segunda-feira, maio 30, 2022

UM TRISTE PRAZER (Damaged Lives)



Uma das coisas ao mesmo tempo tristes e comoventes no livro de entrevistas Afinal, Quem Faz os Filmes, de Peter Bogdanovich, é perceber a decadência física dos cineastas entrevistados, por mais que em boa parte das conversas eles estivessem com disposição para falar sobre as histórias envolvendo a realização de cada um de seus filmes. No caso de Edgar G. Ulmer, ele havia melhorado depois de um primeiro derrame, e conseguiu falar sobre sua carreira inicial até O INSACIÁVEL (1948), que Bogdanovich considera um de seus melhores trabalhos. Depois disso, ele se foi. 

Acho louvável Bogdanovich se juntar aos críticos franceses e a outros estudiosos do cinema, que nas décadas de 1950-60 trouxeram um sentimento de valorização para as obras de vários cineastas-autores da velha Hollywood. Embora Ulmer não seja um cineasta exatamente ausente dos livros, há muitos filmes de baixo orçamento em seu currículo que acabaram ficando esquecidos do público médio. Para se ter uma ideia do que ficou no cânone, no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, apenas dois filmes do diretor são citados, ambos em textos de meia página: o horror O GATO PRETO (1934) e o noir essencial CURVA DO DESTINO (1945). São obras fundamentais, é claro, mas muito mais precisa ser descoberto. Por mim também, inclusive. 

Eis que tive a oportunidade de ver em uma ótima cópia UM TRISTE PRAZER (1933), que o cineasta realizou a pedido do ministério da saúde do Canadá, com o propósito de alertar as pessoas para os perigos das doenças venéreas, em especial a sífilis, e o que ela pode causar caso não seja tratada com muito cuidado e atenção. O filme acabou resultando numa espécie de exploitation de doença. O homem, depois de uma aventura com uma mulher que conhecera em uma noitada, passa sífilis para a esposa e o mundo deles desmorona quando descobrem a doença.

Há um trabalho de tensão e suspense que existe do início ao fim, além de uma dramaticidade extrema que o aproxima da tragédia, aproveitando muito bem um registro de melodrama típico da época, com pouca utilização de música, ao contrário dos exemplares dos anos 1950. Ulmer ainda faria vários filmes ótimos, rentáveis e baratos.

UM TRISTE PRAZER tem aquele estilo de câmera meio parada, muito comum na maioria das produções do início dos anos 1930, ainda se adaptando ao som, mas achei bem dinâmico, apesar das limitações técnicas (e orçamentárias). Ulmer era famoso por conseguir fazer filmes em poucos dias, com pouco dinheiro e ainda ter resultados incríveis. Este, por exemplo, foi realizado em oito dias. Nesse sentido, vejo Ulmer como um autor que conseguiria trabalhar no esquema de realização brasileiro dos anos 1970 com a mesma desenvoltura com que trabalhou em Hollywood, sem se importar tanto com a extrema modéstia das produções.

O filme teve uma carreira bem conturbada por abordar o tema de maneira bem pouco sutil. Há uma cena em que um médico apresenta ao protagonista uma verdadeira sala de horrores no hospital, como se adentrassem uma espécie de inferno. Eles atravessam um corredor e em cada sala há uma pessoa que enfrenta uma consequência específica da sífilis, desde uma ferida que pode causar a amputação do pé de um homem até um caso grave de doença neurológica. Provavelmente essa sequência tenha sido o estopim que levou um crítico do New York Times a dizer de UM TRISTE PRAZER: "talvez o filme mais grotesco já lançado em distribuição pública" (Jacques Lourcelles, Edgar Ulmer, lempereur du bis). Com isso o filme só foi exibido em mais salas nos Estados Unidos somente em 1937, por causa da censura. Hoje em dia, isso até pode funcionar como chamariz. Que mais pessoas vejam o filme, então. 

+ DOIS FILMES

QUEM AMA NÃO TEME (Never Fear)

Bom poder ver o segundo filme da Ida Lupino, QUEM AMA NÃO TEME (1950), e já fazer uma conexão direta com o primeiro, sendo que considero este superior, ainda que mais carregado no melodrama. Como isso não é problema pra mim, ao contrário, então me emocionei diversas vezes. Interessante esse cuidado inicial com as questões humanas: se o primeiro filme dela era sobre a questão da mãe solteira, este aqui lida com o impacto da pólio. Na trama, uma dançarina (Sally Forrest) que acabou de iniciar uma grande carreira descobre que contraiu a doença.

O MUNDO É O CULPADO (Outrage)

É impressionante como O MUNDO É O CULPADO (1950), terceiro longa dirigido por Ida Lupino, dialoga com os dias de hoje, dias cheios de assediadores e estupradores sendo revelados. E nem é um filme que explicita a violência. Ainda assim, ela é muito presente. Ao falar de estupro, a cineasta sabe que está falando de um tema espinhoso e que não pode colocar o assunto de maneira tão clara por limitações do Código Hays. Na trama, jovem (Mala Powers) tem sua vida perturbada quando é violada no caminho de casa.

domingo, maio 29, 2022

TOTALMENTE SELVAGEM (Something Wild)



Com o falecimento de Ray Liotta na quinta-feira passada, dia 26, a revisão que eu já estava ensaiando de TOTALMENTE SELVAGEM (1986) acabou por se antecipar. Embora Liotta seja um personagem fundamental para a trama, ele só aparece depois de cerca de uma hora de metragem. Mas justamente para mudar o tom do filme, trazer sombras para as tintas até então solares que Jonathan Demme emprestava à história de um encontro feliz (ainda que provavelmente perigoso) entre a libertária Lulu (Melanie Griffith) e o yuppie Charlie (Jeff Daniels). Os dois se conhecem em um café quando ela percebe que ele sai sem pagar do estabelecimento, flagrando, assim, seu lado rebelde, contraventor.

Lulu, a versão morena de Melanie Griffith, com uma peruca que faz lembrar o corte de cabelo de Louise Brooks, faz o tipo femme fatale, e por isso mesmo muito atraente. Charlie, a princípio muito temeroso de entrar no carro colorido de Lulu, que joga fora seu pager e depois entra em contato com o escritório dele para deixar claro que ele passará o fim de semana de folga com ela, sente uma atração muito forte por aquela mulher.

Acho o filme bem ousado na primeira cena de sexo do casal. E embora tenha ficado muito forte o seu impacto em minha memória de adolescente, ainda hoje vejo essa cena (e tudo que vem junto) como a materialização de uma fantasia masculina de dominação (passiva), frente a uma mulher poderosa. Na tal cena, Lulu algema Charlie na cama, rasga sua camiseta, tira fora a própria blusa deixando ver seus belos seios e faz um sexo de uma maneira até então inédita para aquele homem. Não à toa, ele se deixa levar cada vez mais por essa brincadeira e aceita até fingir ser noivo de Lulu, na verdade Audrey, quando visita a mãe dela. O fato de Audrey ser loira, inclusive, faz lembrar o jogo hitchcockiano de UM CORPO QUE CAI, mas de maneira muito mais divertida, por assim dizer.

TOTALMENTE SELVAGEM talvez possa ser visto como uma espécie de trilogia que o diretor fez em parceria com o músico David Byrne, após ter dirigido o musical STOP MAKING SENSE (1984), sobre a banda Talking Heads. Byrne faria tanto a canção de abertura de TOTALMENTE SELVAGEM, quanto a trilha sonora do ótimo DE CASO COM A MÁFIA (1988), que também conta com os ritmos afrolatinos do anterior. Aquilo parecia ser uma marca do cineasta, mas ele resolveu entrar com força em filmes mais sérios e com vistas ao Oscar, a partir de O SILÊNCIO DOS INOCENTES (1991), seu maior êxito comercial, de crítica e de premiações. Não que eu esteja reclamando. E não que Demme também já não tivesse experimentado o gênero suspense nos anos 1970, ainda que em produções mais modestas.

