sábado, dezembro 31, 2022

TOP 20 2022 E O BALANÇO DO ANO




1. MEMORIA, de Apichatpong Weerasethaku
2. NÃO! NÃO OLHE!, de Jordan Peele
3. O ACONTECIMENTO, de Audrey Diwan
4. A MORTE HABITA À NOITE, de Eduardo Morotó




5. MOONAGE DAYDREAM, de Brett Morgen
6. OS GRANDES VULCÕES, de Fernando Kinas e Thiago B. Mendonça
7. SPENCER, de Pablo Larraín
8. MÃES PARALELAS, de Pedro Almodóvar




9. OS PRIMEIROS SOLDADOS, de Rodrigo de Oliveira
10. BENEDETTA, de Paul Verhoeven
11. A PIOR PESSOA DO MUNDO, de Joachim Trier
12. AFTERSUN, de Charlotte Wells




13. X – A MARCA DA MORTE, de Ti West
14. PROPRIEDADE, de Daniel Bandeira
15. IRRADIATED, de Rithy Panh
16. NOITES BRUTAIS, de Zach Cregger




17. DRIVE MY CAR, de Ryûsuke Hamaguchi
18. A ILHA DE BERGMAN, de Mia Hansen-Løve
19. DESTERRO, de Maria Clara Escobar
20. CRIMES OF THE FUTURE, de David Cronenberg

Menções honrosas

21. APOLLO 10 E MEIO – AVENTURA NA ERA ESPACIAL, de Richard Linklater
22. BATMAN, de Matt Reeves
23. FAUSTO FAWCETT NA CABEÇA, de Victor Lopes
24. CONTRATEMPOS, de Éric Gravel
25. MARTE UM, de Gabriel Martins
26. THE DARK AND THE WICKED, de Bryan Mertino
27. CARVÃO, de Carolina Markowicz
28. DIÁRIOS DE OTSOGA, de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes
29. PÂNICO, de Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett
30. ATÉ OS OSSOS, de Luca Guadagnino

Do ponto de vista coletivo, especialmente brasileiro, 2022 talvez tenha sido o ano mais feliz que tivemos desde 2016. Ou talvez ainda não, já que ainda estamos lidando com um luto que nos foi negado das nossas perdas nos dois anos pandêmicos passados. De todo modo, ter um ano com uma volta da democracia, do que chamam de normalidade, depois de tanta sandice e de atos criminosos da gestão bolsonarista, não deixa de ser um alívio. Inclusive, só para a cultura, teremos um valor recorde de investimento em 2023. Então, vontade não está faltando de recuperar este país e de fazer as pessoas felizes novamente.

O ano foi de recuperação das salas de cinema, após (ou durante) essa tendência de migração cada vez maior dos filmes para as casas, aumentada bastante desde 2020. Mesmo assim, tivemos pelo menos um filme que se destacou pela popularidade nas bilheterias, que foi o retorno de Tom Cruise ao seu sucesso de aviação. Acabou não entrando no meu top 20+10, mas é uma obra muita querida por vários críticos e cinéfilos. Mas falemos dos vinte filmes e um pouco do que eles representam. 

O título que encabeça minha lista, MEMORIA, de Apichatpong Weerasethaku, é uma obra enigmática que, mesmo não sendo compreendida nem pela metade, traz algo que muito me atrai. No caso, o sonho ou a lembrança (essas duas entidades quase irmãs que às vezes se confundem) de um som, e a busca obsessiva de uma mulher pela reconstrução desse som no mundo material. É uma espécie de filme de investigação que se encaminha pelas memórias de povos e entidades das florestas, algo muito caro pelo celebrado cineasta tailandês.

Memória é também o tema de mais alguns títulos vistos neste ano. MOONAGE DAYDREAM, de Brett Morgen, presta tributo a um dos maiores artistas que vimos habitar neste planeta, David Bowie. E o modo como o filme faz para nos fazer perceber sua importância só mesmo o cinema é capaz de criar. A memória (junto com imagens registradas em vídeo, que também funcionam como memória) é também uma palavra-chave para AFTERSUN, de Charlotte Wells, que segue mexendo com as emoções de muitas pessoas por onde tem passado, por lidar com o afeto e a lembrança entre filha e pai. 

O cinema pode usar a memória para tratar de coisas que fazem doer a alma, como é a investigação de Rithy Panh sobre a extrema maldade humana. A maldade que faz criar bombas e guerras e experiências científicas com seres humanos. Ver IRRADIATED é sair desacreditado da espécie humana, é verdade, mas há certas coisas que não podem ser esquecidas como poeira debaixo do tapete. E há cineastas que lidam com essa tarefa nada agradável, mas essencial. Outro documentário muito inventivo que me entusiasmou bastante foi OS GRANDES VULCÕES, de Fernando Kinas e Thiago B. Mendonça, usando um grande texto, uma grande atriz e arquivo de filmes e canções para costurar o mundo da pós-verdade e da política americana.

Falando em política, o cinema de horror segue sendo o gênero que melhor tem trabalhado esse tema da maneira mais criativa. Que o diga Jordan Peele, com seu maravilhoso NÃO! NÃO OLHE!, o mais sutil dos filmes políticos dele, já que o amor pelo cinema parece vir em primeiro lugar. Mas as questões relativas à escravização do povo negro nos Estados Unidos e o modo como isso ainda reverbera estão presentes até na necessidade de desviar o olhar do monstro opressor. Enquanto isso, no Brasil, Daniel Bandeira faz em PROPRIEDADE  algo que muito lembra um filme de zumbis inspirado em Romero, mas para falar de forma bem provocadora do abismo social entre burguesia e classe trabalhadora pobre.

O cinema de horror foi também grande quando optou por trazer de volta certos estilos, como o slasher. O melhor exemplo disso é X – A MARCA DA MORTE, de Ti West, que tanto usa um estilo visual sujo para nos remeter aos anos 1970, quanto para tornar a experiência do filme mais especial e ao mesmo tempo perigosa e divertida. NOITES BRUTAIS, de Zach Cregger, é outra recriação de um tipo de cinema que lembra a década de 1980 e que empolga, diverte e assombra.

