quinta-feira, julho 28, 2022

O DESTINO BATE À SUA PORTA (The Postman Always Rings Twice)



Os cineastas da Nova Hollywood estão indo embora aos poucos. Não faz muito tempo que Peter Bogdanovich se foi. Monte Hellman partiu em abril do ano passado. E neste sábado, dia 23, foi a vez da partida de Bob Rafelson. Que bom que os cineastas mais ativos ainda estão muito vivos e atuantes (Spielberg, Scorsese, Eastwood, Coppola, De Palma, Malick, Lynch, Schrader, Polanski, Allen), mas há que se concordar que o tempo não poupa ninguém. Enfim, é melhor não pensar muito nisso. O momento é de celebrar a vida e a obra de um dos mais importantes cineastas desse movimento de renovação do cinema americano, ele que chegou chutando portas com OS MONKEES ESTÃO SOLTOS (1968) e CADA UM VIVE COMO QUER (1970).

Na verdade, Rafelson nem é dos meus diretores favoritos desse “movimento”. Mas é possível que a maneira que eu via os seus filmes é que não estava sendo a correta. Na época do VHS eu vi vários filmes que acabei não me envolvendo e coloquei na categoria injusta do “não gostei". Mas os clássicos, pelo menos os clássicos, merecem sempre uma segunda chance. Por isso, aproveitei a passagem de Bob Rafelson para ver, desta vez pra valer, O DESTINO BATE À SUA PORTA (1981), agora preparado para o andamento mais lento das obras do cineasta, tido por muitos como um mestre da Nova Hollywood que trouxe um tom europeu para o cinema americano. E de fato isso faz sentido, por mais que tenhamos um roteiro de David Mamet a partir de um romance de James M. Cain, e com um casal de protagonistas bem americanos.

Embora esse movimento para o neo noir tenha começado lá nos anos 1970 – lembramos logo de CHINATOWN, de Roman Polanski –, eu destacaria três exemplares da primeira metade dos anos 1980 como os que mais trazem características da fase áurea do subgênero (anos 1940 e 50) para o momento então presente. Falo de CORPOS ARDENTES, de Lawrence Kasdan, GOSTO DE SANGUE, dos irmãos Coen, e deste O DESTINO BATE À SUA PORTA, refilmagem de O DESTINO BATE À PORTA, de 1946, dirigido por Tay Garnett e estrelado por Lana Turner e John Garfield. Infelizmente não vi a versão de 46, isso fica para o futuro (próximo?), mas creio não ser preciso para apreciar esta atualização mais apimentada para uma época em que o cinema americano trazia mais cenas picantes. De certo modo, Hollywood estava ainda bem atrás do cinema europeu (e do brasileiro) nesse quesito, mas trata-se de um movimento bem-vindo e que certamente chamou a atenção de um público maior. Aliás, a presença de Jessica Lange, em si, pode ter sido um chamariz, levando em consideração que sua estreia no KING KONG de 1976 já trazia um teor apelativo para a sensualidade da atriz.

Na trama de O DESTINO BATE À SUA PORTA, Jack Nicholson é Frank, um homem que claramente não é dos mais honestos ou confiáveis. Sua chegada a um restaurante de beira de estrada já denota sua vontade de tirar vantagem. Ainda não sabemos de seu passado, mas podemos inquirir um pouco. Ele é bem recebido por Nick, o dono do restaurante, um grego vivido por John Colicos, e fica de olho na bela esposa do sujeito, Cora, vivida por Jessica Lange. Não demora muito para que Frank se aproxime de Cora, e isso surge de maneira até bastante agressiva (para os padrões de hoje). A primeira e famosa cena de sexo na mesa de cozinha cheia de massa de trigo, ganha força principalmente pela entrega e pela vontade de Cora. Um destaque da cena, do ponto de vista da evolução do sexo no cinema, é a maior ênfase (e tempo) na mão de Frank nas partes íntimas de Cora.

Ainda assim, eu diria que o forte do filme não é o sexo, embora ele seja fundamental para que certas coisas que eram impossíveis de ser mostradas no cinema da Velha Hollywood por causa do Código Hays passassem a ser possíveis, mas toda a situação que surge a partir do momento em que Cora deseja que o marido morra para que ela se livre de um relacionamento que ela atura com esforço e fique apenas com Frank. O que me deixa surpreso é que a primeira tentativa inicial de matarem Nick fica quase toda por conta de Cora. 

Por mais que Jack Nicholson seja brilhante, achei incrível o quanto Jessica Lange se agiganta a cada momento em cena. Como um exemplar do chamado neo-noir, este filme até que se distancia um pouco do que se espera dos destinos fatídicos desse subgênero, especialmente em seu terceiro ato. No fim das contas, trata-se de um filme de amor, por mais torto que seja esse amor. É impressionante o quanto torcemos pelo casal de criminosos e assassinos, pois o coitado do grego não era nenhuma presença maligna ou coisa do tipo.

Além do mais, vemos o quanto a vontade de Frank de agradar e de ficar com Cora até o fim é legítima e o mais próximo possível de um sentimento puro, por mais absurdo que isso seja. Por isso chega a ser doloroso o destino dos dois, que ocorre quase como se fosse uma obrigação do diretor e do roteirista para a sociedade. Afinal, seria amoral um final feliz para eles. Ainda assim, o casal foi feliz por um bom tempo, e isso é como uma espécie de prêmio para os anti-heróis.

Fechando o texto, não posso deixar de destacar a fotografia do lendário Sven Nykvist, também conhecido como o diretor de fotografia do Bergman, e que chegou a trabalhar com Woody Allen também em vários filmes.

P.S.: Uma quase coincidência: cerca de um ano atrás eu revi um outro filme de Rafelson, uma obra um pouco mais comercial mas que me agrada muito, o thriller O MISTÉRIO DA VIÚVA-NEGRA (1987).

+ DOIS FILMES

À MARGEM DA VIDA (Caged)

Quando a Warner vende o filme em seu trailer já levanta uma preocupação que ainda hoje é discutida: a situação das mulheres que entram na prisão como réus primárias e cujo novo ambiente funciona como uma verdadeira escola do crime. Não exatamente por serem persuadidas, mas às vezes por revolta com o sistema. É o que está prestes a acontecer com Marie Allen (Eleanor Parker), que entra na prisão como cúmplice de um assalto seguido de morte efetuado pelo marido. À MARGEM DA VIDA (1950), de John Cromwell, traz um contraponto forte à docilidade de Marie, que é a personagem de Hope Emerson, a mais cruel das responsáveis pela disciplina das detentas. Misto de film noir, melodrama prisional e filme de gângster, esta produção funciona tanto como uma obra a ser estudada para fins políticos e sociológicos, quanto como mais um exemplar do pessimismo de seu tempo e do ótimo duelo de personagens femininas. Título presente no box Filme Noir vol. 11.

PAIXÃO SELVAGEM (Canyon Passage)

Lindíssimo exemplar do western romântico, e que permanece encantando e impressionando, passados quase 80 anos de seu lançamento. Jacques Tourneur vinha do sucesso de seus filmes de horror para Val Lewton, mas já estava fazendo uma transição para outro tipo de cinema quando estreou em PAIXÃO SELVAGEM (1946), este western a cores que conta a história de um homem de negócios (Dana Andrews) dividido entre o amor de duas mulheres (Susan Hayward e Patricia Roc) e tentando livrar o amigo problemático e viciado em jogo (Brian Donlevy). Enquanto isso, ele é perseguido por um desafeto que tenta tirar sua vida algumas vezes e que rende uma das melhores cenas de briga em saloon que já vi. Fiquei impressionado como uma certa cena de beijo me deixou desconcertado, talvez por ser um filme dos anos 1940: trata-se da cena em que Susan Hayward permite ser beijada por Andrews na frente do namorado dela. Me pareceu tão "moderno". No mais, há toda aquela atmosfera que o filme apresenta muito bem do perigo de se estar próximo dos índios e do quanto a trégua pode acabar, bastando um gesto errado de uma das partes. Gosto muito do herói de Andrews, que carrega um sorriso de confiança o tempo todo, mas sem parecer desinteressado nas pessoas que lhe são caras. Grande filme! Título presente no box Cinema Faroeste (primeiro volume). 

domingo, julho 24, 2022

HARAKIRI (Seppuku)



Eu podia estar na praia pegando uma corzinha – esse aspecto de vampiro que não se alimenta de sangue há tempos já está me incomodando –, mas aqui estou eu, na sombra, tentando fazer algo que me dá muito prazer, que é deixar registradas minhas impressões sobre um filme de que gostuei muito. Atualmente estou fazendo um curso muito bom sobre cinema samurai, que está me dando um empurrãozinho para conhecer certos filmes que até então eu não havia me entusiasmado a ver, ou sequer tinha ouvido falar, na verdade. E mal sabia eu o quanto estava perdendo, especialmente quando vi o glorioso HARAKIRI (1962), de Masaki Kobayashi.