Sobre TOTALMENTE SELVAGEM, gosto de como o filme se sai bem em suas viradas de roteiro, e também em como é dessas obras que se assiste com um sorriso no rosto por cerca de uma hora pelo menos. Até o momento que o humor se alia também ao suspense. No mais, ver o filme é também aproveitar o momento adorável de Melanie Griffith naqueles anos 1980, após ela ter trabalhado com Ferrara (CIDADE DO MEDO) e De Palma (DUBLÊ DE CORPO). Quanto a Ray Liotta, é bem possível que o sucesso de seu personagem vilanesco no filme de Demme tenha sido o motivo de ele ter sido convidado por Martin Scorsese para protagonizar a obra-prima OS BONS COMPANHEIROS. A partir de então, o ator ficaria marcado por personagens criminosos, maus e/ou perversos. Enfim, um ator que vai fazer falta.

+ DOIS FILMES

MANITOU - O ESPÍRITO DO MAL (The Manitou)

É impressão minha ou o cinema de horror dos anos 1970 era bastante original? Como não acompanhei "ao vivo" esta década nas salas de cinema, não saberia dizer, mas o que dizer de um filme sobre uma mulher que está com um tumor nascendo na nuca, que descobre que esse tumor é um feto, e que dele está reencarnando um antigo curandeiro de 400 anos atrás? Além do mais, MANITOU - O ESPÍRITO DO MAL (1978), de William Girdler, é também um filme sobre exorcismo, só que o exorcista aqui é um nativo americano, combatendo fogo com fogo - essa é a ideia do escritor vivido por Burgess Meredith, em participação pequena. O protagonista é Tony Curtis e isso daria a impressão de que se trata de uma produção classe A, mas o fato é que muitos atores e atrizes da velha Hollywood estavam precisando de dinheiro e muitos deles participavam de algumas produções de terror da década. O filme não envelheceu muito bem, especialmente com os efeitos pouco críveis, mas isso é algo para se dar um desconto. Ainda assim, eu preferia um filme mais focado na história do feto nascendo na nuca do que em um exorcismo ou coisa parecida. Mas não dá para negar que o roteirista dá asas à imaginação, sem medo de ser feliz. Filme presente no box Obras-Primas do Terror 17.

O BÍGAMO (The Bigamist)

O corpo de sete filmes e um monte de episódios para séries de televisão que Ida Lupino dirigiu nos anos 1940-60 é admirável dentro de uma indústria onde se via tão poucas diretoras mulheres. E mais admirável ainda que todos os filmes que vi dela são no mínimo muito bons. Este melodrama noir, O BÍGAMO (1953), é bem mais do que o título dá a entender. Claro que já ficamos sabendo de imediato que temos uma história sobre um homem com uma vida dupla, casado com duas mulheres. Mas Lupino e seus roteiristas, em vez de condenarem o homem, tornam-no mais complexo e mais digno de nossa solidariedade. Afinal, é pelo ponto de vista dele que ficamos sabendo de toda a história, através de um longo flashback muito comum nos filmes da época. E ainda que seja uma obra de narrativa bem clássica, a opção dada para a conclusão me pareceu um tanto moderna, além de trazer uma dramaticidade muito bonita dentro daquela situação complicada, para usar de eufemismo.

sábado, maio 28, 2022

TANTAS ALMAS



Uma das coisas que me deixa muito triste é o desconhecimento que temos da história dos nossos países vizinhos. Sabemos detalhes da história dos Estados Unidos e, no entanto, eventos relativamente recentes de países da América do Sul parecem novidade para nós. Parte disso está também no modo como a grande imprensa dimensiona essas notícias, fazendo com que elas ganhem pouca visibilidade frente a outras, julgadas mais importantes, em países ditos do primeiro mundo. Estou vendo muita gente admirada, por exemplo, em não ter ouvido falar das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), nome dado às milícias que atacavam camponeses e ONGs progressistas no começo dos anos 2000, com apoio extraoficial do presidente do país naqueles primeiros anos do novo milênio. Eu também nada sabia. 

E com isso chegamos a TANTAS ALMAS (2019), de Nicolás Rincón Gille. É difícil não assistir ao filme e não imaginar um Brasil em um segundo mandato presidido por Jair Bolsonaro. Um país zumbi, ameaçado constantemente por pessoas autoritárias, estúpidas e assassinas. Na trama, que se apresenta de maneira bastante lenta, um pescador chamado José (Arley de Jesús Carvallido Lobo) sai em busca dos corpos de seus dois filhos assassinados e desaparecidos pelas forças paramilitares do país.

Na bela fotografia em scope de Juan Sarmiento G. (ALGUMA COISA ASSIM, de Esmir Filho e Mariana Bastos), há uma preferência por imagens escuras, até porque as ações do homem precisam ser às escondidas dos milicianos. Mas há passagens de luz natural do dia também muito fortes, mesmo que essa luz não ajude a atenuar o sentimento de impotência que impera. É o caso de uma cena em que o protagonista adentra um cemitério em que pessoas não identificadas estão enterradas, algumas delas com os corpos em pedaços, dentro de vários sacos pretos.

Entre as cenas que destacam o enfrentamento de José com os milicianos, há um momento em que ele é abordado por dois deles, quando encontra o corpo de um amigo à beira do rio, perto dos corpos de outras pessoas. Enquanto ele está "conversando" com o amigo morto, esses homens chegam e o ameaçam. Sua única arma perante aqueles homens que aparentemente o matarão é dizer que ele os perturbará se for assassinado. Esta é a única arma possível: fazê-los ter medo de uma vingança do além.

Aliás, não é difícil ver TANTAS ALMAS como um filme bastante próximo do mundo dos espíritos. José acredita que para encontrar o corpo do segundo filho é necessário que o rapaz lhe dê algum sinal. Pede desesperadamente um sinal. É aí que entra uma das cenas mais geradoras de impotência que vi no cinema nos últimos anos: José desenterrando as covas dos mortos anônimos para encontrar, quem sabe, o corpo de seu segundo filho. Isso depois de passar por uma jornada extremamente exaustiva, em que o cansaço parece mais presente em seu rosto do que em seu corpo, ainda resistente à fome, à perseguição e ao medo. Exatamente por não dar muita trégua ao espectador em seu ritmo que parece tentar emular o cansaço de José, TANTAS ALMAS não é um filme fácil. Mas quem disse que deveria ser?

+ DOIS FILMES

BELCHIOR - APENAS UM CORAÇÃO SELVAGEM

Vejo BELCHIOR - APENAS UM CORAÇÃO SELVAGEM (2021) como um aquecimento para futuras obras que consigam se aproximar mais da genialidade e da sensibilidade de Belchior. Se não do ponto de vista formal, sendo mais inventivo, poderia ser mais convencional, trazendo depoimentos importantes para ajudar a contar a história da vida e da obra do nosso Bob Dylan do sertão. A dupla de diretores Natália Dias e Camilo Cavalcanti opta por não usar depoimentos de outros, mas imagens de arquivo e histórias contada pelo próprio artista, em entrevistas para a televisão. Um destaque muito importante do filme está na presença de Silvero Pereira recitando as letras de algumas das mais poderosas canções de Belchior e mostrando que elas também sobrevivem sem a música praticamente com a mesma força. O próprio Belchior dizia que começava suas composições pela letra, e era por ela que a música nascia. Mais um motivo para se prestar atenção no que ele cantava. O documentário é curto e passa a sensação de incompletude, mas se fosse longo também passaria, já que o artista é inesgotável. Fica a minha gratidão por esta homenagem carinhosa em forma de documentário.