Podemos voltar para o assunto memória e trazer duas personagens femininas da história que protagonizaram dois grandes filmes. Enquanto SPENCER, de Pablo Larraín, nos leva aos instantes angustiantes e opressivos da vida da Princesa Diana no palácio, Paul Verhoeven traz o hoje pouco usual subgênero nunsploitation para contar a história de uma freira famosa pelos supostos milagres, mas principalmente por sua postura agressivamente sensual no incrível BENEDETTA.

Outras personagens femininas não-biográficas, mas muito reais ao serem transpostas para as telas, estão em trabalhos lindos como O ACONTECIMENTO, de Audrey Diwan, sobre uma jovem tentando fazer um aborto na França da década de 1960; como MÃES PARALELAS, a volta de Pedro Almodóvar ao melodrama feminino, tratando das dores de duas mulheres em questões envolvendo a maternidade; como DESTERRO, de Maria Clara Escobar, sobre diferentes pontos de vista para contar a história de uma mulher depressiva; e como A PIOR PESSOA DO MUNDO, de Joachim Trier, sobre uma jovem e suas ações em experiências afetivas.

O drama de figuras masculinas também está presente em obras ricas e inspiradas em grandes romancistas, como DRIVE MY CAR, de Ryûsuke Hamaguchi, e A MORTE HABITA À NOITE, de Eduardo Morotó, dois filmes tão distantes, mas tão próximos desse sentimento de empatia que o cinema é capaz de provocar em seus melhores momentos. Outro filme que desperta esse sentimento é OS PRIMEIROS SOLDADOS, de Rodrigo de Oliveira, que nos leva para a vida de pessoas que viveram e experimentaram os primeiros anos da AIDS no Brasil. Ao ver tais filmes, vemos que sentir dor é fundamental para compreender a vida. Tanto que, sabendo disso, David Cronenberg criou uma distopia sobre uma sociedade que não sente dor, e que sofre com isso, em seu retorno ao sci-fi com body horror CRIMES OF THE FUTURE. Fechamos a lista de filmes com A ILHA DE BERGMAN, de Mia Hansen-Løve, filme que, entre outras coisas, homenageia um dos artistas que mais trabalharam com as dores mais profundas do ser humano.

Quis o destino que a dor estivesse presente neste texto para nos fazer lembrar da nossa existência terrena, que também traz as delícias, mas a dor precisa ser valorizada como parte intrínseca de nossa experiência. É essa ambivalência, entre dor e prazer, que faz a vida interessante. E a gente que gosta de arte (de cinema, de literatura, de música) tem muitos motivos para querer ficar presente neste plano de existência por mais uns bons anos, pois ainda há muitos filmes para assistir antes de morrer, que o digam os maravilhosos títulos antigos listados abaixo, na seção "filmes vistos na telinha pela primeira vez".

Top 5 - Piores do Ano (Que tistreza!)

1. MOONFALL - AMEAÇA LUNAR
2. MORBIUS
3. JURASSIC WORLD - DOMÍNIO
4. ADÃO NEGRO
5. MORTE NO NILO

Top 5 - Musas do Ano

Margot Robbie talvez seja a mais bela estrela de cinema da década. Ainda falta um pouco para analisarmos isso com distanciamento, mas é quase covardia sempre que tem filme com ela se mostrando exuberante. Ela apareceu no bagunçado AMSTERDAM, de David O. Russell.


Kate Siegel é presença fiel nas obras de seu marido, um dos maiores mestres do horror contemporâneo, Mike Flanagan. Sempre quis destacá-la nesta seção, mas eu usava a regra boba de ela estar em minisséries, não em filmes. Neste ano, a vi no mediano HYPNOTIC, de Matt Angel e Suzanne Coote, e isso já foi motivo de alegria.


Muito se falava da beleza de Lupita Nyong’o, mas eu só fui reparar de verdade nessa que é uma das atrizes  mais importantes de sua geração em PANTERA NEGRA – WAKANDA PARA SEMPRE, de Ryan Coogler, um dos grandes lançamentos da Marvel em 2022. Fiquei encantado com Lupita. 



Uma das atrizes europeias mais queridas da atualidade, Virginie Efira tem uma espécie de aura misteriosa que encanta e hipnotiza. Neste ano, perdi de ver um dos dois filmes exibidos no Festival Varilux, mas ela já compareceu em duas obras no mínimo muito interessantes, BENEDETTA, de Paul Verhoeven, e O SEGREDO DE MADELEINE COLLINS, de Antoine Barraud. Ela é um exemplo clássico de atriz que chegou ao auge em plena maturidade física.


Quem viu O ACONTECIMENTO, de Audrey Diwan, certamente ficou muito impressionado com a história e com o quanto o drama da protagonista nos faz sofrer. Mas é importante destacar que sem a presença da jovem romena Anamaria Vartolomei o filme não teria conseguido tanto assim. E mesmo diante de tanto mal estar que o filme provoca é impossível não perceber sua beleza tão especial.

Clássicos revisitados ou vistos pela primeira vez no cinema

AMOR À FLOR DA PELE, de Wong Kar-Wai
AS AVENTURAS DE MOLIÈRE, de Laurent Tirard
AVATAR, de James Cameron
CLÉO DAS 5 ÀS 7, de Agnès Varda
E.T. – O EXTRATERRESTRE, de Steven Spielberg
LEVEL FIVE, de Chris Marker
PARIS 1900, de Nicole Védrès
POUR DON CARLOS, de Musidora e Jacques Lasseyne
SEM SOL, de Chris Marker