Ao ver esta obra imensa eu fiquei até um tanto revoltado com o fato de esse filme permanecer apenas dentro de um nicho ao invés de estar presente nos cânones mais populares, em todas as listas de melhores obras cinematográficas de todos os tempos. É possivelmente o melhor filme sobre samurais já realizado, assim como um primor na construção plástica, que impressiona logo de início, valorizando cada elemento de cena na janela scope em preto e branco, e muitas vezes parecendo uma verdadeira pintura em movimento, especialmente em uma das cenas de duelo de espada ao ar livre. Além do mais, há também um dos melhores usos de flashback da história do cinema, rivalizando com obras como CIDADÃO KANE, de Orson Welles, e ASSIM ESTAVA ESCRITO, de Vincente Minnelli.

E como a construção de flashback é um mérito tanto da direção, quanto do roteiro e da montagem, vale lembrar que o roteirista de HARAKIRI é Shinobu Hashimoto, que trabalhou com Akira Kurosawa em RASHOMON (1950), VIVER (1952), OS SETE SAMURAIS (1954), ANATOMIA DO MEDO (1955) e A FORTALEZA ESCONDIDA (1958). Inclusive, dois filmes roteirizados por ele estão no meu radar para ver ainda nesta semana: A ESPADA DA MALDIÇÃO (1966), de Kihachi Okamoto, e REBELIÃO (1967), novamente do mestre Masaki Kobayashi.

Acho interessante perceber que entre HARAKIRI e REBELIÃO, Kobayashi havia realizado um filme de horror bastante festejado, KWAIDAN – AS QUATRO FACES DO MEDO (1964), e vejo isso como uma ligação muito natural, se pensarmos no horror e no maravilhamento que HARAKIRI produz. Afinal, o seu revolucionário filme anti-samurai consegue ser também um filme de horror, especialmente quando conta a tragédia do jovem samurai empobrecido, que é obrigado a cometer seppuku com uma espada de bambu. Tal cena é de uma crueldade tão grande, que eu não consigo sequer lembrar de outro caso parecido em filme algum. Inclusive, há relatos de pessoas que saíram da sala de cinema por não aguentar ver tal cena. 

A história intrincada e muito envolvente começa quando o protagonista Hanshiro Tsugumo (Tatsuya Nakadai) adentra aquele espaço luxuoso do clã que centraliza a riqueza da região com a proposta de administrar um seppuku. Dentro desse lugar, ele ouvirá a história de um jovem samurai pobre que também aparecera lá com a mesma proposta, e depois ele mesmo será o responsável por dominar a arte da narrativa, contando uma história que terá não apenas uma ligação com a anterior, mas que trará uma série de reviravoltas e surpresas para o espectador e para todos aqueles samurais de alto poder aquisitivo.

Além da própria linha da trama, que vai sendo tecida sem pressa e cheia de suspense, Tsugumo, o protagonista, e o próprio Kobayashi em sua proposta de revitalização e desconstrução das velhas tradições, derruba as máscaras da hipocrisia das tradições, chegando a dizer que o código de honra do bushido é uma farsa. Imagino que isso deve ter deixado certos grupos mais conservadores do Japão bem incomodados. Além disso, o filme ainda deixa escancarada a questão de que a história é contada pelos vencedores, que adulteram os fatos e trazem a glória para si mesmos.

Nada como os anos 1960, essa década fantástica que trouxe a contracultura para o nível mais elevado, para que filmes como HARAKIRI pudessem ser criados e vistos. Claro que nada disso seria possível se o Japão vencesse a guerra e o militarismo autoritário ainda imperasse no país e possivelmente no mundo. O pós-guerra, portanto, possibilitou que as artes alçassem voos inimagináveis, inclusive com o surgimento dos novos cinemas de tendência mais esquerdista em praticamente todo o globo.

+ DOIS FILMES

HUMANIDADE E BALÕES DE PAPEL (Ninjô Kami Fûsen)

O cinema japonês na década de 1930 já era um dos melhores do mundo. Basta lembrarmos que nesse período Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi já faziam grandes obras. Não conhecia nem de ouvir falar o trabalho de Sadao Yamanaka e estou entrando em contato por ocasião do curso sobre cinema samurai. Fiquei bem curioso para conhecer pelo menos um dos trabalhos desse que é conhecido como o Jean Vigo do Japão – por ser da década de 1930 e por ter morrido bem jovem (no caso dele, aos 28 anos de idade, na guerra contra a China). HUMANIDADE E BALÕES DE PAPEL (1937), de Sadao Yamanaka, traz uma história bem melancólica. Os dois personagens principais são um ronin precisando de trabalho e seu vizinho, um cabeleireiro que tenta a sorte em mesas de apostas. A história se passa num espaço bem pobre de Edo, que é como era chamada Tóquio nessa época (séc. XVIII). O filme já começa com a descoberta do corpo de um homem que cometera suicídio. Pela conversa dos vizinhos, ficamos sabendo que aquele não é um caso isolado. Pelo modo como termina o filme, passamos a compreender um pouco as questões envolvendo um tipo de honra muito particular da sociedade japonesa. O personagem do ronin é um dos mais honrados da história, mas justamente por causa dessa honra, ele mente para a esposa, provavelmente por sentir-se humilhado, já que não consegue ter uma conversa com o senhorio que fora o mestre de seu falecido pai. A situação do sequestro de uma moça, no terço final, torna a trama mais tensa e mais desesperançada. Filme presente no box Cinema Samurai 3.

OS HOMENS QUE PISARAM NA CAUDA DO TIGRE (Tora no O wo Fumu Otokotachi)

O fato de ter apenas 59 minutos de duração não deixa de ser um convite para que possamos ver este que é um dos primeiros filmes dirigidos por Akira Kurosawa, e que acabou demorando para ser lançado no Japão, pois os americanos suspeitavam se tratar de uma homenagem ao espírito de lealdade ao Japão feudal. De certa forma, pode ser mesmo, tanto que OS HOMENS QUE PISARAM NA CAUDA DO TIGRE (1945/1952) foi um filme de encomenda do governo japonês, mas há dúvidas que até hoje ficam no ar, como a figura do capitão do acampamento que estava ali para impedir que os samurais disfarçados de monges passassem. A cena mais lenta do filme é a mais interessante, que é a da tentativa do líder dos samurais de persuadir os seus inimigos de que eles seriam autênticos monges budistas. A figura do carregador desajeitado transforma o filme numa comédia, com frequência. Ele é como uma versão japonesa do Jerry Lewis. E também é talvez o que mais se aproxima do espectador médio. Gosto de imaginar que o "prêmio" que os samurais receberam veio mais de sua performance artística do que do fato de eles mentirem bem. Pode ser a mesma coisa: talento é para quem tem. Filme visto no box Cinema Samurai 3.

quinta-feira, julho 21, 2022

O ACONTECIMENTO (L'Événement)



Eu me lembro de quando, criança, estava com minha mãe na sala da minha casa. Na época, havia apenas um pequeno muro na fachada e um portão que se abria sem a necessidade de ter um cadeado ou algo parecido. Eram tempos mais seguros. Mas falo isso apenas para localizar o tempo e o momento, que me marcou bastante, a ponto de ficar em minha lembrança, mesmo tendo eu apenas sete ou oito anos de idade. Chegou uma pessoa da família para dar uma notícia. A notícia de que minha tia, uma das irmãs da minha mãe, havia morrido. Na época, eu não soube o motivo. Mas lembro de minha mãe correndo para a cozinha para chorar. 

Anos depois, já adulto, conversando com minha mãe, ela me contou que quando engravidou de minha irmã número dois, essa mesma tia também havia engravidado, mas que havia contado que tiraria o feto. Infelizmente, ela não sobreviveu ao procedimento. Na verdade, não sei qual foi o procedimento: se em um lugar onde se fazia o aborto de maneira clandestina ou se foi alguma outra técnica também desaconselhada. O fato é que o aborto é uma questão de saúde pública e minha tia não teria morrido se houvesse clínicas legalizadas, com médicos de verdade atendendo. Claro que alguém vai dizer que ela morreu pois optou pelo aborto, provavelmente sabendo dos riscos, mas há também a questão de poder ter o controle do próprio corpo.