AMIGOS DE RISCO

Sempre fico feliz quando filmes dado como perdidos reaparecem como que por um milagre. No caso, a cópia extraviada exibida no Festival de Brasília de AMIGOS DE RISCO (2007) não existia mais. Porém, existia a versão-rascunho, e foi a partir dessa versão que, com muito esforço, pôde-se reconstruir a obra. Daniel Bandeira, mais conhecido como o montador da obra-prima VINIL VERDE (2004), de Kleber Mendonça Filho, faz um filme de trama simples, mas com um ritmo e atores muitos bons, que tornam o ato de ver a obra um prazer do início ao fim. Na trama, dois jovens recebem a ligação de um velho amigo que saiu da cidade depois de um esquema bem pouco honesto. Eles o reencontram e saem para uma noite de bebedeira e muita conversa, e que acaba não sendo muito feliz para nenhum dos três. A cópia digitalizada, talvez até por suas imperfeições, guarda um charme particular. Além de tudo, os grãos valorizam as cenas noturnas, onde se passam a maior parte da trama. Seria bom se um público maior fosse prestigiar este filme saído de uma cápsula do tempo.

domingo, maio 22, 2022

TOP GUN – MAVERICK



Tom Cruise entra na quinta década se mantendo de pé e com sucesso em Hollywood. E com o mesmo sorriso e juventude que o trouxe à fama, mesmo beirando os 60 anos de idade. E isso é impressionante. Também é impressionante como o astro, agora também um produtor de sucesso, se transformou em dono de sua própria carreira, escolhendo diretores com assinatura pouco reconhecível, mas muito eficientes em sua tarefa de artesãos. Essa tendência tem se mostrado desde fins dos anos 2000 e de certa forma tem funcionado.

Na época que Cruise fez TOP GUN – ASES INDOMÁVEIS (1986), de Tony Scott, ele tinha poucos filmes importantes como protagonista, mas já havia sido visto por Francis Ford Coppola como uma estrela em ascensão em VIDAS SEM RUMO (1983). Vindo de sucessos como NEGÓCIO ARRISCADO (1983) e A LENDA (1985), ele chega como a escolha perfeita para o filme-propaganda da marinha americana. Hoje o filme de Scott envelheceu mal e nem sei se parece ainda um comercial de refrigerante. Ainda assim, é essencial que ele seja visto para que possamos entrar com mais intimidade em TOP GUN – MAVERICK (2022), de Joseph Kosinski.

A escolha do diretor é acertada, não apenas por ele ser muito talentoso. Além de Kosinski já ter trabalhado com Cruise em OBLIVION (2013), ele tem no currículo outra sequência de um sucesso oitentista, TRON – O LEGADO (2010). Ou seja, parece ser a escolha perfeita. A inusitada sequência de TOP GUN logo de início já deixa claro que quer prestar tributo ao filme original, seja pelas primeiras imagens do local de aterrisagem dos aviões, seja pela mesmo rock do filme de Tony Scott apresentado nos créditos.

O apego ao original é necessário também para se criar um fio condutor para a história: Maverick, o personagem de Tom Cruise, será instrutor de uma equipe de pilotos de elite que contará com o filho de seu falecido amigo, morto durante um treinamento no primeiro filme. E muito do sucesso desta sequência se dá por essa relação um tanto tensa que se estabelece entre o protagonista (que ainda carrega um sentimento de culpa) e o jovem vivido por Miles Teller.

Por outro lado, a tentativa de trazer um novo par romântico para o personagem de Cruise não funciona muito bem. Química zero entre Cruise e Jennifer Connelly, mas vejo isso mais como um problema do ator, que tem um tipo de energia estranha no ar, quando o assunto é sexo e romance. Na época de TOP GUN – ASES INDOMÁVEIS, as cenas de sexo com Kelly McGillis tinham uma pimenta interessante, com aquelas imagens dos beijos de língua explicitados, ainda que mostrados em penumbra estilizada. Agora, até mesmo pular da janela da amada, como um adolescente, ele faz. Sem falar que a sensualidade, que aparecia até de maneira homoerótica nos banheiros masculinos, é praticamente evitada nesta sequência. Já a recusa ao envelhecimento por parte de Cruise tem a sua graça, inclusive também nas cenas de Maverick jogando na praia com seus alunos.

Ainda tenho meus problemas com as cenas no céu, especialmente quando há muitos aviões parecidos nos momentos dos treinamentos, mas aqui elas são bem melhores que no primeiro filme, e a última cena de ação é ótima, deixando uma sensação de que acabamos de ver uma obra bem acabada, eficiente, feita com esmero, mesmo contando com um roteiro de diálogos fracos, mas isso talvez tenha ocorrido para não destoar tanto do filme original. No entanto, é louvável o quanto Kosinski consegue trazer de alma para o novo filme, e isso fica bem claro na última e emocionante cena de Maverick e Rooster, o personagem de Teller.

No mais, vale a pena ver na sala IMAX. A tela ultra-grande valoriza a beleza das imagens aéreas.

+ DOIS FILMES

TOP GUN – ASES INDOMÁVEIS (Top Gun)

A revisão de TOP GUN – ASES INDOMÁVEIS (1986), depois de passados muitos anos (décadas), acentuou o quanto ele ficou datado, embora eu tenha passado a admirar, agora em uma cópia lindona, o trabalho visual de composição, que é característico do Tony Scott. As cenas dos aviões no céu são um saco e muito difíceis de entender - deu uma saudade dos filmes de aviões do Howard Hawks... No mais, eu gosto das cenas mais humanas, no chão, da presença de Kelly McGillis. Mesmo com um roteiro ruim em mãos, eu gosto mais do filme quando ela está na tela. Fiquei me perguntando se Tom Cruise sabia que sua persona e seu personagem eram bem irritantes, não apenas pela arrogância de Maverick, ou se ele estava o tomando como um herói autêntico, um dos vários personagens que não passam por qualquer humilhação. Ainda assim, sigo gostando muito da filmografia de Tony Scott. Apenas deixo TOP GUN no finalzinho do ranking.

O PLANETA PROIBIDO (Forbidden Planet)

A ficção científica mais luxuosa até o advento de 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO é um filme bem divertido e bastante criativo. Para começar, já fiquei bastante impressionado com a ideia de mostrarem terrestres dirigindo um disco voador em direção a um planeta desconhecido. Depois soube que foi a primeira vez que isso aconteceu. A produção da MGM também trouxe efeitos especiais de primeira linha, um monstro fantástico e um robô que fez tanto sucesso que ganhou participações em outros filmes. Baseado na peça A Tempestade, de Shakespeare, o filme mostra um grupo de homens que chegam para resgatar pessoas no tal planeta do título e não são muito bem recebidos. Outra coisa muito inovadora em O PLANETA PROIBIDO (1956), de Fred M. Wilcox, é a minissaia da personagem de Anne Francis. Não à toa, até hoje o filme é visto como uma das melhores sci-fies de todos os tempos pelos especialistas. Filme visto no box Clássicos Sci-Fi (volume 1).

quinta-feira, maio 19, 2022

O HOMEM DO NORTE (The Northman)



Dos novos cineastas de horror surgidos nos anos 2010, a minha preferência se firma ainda em Mike Flanagan, que, é verdade, tem uma quantidade de filmes e bagagem maior do que a trinca Jordan Peele, Ari Aster e Robert Eggers. Os três diretores, por terem quase a mesma quantidade de filmes no currículo e tendo ganhado uma boa repercussão desde suas estreias, são geralmente lembrados como os mais importantes representante do chamado novo cinema de horror produzido nos Estados Unidos.

O caso de Eggers é especial, no sentido que ele preferiu trilhar caminhos tangenciais ao horror em seu segundo (O FAROL, 2019) e agora em seu terceiro filme, O HOMEM DO NORTE (2022), que são distintos em intenção e proposta, mas que têm em comum o fato de apreciarem o território das lendas e das fantasias, por mais sombrios que sejam seus registros.

O HOMEM DO NORTE despertou meu interesse mais por seu aspecto visual do que por seu enredo e riqueza de personagens - a trama é bem simples e os personagens planos. Mas ainda assim vejo a materialização deste filme nos cinemas - e a minha surpresa ao ver que está fazendo um sucesso popular na primeira semana - como algo bem positivo.