Top 20 vistos pela primeira vez na telinha em ordem alfabética

A ESPADA DA MALDIÇÃO, de Kihachi Okamoto
A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE, de Frank Borzage
A ROTINA TEM SEU ENCANTO, de Yasujiro Ozu
ANJO NEGRO, de Jean-Claude Brisseau
AO CAIR DA NOITE, de Frank Borzage
BODA BRANCA, de Jean-Claude Brisseau
COMUNHÃO, de Alfred Sole
ESTRELA DITOSA, de Frank Borzage
HARAKIRI, de Masaki Kobayashi
HUMANIDADE E BALÕES DE PAPEL, de Sadao Yamanaka
MUITO RISO E MUITA ALEGRIA, de Peter Bogdanovich
MURIEL, de Alain Resnais
O MATADOR, de Henry King
ONIBABA – A MULHER DEMÔNIO, de Kaneto Shindô
OS SETE SAMURAIS, de Akira Kurosawa
PAIXÃO, de Jean-Luc Godard
PAIXÃO SELVAGEM, de Jacques Tourneur
REBELIÃO, de Masaki Kobayashi
ROSA LA ROSE, GAROTA DE PROGRAMA, de Paul Vecchiali
VERÃO VIOLENTO, de Valerio Zurlini

As séries e minisséries (Top 5)

1. BETTER CALL SAUL - SEXTA TEMPORADA
2. EUPHORIA - SEGUNDA TEMPORADA
3. SERVANT - TERCEIRA TEMPORADA
4. CONVERSATIONS WITH FRIENDS
5. IRMA VEP

Revisões na telinha

A FOGUEIRA DAS VAIDADES, de Brian De Palma
ALEMÃO, de José Eduardo Belmonte
CIÚME – O INFERNO DO AMOR POSSESSIVO, de Claude Chabrol
CONSCIÊNCIAS MORTAS, de William A. Wellman
GRITO DE HORROR, de Joe Dante
HELLRAISER – RENASCIDO DO INFERNO, de Clive Barker
IRMA VEP, de Olivier Assayas
O DESERTO VERMELHO, de Michelangelo Antonioni
O DESTINO BATE À SUA PORTA, de Bob Rafelson
OS INTOCÁVEIS, de Brian De Palma
PÂNICO 2, de Wes Craven
PÂNICO 3, de Wes Craven
PÂNICO 4, de Wes Craven
PECADOS DE GUERRA, de Brian De Palma
SCARFACE, de Brian De Palma
SÍNDROME DE CAIM, de Brian De Palma
THE SOUVENIR, de Joanna Hogg
TOP GUN – ASES INDOMÁVEIS, de Tony Scott
TOTALMENTE SELVAGEM, de Jonathan Demme

Feliz Ano Novo!

Um feliz ano novo para todos nós, com muita saúde, arte, amor, paz de espírito e sabedoria para fazer a coisa certa na maior parte das vezes. Meu muito obrigado a você, que está lendo este texto até o final, seja pela primeira vez, seja quem acompanha fielmente este espaço que completou 20 anos em 2022.

terça-feira, dezembro 27, 2022

IRMA VEP



Neste ano fui acometido por sentimentos (ou sensações?) de aflição, impaciência e ansiedade no que se refere às séries e minisséries. Deixei algumas pelo caminho (DEXTER: NEW BLOOD, WHAT IF...?, CAVALEIRO DA LUA, BONECA RUSSA – SEGUNDA TEMPORADA) e tenho outras que devo dar continuidade no ano seguinte (CLUBE DA MEIA-NOITE, DAHMER). O que acontece é que, enquanto eu via o episódio da série, ficava pensando num filme (ou vários filmes possíveis), ficava achando que estava deixando de ver vários filmes.

É um sentimento que tem se apresentado em leituras também. Tenho pilhas de HQs e livros (e até revistas) para ler na minha mesa de trabalho, vários deles emprestados de um amigo querido e paciente, inclusive. Mas acredito que esse meu caos pessoal não fica muito visível para os amigos. Alguns acham que eu vejo filmes demais, mas eu sei o quanto isso é relativo e na verdade eu vejo filmes de menos, se levar em consideração que também fui juntando muita coisa para ver em mídia física, depois que voltei a ser um colecionador assíduo dos boxes de DVDs e BluRays, a partir de 2020, graças ao excelente trabalho da Versátil.

Mas voltemos para as séries e minisséries. IRMA VEP (2022) foi uma minissérie que sofreu com esse meu problema. Comecei a ver assim que começou a ser veiculada, em junho, e só terminei agora, em dezembro. Até revi o filme homônimo de 1996, e com muito prazer, para me aquecer para o retorno de Olivier Assayas a sua personagem e ao universo criado como homenagem à série de cinema OS VAMPIROS (1915), de Louis Feuillade.

Inclusive, na minissérie, Assayas deixa muito mais explícito esse apreço pelo trabalho de Feuillade, até por ter mais tempo para fazê-lo, incluindo várias cenas originais obra cinematográfica, em comparação com as imagens em scope da refilmagem no filme dentro do filme. Ou na série dentro da série, melhor dizendo. Aliás, essa fronteira entre cinema e televisão fica bem borrada neste trabalho de Assayas, e creio que é mesmo intenção dele.

Na trama, Alicia Vikander é Mira Harberg, uma atriz hollywoodiana que aceita o convite de ser a protagonista de “Irma Vep”, uma minissérie dirigida por René Vidal (Vincent Macaigne, sempre simpático e bem-vindo). Mira se sente à vontade, apesar de perceber a diferença que é estar trabalhando em um set francês, em comparação com sua experiência em grandes produções. Sua intenção é se afirmar como atriz, trabalhando com um cineasta cultuado – ainda que também visto como muitos como um cineasta ultrapassado.

Adoro o primeiro episódio, justamente por causa dessa busca por adaptação por parte de Mira, mas também por nos apresentar a alguém tão entusiasmado quanto Vidal. E há personagens coadjuvantes que chamam e muito a atenção. Há uma ex-namorada de Mira que traz um veneninho para esse pequeno momento, ao se revelar uma mulher que brinca sadicamente com o coração de Mira, em uma cena particularmente bastante sensual. A atriz é Adria Arjona (MORBIUS), que infelizmente tem um papel menor do que deveria. Outra atriz de que gostei muito foi Devon Ross (estreante), que faz Regina, a assistente de Mira. Apaixonada pela chefe, ela procura ser o mais profissional possível. Mira, aliás, é adorada e desejada por muitos naquele novo universo. Principalmente por mulheres. Estranhamente são poucos os homens que a procuram.