Por incrível que pareça, mesmo estando em 2022, o tema do aborto voltou a ser ainda mais tabu do que há vinte anos. Nos Estados Unidos, com a Suprema Corte revogando o direito ao aborto conseguido em 1973, o caminho para que o mundo dito livre chegue novamente à criminalização volta a ser a tendência. Enquanto isso, grupos progressistas vêm lutando para que o direito das mulheres ao controle do próprio corpo seja conquistado. A Argentina, por exemplo, legalizou o aborto em até a semana 14 da gestação em 2020.

O ACONTECIMENTO (2021), vencedor do Leão de Ouro em Veneza, chega como uma obra que é muito bem-vinda para trazer à tona a discussão. Trata-se de mais um título a se juntar aos já ótimos exemplares sobre o assunto. Depois de sofrermos em filmes como 4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS, de Cristian Mungiu, e NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE, de Eliza Hittman, recebemos outra pedrada. E vemos que a premiação em Veneza não se deveu apenas à relevância do filme, mas principalmente às inúmeras qualidades dessa obra de impacto.

Optando por uma janela mais "apertada" para os padrões atuais (1,37:1), com uma trilha sonora bem discreta (o silêncio predomina) e frequente uso da câmera na mão, Audrey Diwan nos leva ao inferno da vida da jovem Anne (Anamaria Vartolomei, excelente), que descobre que está grávida e tem muita dificuldade em conseguir fazer o aborto, na França de 1963.

A história acontece dentro de um campus universitário. A princípio, não chegamos a conhecer o pai biológico da criança e isso é um detalhe importante. Ao descobrir que está grávida, Anne opta por não contar nada a ele. Afinal, o que eles tiveram foi uma noite de sexo sem compromisso. Por isso, ela primeiramente prefere procurar médicos que possam ajudá-la. Em vez disso, um dos médicos opta dificulta ainda mais a tentativa de um procedimento forçado.

Desesperada, e sem querer prejudicar sua carreira nos estudos e o seu futuro profissional – ela é estudante de letras –, Anne procura caminhos bem pouco recomendados para encerrar, dolorosamente, sua situação. Procurando em livros de medicina na biblioteca e tendo que se virar sozinha com um objeto pontiagudo perfurando seu útero, cada momento é um tormento também para o espectador. E quando achamos que a situação não pode piorar, o filme chega a querer nos fazer virar o rosto. Tensão, desespero, tristeza, indignação, muitos sentimentos surgem ao longo da metragem de O ACONTECIMENTO. 

Antes deste seu longa-metragem aclamado, a cineasta Audrey Diwan havia dirigido apenas um filme em sua curta carreira de diretora até o momento, o inédito no Brasil MAIS VOUS ÊTES FOUS (2019), que já fiquei bastante curioso para conferir. Quanto à França, mesmo com a fama de ser um país moderno e progressista, percebemos mais uma vez que quando o progresso é para ser em benefício da mulher, as coisas são bem mais difíceis de acontecer. 

+ DOIS FILMES

KOMPROMAT

Que beleza de surpresa este drama tenso e cheio de suspense sobre diretor da Aliança Francesa na Rússia que é preso, acusado de abusar da própria filha e de pornografia infantil na internet. KOMPROMAT (2022), de Jérôme Salle, tem uma bela estrutura de idas e vindas no tempo que funciona para não quebrar o ritmo da trama principal, já que os flashbacks são pontuais a fim de sabermos determinados motivos (mesmo que não sejam exatamente motivos) que possivelmente tenham levado a sua prisão. A história fica melhor ainda quando o protagonista (Gilles Lellouche) recebe liberdade condicional, o que só torna o filme ainda mais tenso. Há ótimas cenas de perseguição, diálogos certeiros e básicos para um thriller, produção caprichada e um herói construído a partir da luta pela sobrevivência. No mais, fiquei com aquela vontade de nunca pisar na Rússia, de tanto medo que o filme me fez ter daquele ambiente hostil (pessoas frias e pouco simpáticas, tempo gelado, alfabeto diferente). Até a moça que tem um papel de ajudar o protagonista, a gente demora a confiar. Aliás, ótima personagem, vivida por Joanna Kulig, lembrada pelo ótimo GUERRA FRIA, de Pawel Pawlikowski.

O MUNDO DE ONTEM (Le Monde d'Hier)

Não consegui me envolver com este drama político, apesar de trazer muitas conexões e preocupações com o momento atual, com vários países flertando com a extrema direita em um cenário global que cada vez lembra o dos anos 1930 na Europa. Em O MUNDO DE ONTEM (2022), de Diastème, temos a história de uma presidenta que, em seus últimos dias no cargo e prestes a passar o bastão para seu sucessor, se vê obrigada a tomar uma difícil decisão relativa ao destino da França. A opção de Diastème, homem de carreira mista, como jornalista, crítico de cinema, dramaturgo e músico, é de cenas que se passam sempre em espaços fechados. Mesmo quando ações mais intensas ocorrem, elas só nos são ditas através de mensagens, conversas etc. A atriz, Léa Drucker, é a mesma do ótimo e tenso CUSTÓDIA, de Xavier Legrand, presente em uma outra edição da Mostra Varilux de Cinema Francês. Aqui, de modo a manter o tom do cargo, ela faz uma personagem de emoções mais contidas.

terça-feira, julho 19, 2022

O TELEFONE PRETO (The Black Phone)



Um dos filmes mais interessantes e bem-vindos do ano, especialmente para quem gosta do gênero, é O TELEFONE PRETO (2021), muito provavelmente o melhor filme dirigido por Scott Derrickson – mais até do que O EXORCISMO DE EMILY ROSE (2005), um de seus trabalhos mais festejados. Um dos grandes méritos deste novo trabalho é conseguir unir o terror da vida real com o sobrenatural. São poucos os filmes que conseguem ou mesmo que procuram fazer essa união. Um dos que eu lembro com carinho é A ENTIDADE 2 – não o primeiro, curiosamente dirigido pelo Derrickson –, mas o segundo, que trata de violência doméstica de maneira forte, para em seguida ainda colocar a heroína sofrendo em uma casa amaldiçoada. Uma pena que este segundo filme, dirigido por Ciarán Foy, seja pouco lembrado.

Pois bem, voltando aO TELEFONE PRETO. O filme, já no início, nos mostra que o terror pode vir (e vem com muita frequência, infelizmente) de situações do cotidiano: seja o pai alcoólatra agressivo, seja o bullying e a violência dos meninos na escola. Tudo isso é violência física e psicológica. O filme trazer essa ambientação logo de cara, apresentando uma briga de crianças como algo sangrento e assustador, e crianças sendo desacreditadas e agredidas pelo pai, é um elemento que traz as bases para que a trama principal se torne forte o suficiente.

A direção de fotografia é um dos destaques, nos levando para o final dos anos 1970, com citações a O MASSACRE DA SERRA ELÉTRICA e OPERAÇÃO DRAGÃO, sucessos da década. A bela fotografia granulada ficou a cargo de Brett Jutkiewicz, responsável pelos filmes CASAMENTO SANGRENTO e PÂNICO. Mas o que mais chama a atenção mesmo é a dupla de jovens personagens/atores, o garoto Finney (Mason Thames) e sua irmã caçula Gwen (Madeleine McGraw). O fato de o menino se sentir fragilizado diante de tudo que está a seu redor, inclusive o ataque dos meninos intimidadores, traz um elo de identificação com boa parte dos espectadores. Para o garoto, há algo de paralisante na violência. Ele não consegue, por exemplo, reagir quando o pai está batendo na irmã, em cena bastante incômoda.

Além de tudo, o medo começa a ficar mais intenso naquela pequena cidade comum americana, com aspecto que lembra HALLOWEEN – A NOITE DO TERROR quando crianças conhecidas de Finney desaparecem. E apenas a pequena Gwen talvez possa ajudar, já que ela vem tendo sonhos sobre esse sequestrador e suas vítimas. O dom da garota também aparece com sua fé e sua comunicação desesperada com Deus. Ela tem um pequeno altar, escondido do pai, onde faz suas orações. 

Baseado em um conto escrito por Joe Hill, o mesmo autor dos quadrinhos de sucesso que deram origem à série da Netflix LOCKE & KEY, percebe-se um elemento comum entre as duas obras, que é o carinho entre os dois irmãos. Ambas as obras também contém fortes elementos sobrenaturais, mas O TELEFONE PRETO prefere usar o sobrenatural como um auxílio para o jovem protagonista, e não como um horror a somar. Quando ele se encontra sozinho em um porão, depois de ter sido sequestrado pelo personagem de Ethan Hawke, a única ajuda que ele tem é vinda desse contato com os espíritos dos amigos mortos, e que àquela altura já estavam se esquecendo de suas identidades quando vivos.