O novo projeto do diretor de A BRUXA (2015), mesmo sendo uma produção de orçamento bem maior, consegue tornar mais claras certas obsessões do diretor. O interesse por fábulas e crenças pré-cristãs segue firme e o novo filme destaca a glória de morrer em batalha e a importância de uma virilidade quase animalesca como valores de um povo e de uma época.

Como estamos vivendo um aumento do interesse por vikings em séries de televisão, talvez isso seja o motivo de o público estar indo aos cinemas ver um filme que não chega a ser quase hermético como O FAROL, mas que não facilita tanto assim para o público médio. Para o meu gosto, poderia ter pendido mais para o horror e menos para a fantasia. E também não me incomodaria se o gore fosse mais sujo e a violência do filme transpirasse mais para o lado de cá da tela.

Do jeito que ficou, senti algo próximo a uma pasteurização da violência, inclusive pela utilização acentuada do CGI em detrimento dos efeitos práticos. No mais, como sempre, gosto muito de Anya Taylor-Joy. Sua personagem é a que confere mais humanidade ao herói vivido por Alexander Skarskard.

A trama é baseada na história que serviu de inspiração para a tragédia Hamlet, de Shakespeare, mas com os elementos da cultura nórdica amplificados e explicitados. Além de haver uma vontade também de deixar muito clara a questão da masculinidade como elemento tão opressor quanto natural naquele ambiente e tempo. E como se trata de um filme de vingança, por isso mesmo é simples na estrutura de seu esqueleto narrativo.

Na trama, o pequeno Amleth vê seu pai, o rei vivido por Ethan Hawke, ser assassinado pelo tio que toma a mãe dele (Nicole Kidman) como esposa, além, de se autoproclamar rei daquele povo. Agora adulto, forte e viril, Amleth (Alexander Skarsgård) está de volta para fazer aquilo que prometera quando criança, a começar pelo tio. A trama, porém, traz algumas surpresas na trajetória desse herói tão carregado pelo instinto de matar.

Acho interessante como O HOMEM DO NORTE destaca de maneira quase fetichista a masculinidade, quase ao ponto de ser um filme queer, como também pode ser visto, aliás, O FAROL, mas aqui há também três figuras femininas de fundamental importância, justamente por terem como sabedoria ou trunfo, conhecimentos próximos da feitiçaria. Refiro-me às personagens de Kidman, Taylor-Joy e Björk, em maior ou menor grau. Inclusive, até poderíamos ver como um simbolismo a morte dos dois personagens masculinos principais como uma espécie de morte de uma era, de uma maneira de pensar e de uma multidão de deuses.

No mais, fico na torcida para o retorno de Eggers aos projetos menores, já que parece ter havido uma dificuldade do cineasta em lidar com um grande orçamento e com os executivos de um grande estúdio. Aguardo com atenção seus próximos passos. 
 
+ DOIS FILMES

UMA HISTÓRIA DE AMOR E DESEJO (Une Histoire d’Amour et de Désir)

Um filme pequeno, mas bastante sensível sobre uma relação de atração, amor e desejo que se estabelece entre um rapaz de origem argelina e uma moça tunisiana recém-chegada a Paris. Ambos iniciam o curso de Letras e o filme destaca o foco de uma professora em tratar da poesia árabe antiga com forte carga sensual. Sofrendo com timidez e inexperiência, o rapaz por vezes se sente muito acuado diante da moça, muito mais destemida e sem grilos provocados por algum tipo de moralidade causada pela religião. Confesso que me identifiquei em alguns momentos com o rapaz, por conta de meu histórico de timidez. Além do mais, o fato de a história se passar em uma faculdade de Letras em boa parte do tempo também ajuda a acentuar a identificação. Gosto da tensão sexual que se cria entre os dois, dado o desejo de ambos perturbado pela insegurança do rapaz, o que acaba gerando um tipo de erotismo bastante sutil e bonito nas cenas de intimidade. A última cena de UMA HISTÓRIA DE AMOR E DESEJO (2021), inclusive, é a que mais justifica a janela em scope, que parece nascida para se filmar cenas de sexo na horizontal.

THE SOUVENIR - PART II

Depois dos eventos do primeiro filme, de 2019, a jovem protagonista Julie, uma estudante de cinema finalizando seu filme de conclusão de curso, precisa enfrentar os sentimentos conflitantes vindos do luto e da ausência de Anthony. Joanna Hogg, em THE SOUVENIR - PART II (2021), muda um pouco o estilo, trazendo vez por outra um ar documental e um pouco mais de leveza - afinal, de opressão já bastava o primeiro filme. Outro ponto positivo é mais tempo de tela de Tilda Swinton, que faz a atenciosa e preocupada mãe da protagonista (sua filha na vida real). Há uma cena que procura adentrar os infernos pessoais da vida de Julie que eu achei que poderia ser mais envolvente, mas acho que, do jeito que ficou, ajuda a trazer o filme para ares mais etéreos. Então, tá ótimo.

domingo, maio 15, 2022

O PESO DO TALENTO (The Unbearable Weight of Massive Talent)



Nicolas Cage é um ator singular. É cultuado pelos mesmos motivos que é rejeitado por uma classe de cinéfilos mais exigentes. Afinal, nos últimos anos – nas últimas décadas, eu diria –, ele tem acumulado muito trabalho. Com cerca de três a quatro filmes por ano, muitos desses filmes são sequer lembrados pela mídia, muitos deles indo parar direto no mercado de VOD. De vez em quando, aparece um ou outro que tem sido objeto de elogio da crítica, como MANDY – SEDE DE VINGANÇA (2018), PIG (2021) e A COR QUE CAIU DO ESPAÇO (2019). Os dois primeiros eu ainda não vi e preciso colocar na minha lista de filmes para ver no futuro (próximo?).

Quanto aos filmes bem ruins, basta lembrar de coisas como REFÉNS (2011), O PACTO (2011), O RESGATE (2012), FÚRIA (2014) e O APOCALIPSE (2014), que, aliás, é um dos meus guilty pleasures com o ator, junto talvez com FÚRIA SOBRE RODAS (2011). Evitei citar filmes da década de 2000, pois há vários muito bons.

Quanto a O PESO DO TALENTO (2022), do quase estreante Tom Gormican, vejo como uma obra que tem uma premissa muito melhor do que o resultado. É coerente com a grande maioria dos filmes contracenados por Cage, em sua maioria escolhidos de qualquer jeito, sem muito rigor, ao sabor do que lhe é ofertado. Mesmo assim, o início do filme parece uma espécie de grito de liberdade de Cage, seja pelo fato de ele dizer que adora trabalhar muito, seja pela busca por projetos mais ambiciosos, como na cena em que ele conversa com o cineasta David Gordon Green – que já o dirigiu em JOE (2013).

O próprio momento em que os personagem de Cage e Pedro Pascal resolvem construir eles mesmos o filme a princípio roteirizado pelo fã (Pascal) é representativo dessa sensação de qualquer falta de rigor, embora eu não veja isso como um problema em si, uma vez que a direção saiba lidar muito bem com o improviso. 

Na trama, Cage interpreta a si mesmo – na verdade, uma persona que se confunde com ele. Frustrado por não obter um papel que julga importante, ele aceita comparecer à festa de aniversário de um homem bilionário que é seu fã, e que oferece um milhão de dólares apenas por sua presença. O que ele não sabe é que o tal homem pertence a uma família envolvida em sequestro e tráfico de drogas. 

Há alguns momentos divertidos, mas creio que são poucos, levando em consideração que o tom cômico predomina do início ao fim. Inclusive, imagino que não deve ser muito divertido para quem não entende as referências. Para quem entende, e tem um pouco de cinefilia no sangue, é legal ver o entusiasmo do personagem por O GABINETE DO DR. CALIGARI e a citação a PADDINGTON 2, como tanto um elemento de louvor ao filme, como uma piada que funciona bem.