Mas eu vejo que há um problema nessa materialização de Alicia Vikander em IRMA VEP: ela é boazinha demais, doce demais, para interpretar uma personagem que é “pure evil”. Claro que isso é bom para que simpatizemos com sua personagem – ela é adorável, sem dúvida –, mas chega um momento que essa sua beleza e bondade atrapalham um pouco. Afinal, em determinado momento ela é meio que capturada pela personagem Irma Vep e vai saindo por aí com super-poderes e invadindo espaços privados, chegando até a roubar joias. Ou seja, como ela é muito legal, roubar joias alheias é permitido, ainda mais quando é para se vingar da ex, por exemplo.

E há o personagem de Macaigne, que é um homem que ainda não se desapegou do passado, da saudade que sente da atriz original do filme. Não sei se é verdade, mas a minissérie parece uma tentativa de Assayas de exorcizar a falta que sente de Maggie Cheung, sua companheira na vida e na profissão durante um bom tempo – fizeram, além de IRMA VEP, o belíssimo CLEAN (2004), realizado quando Assayas e Cheung já estavam divorciados. Na minissérie, o fantasma da ex-mulher segue assombrando o cineasta.

IRMA VEP tem uma serenidade que pode ser tanto um trunfo quanto um problema. Eu vejo mais como um problema, pois preferiria sentir as dores dos personagens. E acredito que Assayas não tenha conseguido esse feito (ou eu não tenha entrado em sintonia com sua obra, quem sabe). Outro trunfo da série está nas reflexões que faz sobre as mudanças que vivemos atualmente no modo como as pessoas veem filmes, por exemplo, incluindo cenas de personagens vendo filmes em seus celulares. Como se trata de uma série que valoriza bastante os diálogos, é natural que o diretor use mais uma vez o cinema para refletir sobre as mudanças na sociedade em que vivemos – como acontece em filmes como HORAS DE VERÃO (2008), ACIMA DAS NUVENS (2014) e VIDAS DUPLAS (2018).

No mais, vale destacar a trilha sonora autorreferencial de Thurston Moore (agora separado de sua banda, Sonic Youth) e uma participação especial e carinhosa de uma atriz muito importante para os melhores momentos de Assayas nos anos 2010.

+ DOIS FILMES

BEM-VINDOS A BORDO (Rien à Foutre)

Um filme que funciona melhor quando nos apresenta à rotina de trabalho de comissária de bordo da protagonista (Adèle Exarchopoulos) e um pouco menos quando somos apresentados à sua família, no terceiro ato. Ou seja, a melancolia, por vezes doce, da personagem impregna de maneira agradável o filme, que adota cores frias para combinar com seu estado de espírito e com o trabalho, que exige frieza, adaptabilidade e praticidade por parte dos empregados. Gosto de como BEM-VINDOS A BORDO (2021), de Emmanuel Marre e Julie Lecoustre, usa os quartos de hotel e os espaços apertados da aeronave para acentuar a condição da jovem. Além disso, há a busca por contatos efêmeros nos momentos entre os voos, que enfatizam o forte sentimento de solidão da protagonista. Cena de destaque: quando ela recebe uma chamada para aumentar a qualidade de dados móveis de seu celular.

ARGENTINA, 1985


Difícil não se emocionar ao final de ARGENTINA, 1985 (2022). Difícil não comparar com a história do Brasil, com a palhaçada que foi a nossa anistia, que, além de ser um desrespeito enorme aos familiares das vítimas da ditadura brasileira, acabou ajudando a criar mais fascistas na história recente do país. Santiago Mitre (PAULINA, 2015) utiliza uma estrutura bem semelhante à usada pelo cinema clássico americano para criar um drama de tribunal. É uma estrutura que funciona muito bem e que, muito provavelmente, é a ideal para fazer nascer uma obra que possa ter um alcance suficientemente grande. Porém, acredito que se eu tivesse visto no cinema, teria me emocionado mais, teria me envolvido mais. Em casa, a tentação de pausar algumas vezes é grande e acaba por diminuir o impacto. Grande momento a cena da leitura do texto acusatório por Ricardo Darín. Que grande ator! Aliás, uma coisa que não dá para criticar neste e em tantos outros filmes argentinos é o ótimo trabalho de atuação. E sei que o filme não quis ser exploratório das maldades sofridas pelas vítimas da ditadura militar do país, mas destacar mais exemplos talvez deixasse muito mais plateias (quem sabe até simpatizantes do fascismo) incomodadas. Sendo ou não um grande filme, trata-se de uma obra que merece ser vista por todos.

domingo, dezembro 25, 2022

21 CURTAS VISTOS NO 17º FEST ARUANDA



Um dos meus maiores erros quando estive no Fest Aruanda foi não ter me esforçado mais para escrever pequenos textos sobre todos os curtas que vi no festival. Foi tudo muito corrido e não ter um computador decente por perto prejudicou bastante a minha escrita durante o período. Além do mais, como vi todos os curtas das duas mostras (competitiva nacional e de curtas paraibanos), foram muitos os vistos. 21 ao todo. O bom é que, dentro da quantidade, se vê qualidade, e acabei vendo várias pequenas pérolas. Alguns deles, cresceram bastante na memória afetiva e espero que sejam lembrados nas listas de associações de críticos. Escrever sobre eles também está sendo um bom exercício de memória. 

O REBANHO DE QUINCAS

Um homem que mora só, Quincas (Buda Lira, de BACURAU), tem um rebanho de cabras. Ele cuida dos animais, enquanto também cuida dos seus negócios. O REBANHO DE QUINCAS (2022), de Rebeca Sousa, utiliza bem poucos diálogos e parece querer trazer uma sensibilidade quanto à morte dos bichinhos, ainda que seja para alimento do dono da propriedade. Há um cuidado interessante em torno dos sons do espaço rural, como o som dos pássaros, mas principalmente o som das cabras. O momento de mudança do filme acontece perto do final, com um tipo de conscientização maior por parte do protagonista em relação à sua realidade.