Sobre o personagem de Hawke, ele aparece pouco, mas sua presença é forte o suficiente, trazendo certa ambiguidade no que se refere à maldade. Em certo momento ele parece simpatizar com o garoto, mas isso só torna a relação entre os dois ainda mais incomoda. Há uma máscara que ele usa e que é montável e que contribui com essas mudanças que o personagem demonstra. O fato de o filme não contar nada de suas origens é mais positivo do que negativo.

O que pode trazer também um sentimento ambíguo para o espectador é o quanto a violência, que até então era vista como algo odioso e ramificado na sociedade americana, se transforma na única arma possível para derrotar o inimigo. Por isso ela é abraçada, uma vez que essa mesma violência vem de um sentimento de catarse, de vontade de libertação, potencializada com o emotivo abraço final dos dois irmãos e o pedido de desculpas do pai, seguido de um perdão que pode ficar para depois. Bem depois.

+ DOIS FILMES

A NOITE DAS BRINCADEIRAS MORTAIS (April Fool's Day)

O legal de A NOITE DAS BRINCADEIRAS MORTAIS (1986) é que o filme traz a questão das pegadinhas do 1o. de abril para o próprio gênero. Por outro lado, pode frustrar as expectativas de quem quer ver um autêntico slasher, já que as supostas mortes que surgem não tem um mínimo de gore - o que é compreensível para a proposta. A diversão fica por conta, em boa parte da metragem, das brincadeiras e dos atritos que surgem entre a turma de colegas de escola que passam alguns dias em uma casa afastada, numa ilha. A anfitriã prepara uma série de pegadinhas logo de início, muito caprichadas, mas a coisa começa a ficar preocupante quando um deles desaparece. E depois outro. O filme é leve. Algo como um quase slasher para a família, com pouco sexo e pouca violência. O diretor, Fred Walton, havia feito um baita filme em 1979, QUANDO UM ESTRANHO CHAMA aka MENSAGEIRO DA MORTE, que acredito ser a melhor coisa que fez em sua carreira. Nos extras do box Slashers VII há uma entrevista dele de mais de 40 minutos.

A GAROTA DA FOTO (Girl in the Picture)

Não tenho o hábito de ver esses documentários de true crime e por isso não tenho como saber quais deles se distinguem pela excelência. Lembro de DEAR ZACHARY – UM CASO CHOCANTE, que é um troço pesado demais para rever, mas talvez esse seja um caso à parte. Este A GAROTA DA FOTO (2022), de Skye Borgman, tem chamado a atenção e tendo em vista o hype criado e os elogios dos amigos, lá fui eu ver. Até porque também gosto de histórias de mistério e crime - mais de mistério do que de crime. E o caso da jovem mulher de 20 anos que é encontrada à beira da morte na estrada se desenrola para situações tão bizarras que não há como não ficar impressionado com o quanto a vida real consegue ultrapassar a ficção. Li uma crítica comparando a curta vida da garota com a de Laura Palmer, de TWIN PEAKS, e acho sim que tem tudo a ver. E com um toque de realismo ainda mais pungente, sem termos o conforto de saber que a alma da moça será recebida em paz do outro lado. E é difícil também conter a raiva e a indignação dos atos terríveis do psicopata da história. Um filme para nos deixar refletindo sobre o quão terrível este mundo pode ser, principalmente para as mulheres.

domingo, julho 17, 2022

SCARFACE



No ano passado, comecei minha peregrinação pela obra de Brian De Palma. E estava indo tudo muito bem, quando começaram as aulas presenciais, meu tempo disponível diminuiu e o filme seguinte para revisão era SCARFACE (1983), que eu tinha visto dez anos atrás no DVD duplo da Universal. O último De Palma que havia visto, a obra-prima UM TIRO NA NOITE (1981), foi em outubro. Ou seja, eu cheguei a interromper o que estava indo muito bem, com direito à leitura do ótimo De Palma’s Split-Screen, de Douglas Keesey, por uma cisma com uma obra que é tida por muitos como um dos melhores trabalhos do realizador.

O filme mais cheio de excessos de Brian De Palma tem momentos brilhantes, mas segue sendo aquela obra que, ao contrário de tantas outras do realizador, não me deixa com um sorriso no rosto durante sua metragem. De todo modo, há razões para isso, já que o que temos é a tragédia de um homem com pinta de psicopata em sua escalada para um império do tráfico de cocaína em Miami, no início dos anos 1980. Há muito de Oliver Stone, o autor do roteiro, e talvez isso tenha prejudicado um pouco para mim, que senti falta da mão do De Palma mais virtuoso e maneirista.

O esqueleto do SCARFACE de 1932 está presente principalmente na relação de ciúme doentio de Tony Montana com a irmã mais nova. Al Pacino está vários tons acima em sua versão mais cheirada de um Michael Corleone. Falo isso reconhecendo a grandeza do ator, que se entrega ao personagem de tal forma que por vezes esquecemos que é o Pacino que está ali, mais bruto, mais inconsequente, mais sanguinário. Há uma cena que muito me lembrou um momento de DUBLÊ DE CORPO (1984), que é a cena da motoserra, já no começo do filme. No mais, a própria abundância da produção (inclusive em sua duração) é coerente com a imagem de seu anti-herói.

Um dos motivos para De Palma sair um pouco de suas obras mais pessoais foi estar cansado de mostrar tanto de si em seus filmes. Ele chegou a dizer em entrevista para a revista Mr. Showbizz: “Você fica cansado de suas próprias obsessões, das traições, do voyeurismo, da sexualidade distorcida. Eu fiz um monte de filmes como esses, então você fica feliz em sair disso com esses gângsteres cubanos. Te dá um pouco de alívio.” Mas havia um outro motivo para a mudança brusca de UM TIRO NA NOITE para SCARFACE: o fracasso comercial do anterior.

O que é uma pena, pois quando vemos os filmes em ordem (ou mesmo fora de ordem), sem saber se houve um sucesso ou fracasso comercial, o que mais importa é o sucesso artístico. E isso eu vejo muito mais em UM TIRO NA NOITE e nas obras mais hitchcockianas que tanta gente pegou no pé, chamando o diretor de plageador ou coisa parecida. Então, um tanto frustrado, De Palma estava disposto a fazer um filme pelo dinheiro. Tanto que ele quase chegou a dirigir FLASHDANCE!

Ainda assim, e apesar do roteiro ter sido escrito por Stone, há muito de Brian De Palma em SCARFACE. Inclusive há pano para manga para o chamarem novamente de misógino. Michelle Pfeiffer se sentiu muito mal durante as filmagens, pois, de propósito, De Palma a deixava de lado, para que ela construísse uma personagem fragilizada e hostilizada em um mundo de homens grosseiros. De certa forma, funcionou muito no resultado, embora hoje em dia esse tipo de recurso seja considerado desumano. A frieza do diretor diante da atriz era percebida por todos no set.

A relação de Tony Montana (Pacino) com Elvira (Pfeiffer) na trama, mesmo quando ele a toma para si, depois de matar o ex-chefe (Robert Loggia), é bastante dessexualizada. Mas isso é natural quando se tem um homem que só quer saber do dinheiro que ganha com as drogas, da cocaína que consome aos quilos, e dos inimigos que o cercam por todos os lados, sejam eles traficantes rivais, a polícia ou os colombianos. Por isso a cena em que Elvira reclama do marido na frente do amigo Manny (Steven Bauer) é bem representativa dessa situação. E também uma das melhores cenas de Pfeiffer, que se defende dos maus tratos cotidianos de maneira também agressiva.

Coincidência ou não, à medida que o casamento de Montana e Elvira se desintegrava, o casamento de Brian De Palma com Nancy Allen também desmoronava. Eles já estavam divorciados na época do lançamento de SCARFACE nos cinemas. O que é uma pena, pois adoro a Nancy nos quatro filmes que ela fez com o diretor.

Sobre relações De Palma/Hitchcock, uma cena que costuma trazer uma obra de Hitchcock à tona é a cena da bomba no carro. Ao contrário da bomba que explode em SABOTAGEM, do mestre do suspense, De Palma faz aquilo que Hitchcock se arrependeu de ter feito e traz um senso de moral para Montana, que impede que um carro com uma mulher e uma criança seja explodido. Em vez disso, ele prefere atirar no colombiano e prejudicar a si e a seus negócios.

No fim das contas, SCARFACE não foi o sucesso pretendido por De Palma e pelo estúdio. E nem pela crítica, durante um bom tempo. Até Pauline Kael, fã do De Palma, meio que massacrou o filme. SCARFACE começou a ter um sucesso maior nas videolocadoras e hoje em dia também é visto como uma obra de referência e culto. No livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, SCARFACE é um dos três títulos do realizador que é incluído, junto com CARRIE, A ESTRANHA (1976) e OS INTOCÁVEIS (1987). 