O PESO DO TALENTO funciona um pouco como um filme sobre a construção de uma amizade entre dois homens de diferentes mundos. Mas nem tanto, já que o aspecto dramático – e isso inclui também as cenas de ação – fica prejudicado por um tom de comédia pouco eficiente. Como se o diretor não conseguisse ou não quisesse deixar entrar situações que poderiam render um belo espaço para outro tipo de emoção, explorando melhor a relação do personagem com sua família, por exemplo. Uma pena.

+ DOIS FILMES

INCOMPATÍVEL

Uma comédia romântica com aquele gostinho de produção feita há alguns anos, inclusive com as mesmas situações desconfortáveis e constrangedoras que são confundidas com declarações de amor, que se transformaram em fórmulas do gênero. Mas INCOMPATÍVEL (2022) tem o seu atrativo, e muito disso vem do carisma (e do sorriso) de Nathalia Dill, que infelizmente faz muito mais televisão do que cinema. E há também que se dar crédito ao protagonista, Gabriel Louchard, criador da série HOMENS? e que aqui está muito bem, principalmente a partir do momento em que seu personagem entra em contato com a youtuber vivida por Dill, a responsável pelo fim de seu casamento. Embora o filme trate de situações bem atuais, como a utilização de redes sociais como substituição da cachaça (ou como acréscimo a ela), o diretor Johnny Araújo, de bons filmes como DEPOIS DE TUDO (2015) e LEGALIZE JÁ – AMIZADE NUNCA MORRE (2017), que funcionaram como veículos para louvar o rock e o comportamento dos anos 1980 e 90, parece estar um pouco fora de seu ambiente natural nesta comédia mais contemporânea.

RIO DE VOZES

Documentário que aborda a vida de algumas pessoas que moram em cidades às margens do Rio São Francisco, na Bahia e em Pernambuco, RIO DE VOZES (2019), de Andrea Santana e Jean-Pierre Duret, é um filme que trata tanto do estado preocupante do rio do ponto de vista ecológico, quanto de algumas pessoas encontradas durante as filmagens e que foram escolhidas para ficarem no corte final, principalmente gente ligada à pesca. Esse tipo de documentário é muito dependente do acaso, mas tem a sorte de encontrar alguns personagens bem interessantes e acho até que termina com a dupla de melhores personagens aparecendo no momento mais poético: uma estudante e seu avô octogenário que trabalha na roça cantando uma antiga canção. É um filme contemplativo, na medida que também nos chama para olhar a beleza do rio, especialmente quando banhado pela luz do sol.

sábado, maio 14, 2022

GRITO DE HORROR (The Howling)



Uma coisa que senti falta durante um bom tempo foi apreciar um filme em mídia física e ter acesso a documentários sobre a produção e rever a obra com comentários em áudio do próprio diretor ou de algum historiador ou estudioso do assunto em questão. E com a mídia física passando a ser consumida apenas por um pequeno nicho de colecionadores, poucas pessoas tem aproveitado os filmes de maneira mais ampla, de modo que eles fiquem mais tempo em nossa memória. Afinal, ver esses extras ajudam a tornar a obra maior, ajuda-nos a valorizá-la ainda mais, saber de coisas impressionantes sobre a produção etc. Esse tipo de consumo é diferente do que se transformou hoje em dia o consumo em modalidade fast food: assistimos um filme, marcamos no Letterboxd e já vamos direto para o próximo. Isso é uma pena, embora eu compreenda o fenômeno diante da ascensão dos streamings e da popularização das redes sociais, inclusive as dedicadas ao cinema, como a já citada.

Agora, por exemplo, acabei de ver um dos extras de GRITO DE HORROR (1981), o clássico filme de lobisomem de Joe Dante, e fiquei sabendo detalhes sobre a produção das sequências. Nem sabia que foram feitas tantas sequências, a maioria delas indo direto para o mercado de vídeo. Mas falemos do filme que importa.

Vi GRITO DE HORROR pela primeira vez nos anos 1990, em VHS. E na época nem gostei muito, talvez por esperar algo diferente ou por ele ser muito celebrado pela crítica da revista SET (era um dos destaques daquelas fichas de cinema e vídeo, e o cartaz é de fato muito bonito). Revendo em um Blu-Ray belíssimo, cópia restaurada lançada pela Versátil, com som 5.1. que valoriza a música de Pino Donaggio, e também podendo perceber a inventividade tanto da trama quanto dos efeitos de maquiagem, claro que percebi o quanto se trata de uma das obras mais importantes de horror já feitas. Certamente um top 5 do subgênero “filme de lobisomem”.

Ter sido lançado no mesmo ano de UM LOBISOMEM AMERICANO EM LONDRES, de John Landis, que tem efeitos mais impressionantes e um senso de humor muito próprio, pode ter tirado um pouco do brilho do filme de Dante, mas nota-se que aqui a intenção é outra, que o senso de humor é mais pontual, que as homenagens a outros filmes e mestres do cinema são mais presentes, e, principalmente, a trama na cidade do interior funciona muito bem e reserva surpresas no final, e isso só depõe a favor deste clássico. Além do mais, há uma belíssima exploração da sensualidade que tem tudo a ver com libertar os seus instintos mais primitivos e selvagens.

Logo de início, já percebemos que GRITO DE HORROR é um filme diferente. Ele começa com uma situação tensa em que Karen White, uma repórter de televisão vivida por Dee Wallace, está usando escutas para se encontrar com um serial killer nos fundos de uma videolocadora pornô. O cenário é bastante urbano e a ótima montagem mostra tanto a preocupação de seus colegas de profissão, quanto seu receio diante da situação inédita para uma âncora de telejornal. E a cena com o tal homem é bem marcante, feita de modo que não vemos o sujeito. Apenas ela o vê e fica tão traumatizada que sua memória daquele momento desaparece.

A história ganha ares mais próximos dos tradicionais filmes de lobisomem, que geralmente se passam em ambientes rurais, quando o médico de Karen a incentiva a passar uma temporada num resort isolado conhecido como “Colônia”. Acontece que aquele ambiente é habitado por uma espécie de sociedade de lobisomens. E eu não sei o quanto isso é um spoiler, já que o filme tem mais de 40 anos de idade, mas acredito que o mais importante da narrativa não está tanto assim na trama, mas no modo criativo com que Joe Dante nos leva por caminhos tortuosos.

Dante, na época, era um diretor jovem, que só tinha um sucesso de bilheteria, PIRANHA (1978). Com GRITO DE HORROR ele se tornaria um dos mestres do cinema de horror do período, passando a ser também um dos protegidos de Steven Spielberg, que seria produtor executivo do sucesso GREMLINS (1984). Sem falar que Spielberg gostou tanto de Dee Wallace que a levou para interpretar um papel importante em E.T. – O EXTRATERRESTRE.

Um dos grandes chamarizes de GRITO DE HORROR é oferecer uma das mais impressionantes e longas cenas de transformação. Mesmo com a frequente comparação com a cena de UM LOBISOMEM AMERICANO EM LONDRES, a maneira criativa com que o discípulo de Rick Baker, Rob Bottin, elabora o efeito é louvável. Ele deixa o filme com um ar de produção que transita entre o baixo orçamento e a produção mais cara. Inclusive, Bottin se tornaria tão grande quanto Baker, tendo trabalhado em efeitos visuais e de maquiagem de obras importantes e de primeiro escalão, como O ENIGMA DE OUTRO MUNDO, ROBOCOP – O POLICIAL DO FUTURO e O VINGADOR DO FUTURO. Além da cena da longa transformação, destaco algumas outras bem memoráveis, como a cena do ataque do lobisomem a Belinda Balaski no arquivo da polícia ou a dos lobisomens atacando o carro de Karen. Dante não queria fazer um lobisomem parecido com um lobo, com as quatro patas no chão, nem usar a velha técnica de um homem cheio de pelo, como no clássico O LOBISOMEM, de George Waggner, filme aliás homenageado de diversas maneiras em GRITO DE HORROR. O resultado ficou fantástico, parecendo uma variação da fábula do Lobo Mau. 

