasta de nenhum esporte. Até tentei ver algumas corridas nos anos 90, e buscar entender o que estava acontecendo, mas sentia dificuldade, em parte por alguma incapacidade das várias câmeras darem conta de captar de forma inteligível para mentes menos observadoras. No caso de F1 – O FILME (2025), há a voz do narrador nas corridas e há uma edição bem rápida e dinâmica, de modo que nos deixa ligados o suficiente para não nos cansarmos em suas mais de 2h30 de metragem. Brad Pitt está ótimo como o cinquentão que teve seu auge nos anos 90 e que é convidado pelo dono de uma das equipes (vivido por Javier Bardem, sempre ótimo, mas aqui em modo mais de pura diversão) a integrar o grupo como um dos dois pilotos de corrida. O outro é um jovem cheio de si que logo se vê ameaçado pela persona cool do piloto com histórico de fracasso, mas com segurança e interesse em dar o melhor para a equipe, inclusive ajudando na questão da melhoria dos carros, tidos como umas latas velhas. Vale muito ver o filme numa tela IMAX, afinal trata-se de um trabalho feito para exibição nesse tipo de sala e a bela fotografia de Claudio Miranda, que já havia trabalho com Joseph Kosinski em TOP GUN - MAVERICK (2022). Não é filme para se ficar dias pensando a respeito, mas é divertido e melhor do que o trailer dava a entender, até por conta da questão da idade do personagem de Pitt, que acaba sendo essencial para a própria trama. Na trilha sonora, vários clássicos do rock ajudam a trazer animação para a trama e a trilha sonora de Hans Zimmer é ótima.

PREMONIÇÃO 6 – LAÇOS DE SANGUE (Final Destination – Bloodlines)

Lá em 2011, quando saiu PREMONIÇÃO 5, a franquia já demonstrava sinais de cansaço e era aquele tipo de diversão que só chegava ao cinema por causa dos efeitos 3D. Já tinha cara de produção direto para vídeo. A New Line trazer de volta a franquia, tomando de assalto várias salas classe A em todo mundo (aqui estreou na IMAX), é uma prova de que a Warner acreditava no poder da nostalgia. Embora a cena inicial de PREMONIÇÃO 6 – LAÇOS DE SANGUE (2025) seja boa, a protagonista, quando acorda do pesadelo e vai até sua família, não é boa o suficiente para segurar a narrativa, que nem existe. O resultado é sonolento, aborrecido e as cenas mais gráficas são fracas. Ainda assim, são as cenas de morte que nos acordam do sono, especialmente quando surgem de maneira mais inesperada. Os diretores Zach Lipovsky e Adam B. Stein vieram de produções para a TV da Disney e de um filme pouco conhecido chamado ABERRAÇÕES (2018).

domingo, julho 06, 2025

JUNE E JOHN (June & John)



Os últimos dias não têm sido fáceis. Sinto falta de escrever: a última vez que consegui produzir um texto maior foi no dia 15 de junho. O restante do mês foi como se eu estivesse sendo atropelado por um trem, com o perdão da hipérbole. E tudo ficou mais tenso com o internamento de minha mãe. Aliás, escrevo neste momento na enfermaria, do lado dela, mesmo sabendo que serei interrompido daqui a pouco.

Desses dias que tenho passado aqui, desde o dia 23 de junho, revezando principalmente com minhas irmãs e meu sobrinho, um momento que me deixou especialmente feliz ontem foi quando a Giselle subiu para visitar minha mãe por uns minutos. A Giselle tem uma energia incrível, uma alegria contagiante e eu fiquei muito feliz ao ver minha mãe surpresa, feliz e sorrindo quando a viu. E, mais ainda, ao ouvir as palavras de fé e de esperança que minha noiva trouxe a ela, emprestando um pouco de sua fortaleza à minha mãe, que esteve bem mais lúcida e melhor ao longo do dia, mas também bastante sonolenta e sem expressar um sorriso sequer.