+ DOIS FILMES

QUEM MATOU ROSEMARY? (The Prowler)

É interessante começar a ver um número maior de slashers e perceber qualidades que talvez não perceberíamos com olhos menos treinados. Este QUEM MATOU ROSEMARY?(1981) tem uma seriedade e uma atmosfera que o tornam mais interessante e mais valioso do que a maioria dos exemplares. Além do mais, os efeitos especiais super-realistas de Tom Savini fazem uma diferença enorme nas cenas das mortes, no seu caráter mais gráfico - a cena da piscina é impressionante. No mais, não me atraiu tanto a figura do assassino, a não ser pelo visual. A história dele me pareceu frouxa (a não ser que tenha algum simbolismo trazido da Guerra do Vietnã), sendo mais uma desculpa para a criação de maníaco desconhecido que vem atacando a cidadezinha durante a festa de graduação de uma turma de estudantes. O diretor, Joseph Zito, é mais conhecido por filmes como SEXTA-FEIRA 13 – PARTE 4: O CAPÍTULO FINAL (1984), BRADDOCK – O SUPER-COMANDO (1984) e INVASÃO U.S.A. (1985). QUEM MATOU ROSEMARY? está presente no box Slashers VI.

SANGUE NA LUA (Blood on the Moon)

Com o meu interesse de ver mais westerns categorizados como noir, chego a este belo exemplar dirigido por um dos artesãos mais celebrados de Hollywood. Robert Wise, na época, fazia tanto filmes de terror, suspense, quanto westerns e policiais. SANGUE NA LUA (1948) pega um pouco desta salada de gênero que fazia parte do espírito da época, tem o charme de Robert Mitchum, uma mocinha encantadora (Barbara Bel Geddes), um antagonista muito bom (Robert Preston) e uma trama inicialmente complicada envolvendo uma rixa entre fazendeiros e rancheiros, sendo que o grupo dos rancheiros estava sendo chefiada por um sujeito inescrupuloso disposto a matar, roubar e até usar a filha do fazendeiro para trair o pai. Há uma cena em especial, da luta entre Mitchum e Preston no bar, que é bem sombria, mas o melhor momento fica no final, quando o vilão e mais dois homens cercam a casa do personagem de Walter Brennan. Aliás, difícil não ligar isso a ONDE COMEÇA O INFERNO, de Howard Hawks, não só pela presença de Brennan, mas também pelas circunstâncias. O "quentinho no coração" se dá pelo romance do casal principal. Outros dois momentos fortes do filme envolvem estouros de boiadas, justo no mesmo ano em que RIO VERMELHO, também do Hawks, foi lançado, trazendo o mais famoso estouro de boiada da história do cinema. Coincidência ou algo recorrente no gênero? Filme visto no box Filme Noir - Robert Mitchum.

quinta-feira, julho 14, 2022

MS. MARVEL



Não durou muito a minha empolgação com MS. MARVEL (2022). Na verdade, a empolgação não foi apenas minha. Nos canais de YouTube que cobriam a série, o entusiasmo predominava. Mas o medo de que a minissérie perdesse o rumo a partir do momento que se tornasse uma história tradicional de super-herói, com direito a luta com vilão etc. estava no ar. MS. MARVEL começou com dois episódios adoráveis, que nos ambientam na rotina de vida da adolescente Kamala Khan (Iman Vellani) e sua dificuldade de pertencimento, sendo ela uma paquistanesa vivendo em Nova Jersey. Até há um gostinho das antigas histórias do Homem-Aranha nos quadrinhos.

Comecei a ler os quadrinhos da heroína, talvez a mais importante surgida na última década na Marvel, mas confesso que não me animei muito com as histórias, por mais simpáticas que fossem. Os próprios poderes da personagem, de fazer crescer os braços, pernas, corpo e até de se transformar em alguma coisa ou pessoa me pareceu muito Homem-Borracha. Enfim, os poderes talvez tivessem algo de simbólico do sentimento da personagem, mas isso não os torna exatamente geniais por isso.

Para a versão do MCU, não achei de todo ruim a mudança nos poderes e nas origens. Para começar, a Marvel no cinema por enquanto não trouxe ainda os Inumanos – a não ser pela aparição do Raio Negro em DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA. E isso foi em um outro universo. Ou seja, por mais que o estúdio da Casa das Ideias já tenha fabricados um monte de filmes e agora também de séries, não dá tempo de aplicar tantos personagens que fazem parte de décadas de histórias em quadrinhos nas telas.

Então, a solução foi trazer uma nova origem para Kamala Khan, ou para os poderes dela, no caso. Assim, tudo começa quando ela ganha um bracelete, herança de sua bisavó. Mais adiante seremos apresentados a um flashback dessa sua bisavó, interpretada por uma atriz paquistanesa muito bonita chamada Mehwish Hayat. Aliás, muita gente reclamou desse longo flashback da personagem, mas para mim foi um alívio diante de uma trama principal totalmente desinteressante e mal planejada.

O bracelete começa a manifestar um poder de trazer uma espécie de luz materializada, algo parecido com o que o Lanterna Verde faz com seu anel. Aos poucos, Kamala vai aprendendo a usar esse poder e no começo é divertido, pois ela não tem controle ainda sobre ele. Com a ajuda do amigo Bruno, que tem um quê de gênio, ela começa a treinar e depois descobre coisas sobre sua família e sobre suas possíveis origens.

Falando em família, achei muito interessante a série ter trazido um pouco dessa cultura paquistanesa, que é bastante invisibilizada. Há uma série de filmes e produções para a televisão que fazem sucesso apenas entre quem é originário do país - ou talvez em certos festivais. Assim, a cena do casamento do irmão, por exemplo, tão colorida e cheia de alegria, é mostrada com muito respeito àquela cultura. Há também um interesse em trazer um pouco da história do Paquistão e a questão do surgimento do país a partir de um marco chamado partição, que separou o território que antes era um único país chamado Índia, na época ainda sob o controle dos ingleses.

Enfim, não sei se vale a pena contar sobre as cenas de ação mal dirigidas, ou sobre o roteiro desinteressante – cheguei a ver um comentário numa rede social que dizia que o roteirista deveria ser preso. No fim das contas, a série serve apenas como apresentação de uma personagem que será uma das protagonistas de THE MARVELS, um dos filmes importantes da Marvel para o próximo ano.

É também mais uma produção da produtora que valoriza as minorias e contribui para o sentimento de respeito ao diferente – assim como aconteceu com SHANG-CHI E A LENDA DOS DEZ ANÉIS e ETERNOS. O ruim de a série ter caído tanto é que as boas lembranças acabam ficando esquecidas. Uma pena. Mas a cena pós-créditos ajuda um bocado a trazer de volta o entusiasmo para o filme que virá, que trará novamente Kamala, uma personagem muito bem-vinda.

+ DOIS FILMES

O CALOURO (Shithouse)

Tive alguns sentimentos conflitantes em relação ao protagonista de O CALOURO (2020), vivido pelo próprio Cooper Raiff, que assina direção e roteiro. Ele faz o papel de um sujeito muito carente de amigos e ainda muito apegado à mãe e à irmã. O fato de se sentir sozinho na faculdade e longe de casa faz com que ele fique em um estado constante de vulnerabilidade. E há momentos em que o personagem está tão vulnerável que parece ridículo. Por outro lado, é possível simpatizar e também se identificar com o personagem, especialmente se em algum momento de sua vida você se sentiu também assim. Além do mais, não o culpo por ter ficado apaixonado pela jovem vivida por Dylan Gelula (a atriz é encantadora). Até porque há toda uma situação de viverem uma noite juntos, conversando. Em certo ponto, até lembra um pouco os filmes de Richard Linklater. Ainda que mais despido de filosofia, Raiff tem o dom de nos deixar o tempo inteiro interessados na conversa, na química que se estabelece entre os dois, e no quanto o casal passa a se conhecer numa única noite. O epílogo traz uma espécie de conforto para o espectador para um filme que parecia se encaminhar para um estado de solidão e de choque de realidade. Felizmente a opção pelo calor no coração diminui um pouco o tom agridoce. Que bom que o filme seguinte de Raiff já está disponível para apreciação.