O filme de Dante também se destaca por ter um roteiro simples, mas muito bem elaborado, graças à contribuição de John Sayles, hoje muito mais lembrado pela direção de dramas sofisticados. Sayles e Dante optaram por deixar de lado o livro no qual ele se baseia, por não achar suficientemente bom, e mudar quase tudo. O livro só seria adaptado de maneira fiel na terceira sequência do filme, GRITO DE HORROR 4 – UM ARREPIO NA NOITE (1988), lançado direto em vídeo.

No mais, deixem eu ir ali terminar de ver os extras do box.

+ DOIS FILMES

O TERCEIRO OLHO (Il Terzo Occhio)

A influência de PSICOSE se mostrando bastante explícita neste horror gótico (mas contemporâneo) produzido na Itália e com o astro Franco Nero no mesmo ano que ele seria celebrado pelo papel de Django. Em O TERCEIRO OLHO (1966), de Mino Guerrini, ele interpreta um conde que curte uma taxidermia e que enlouquece depois que perde a noiva num acidente de carro – ou será que ele já tinha tendências psicóticas antes disso?. A grande vilã da história, porém, é a governanta, uma mulher que sente atração pelo conde e está disposta a fazer de tudo para conseguir o que deseja. A cópia está avariada em algumas passagens, mas ainda considero muita sorte de que sejam passagens pequenas. Imagina só se os filmes brasileiros que só encontramos em cópias lastimáveis de repente aparecessem com cópias em sua maioria com qualidade decente como esta, hein? Que lindo que seria... Filme disponível no box Obras-Primas do Cinema – Gótico Italiano Vol. 2.

CROCODILOS - A MORTE TE ESPERA (Black Water: Abyss)

Interessante o caso de Andrew Traucki, um especialista em filmes de tubarões e crocodilos. Depois de MEDO PROFUNDO (2007), ele volta com os crocodilos em CROCODILOS - A MORTE TE ESPERA (2020) e faz um suspense muito bem executado e cheio de tensão, que se passa em sua maior parte dentro de uma caverna. Como o crocodilo fica quase sempre no escuro, percebe-se que isso funciona muito bem para economia no orçamento. Na trama, cinco amigos vão parar em uma caverna inexplorada no norte da Austrália. Quando uma tempestade começa a alagar o lugar, eles se veem num mato sem cachorro. Ou numa caverna com um crocodilo, melhor dizendo. O filme tem a capacidade de nos fazer torcer pelos personagens, mesmo sem aprofundar muito suas personalidades. E olha que já comecei a vê-lo me perguntando qual dos cinco morreria primeiro.

domingo, maio 08, 2022

DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA (Doctor Strange in the Multiverse of Madness)



Há que se louvar o modo como Kevin Feige trouxe um personagem pouco conhecido do grande público como o Doutor Estranho e o transformou no herói responsável pelas ações mais importantes em filmes-evento da Marvel, como VINGADORES – GUERRA INFINITA (2018), VINGADORES – ULTIMATO (2019) e mais recentemente HOMEM-ARANHA – SEM VOLTA PARA CASA (2021). Sua história de origem, em DOUTOR ESTRANHO (2016), de Scott Derrickson, foi também acertada, inclusive para estabelecer o tom do personagem em sua versão para o cinema, auxiliada pela escalação de um grande ator como Benedict Cumberbatch. Ou seja, há uma série de acertos incríveis se pensarmos na jornada do MCU desde HOMEM DE FERRO.

Hoje podemos nos dar ao luxo de reclamar desses filmes, que até tempos atrás, só pelo fato de existirem como produções classe A, já poderiam ser vistas como milagres pelos fãs de longa data da Casa das Ideias. Agora que esses filmes de super-heróis estão quase deixando de ser subcategorias e se tornando um gênero à parte, podemos tranquilamente criticá-los. Até por ter muito dinheiro envolvido e muita expectativa por parte dos fãs. Isso gera uma demanda de energia considerável, não apenas para os espectadores, mas por geradores de conteúdo desse tipo de produto.

Uma das coisas de que mais se costuma reclamar é que a grande maioria – talvez todos? – desses filmes da Marvel seguem uma fórmula estabelecida por seu produtor. Ou seja, não há muito espaço para que os diretores façam filmes verdadeiramente autorais nesse esquema. Mas, ao que parece, Sam Raimi conseguiu “furar a bolha” dessa fórmula. Mesmo com um roteiro que precisa andar na linha e que deve ser tanto veículo de chegada quanto de saída de filmes e séries, Raimi imprime sua marca de cineasta cujas origens vêm do cinema de horror. Por mais que ele tenha já entrado na seara dos filmes de super-heróis desde DARKMAN – VINGANÇA SEM ROSTO (1990) e depois nos três primeiros filmes do Homem-Aranha (2002, 2004, 2007), ele ainda é mais lembrado pela lendária trilogia EVIL DEAD (1981, 1987, 1992).

Em DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA (2022), a trama é talvez o maior problema, já que é novamente a história de um homem com uma missão, que muito se assemelha a um videogame, RPG ou coisa parecida. Apesar disso, o roteiro de Michael Waldron, o idealizador da série LOKI (2021), tem também seus méritos, principalmente quando trata de situações de arrependimento, da parte de Stephen Strange, ou de dor da ausência, da parte de Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen). Mesmo assim, a escolha de Waldron para a função de roteirista do filme me parece mais coerente com a questão envolvendo o multiverso, já bastante trabalhada na primeira temporada da série do deus da mentira.

Ver o filme em 3D, por mais que tenha sido desconfortável – foi a primeira vez desde o início da pandemia –, tem lá o seu charme, até porque há muitos efeitos visuais explorados. Sacrifica-se as cores em prol dos efeitos. Sacrifica-se um pouco mais de conforto em prol do espetáculo. Sem falar que os óculos tornam a imagem mais escura, acentuando o clima sombrio que o filme propõe. E por sombrio, temos o que podemos chamar de mais próximo que uma produção da Marvel chegou de cinema de horror. É possível dizer que é um mix de horror com aventura, por mais que o horror seja atenuado para não assustar o público. Ainda assim, acredito que algumas pessoas que evitam o gênero podem se sentir desconfortáveis.

O filme começa com Stephen Strange acordando de um sonho – na verdade, algo que está acontecendo em uma realidade paralela – e indo ao casamento de sua ex-namorada Christine (Rachel McAdams). Ainda sentindo amor por ela, Strange lamenta tê-la perdido, lamenta que as coisas não tenham saído como ele gostaria. Logo, porém, o filme parte para a ação, quando o bairro é invadido por um monstro verde de tentáculos atacando uma adolescente, America Chavez (Xochitl Gomez), que tem o poder de abrir janelas para universos alternativos.

America é a jovem que o nosso querido mestre das artes místicas havia visto em seu sonho. A cena funciona tanto para trazer movimento para o filme quanto para servir como ponto de partida para o que virá: a menina precisa de ajuda e Strange acha que poderá encontrar ajuda em Wanda. Acontece que Wanda, perturbada com a ausência dos filhos que ela criara com seu poder de manipulação da realidade – como visto em WANDAVISION (2021) –, chegara ao ponto de se contaminar com as energias negativas do Darkhoud, um livro demoníaco, por assim dizer. E ela vê America como um meio de chegar até o universo onde ela tem a sorte de ser a mãe dos dois gêmeos.

No meio disso tudo, Raimi brinca com distorções visuais, com referências a filmes como A AMEAÇA QUE VEIO DO ESPAÇO, de Jack Arnold, e CARRIE, A ESTRANHA, de Brian De Palma, além do próprio EVIL DEAD. Afinal, o tal Darkhoud nada mais é do que uma versão da Marvel para o Necronomicon.

