
“O prazer passa, mas o desejo volta sempre; e é o alimento do amor.”
Vários filmes dos anos 2000 estão precisando de uma remasterização, pois foram realizados em película naquele momento de transição para o digital e, com sorte (podia ser pior), suas únicas fontes são dos DVDs lançados. É o caso de FILME DE AMOR (2023), que há tempos eu já deveria ter visto, mas que calhou de ser um dia desses, em que eu fiquei em casa, de modo a me dedicar a mais este título de Julio Bressane.
Aliás, descobri que a melhor maneira de ver Bressane em casa é fazendo anotações, tanto do que me chama a atenção nas imagens e sons, quanto de reflexões a partir do que me vem à mente sob o efeito do que o diretor apresenta. É quase como ler um livro fazendo anotações a lápis. Fiz isso com GAROTO (2015), filme que abriu meu ano de 2025, e agora repito com esta produção que acabou ditando um pouco do que seria o Bressane do século XXI, em especial seu interesse mais crescente por tratar do sexo.
Até achei que FILME DE AMOR fosse menos verbal do que vários de sua fase mais recente, mas traz bastante da erudição do cineasta, de seu interesse em equiparar o prazer da leitura e da cultura com o prazer pelo sexo, que aqui surge de maneira bem pouco usual até para o próprio Bressane. Não se trata nem do filme mais sensual dele, embora seja um filme sobre sexo, de certa forma, e um pouco mais gráfico.
Não dá para dizer que somos apresentados a três personagens, pois eles não são devidamente apresentados. Não têm nome, nem sabemos nada sobre eles. Apenas que se reúnem para passar um domingo (ou um fim de semana?) num apartamento para beber, ler e fazer sexo. Ou o que mais der vontade.
A fotografia de Walter Carvalho se alterna entre as cores e o preto e branco. Quando eles chegam ao local de encontro, os três ficam sentados à mesa, e é como se as mulheres passassem a ter uma noção maior da sensualidade de seus corpos, do fogo que os habita, como uma Eva após o fruto proibido. Só que sem culpa. E sem vergonha. Bressane logo nos presenteia com sua erudição em trechos retirados de diversas fontes antigas e clássicas, como “O amor é uma guerra; o mais doce dos combates." Em certo momento, quando uma das mulheres desce a escada, é como se o Bressane de MATOU A FAMÍLIA E FOI AO CINEMA (1969) estivesse de volta, ao som da canção “De cigarro em cigarro”, na voz de Nora Ney.
Não é um filme de fácil compreensão, o que não quer dizer que não seja delicioso. Além do mais, quem se dispõe a ver um Bressane não vai necessariamente em busca de respostas. Ao contrário, vai querer se deliciar com o não saber também, com o mistério de não compreender algumas coisas, embora haja a compreensão ou percepção de outras.
Quando começamos a ver o filme, o que sabemos é que se trata de um filme de sexo (ou com sexo) que ganha o título de “Filme de Amor”, pois o amor aqui é o “eros”. FILME DE AMOR começa com o som das ondas. A primeira imagem: duas mulheres e um homem em trajes de banho numa praia, os nossos heróis. Close de pés na água, uma imagem estranhamente familiar dentro do cinema recente de Bressane. Vemos a imagem do homem acariciando as coxas de uma delas, enquanto a outra sorri. Todos sorriem. Não há nenhum diálogo por enquanto, só o som das ondas. Uma das meninas acaricia o rosto da outra. Os três contemplam o mar.
Corta para o título do filme e mudança de fotografia. Agora é preto e branco, o que pode trazer tanto a impressão de que estamos no território da realidade crua da vida dos três. Imagem de baixo para cima do rosto da mulher, tentando buscar as árvores, o que me fez lembrar TABU (1982). Depois, há o contemplar a paisagem no trem. Não parece haver contentamento. Ela carrega uma sacola. As ruas parecem desertas. A outra mulher também carrega sua sacola de plástico. Assim como o homem, que segue no ônibus, em expressão séria, quase de raiva.
Os filmes do Bressane são um convite à contemplação. Especialmente os que usam poucos diálogos. Mas ele também é especialmente atraente quando usa diálogos. O cineasta não se preocupa se não ouvimos as vozes dessas pessoas no começo, talvez o que importa seja o que vemos; não o que ouvimos. Pelo menos a princípio. O álcool consumido ajuda a trazer mais libido. Um leite é derramado num prato para um gato. Uma história picante será contada. Só que não há muita lógica nas falas. São falas de alguém embriagado.
Interessante essa busca pela ousadia do que mostrar no sexo, mas sem que entre na pornografia. Até porque as palavras começam a levar o foco para a cabeça, o sangue passa a ser mais bombeado para o cérebro. Enquanto isso o cinema de Bressane passa a desempenhar sua função a partir de imagens que podem funcionar como simbolismos. As duas mulheres flutuando: o sexo como elevador da percepção, com algo transcendental. Há alguns enxertos de imagens e sons de outros filmes e músicas, como o som da voz de Gregory Peck na adaptação de John Huston do romance de Herman Melville, MOBY DICK. Mas qual a relação de Moby Dick com aquele encontro de três pessoas movidas pelo sexo?