CALUNGA MAIOR

Um filme que aposta bastante na força de suas imagens e bem menos em uma história. Como a protagonista é uma jovem que ficou órfã recentemente e pretende se aventurar pela memória e pelo desconhecido de uma ilha, há um clima de mistério presente do início ao fim. CALUNGA MAIOR (2022), de Thiago Costa, é um caso de curta-metragem que seria bastante beneficiado por uma revisão, o que eu vejo como um elogio, já que se percebe um cuidado muito grande com a direção, a fotografia e os diálogos curtos e precisos. Soube que existe uma versão com uma metragem um pouco maior. Essa versão teve a duração diminuída para caber nas regras do festival. 

SAINDO COM ESTRANHOS DA INTERNET

Uma simpatia este SAINDO COM ESTRANHOS DA INTERNET (2022), de Eduardo Wahshaftig, que usa a animação (tradicional, simples e bonita) para enriquecer o registro documental que trata de pessoas contando suas experiências de procurar e encontrar parceiros através de aplicativos como Tinder, Grindr e Blender, mecanismos que mudaram a vida de muita gente, embora hoje em dia se questione o quanto eles não contribuíram para tornar a vida íntima e sentimental ainda mais líquida. Destaque para o ótimo senso de humor de vários dos entrevistados.

TIRO DE MISERICÓRDIA

Este é provavelmente o meu favorito de todos os curtas exibidos no festival. Fiquei encantado com a direção de Augusto Barros, mas também com o modo como ele cria um mistério aliado a uma sexualidade forte e poderosa (adoro quando essa junção de fatores ocorre). Na trama de TIRO DE MISERICÓRDIA (2022, foto), Francisco (Johnny Massaro) acorda na casa de Joana (Isabel Zuaa), na manhã seguinte à primeira noite do casal. Enquanto tenta entender melhor quem é a mulher com quem passou a noite, Francisco vai contando detalhes de sua vida e Joana o escuta com calma. O uso bem pouco vulgar da câmera, o aspecto poderoso e sensual da personagem de Zuaa e a entrega completa do rapaz tornou o filme uma das experiências mais intensamente eróticas que vi em 2022, até por ter um final cruel e misterioso. É certamente um filme que se beneficiará de novas revisões para se perceber detalhes.

CARTA PARA GLAUBER

O escolhido do júri da crítica que muito orgulhosamente participei é este filme "de montagem" que utiliza uma carta de Gustavo Dahl. Acredito que basta deixar a justificativa do júri para CARTA PARA GLAUBER (2022), de Gregory Baltz. “Algo tão 'fora de moda' como uma carta é trazida do passado pelo cinema como uma cápsula do tempo que guarda uma manifestação de afeto, uma síntese histórica do golpe de 1964 e uma crítica cinematográfica. As imagens dos filmes de Gustavo Dahl e Glauber Rocha são a materialização da presença dos amigos cineastas: remetente e destinatário.”

TEKOHA

Os filmes de Carlos Adriano são lindamente enigmáticos e utilizam a montagem para trazer inquietação e ênfase. Dele havia visto O QUE HÁ EM TI (2020) e SEM TÍTULO: RARA (2021) e certamente preciso ver mais coisas dele. TEKOHA (2022) está mais próximo de O QUE HÁ EM TI, no sentido de que é uma obra mais política, dessa vez destacando uma ação violenta ocorrida numa aldeia indígena na Reserva de Dourados, no Mato Grosso do Sul. A partir de um plano de dois minutos e 52 segundos filmado pelo Povo Guarani Kaiowá, Adriano atordoa e faz refletir.

SOCORRO

Outro filme que traz um grito de socorro para mais uma minoria tão massacrada nesse nosso Brasil, SOCORRO (2022), de Susanna Lira, nos apresenta à personagem-título, uma mulher quilombola que busca justiça ao ver sua família ser envenenada por resíduos tóxicos. O filme provoca muita indignação e tem uma força visual impressionante. Da diretora, eu havia visto três belos documentários em longa-metragem, TORRE DAS DONZELAS (2018), MUSSUM – UM FILME DO CACILDIS (2019) e PRAZER EM CONHECER (2020). É, definitivamente, uma diretora que merece bem mais atenção.

A ESPERA

Tive o prazer de conhecer a diretora de A ESPERA (2022), Ana Célia Gomes, no coquetel de abertura do festival. Simpática, constante e presente no Fest Aruanda, aqui ela comparece com seu filme-poema, lido com sua voz e cheio de afeto. O filme enternece aos nos colocar na visão de animaizinhos. Gravado em Sumé, há também uma valorização da cidade-natal da poeta e cineasta, com muitas imagens das paisagens locais. O filme necessita de um espírito receptivo para apreensão desse sentimento que ele traz.



ANJOS CINGIDOS

Animação tradicional e muito bonita que conta a história de uma família do sertão nordestino que tem dificuldade em manter vivas suas crianças, lembrando o tempo em que a mortalidade infantil no sertão era altíssima. ANJOS CINGIDOS (2022, foto), de Laércio Filho e Maria Tereza, também destaca a tradição nordestina de ver as crianças que morrem muito cedo e os natimortos como "anjinhos", além de cutucar a igreja com a questão da criança “pagã” (não batizada).

DÉJÀ VU

Um filme de ficção que apresenta duas situações: a de dois produtores de audiovisual que moram juntos e têm uma relação íntima entre si e de um garotinho que tem simpatia por eles, mas que é proibido pelos pais de ter contato com eles por causa, certamente, da orientação sexual dos rapazes. O momento mais interessante e também mais desconfortável de DÉJÀ VU (2022), de Carlos Mosca, se dá quando o menino se sente incomodado com o som da intimidade dos pais e houve o momento de carinho dos vizinhos.

DESEJO E NECESSIDADE

Um filme que faz um elogio à dança como expressão política. DESEJO E NECESSIDADE (2021), de Milso Roberto, nos apresenta à feira central de Campina Grande e a uma performance de integrantes do balé da cidade, com trilha sonora do Quinteto da Paraíba. Confesso que demorei um pouco a “entrar” no filme e a compreender sua proposta. Acredito que numa revisão gostarei mais.