Finalizando, fico feliz que a fonte de inspiração dos quadrinhos ainda não tenha secado. Há coisas emprestadas da fase de Brian Michael Bendis no título dos Vingadores, como os Illuminati, ou da fase de Jason Aaron no título do Doutor Estranho. E há também coisas que são pensadas para o futuro dos filmes da Marvel, como a personagem da jovem America Chavez, que provavelmente integrará a formação dos Jovens Vingadores. O futuro da Marvel no cinema parece ainda longo.  

+ DOIS FILMES

A AMEAÇA QUE VEIO DO ESPAÇO (It Came from Outer Space)

Sci-fi essencial realizada nos anos de ouro do gênero. Fiquei encantado com a inventividade de A AMEAÇA QUE VEIO DO ESPAÇO (1953), de como Jack Arnold (O INCRÍVEL HOMEM QUE ENCOLHEU, 1957) traz um visual muito interessante para os alienígenas e das cenas que mostram o ponto de vista do invasor quando ataca as pessoas. O filme tem uma beleza plástica que já encanta nos primeiros minutos. Na trama, um astrônomo e sua namorada, uma professora de escola, veem o que parece ser um meteoro caindo no deserto do Arizona. Ele vai até lá e enxerga algo parecido com uma nave, mas ninguém da cidade acredita nele. As coisas mudam quando algumas pessoas começam a desaparecer. Gosto muito da Barbara Rush, presente na obra-prima DELÍRIO DE LOUCURA, de Nicholas Ray. Ela tem um visual e um carisma encantadores. Engraçado que até coisas que ficaram datadas, como o exagero dos gritos, hoje parecem um recurso extremamente charmoso. Preciso ver e estudar mais as produções dessa época. Presente no box Clássicos Sci-Fi.

O JOVEM LOBISOMEM (Full Moon High)

Muito curioso esse início dos anos 1980 e a febre de filmes de lobisomem que voltou com força nessa época. Mas se esses filmes, os por assim dizer mais dramáticos, já tinham uma carga cômica e autoconsciente, como é o caso dos principais do mesmo ano, GRITO DE HORROR e UM LOBISOMEM AMERICANO EM LONDRES, um filme como O JOVEM LOBISOMEM (1981), que se assume explicitamente como comédia, acaba correndo o risco de forçar o riso e não conseguir obtê-lo do espectador. Claro que há aquele charme típico de produções que hoje chamam de trash ou exploitation, mas não sei se é bem o caso deste filme de Cohen, um mestre do cinema de gênero de baixo orçamento. Na trama, jovem viaja para a Romênia e é mordido por um lobisomem na década de 1960. Após beliscar um sem número de garotas em sua cidade (para manter o clima leve, não há mortes ou mesmo sangue), ele foge de lá e só retorna, ainda jovem, 20 anos depois, para reencontrar tanto uma nova geração quanto pessoas que o conheceram antes. Um barato os efeitos cuidadosamente toscos. Gosto especialmente do visual do lobisomem que o ataca na Romênia. Filme presente no box Lobisomens no Cinema 3.

sexta-feira, maio 06, 2022

A MESMA PARTE DE UM HOMEM



Lamento não estar conseguindo passar para o blog as reflexões que grande parte dos filmes merecem ter. Tentar pensar neles de maneira mais aprofundada é muito importante para mim, para que eles se mantenham mais presentes e não se dissipem tão rapidamente da memória. Assim, há muitos filmes que eu julgo importantes e valiosos e que acabam não ganhando um texto só dele pelo simples fato de o tempo, o trabalho e o volume de energia que me é tomado acabam por provocar um cansaço físico e mental que torna quase impossível me sentar à frente do computador e pensar no filme da forma que ele merece. Além do mais, nos últimos anos (cerca de seis ou sete anos, acho), tenho valorizado mais o tempo destinado ao sono reparador.

Aproveitando este momento mais ou menos livre, então, falemos de um dos melhores filmes brasileiros que tive a honra de ver neste ano, A MESMA PARTE DE UM HOMEM (2021), de Anna Johann. No filme, a diretora constrói um clima de tensão pautado bastante no som e muitas vezes nos close-ups e no modo como esse recurso também pode ser usado para intensificar nosso desconhecimento do que está fora da tela. O roteiro, assinado por Johann e Alana Rodrigues, é engenhoso em construir a trama, os diálogos e as situações que enriquecem o jogo entre os três personagens principais.

Na história, a rotina de duas mulheres, mãe (Clarissa Kiste, de FERRUGEM) e filha adolescente (Laís Cristina, da minissérie FORA DE SÉRIE), é mudada a partir do momento em que elas acolhem um homem desmemoriado (Irandhir Santos, desnecessário citar filmes com ele), após o desaparecimento/morte do marido/pai. Até que ponto aquele homem estranho pode ser um perigo para elas e até que ponto elas podem tirar vantagem de ter um homem dentro de um ambiente rural hostil? Ao mesmo tempo, o personagem masculino vai se tornando mais à vontade naquele ambiente de duas mulheres que se mostram atraídas por ele. E a brincadeira de ambiguidade começa a ficar mais interessante e carregada de tensão à medida que fazemos certos questionamentos sobre o que os personagens fazem ou pensam.

Johann, que tinha experiência na direção apenas com documentários até então, parece se sentir muito à vontade no território da ficção. O filme foi exibido em Tiradentes e depois também na Mostra de São Paulo, mas ver no cinema faz toda a diferença. Vi na gloriosa sala 2 do Cinema do Dragão e pude apreciar a obra da melhor maneira possível, com o som e a imagem tendo sua força amplificados. E falando em imagem, a fotografia de Hellen Braga (MÃES DO DERICK) é essencial para a apreciação do que vemos, com um trabalho de luz muito coerente com o mostrar e o esconder, e também na valorização tanto dos espaços interiores quanto da paisagem linda do interior do Paraná.

Uma das coisas que valorizo muito no filme é que o que há de terror e suspense no filme é tão sutil que faz com que o que acontece com os personagens deixe de ser uma diversão e se torne uma preocupação. Um dos melhores exemplos é a cena em que o personagem de Irandhir está sozinho no mato com a personagem de Laís. Ela está caçando com ele. E o personagem masculino, a certa altura, já estava muito consciente de seu papel naquele jogo de manipulação, mas nós, enquanto espectadores, temíamos pela jovem. É uma cena que, à parte, pode não ser tão tensa, mas dentro do conjunto faz toda a diferença. Eis um filme que quanto mais eu penso nele, mais eu gosto.    

+ DOIS FILMES

ALEMÃO 2

Ainda que goste do primeiro filme, de 2014, não estava tão confiante que José Eduardo Belmonte conseguiria fazer uma continuação depois de oito anos e com novos personagens. Na verdade, parte da força do novo (e melhor) filme está justamente nesses novos personagens, principalmente os três policiais que chegam na linha de frente para executar a missão de trazer o novo chefão do crime do complexo. Em ALEMÃO 2 (2022), os policiais são interpretados por Vladimir Brichta (que sofre ataques de pânico com frequência), a novata vivida por Leandra Leal e o jovem policial com pinta de fascista vivido por Gabriel Leone. Ou seja, temos um trio de atores excelente e de fato eles mandam muito bem nos momentos de tensão que o filme traz do começo ao fim. Quase não há momentos para respiro, e quando há, ainda somos brindados com cenas brilhantes, como a participação de Zezé Motta (que mulher fantástica!) e a conversa do personagem de Brichta com o chefe do crime (Digão Ribeiro) numa farmácia. Mesmo as cenas fora da favela, na sede da polícia, são muito melhores em comparação com as do primeiro filme, e há também o arco do jovem policial militar Bento (Dan Ferreira) com a sobrevivente do primeiro filme, Mariana (Mariana Nunes). Além do mais, diferente do primeiro, que parecia uma obra quase tímida em fazer uma crítica à instituição, essa tem uma posição mais crítica desde o início. E ouvir "O Que Sobrou do Céu" com uma imagem de arquivo chega a ser bem doloroso.