Por isso, para retomar meus textos para o blog, e escrevendo do celular mesmo, escolho, dentre os filmes vistos recentemente, JUNE E JOHN (2025), de Luc Besson. Isso porque a personagem de June (vivida por Matilda Price) é um pouco do que a Giselle representa pra mim, no sentido de se acordar mais para a beleza do mundo real, e não só a beleza, mas também os aspectos mais sombrios até então invisíveis, e sair um pouco do torpor e do automatismo cotidiano. June tem “essa pressa de viver” descrita por Belchior em “Coração Selvagem”. E também guarda um segredo.

Nunca fui grande fã de Besson - e acho que a maioria dos cinéfilos não é -, mas de vez em quando um filme dele mexe comigo, como aconteceu com NIKITA – CRIADA PARA MATAR (1990) e JOANA D’ARC (1999). Dos mais recentes, gosto de LUCY (2014) e VALERIAN E A CIDADE DOS MIL PLANETAS (2017). E uma coisa que dá para perceber em suas obras é sua opção por destacar mulheres jovens, belas e fortes. June ajuda a trazer fortaleza a John, mas também carinho, amor e excitação em vivenciar aventuras.

O que me encantou em JUNE E JOHN foi o quanto ele é uma representação não só do amor louco, da paixão ardente, mas também de libertação. Da libertação do jovem funcionário de um banco (Luke Stanton Eddy) que vive uma vida à base de remédios para ansiedade e muita solidão. Até o dia que ele encontra, justo num daqueles dias que dá tudo errado, numa estação de metrô, uma jovem mulher de cabelos vermelhos chamada June. Não dá tempo de pegar o telefone dela, mas ele consegue contornar esse problema com a ajuda da internet e de muita força de vontade.

Vejo June como uma espécie de versão espelhada da femme fatale dos noirs dos anos 1940/50, ou seja, ela é a mulher que representa a destruição da vida do rapaz. Mas uma destruição bem-vinda, no caso, já que para renascer é preciso morrer, ainda que simbolicamente. O filme rende também muitas risadas e muita diversão, especialmente quando vira um road movie, e esse rir é também uma porta de entrada para outras emoções que virão na terça parte final. Acho especialmente linda a cena do casamento.

JUNE E JOHN também retrata a situação da Los Angeles dos dias atuais, lotada de sem-tetos vivendo nas mesmas calçadas onde se erigem arranha-céus de megamilionários. Nesse sentido, o filme também funcionará no futuro como um documentário sobre esse tempo.

Quanto à história principal, a história de amor entre o jovem comedido John e a promessa de felicidade June, é tão simples quanto bela. As cenas finais, em Las Vegas e no deserto do sudoeste americano, são lindas demais. E o filme sabe acabar no momento certo. Para além da estética publicitária e de videoclipe, Besson aqui está todo coração. E é uma coisa linda demais de ver. Tão belo quanto o sorriso de Matilda Price, tão deliciosamente incerto quanto a estrada que atravessa o deserto cheio de Joshua Trees.

Texto dedicado a meu grande amor, Giselle.

+ TRÊS FILMES

LEVADOS PELAS MARÉS (Feng Liu Yi Dai)