O PRÓXIMO PASSO (En Corps)

O novo filme de Cédric Klapisch talvez seja o seu melhor trabalho. Digo "talvez" porque não cheguei a ver nem um terço do que ele dirigiu, mas é uma obra muito fácil de ser gostada, é um filme pequeno sobre a busca de um novo rumo para uma bailarina que sofre um acidente durante uma apresentação de balé. O PRÓXIMO PASSO (2022) tem uma ótima condução narrativa e o tempo em que as coisas acontecem parece sempre ser o tempo ideal. É no espaço que funciona como uma espécie de ambiente para recuperação física e espiritual que a moça (Marion Barbeau) entra em contato com um grupo de dança contemporânea, que tem um estilo muito diferente da dança clássica, mais livre e também mais calcado no chão e no peso. Achei tão interessante essa dança que acho que se visse esse filme nos meus 15-16 anos eu ficaria tentado a integrar um desses grupos. O filme é sutil e abre um pouco de espaço para o humor dentro da situação de tristeza da personagem. Há também um capricho visual nas cores e no som que chama a atenção.

segunda-feira, julho 11, 2022

THOR – AMOR E TROVÃO (Thor – Love and Thunder)



O cinema é uma caixinha de surpresas. Melhor dizendo: a nossa relação com os filmes é uma caixinha de surpresas. Depois de ter achado um saco os três primeiros filmes do Thor – sendo que os dois primeiros ainda têm o “mérito” de serem bem esquecíveis –, eis que me pego curtindo cada momento de THOR – AMOR E TROVÃO (2022), a segunda incursão de Taika Waititi na Marvel, mais uma vez brincando com a solução cômica encontrada para fazer com que o Deus do Trovão dê certo em sua versão cinematográfica. E sabemos que muito disso se dá graças ao ótimo timing cômico de Chris Hemsworth – basta lembrar também de seu papel engraçadíssimo no subestimado CAÇA-FANTASMAS, de Paul Feig. Aliás, de uma coisa a gente não pode reclamar dos estúdios Marvel: de sua capacidade certeira de conseguir encontrar atores perfeitos para os personagens.

O fato de eu ter gostado do filme pode ter sido culpa das baixas expectativas vindas tanto dos filmes anteriores do Thor, quanto das mais recentes produções do UCM. Ou pode ser culpa dos bodes. :) Aqueles bodes trouxeram a minha primeira gargalhada, embora desde o início eu tenha valorizado a figura trágica de Gorr, o Carniceiro dos Deuses (Christian Bale), um dos vilões mais interessantes das histórias recentes da Marvel, surgido mais ou menos na mesma época da Poderosa Thor Jane Foster (Natalie Portman), nos runs mais bem-sucedidos de Jason Aaron na Casa das Ideias.

Como o filme tinha pouco tempo para desenvolver a personagem de Foster, ela fica um pouco prejudicada, mas não a ponto de se tornar descartável. Ao contrário: Jane Foster é a personagem que traz o amor de volta, e traz o amor em uma embalagem deliciosamente cafona, como as produções B de fantasia dos anos 1980. Nesse sentido, até mesmo as fontes usadas nos créditos combinam, assim como o sentimento usado como arma final contra o mal. E combinam com o hard rock oitentista também.

O senso de humor aqui está mais afiado que em THOR - RAGNAROK (2017) e com a vantagem de personagens cativantes aparecerem mais azeitados, como o Rei Valquíria (Tessa Thompson, apaixonante) e o gigante de pedra Korg (interpretado pelo próprio diretor). Sem falar na participação de Russell Crowe como Zeus, em uma chave totalmente zoada e sem a menor vergonha do ridículo. E falando em chave, gosto de como acontece uma mudança de tom lá perto do final, nas cenas em preto e branco. É, sem dúvida, um filme que tem os seus muitos problemas, mas não se levar a sério e encontrar o seu próprio rumo e ritmo faz dele merecedor de respeito.

No mais, espero que a turma do Guns N'Roses tenha curtido a infinidade de homenagens. Acho até que eles exageraram na dose de Guns na trilha (tem até um personagem que se chama Axl!), mas quando eu me peguei arrepiado com a cena que entra aquele solo do Slash em “November Rain” eu percebi que tinha mesmo era que me entregar ao filme.

É uma grande bobagem? Sim, com certeza. Mas, uma vez que você relaxa e se deixa levar por essa grande bobagem, as quase duas horas de duração vão passar voando. Assim como você também vai relevar os problemas de montagem ou algumas cenas mais atabalhoadas – a primeira aparição de Jane Foster empunhando o Mjolnir, por exemplo, parece saída de uma série de cenas que foram deixadas na mesa de edição.

Outra coisa que eu acho válido para se curtir o filme é não se sentir obrigado a rir das piadas. Esse tipo de sentimento com relação ao filme pode estragar a apreciação, e é mais ou menos a relação que eu tenho com os dois filmes dos Guardiões da Galáxia. Além do mais, gosto muito de como o filme lida com a comédia e consegue fazer transições muito boas para o drama e até a tragédia. É só lembrar que o filme começa nos apresentando à trágica história de um homem que resolve abdicar da fé e assassinar todos os deuses que encontrar pelo caminho. É fácil compreender esse tipo de sentimento quando se convive com perdas.

E em paralelo, THOR – AMOR E TROVÃO é também a história de um deus que perdeu muitos entes queridos ao longo de poucos anos. Um deus que é apresentado de maneira abobalhada, mas que em nenhum momento deixa de ser um herói. E aprendemos que um herói vale mais do que muitos deuses – que o diga Zeus.

+ DOIS FILMES

LIGHTYEAR

A Disney andou botando as produções da Pixar de escanteio dos lançamentos exclusivos nos cinemas. Foi assim com SOUL (2020), LUCA (2021) e RED – CRESCER É UMA FERA (2022). Teve que vir um spin-off de TOY STORY (1995-2019) para que a companhia do Mickey resolvesse lançar uma produção deles nos cinemas. E eu diria que LIGHTYEAR (2022), de Angus MacLane, é um belo filme. Funciona tanto como uma aventura de ficção científica como uma diversão para crianças - dependendo da idade. É o INTERESTELAR da Pixar, no sentido que há a questão da busca de uma salvação e os resultados que se veem são tão difíceis quanto frustrantes, além de trazerem a questão da disparidade temporal entre quem fica e quem viaja. O filme explora bem a solidão do protagonista e a relação de afeto dele com o gatinho-robô e um grupo de novos recrutas dispostos a ajudá-lo. Há uma cena que lembra a relação entre Luke Skywalker e Darth Vader e não sei se houve uma intenção da parte dos roteiristas para que assim parecesse. Esse enfrentamento simbolizaria uma luta interior de Buzz, e isso o eleva a um herói mais complexo do que se poderia imaginar.

TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO (Everything Everywhere All at Once)

MATRIX encontra DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA para o público descolado contemporâneo. Talvez a principal diferença de TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO (2022), de Dan Kwan e Daniel Scheinert, seja a vontade de não ser tão sério, de brincar com as possibilidades sem querer fazer tanto sentido. Ao mesmo tempo, acho que isso é um dos pontos fracos do filme. Além do mais, pelo menos pra mim, o humor não funciona, embora eu ache a cena dos dildos muito interessante como forma de trazer uma novidade, algo semelhante ao que talvez possa ser visto em mangás ou na cultura pop oriental como um todo. O misto de vidas da protagonista vivida por Michelle Yeoh até faz referência a Wong Kar-Wai, mas de maneira muito discreta, e justamente quando tenta trazer uma espécie de moral da história, essa moral, ou essa mensagem, acaba sendo incoerente com o próprio espírito do filme, mais frenético e muito pouco interessado na monotonia do cotidiano. Ou não?

sexta-feira, julho 08, 2022

CONVERSATIONS WITH FRIENDS



Passando para deixar meu boletim de saúde. Hoje acordei tarde e com um mal estar estranho na cabeça. Depois do café da manhã em horário pós-almoço e de tomar uns remédios, melhorei um pouco, pelo menos a ponto de ficar ligeiramente mais funcional. Terminei de ver ontem, em formato quase de maratona, CONVERSATIONS WITH FRIENDS (2022), a nova série da Hulu baseada em romance de Sally Rooney, e com quase a mesma equipe que fez NORMAL PEOPLE (2020), que considero uma obra-prima dentre os melodramas românticos que tive a honra de ver.

O nome Sally Rooney já virou um chamariz forte para mim, desde que eu fiquei completamente impactado com a série (ou minissérie?) de 2020, que também me transformou em leitor de seus romances. CONVERSATIONS WITH FRIENDS também conta com episódios dirigidos por Lenny Abrahamson (O QUARTO DE JACK, 2015). Ele dirige sete dos 12 episódios de cerca de meia hora, cada – mesmo formato da série anterior. De certa forma é uma série mais complexa, embora tenha vindo do primeiro romance da escritora.