VALENTINA

É bom ver que é possível encontrar na Netflix um filme brasileiro que não apenas seja representativo da causa LGBTQI+, mas que também é de dar gosto de ver, com narrativa bem contada e personagens carismáticos. Na trama de VALENTINA (2020), de Cássio Pereira dos Santos, acompanhamos uma menina trans de 17 anos que encontra dificuldade de se matricular na escola de uma cidade do interior de Minas Gerais. Ela e a mãe já estavam se mudando por causa da violência que a garota vinha sofrendo em outra cidade. Novos ares podem ser a esperança para uma nova vida, em que ela pode ter a liberdade e a tranquilidade para ser quem deseja ser. A atriz que faz a personagem-título (Thiessa Woinbackk) é muito boa e a história se encaminha para situações que tanto evidenciam um tipo de roteiro mais tradicional, como também se mostra preocupado em apresentar detalhes do cotidiano da jovem, que ainda são obstáculos, como a cena da entrada na festa, por exemplo.

domingo, maio 01, 2022

SCHOCK



Um dos eventos mais importantes da minha vida – e que culminou com a criação deste blog – foi a minha entrada na lista de discussão Cannibal Holocaust, criada pelo amigo Carlos Thomaz Albornoz, um entusiasta de filmes de horror europeus. Naquela época, maio de 2001 em diante, eu sequer sabia da existência de dois mestres do cinema de horror italiano, Mario Bava e Lucio Fulci. Dario Argento, o outro membro da “santíssima trindade”, havia furado a minha bolha e aparecido na revista SET, até então um dos poucos veículos para minha formação cinéfila – lembro que quando TERROR NA ÓPERA foi lançado nos cinemas houve uma repercussão bem positiva por parte da crítica da revista.

Uma pena, porém, que a crítica da época do lançamento dos filmes de Bava nos cinemas, mesmo a estrangeira (americana, francesa e mesmo a italiana), não tenha louvado em vida a genialidade do diretor, o maior e mais influente dos três cineastas citados. Ontem, por ocasião de um curso sobre o grande mestre do horror italiano, ministrado por Fernando Brito, resolvi pegar um filme do cineasta ainda inédito por mim, por mais que na verdade eu precise rever todos os demais, inclusive os mais famosos e importantes. Mas gostei muito de ter visto SCHOCK (1977), seu último trabalho na direção, quando ele já passava o bastão para o filho Lamberto Bava, que dirigiu algumas cenas, foi um dos roteiristas e teve a solução para vários efeitos visuais, inclusive o mais famoso, o da criança correndo para os braços da mãe.

Gosto muito de como SCHOCK é tanto um filme de horror de fantasma quanto uma história sangrenta de assassinato, de como lembra um filme americano, mas sem deixar de parecer italiano. Na verdade, a história poderia se passar em qualquer lugar. Na trama, Daria Nicolodi é uma mulher que começa a ficar bastante perturbada com o comportamento do filho pequeno. A narrativa é cadenciada e o horror começa de maneira quase sutil. Algumas coisas só são ditas aos poucos, como um detalhe ou outro sobre o primeiro marido da protagonista, que supostamente teria se suicidado por causa do vício em drogas. Ao falar sobre o pai, não mais presente, o menino pergunta à mãe: o que é estar morto? Ela responde com carinho que é nunca mais podermos ver a pessoa novamente.

A primeira metade do filme tem uma força grande pois se apoia mais em um horror psicológico e fornece as bases para todo o desenvolvimento. Assim, quando o filho tenta imitar os gestos do companheiro da mãe fazendo sexo com ela em uma das primeiras cenas, isso sim é perturbador e incômodo. Ou quando o menino a ameaça de morte com aquela cara de ódio, ao vê-la beijando o segundo marido em uma festa. Esse segundo marido, um piloto de avião comercial, também parece um sujeito suspeito, já que coloca gotas de um remédio na água da personagem. Estaria ele a ajudando ou a envenenando? Como sabemos que ela passou um tempo internada em uma clínica psiquiátrica depois da morte do marido, seguramos essa informação, embora ela seja ainda insuficiente para nós.

Esse tipo de incerteza contribui para que fiquemos em um estado próximo ao da protagonista, que já não sabe mais o que está acontecendo. Estaria ela sendo assombrada pelo espírito do falecido? O que é aquela mão putrefata que aparece em suas visões com frequência? O tal fantasma teria possuído o corpo do filho, a exemplo do que acontece em OS INOCENTES, de Jack Clayton? E o principal, no terço final: ela teria alguma culpa direta na morte do marido? O filme demora um pouco para responder a essas perguntas e nos instantes finais brica com efeitos visuais que enfatizam o ataque sobrenatural a uma mulher fragilizada psicologicamente.

Mas é curioso eu falar disso sem mencionar o visual, os cuidados plásticos, que são a principal característica dos filmes de Bava, desde sua estreia solo, com A MALDIÇÃO DO DEMÔNIO (1960). Não vi na cópia em BluRay, lançada lá fora apenas neste ano pela Arrow (com comentários em áudio de Tim Lucas!), mas na cópia em DVD presente no box Obras-Primas do Terror 4. Já é possível ver que aqui não há um visual tão deslumbrante quanto em outros trabalhos do mestre. O que não quer dizer que não tenha uma fotografia muito interessante, com os efeitos visuais que ajudam a nos colocar dentro do inferno mental da protagonista, especialmente quando ela sonha ou parece estar em um estado de confusão mental provocada por alucinações.

No que se refere ao que poderíamos chamar de uma evolução do cinema de Bava, houve também uma busca dos produtores de SCHOCK de aproveitar o sucesso dos filmes de Dario Argento e trazer uma banda de rock progressivo para fazer a trilha sonora. A banda Libra causa uma boa impressão e ajuda a trazer empolgação para as cenas mais movimentadas.

Enfim, não deixa de ser uma alegria que, mesmo passados vários anos da morte do autor, em 1980, esse processo de descoberta de Bava pelas novas gerações continue aumentando, principalmente a partir da maior acessibilidade que a internet trouxe.

+ DOIS FILMES

DUAS MULHERES (La Ciociara)

Belo e tocante melodrama do grande Vittorio De Sica. Talvez, junto com LADRÕES DE BICICLETA (1948), seja seu filme mais popular, tendo conquistado até o Oscar de atriz para Sophia Loren, que já havia ganhado o prêmio de atriz em Cannes). Ela de fato está deslumbrante e entrega uma interpretação comovente. O fato de DUAS MULHERES (1960) se passar durante a Segunda Guerra na Itália, quando tudo era muito difícil e o país estava devastado, acentua a carga dramática. Na trama, Loren é uma viúva que deixa Roma com sua filha adolescente e vai para o campo, a fim de evitar os bombardeios. O filme se detém bastante no relacionamento que elas têm com os camponeses, principalmente com o personagem de Jean-Paul Belmondo, que faz um intelectual antifascista. Achei a cena mais dramática do filme mais tensa e incômoda do que esperava e o final é muito bonito. Melancolicamente bonito.

NEGÓCIO À ITALIANA (Il Boom)

Tem sido uma maravilha poder conhecer melhor a obra de De Sica, que vai muito além de LADRÕES DE BICICLETA e UMBERTO D. (1952). Em NEGÓCIO À ITALIANA (1963), tive contato com uma excelente comédia social que apresenta uma Itália bem diferente do momento imediatamente pós-Segunda Guerra, tão explorado nos melodramas do cineasta. Dado o drama do personagem, o registro poderia ser dramático, mas me pareceu muito acertado ter optado pelo cômico. Alberto Sordi faz o papel de um sujeito brincalhão, casado com uma mulher linda e que frequenta os ambientes da alta sociedade romana. O problema é que ele está gastando mais do que devia e está completamente arruinado, e sem ninguém que o ajude. Melhor não contar mais para não estragar as surpresas. Grande cena (entre tantas): a festa que o protagonista dá para seus amigos burgueses.