O último longa de ficção de Jia Zhang-ke havia sido AMOR ATÉ AS CINZAS (2018), um filme que já não havia me conquistado no quesito "importar-se com os personagens". E talvez até por isso, e por aceitar LEVADOS PELAS MARÉS (2024) como um projeto muito mais experimental, aceitei de bom grado o distanciamento para apreciação do filme, que contém cerca de 2/3 de imagens aproveitadas de dois outros títulos de Jia, PRAZERES DESCONHECIDOS (2002) e EM BUSCA DA VIDA (2006), ambos com as presenças de Tao Zhao e Zhubin Li. Eu estava gostando da brincadeira da colagem de filmes para criar uma nova história, e até gostaria que entrassem também cenas de outros filmes do diretor, como UM TOQUE DE PECADO (2013), mas entendo que a tentativa tornaria a colagem mais problemática. Ter uma terça parte final mais amarga com os dois ex-amantes se reencontrando num mundo ainda vivendo sob a pandemia da Covid-19 foi muito interessante. O personagem masculino, com sequelas de um AVC, surge mais frágil nesse momento, em comparação com a personagem feminina, forte o suficiente para participar de uma corrida nas ruas, o deixando "a rua deserta", como diria Caetano Veloso. Pena que essa colagem, por mais interessante que seja, não possui uma liga orgânica suficiente para que essa história de amores partidos seja cruel ou desoladora. O que senti foi mesmo indiferença. E não vejo isso como algo positivo, por melhor que seja rever imagens de filmes de Jia, além de trechos documentais interessantes, como a cena do sujeito que resgata um retrato pintado de Mao Tsé-Tung. De todo modo, LEVADOS PELAS MARÉS funciona como uma ótima apresentação de uma China em constante transformação, sempre alvo de críticas por parte do diretor, mas hoje uma nação digna de admiração pela gigante que conseguiu se tornar no mundo hoje.

AINDA NÃO É AMANHÃ

A opção de Milena Times em AINDA NÃO É AMANHÃ (2024) é contar uma história de maneira simples sobre uma jovem optando pelo aborto, sendo que é uma opção nada fácil, lembrando que o Brasil ainda é um país em que a interrupção da gravidez ainda é crime. Falo em simples, pois não há a intenção de fazer um libelo feminista como UMA CANTA, A OUTRA NÃO, de Agnès Varda; ou um drama extremamente tenso como O ACONTECIMENTO, de Audrey Diwan; ou uma tragédia de dimensões clássicas como 4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS, de Cristian Mungiu; ou uma jornada extremamente delicada, como NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE, de Eliza Hittman. A história de Janaína é mais comum, mais ordinária, no sentido de que acontece o tempo todo no Brasil, só que é algo muito pouco comentado. Na cena em que Janaína conta para a colega de classe que está grávida, ela fica admirada ao saber que a colega também já passou por isso antes. O que a diretora mais destaca em seu filme é a sororidade, é o quanto a mulher mais recebe ajuda de suas amigas e familiares do sexo feminino do que do namorado. Não que o filme vilanize a figura do rapaz, mas no fim das contas essa é uma história em que a mulher é a protagonista. Embora talvez não devesse ter que ser sempre assim.

EVIDÊNCIAS DO AMOR 

Filme divertido que opera (bem) mais na chave da comédia, mas que também pode ser visto como uma história dramática sobre um homem em busca dos motivos por que seu relacionamento se perdeu. Para isso, o destino lhe dá o mecanismo de acessar as memórias a partir da audição de "Evidências", clássico dos karaokês. EVIDÊNCIAS DO AMOR (2024) começa, aliás, num karaokê, em que os personagens de Fábio Porchat e Sandy Leah se conhecem e engatam um namoro. Sobre a natureza fantástica do filme, lembrei-me de CLICK, com Adam Sandler, em alguns momentos, inclusive. A brincadeira em torno da canção é divertida, e, por mais que Porchat e Sandy não tenham tanta química juntos como casal, como eles passam a maior parte do tempo separados, o drama da separação acaba funcionando. (Curiosamente, Porchat funcionou muito bem quando trabalhou como par romântico de Miá Mello nos dois MEU PASSADO ME CONDENA, mas talvez isso se dê devido a uma natureza diferente dos filmes). No caso do filme de Pedro Antônio, há uma leve estranheza que me agrada e me fez ficar interessado do início ao fim - a montagem é acertada, mal se vê o tempo passar. Quando a sessão acabou, teve até coro de espectadores cantando "Evidências" enquanto subiam os créditos.