Um pênis ereto falso, uma cena de felação sensual (embora eu prefira a de GAROTO), mas entrecortada por sons de filmes variados, diálogos que pouco parecem fazer sentido diante do que estamos vendo. Uma das mulheres tendo seu púbis raspado com uma navalha. Close da genitália. Que seria visto em CLEÓPATRA (2007) também, talvez o meu favorito dele. A cortina se abrindo para ver melhor o corpo nu da mulher faz lembrar NOSFERATU, de Murnau. O mesmo Murnau que inspiraria Bressane a fazer TABU, décadas atrás, um TABU festivo e carnavalesco.
Bressane faz tanto uma celebração libertária à vida e ao sexo, como também nos convida ao mundo da erudição, embora essa palavra deva ser bem pouco usada para quem já vive se aprofundando em muitos textos literários e filosóficos, no estudo da pintura (em FILME DE AMOR, a principal inspiração é do pintor francês Jean Baltus), da música e do próprio cinema. Nem todos temos tempo para nos aprofundar nesse manancial de cultura, mas é importante pelo menos termos a consciência de que nosso tempo pode estar sendo bastante desperdiçado com coisas muito fúteis.
+ TRÊS FILMES
O REFORMATÓRIO NICKEL (Nickel Boys)
Filme de 140 min com sensação térmica de 240 esse O REFORMATÓRIO NICKEL (2024), de RaMell Ross. Não é fácil. Não por causa da história dura de vida dos protagonistas, dois jovens negros nos anos 1960, tendo que viver presos num reformatório que por vezes lembra campos de concentração. A escolha pela câmera subjetiva é arriscada e justamente por isso é tão pouco adotada. Mas curiosamente meu filme brasileiro favorito, EROS – O DEUS DO AMOR, usa esse recurso. Até imagino que a intenção ê mesmo causar desconforto, mas quando esse sentimento passa a causar desinteresse sinto que há algo de errado: com o filme ou comigo. Na verdade, ando passando por dias de ansiedade e angústia e nem sempre esse mal-estar é propício para certos filmes, ainda mais os mais experimentais, que ousam na forma. Vejo problema no ritmo, e não tive envolvimento o bastante com os personagens a ponto de sofrer com eles. Talvez apenas numa cena de tensão, perto do final. Gosto das inserções explicitamente documentais e de cenas de um filme estrelado por Sidney Poitier, querido pela comunidade negra como um dos homens mais bonitos do cinema. Nos créditos, vê-se o nome de Brad Pitt como um dos produtores associados. Bem possível que isso tenha ajudado o filme a ter visibilidade o bastante para ser indicado ao Oscar. Além do mais, há cenas que doem bastante. Então é uma obra que merece nosso respeito, tanto como filme de protesto quanto como um filme dotado de uma proposta que a princípio parece ter pouca razão de ser, mas que no final passamos a compreender.
TUDO QUE IMAGINAMOS COMO LUZ (All We Imagine as Light)
O chato de ver filmes de andamento muito lento quando estamos muito ansiosos é que esses filmes podem acabar se prejudicando. Mas talvez tenha me faltado algo nos dramas dessas personagens que pudesse funcionar como identificação para mim. Então, acabei vendo TUDO QUE IMAGINAMOS COMO LUZ (2024), de Payal Kapadia, com certo distanciamento e também, muitas vezes, com curiosidade, já que se trata de um outro mundo, o da Índia, e mais especificamente da cidade superpopulosa de Mumbai, que é onde vivem as três mulheres de diferentes idades e da classe trabalhadora, que têm dificuldade para pagar o aluguel e lutam com suas próprias aflições. Prahba é uma enfermeira cujo (ex-)marido está ausente durante muito tempo, foi para a Alemanha a trabalho, segundo a última informação que teve, e nunca mais voltou; A mais jovem, Anu, divide o aluguel com ela, e está tendo um caso às escondidas com um rapaz muçulmano (ela é hindu); e há uma personagem que tem menos tempo de tela, mas que não é menos importante, uma mulher de meia idade que está perdendo a casa onde mora por não ter as devidas documentações. É legal quando o filme sai de Mumbai um pouco, para tentar acalmar o espírito delas numa aldeia de pescadores. Ajuda um pouco a diminuir a ansiedade das personagens, mas não sei se ajudou muito a minha.
FOUR UNLOVED WOMEN, ADRIFT ON A PURPOSELESS SEA, EXPERIENCE THE ECSTASY OF DISSECTION
Este curta é como uma espécie de sequência de CRIMES OF THE FUTURE (2022), no que se refere à obsessão de David Cronenberg pela anatomia humana, em especial aquilo que só se pode ver através da dissecação, ou sendo aberto, numa cirurgia. O título do filme, FOUR UNLOVED WOMEN, ADRIFT ON A PURPOSELESS SEA, EXPERIENCE THE ECSTASY OF DISSECTION (2023), já diz o que ele traz, mas não diz que o cineasta utiliza bonecas, como de porcelana, que funciona tanto para atenuar algum choque visual como também para acentuar a beleza desses corpos, e dos órgãos que podem ser vistos à luz do sol, enquanto ouvimos o som de gaivotas e o som de gozos femininos. É um filme que fala mais para quem tem intimidade com a obra do diretor, ainda que não fale tanto assim, tendo em vista sua duração, de menos de quatro minutos. Disponível na MUBI.
Nenhum comentário:
Postar um comentário