Isso porque os personagens são mais fechados em suas emoções, mais próximos da realidade, no sentido de demorarem a assimilar o que estão sentindo e o que está acontecendo com suas vidas em situações em que a emoção é mais forte. Há, inclusive, uma série de momentos em que o diálogo é travado e geram situações quase constrangedoras. Isso acontece em especial com Frances, a personagem apaixonante de Alison Oliver, atriz estreante e cuja beleza me faz lembrar um pouco a Jenna Fischer da série THE OFFICE – só que mais bonita, talvez.

Porém, enquanto ela é uma personagem fácil de se apaixonar, os demais personagens não são assim tão fascinantes, nem mesmo o principal interesse amoroso de Frances, um homem casado. Como a primeira e única relação amorosa de Frances havia sido com a agora melhor amiga Bobbi (Sasha Lane), é a primeira vez de Frances com um homem nesta relação confusa mas nem por isso menos empolgante com Nick (Joe Alwyn, um ator que já estreou como protagonista, em A LONGA CAMINHADA DE BILLY LYNN, de Ang Lee).

Uma das coisas que mais me chamava a atenção enquanto via esta série é a melancolia e a solidão dos personagens. Fiquei o tempo todo pensando no fato de que esta nova geração na faixa dos 20 que tem se relacionado tanto com a internet na palma de suas mãos carrega um tipo de tristeza que parece muito difícil de lidar. Em alguns momentos, a personagem principal parece uma espécie de fantasma vagando por Dublin e cidades menores da Irlanda, especialmente quando não está se sentindo tão bem, ou tão amada. O fato de ela amar um homem casado que ainda não quer se separar da esposa mexe um bocado com sua autoestima, por mais que ela se perceba muito acima da média de seus colegas da faculdade de letras.

Em alguns momentos, eu me identifiquei com Frances, mas isso porque a série nos convida a acompanhar a história através de seu ponto de vista – diferente de NORMAL PEOPLE, onde há dois pontos de vista. Dessa forma, a série tanto nos engana ao nos fazer ver Frances como uma moça inocente e não como alguém que pode magoar os sentimentos dos outros, por mais que não seja essa sua intenção. Em comparação com NORMAL PEOPLE, a nova série tem o mesmo estilo, embora seja mais melancólica e menos melodramática – até as canções que encerram os episódios têm uma cadência mais depressiva. 

As cenas que provocam choros são mais comedidas, assim como seus personagens. Só fui gostar de Nick lá pelo fim da série (ou temporada?), já que antes disso ele mais parece uma estátua, no sentido de que não consegue exprimir seus sentimentos. Depois, no final, vemos que isso está longe de ser o caso. Gosto de como a série termina, ainda que tenha achado um tanto brusca, mas achei um final satisfatório para os personagens. Queria ter gostado mais de Jemima Kirke na série. Em GIRLS ela interpreta a minha personagem favorita, mas aqui ela pega o papel ingrato da escritora e esposa traída e meio ranzinza (embora com razão).

Outra coisa que me agrada na série é o modo como Frances às vezes parece se quebrar, de tão frágil que parece. Frágil fisicamente - há uma questão de saúde que é levantada - e frágil em ter que lidar com o turbilhão de emoções que surge dessa paixão por um homem casado e a dificuldade de verbalizar essa situação com a melhor amiga. Há também uma dificuldade de verbalização dela com o próprio pai, alcóolatra e depressivo, que me trouxe para o meu passado também. E é por isso que vejo CONVERSATIONS WITH FRIENDS como uma obra que me falou bastante. Mesmo não trazendo a catarse arrebatadora de NORMAL PEOPLE, a assinatura de Sally Rooney está lá, a ponto de quase vermos a autora nua, do ponto de vista simbólico.

+ DOIS FILMES

QUERIDA LÉA (Chère Léa)

Este filme é tanto um estudo da tristeza de um homem frente à vida e frente ao fim de um relacionamento, quanto um olhar afetivo para a criação, para a poesia da linguagem (a escrita, mas que pode se ampliar para a cinematográfica, também). Quando Jonas (Grégory Montel) para em um café a fim de escrever uma longa carta (de despedida?) para Léa (Anaïs Demoustier), ele também tem um interesse em como sua escrita ficará, além de explicitar suas feridas abertas. Tanto que a presença do atendente do café (o simpático Grégory Gadebois), interessado no que ele está escrevendo, é representativo da arte sendo apreciada e criticada pelo espectador. QUERIDA LÉA (2021), de Jérôme Bonnell, tem um ritmo muito bom, ainda mais levando em consideração que se passa em pouquíssimos lugares (o café, principalmente), e consegue tratar da arte da escrita trazendo sempre interesse.

PETER VON KANT

Não adiantou muito caprichar na direção de arte e nas cores vivas (ênfase no vermelho) da casa do personagem-título, que é onde se passa toda a trama de PETER VON KANT (2022), e não conseguir nos tocar com suas dores. A opção de François Ozon em adotar um tom debochado dos personagens acaba causando um distanciamento não muito interessante. Ainda assim é possível que o filme encontre os seus apreciadores. Gostaria de saber, inclusive, de quem viu AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT, de Rainer Werner Fassbinder, para saber se a homenagem fez jus à obra original.

quinta-feira, julho 07, 2022

COMUNHÃO (Alice, Sweet Alice / Communion / Holy Terror)



Ninguém merece passar o aniversário de molho em casa, com COVID. Saudade de 2019, quando programei meu aniversário para passar em São Paulo. Mas podia ser pior, claro. Então, melhor não reclamar. Ao menos estou conseguindo visualizar melhoras para o futuro breve. E, hoje, se me dispus a escrever para o blog, por mais simples que seja o texto, já é um bom sinal, já que ontem não consegui escrever coisa alguma. Um dos problemas de estar doente é que a cabeça fica como se estivesse com uma névoa, impedindo o raciocínio. Triste para quem gosta de ler e de escrever.

Porém, mesmo no meio disso tudo, vi um filme que justifica eu tomar um pouco do meu tempo para escrever a respeito, que é o proto-slasher COMUNHÃO (1976), dirigido por um sujeito chamado Alfred Sole, que antes disso só havia dirigido um filme pornô em 1972! É impressionante como Hollywood já foi mais ousada. De todo modo, dentro desse subgênero, e dentro do horror como um todo, é possível ver vários casos de diretores que não tiveram uma carreira brilhante, mas que deixaram um filme brilhante para a posteridade. E certamente é o caso deste que é um dos filmes mais bárbaros, violentos e transgressores que eu já vi. Dá para ver a influência explícita do giallo (lembrei na hora de PRELÚDIO PARA MATAR, de Dario Argento), mas como o giallo é um gênero que tem uma estranheza toda própria, ver isso sendo transposto para um tipo de dramaturgia mais familiar, como a do cinema americano, acaba fazendo uma diferença enorme.

Inspirado em PSICOSE, de Alfred Hitchcock (a história se passa em 1961 e até vemos um poster do filme do mestre do suspense na rua), e também em INVERNO DE SANGUE EM VENEZA, de Nicolas Roeg (o uso da capa de chuva amarela não deve ser uma coincidência), COMUNHÃO nos apresenta à história de uma família que passa por uma situação traumática. Durante a cerimônia de comunhão da filhinha pequena (Brooke Shields, em seu primeiro papel no cinema), acontece um assassinato em plena igreja. A principal suspeita é Alice, a irmã mais velha da garota, vivida pela excelente Paula E. Sheppard.

E nós espectadores também somos levados a acreditar na culpa de Alice. Afinal, é ela quem usa a máscara e a roupa, é ela quem costuma implicar com a irmã caçula, é ela que tem um comportamento de aparente sociopatia. Mas surpresas não faltam e com elas aumenta também nossa relação de respeito com a obra de Sole, que demonstra um cuidado impressionante com a direção, com o modo como movimenta a câmera, o modo como a posiciona e também pela opção por atuações mais intensas de seu elenco. Há muitas cenas de arrepiar, mas adoro uma em especial, quando a tia de Alice é esfaqueada na escada e a mãe da garota grita, pedindo socorro. Que cena brutalmente magnífica!

Como precursor do slasher, COMUNHÃO também antecipa HALLOWEEN – A NOITE DO TERROR, de John Carpenter, ao trazer tanto a questão da psicopatia com crianças quanto o uso de uma máscara que causa um terror quase inexplicável. Há também um forte elemento transgressor, já que boa parte das cenas envolvendo as mortes acontece durante a missa. Além do mais, os rituais católicos são mostrados de maneira a apontar para um grau de estranheza fora do usual. A cena de Alice oferecendo a língua para receber a hóstia momentos antes de ser noticiada a morte de uma criança na igreja causa algo de desconcertante.