SANGUE POR SANGUE

Um filme que se passa em apenas uma locação e com apenas três atores. Um deles é o ótimo Tavinho Teixeira, presente em alguns filmes do festival, inclusive em PROPRIEDADE, de Daniel Bandeira. Em SANGUE POR SANGUE (2021), de Ian Abé e Rodolpho de Barros, três homens se encontram em situação de tomada de decisão. Um deles está muito ferido, o outro não quer deixá-lo pelo caminho para morrer e o outro prefere seguir caminho. Uma obra que valoriza tanto a noite quanto esse sentimento contraditório de apego e desapego à vida.

NÃO EXISTE PÔR DO SOL

Olha o Tavinho Teixeira mais uma vez. Em NÃO EXISTE PÔR DO SOL (2022), de Janaína Lacerda, ele é um negacionista que, durante a pandemia, faz confusão num restaurante que só deixa entrar pessoas usando máscaras e faz vídeos sobre a “verdade” sobre a terra plana. O filme tem um senso de humor bem divertido e também nos permite lamentar a situação absurda a que chegamos, como humanidade.

ERA UMA NOITE DE SÃO JOÃO

Outro filme egresso da pandemia, ERA UMA NOITE DE SÃO JOÃO (2022), de Bruna Velden, foi o grande vencedor da mostra de curtas paraibanos. Trata-se de uma animação que apresenta a tristeza que foi o sentimento de se estar em isolamento social em 2020/2021 e que arranja uma linda solução ao trazer a música como elemento de alegria para a sociedade. Além do mais, é uma obra que homenageia de maneira muito bonita os grandes nomes da cultura paraibana.

FILME DE QUARTO

Este é um filme um pouco mais difícil de compreender, mas talvez justamente por isso eu tenha o achado tão envolvente e intrigante. Em FILME DE QUARTO (2021), de Raffaela Rosset, Denise Fraga é uma mulher que está sozinha em seu apartamento assistindo a um vídeo utilizando um projetor. Mais à frente, teremos acesso à essa imagem que ela está vendo e o filme faz um jogo entre as duas imagens: a imagem da própria personagem projetada e a filmada por Rosset. A fotografia adota um estilo de cores de baixa saturação que combina com o sentimento de difícil compreensão que o filme traz. Outro curta que necessita de uma revisão mais atenta, seguida de uma boa reflexão (ou um bom debate).

QUARENTENA

Muito bem cuidado filme de terror que utiliza de maneira exemplar alguns clichês de certos filmes do gênero produzidos nos Estados Unidos e na Europa. QUARENTENA (2021, foto), de Adriel Nizer e Nando Sturmer, já traz em sua primeira imagem uma sensação de horror, já capta um sentimento forte, ao mostrar apenas uma fotografia na parede. A trama se passa durante a quarentena do COVID-19 e mãe e filho descobrem que não estão sozinhos na casa.

RENDEIROS

Um documentário que poderia muito bem ser bastante banal, tematicamente falando, se o sertão nordestino não fosse um local tradicionalmente famoso por seu machismo. Assim, RENDEIROS (2021), de Romero Sousa, deixa perceber o quanto os entrevistados se sentem constrangidos ao falar da profissão de rendeiros, geralmente feita por mulheres. O filme apresenta três gerações que cuidam da chamada renda renascença.

ARATU

Curta curtinho (7 minutos de duração) que mais uma vez nos lembra que nosso rico folclore pode servir de inspiração para a criação de filmes de gênero bem interessantes. Na trama de ARATU (2022), de Firmino de Almeida, uma mãe solteira luta contra uma empreiteira que consegue na justiça expulsá-la de sua casa. Ao mesmo tempo, uma figura do folclore entra em cena. Com uma produção maior e mais dinheiro, seria um filme e tanto.

A PRAÇA DO JOÁS

Eis um curta que certamente será melhor compreendido por quem mora em João Pessoa-PB, já que trata de uma praça popular da cidade. A PRAÇA DE JOÁS (2021), de Gutenberg Pequeno, procura contar, com a ajuda de pessoas que conheceram o amigo e líder comunitário que deu nome à praça, sua história e sua importância. Trata-se de um documentário bem tradicional, mas que tem sua relevância como objeto de resistência.

ELES NÃO VÊM EM PAZ

O menor curta-metragem do festival, ELES NÃO VÊM EM PAZ (2021), de Pedro Oranges e Victor Silva, tem apenas quatro minutinhos. E passa tão rápido que até me confundi com o começo do filme seguinte, achando que se tratava de uma continuação. Confusão de quem já estava um pouco cansado. Aqui, dois irmãos conversam sobre uma matéria a respeito de seres extraterrestres e o mais velho dos dois faz uma analogia sobre seu mundo ser invadido, sobre a própria questão do abuso sofrido pela população negra brasileira frente a certas autoridades.

MERGULHO

Um garoto passa dez anos afastado da família e reaparece na casa, despertando sentimentos conflitantes. MERGULHO (2022), de Marton Olympio e Anderson Jesus, é desses curtas que possuem blocos de cenas muito bem construídos, mas que parecem sofrer com aparentes lacunas temporais ou algum tipo de problema de coesão. Ou seja, eu adoraria ver o mesmo filme transformado em longa, com os mesmos personagens e tendo sua trama melhor desenvolvida e com todas as cenas mostradas presentes, inclusive a última, que no curta me pareceu deslocada.



sábado, dezembro 24, 2022

O AMOR DÁ VOLTAS



É interessante como a magia das cartas ainda segue inspirando filmes, mesmo aqueles que se passam num momento como o nosso, em que as respostas para nossas perguntas podem aparecer instantaneamente com mensagens por celular. 

O AMOR DÁ VOLTAS (2019) é, segundo o IMDB, o quinto filme na direção de Marcos Bernstein, um profissional do cinema que tem um longo currículo como roteirista e cujo filme mais famoso nessa função, CENTRAL DO BRASIL (1998), de Walter Salles, é justamente um filme sobre uma mulher que escreve cartas para outras pessoas. No caso de O AMOR DÁ VOLTAS, as cartas são o motivo de uma confusão que poderia muito bem estar em uma comédia americana dos anos 1930, mas que Bernstein procura encontrar desculpas, justificativas para que tenha acontecido no mundo digital.

Na trama, André (Igor Angelkorte) é um jovem médico que passou uma temporada na África e fez o que ele chamou de detox digital. Ou seja, todas as comunicações que fez para a namorada Beta (Juliana Didone) foram através de cartas. Acontece que quem estava respondendo as cartas, sem ele saber, era a irmã de Beta, Dani (Cleo). Assim, quando ele chega ao Brasil e vê que sua namorada já estava casada e com um filho pequeno, fica totalmente desnorteado. Não demora muito para ele saber toda a verdade, até porque Dani está sempre por perto, visitando-o em seu apartamento, convidando-o para festas etc.

Assim, é fácil encontrar aos poucos em Dani o verdadeiro amor, a pessoa que de fato escreveu as melhores e mais belas cartas para ele. Foi ela que manteve acesa a chama da paixão, embora ele demore a perceber que ela de fato está apaixonada por ele. De certa maneira o filme me fez lembrar uma comédia romântica oitentista muito legal chamada ADMIRADORA SECRETA, estrelada pela lindíssima Kelly Preston. A situação era semelhante, assim como é semelhante o fato de as duas moças serem uma loira e uma morena, sendo que a morena é quem de fato se correspondia com o protagonista masculino em ambos os filmes.

O que Bernstein faz para diferenciar seu filme dessa e de outras tantas comédias românticas mais tradicionais do cinema americano é antecipar algumas situações, de modo que o filme quebre as expectativas e assuma novos rumos, como quando, no segundo ato, se transforma num road movie. A desculpa: André não quer novamente entrar num avião e ele e Dani fazem uma longa viagem de carro para contar toda a verdade para Beta. E é nessa viagem juntos que, como é esperado, André passa a se apaixonar por Dani, a vê-la de forma diferente. Nesse sentido, Cleo (antes Cleo Pires) tem um carisma admirável – como a atriz e cantora fez poucos filmes realmente bons, a melhor lembrança que eu tinha dela era de BENJAMIN, de Monique Gardenberg, filme de quase vinte anos atrás. Então, acredito que o mérito é de Cleo, mas também de Bernstein ao vê-la como uma atriz que se sairia bem no papel. Há, inclusive, um momento muito bonito em que ela canta para o amado, numa churrascaria cafona, um trechinho do clássico sertanejo “Pensa em mim”, de Leandro & Leonardo.

No terceiro ato, gosto de como o diretor procura meios para fugir de uma direção televisiva, e até parece beber do cinema europeu, apresentando imagens que enfatizam a situação de gravidade dos três, sem, no entanto, deixar de lado o humor, como quando traz um personagem extra para alívio cômico.

No mais, fiquei impressionado com o fato de O AMOR DÁ VOLTAS ter tido sua primeira exibição pública em 2019, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ou seja, ele deve ter sido finalizado em 2018. E só agora estreia nos cinemas. Tanto é que basta vermos entrevistas com o elenco sobre o filme para promover o lançamento, que percebemos as mudanças físicas por que já passaram o trio de atores. Bom, pelo menos o filme estreou. Acredito que há muitos por aí ainda represados. Ah, e quanto ao título, acho muito apropriado para os novos ventos.

+ DOIS FILMES

PRONTO, FALEI

Uma bela surpresa esta comédia que tem ares até que bem sombrios em seu desenvolvimento. Na trama, um rapaz que trabalha em um jornal tem dificuldade em expressar as verdades para os amigos e até para a namorada. Assim, ele vive uma vida de engolir sapos e fazer o que não gosta com medo de desagradar aos outros. Sua válvula de escape é um caderninho onde ele compõe cartas que viram e-mails para diversas pessoas que ele conhece. Nesses textos, ele pode falar coisas de que não tem coragem de falar. O problema é que ele não envia os e-mails, que ficam guardados na pasta de rascunhos. Até que um dia todos eles são enviados, por algum motivo. O que importa é o quanto isso passa a ameaçar sua rotina de vida, e o quanto passa a revelar a figura de um vilão na trama. Interessante como o filme parece uma espécie de conto de natal (embora não tenha nada que remeta ao natal na trama), por causa da natureza moral de sua história. PRONTO, FALEI (2022), de Michel Tikhomiroff, é um filme que poderia muito bem ter um desfecho pessimista e talvez até fosse mais corajoso nesse sentido, mas que poderia parecer cínico se assim o fosse. Felizmente o diretor prefere optar por um caminho convencional mas feliz, no sentido amplo do termo.

NA RÉDEA CURTA

É um bocado decepcionante ver esta comédia dirigida por uma dupla de diretores que vinha seguindo uma carreira com 100% de aproveitamento. Mas não dá para dizer que eles não se arriscaram, pois cada filme deles é diferente. Ary Rosa e Glenda Nicácio podiam repetir o que fizeram com CAFÉ COM CANELA (2017) e não fizeram isso. Neste quinto trabalho para o cinema, eles aproveitam os personagens de uma websérie e montam uma comédia possivelmente inspirada em MINHA MÃE É UMA PEÇA (há até uma citação a Paulo Gustavo no final). Na trama, o jovem Júnior (Thiago Almasy) se vê preocupado quando sua namorada diz estar grávida. Mesmo sabendo que sua mãe (Sulivã Bispo) não ia gostar nada da notícia, ele conta tudo a ela, e também decide conhecer seu pai biológico. NA RÉDEA CURTA (2022) traz um fiapo de história, e história nem é o que mais importa aqui. Para mim, se as gags funcionassem eu ficaria feliz. Mas sei o quanto fazer comédia é difícil. Ainda mais comédia popular. Salvam-se alguns bons momentos, mas há também o incômodo de uma duração mais longa do que a necessária.

quinta-feira, dezembro 22, 2022

SÍNDROME DE CAIM (Raising Cain)



“I was having an affair with a married woman. She used to come over to my house before she went home, and we would make love. Then one time she fell asleep, and I thought, ‘What would happen if I didn’t wake her up and she slept through the night?’”
(Brian De Palma)


Na época da roteirização e das filmagens de SÍNDROME DE CAIM (1992), Brian De Palma estava passando pela experiência de ser pai. E ele tinha a intenção de ser um pai muito presente, ao contrário de seu próprio pai, de quem guardava rancor e deixou isso bastante explícito em vários de seus filmes. Levando em consideração que a visão do cineasta pelo tema já é bastante sombria, é até natural que este filme sobre a paternidade tenha nascido sob uma ótica bem distorcida. E é justamente isso que torna essa obra tão interessante.