O filme chegou a ser relançado para capitalizar com o nome de Brooke Shields nos créditos, devido ao sucesso de MENINA BONITA, de Louis Malle. COMUNHÃO é desses filmes que é melhor visto sabendo o mínimo possível. O que eu acho impressionante é que hoje em dia não vemos filmes de terror que consigam trazer tanto impacto quanto este.

Visto no box Slashers IV.

+ DOIS FILMES

WATCHER

Eis um filme que poderia ter rendido mais suspense, mais tensão. Pelo menos acredito que era isso o pretendido. Ao final de WATCHER (2022), ficamos sabendo que se trata mais de uma obra sobre o descrédito dado às mulheres num mundo dominado pelos homens. A exploração da condição de estrangeira em um país estranho e que fala uma outra língua completamente diferente (a Romênia, no caso) também ajuda a compreender um pouco mais o drama da protagonista (Maika Monroe), embora lá pela metade eu tenha começado a acreditar que o que ela sentia era sim algum tipo de paranoia. E falo isso com tristeza, inclusive. Será essa a intenção do filme de Chole Okuno?

COM AS HORAS CONTADAS (D.O.A.)

Um filme que está sempre acima do tom, até mesmo quando se utiliza do humor. Há um momento em que o protagonista (Edmond O'Brien) viaja para San Francisco para se afastar um pouco de sua namorada e, a cada mulher bonita que vê, ouvimos uma espécie de fiu-fiu na trilha. Achei bem desconcertante isso, e é de certa forma contrastante com a intenção aparentemente mais séria do filme, embora o ponto de partida já seja em si para trazer interesse e diversão. Na trama de COM AS HORAS CONTADAS (1949), de Rudolph Maté, um homem chega a uma delegacia de polícia para reportar um assassinato: o assassinato dele mesmo. Ele havia sido envenenado e conta em flashback o ocorrido. Tudo ocorre em ritmo alucinante (ou quase) e o tom melodramático também é bem over, em especial na última cena do protagonista com a namorada. O filme rendeu um remake em 1988 chamado MORTO AO CHEGAR, estrelado por Dennis Quaid. Visto no box Filme Noir Vol. 20.

domingo, julho 03, 2022

O ATALHO (Meek's Cutoff)



Ah, a ironia da vida. As férias que chegam com uma gripe forte (ou virose, quem sabe COVID?). Mas fazer o quê? Sigamos tentando buscar prazer e alegria apesar dos percalços. E ontem, vendo O ATALHO (2010), pude esquecer um pouco os incômodos do momento e me concentrar na beleza de um grande filme. Trata-se de mais um impressionante trabalho de Kelly Reichardt, que aqui opta por um western com tintas de suspense e mistério, com uma trilha sonora (a cargo de Jeff Grace, de A CASA DO DIABO) que começa sutil e vai se acentuando à medida que a situação do grupo de colonos vai ficando mais difícil.

Temos mais uma parceria – a segunda de quatro – da diretora com Michelle Williams, que assume o papel de uma heroína que enfrenta o tradicional machismo da época (e do gênero), representado pelo personagem de Bruce Greenwood, o Meek do título. Ele é um arquétipo de um homem que gosta de se vangloriar de atos heroicos, atos esses nunca vistos, apenas ditos por ele. Contratado para ser o guia de três famílias de pioneiros, já no começo do filme os homens das famílias discutem se devem ou não enforcar aquele homem que os colocou em situação difícil e desesperançada. Afinal, eles estavam no desolado deserto do Oregon, com água faltando e expectativas de sobrevivência baixas. Há até um índio que os segue, e que, supostamente, representaria um perigo adicional, até pelo que já é esperado de westerns.

A fotografia, a cargo de Christopher Blauvelt, o mesmo de FIRST COW – A PRIMEIRA VACA DA AMÉRICA (2019), é linda e a opção mais uma vez pela janela “clássica” (1,33:1) amplia ainda mais os horizontes nas tomadas de planos gerais. Se esse tipo de janela pode funcionar às vezes para dar um ar de claustrofobia, aqui talvez surja um pouco de agorafobia (medo de espaços abertos), embora a beleza das imagens não pareça representar perigo. O perigo está mais no inesperado, naquilo que não pode ser dominado.

Há uma cena em que a personagem de Williams costura o sapato do índio e fala que ele não tem ideia do que eles, os brancos europeus, são capazes, das cidades que eles construíram. Porém, naquele espaço selvagem, é o índio quem está dominando a situação, mesmo na posição de prisioneiro. Quando um dos homens cai desfalecido, por exemplo, o índio canta uma bela canção em sua língua incompreensível para os brancos. Não sabemos se é uma oração para curar o homem enfermo ou um cântico em homenagem a sua partida iminente. Talvez seja uma forma de conectar a alma do homem aos deuses, para que o recebam com respeito.

É curioso que, por mais que eu tenha me lembrado da obra-prima A GRANDE JORNADA, de Raoul Walsh, o que temos aqui é um antiépico, com tudo mais comedido, mais econômico, com mais cara de arthouse. E a opção por um ritmo mais lento da narrativa – o que é natural por parte da diretora – é outro acerto, pois importa menos o plot e mais os personagens, seus dramas e principalmente a atmosfera.

Aliás, atmosfera seria uma das palavras-chave do filme, cujos primeiros dez minutos não possuem diálogos. Ouvimos principalmente o som do vento e das rodas das três carroças. As primeiras palavras que ouvimos são de versículos da Bíblia. Um dos patriarcas das três famílias talvez seja um pastor puritano, que tem pouca ação no filme e costuma aparecer apenas numa posição mais passiva, como se aquele espaço desesperançado não desse tanto espaço para a fé ou para milagres. Enquanto isso, há a figura de Stephen Meek, um homem que se veste como se para um dos espetáculos que encenariam lendas do velho oeste, estilo Buffalo Bill. Suas piadas e suas histórias heroicas se mostram dissonantes com as preocupações e os silêncios dos pioneiros.

A presença de Meek talvez represente uma espécie de desequilíbrio. Como um western do século XXI, O ATALHO já carrega em si uma história não apenas do gênero, mas de toda a história americana até o momento. Então, a presença de Meek, que seria muito bem-vindo em faroestes da Velha Hollywood, representado muito bem por um John Wayne, parece aqui uma pessoa sem noção da realidade – ele não está vendo que errou e todos estão perdidos por causa dele? Se bem que o final em aberto do filme nos deixa em dúvidas sobre o destino dos personagens. A propósito, que final, hein!?

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES

OS JOVENS AMANTES (Les Jeunes Amants)

Atriz com mais de 100 filmes no currículo, Fanny Ardant ultrapassa os seus mais de 70 anos de idade no papel de uma mulher que vive uma paixão crepuscular. E não por alguém de sua idade, mas por um homem mais jovem (Melvil Poupaud), que é quem se aproxima dela primeiro, quem toma a iniciativa, quem se apaixona inicialmente, quem tem a coragem de deixar o casamento para ficar com uma mulher mais velha. Para mim OS JOVENS AMANTES (2021) cresce bastante a partir de sua primeira metade, quando as questões envolvendo o seu casamento se tornam mais tensas, assim como a fragilidade da idade e da doença da protagonista feminina também passam a desempenhar um papel decisivo no pensar a impulsividade do relacionamento dos amantes. Há algumas cenas de dar um nó na garganta, principalmente as que lidam com silêncios (nisso, a participação de Cécile de France é fundamental). A diretora Carine Tardieu opta por um filme menos carregado nas tintas do que eu gostaria, mas que mesmo assim me agradou bastante.

PLEASURE

Eis um filme que me causou sentimentos mistos. Como uma obra que pretende fazer uma espécie de denúncia da indústria pornográfica americana, PLEASURE (2021), de Ninja Thyberg, tem a sua importância. Assim como também apresenta uma espécie de descida aos infernos da personagem de Sofia Kappel, a garota sueca que resolve fazer carreira nessa indústria e que percebe que para ser membro da "elite", ela precisaria se sujeitar a cenas cada vez mais hardcore. Nem sei se é assim mesmo que funciona para todas as garotas, mas é assim que funciona a pornografia como bem de consumo: uma vez que cenas mais fortes alcançam um interesse maior, o inferno é o limite. De todo modo, achei interessante ver a participação de rostos conhecidos do pornô, como que dando um apoio para a diretora, e também a participação rápida (e presente nos agradecimentos) da porn star Abella Danger. No mais, PLEASURE poderia ser encarado como um filme de crime, de máfia, no sentido de que vemos alguém que começa de maneira ingênua até se deixar dominar pela sujeira do ambiente. Tenho muita curiosidade de saber o que os grandes nomes da indústria acharam da visibilidade deste filme nos festivais. Algo a se pesquisar.