Para muitos, SÍNDROME DE CAIM é um dos piores filmes dirigidos por De Palma. E é até fácil compreender, pois é estranhíssimo. Lembra alguns gialli e alguns filmes de horror italianos pela composição plástica, inclusive. Lembrei-me, por exemplo, de SCHOCK, de Mario e Lamberto Bava, por algum motivo. Percebe-se de cara a diferença nas atuações, na montagem, na mise-en-scène e na própria trama, tudo vários tons acima, como numa atmosfera de pesadelo e chamando quase sempre à incredulidade por parte do espectador, já que em muitos momentos não sabemos o que é realidade e o que é delírio ou sonho.

Não apenas um dos mais bizarros, eu diria que este é o filme mais assustador do diretor, com uma trilha de Pino Donaggio que ajuda e muito a trazer medo em certas cenas, por mais que muitas vezes pareça uma paródia (de novo) de PSICOSE. Aliás, vendo este e outros tantos filmes recentes de vários realizadores, é impressionante a influência do clássico de Hitchcock para o cinema de horror e suspense moderno.

Sabendo um pouco da história traumática do cineasta quando criança e adolescente e sua relação com os pais (o pai ausente e infiel; a mãe de saúde frágil; os irmãos concorrentes entre si), é muito possível ver SÍNDROME DE CAIM como mais uma prestação de contas do diretor a esse passado. Não sei se De Palma fazia terapia, mas acredito que não, pois ele passou décadas alimentando esses problemas e utilizando-os como combustível para seus filmes. E claro que isso foi muito bom para nós, apreciadores de seu cinema. Lynch, por exemplo, é um diretor que rejeitou a terapia para evitar que isso trouxesse danos a seu processo criativo.

John Lithgow, presença marcante em dois títulos importantíssimos do realizador, TRÁGICA OBSESSÃO (1976) e UM TIRO NA NOITE (1981), aqui assume a posição de protagonista. E ele está ótimo como um sujeito de múltiplas identidades que tem o seu lado sombrio ativado ao ver sua esposa (Lolita Davidovich) o traindo com o ex (Steven Bauer) em pleno parque. As cenas de adultério, inclusive, lembram bastante as de VESTIDA PARA MATAR (1980), inclusive no modo como a culpa da personagem feminina acaba se materializando em uma punição extremamente violenta. Principalmente depois que ela acorda assustada, de manhã, depois de passar a noite fazendo sexo com o amante e ficar sabendo que o marido esteve à procura dela como um louco.

A exemplo do que De Palma apresentara em IRMÃS DIABÓLICAS (1972), aqui também temos duas faces da mesma pessoa. Uma face sombria, aquela que é capaz de matar, e aquela que tem uma passividade quase impotente, do ponto de vista da masculinidade. Diferente do que as amigas acham, o personagem de Lithgow não é esse marido ideal, já que ele interrompe uma transa intensa com a esposa para atender imediatamente a bebê que chora no quarto ao lado, bizarramente monitorada por uma televisão, e não apenas por um rádio ou algo do tipo. Essa televisão, inclusive, será de suma importância para uma das cenas mais arrepiantes do filme em sua terça parte. A diferença maior entre IRMÃS DIABÓLICAS e SÍNDROME DE CAIM é que não são apenas duas personas, mas várias no novo filme, antecipando o que veríamos anos depois em FRAGMENTADO, de M. Night Shyamalan.

Na trama, Lithgow é Carter, um psicólogo infantil que está dando um tempo na prática para cuidar melhor de sua filha pequena, Amy, para ser aquele pai presente e carinhoso, como uma espécie de personificação do De Palma naquele momento. A rotina do casal é mudada quando a esposa Jenny (Davidovich) reencontra sua antiga paixão (Bauer) numa loja de relógios. Como o sujeito esquece (?) as chaves e diz o nome do apartamento e do hotel onde está instalado, uma transa entre os dois parece inevitável. Tanto que eles começam a fazer sexo num parque, um ambiente aberto, e a tal cena do parque é bem estranha, com uma montagem picotada que deixa dúvidas no ar. E algumas dessas dúvidas serão mostradas, quando passarmos a conhecer a persona maligna de Carter, Caim, e o pai dos dois, Dr. Nix, também interpretado por Lithgow.

Dr. Nix, aliás, segue uma tradição do realizador de apresentar médicos maníacos e loucos, inspirado no pai, um ortopedista renomado, que lhe traumatizou quando criança ao trazer-lhe para uma operação de amputação da perna de um homem, dando a ele o membro amputado. Essa figura do médico louco já havia sido mostrada em IRMÃS DIABÓLICAS, TERAPIA DE DOIDOS (1979) e VESTIDA PARA MATAR. E Dr. Nix é um médico psiquiatra que traumatizou o próprio filho para observar ao longo dos anos os efeitos do trauma. Ou seja, embora houvesse uma intenção “nobre” do ponto de vista da ciência, era um ato extremamente perverso e desumano. Esse aspecto da trama relativa ao pai é um tanto confuso no filme, mas faz parte de seu charme, e de seu aspecto quase monstruoso de construção.

Como vários outros filmes de Brian De Palma, SÍNDROME DE CAIM se beneficia das revisões e de uma percepção da obra à luz da poética e das obsessões do cineasta. Além do mais, há simbolismos que são enfatizados e repetidos, como o carrinho de bebê, que remete a OS INTOCÁVEIS (1987), e a figura do homem travestido, como em VESTIDA PARA MATAR. Aqui esse homem travestido é uma das personalidades múltiplas de Carter/Caim e talvez uma das mais complexas e interessantes, já que representa a maternidade, e, portanto, proteção e cuidado. O que não deixa de ser perturbador, levando em consideração o modo como ela é mostrada.

+ DOIS FILMES

LÁGRIMAS TARDIAS (Too Late for Tears)

Um filme noir B com cara de filme B (dá pra notar pelas locações) que empolga bastante desde o começo. Logo no início, a personagem de Lizabeth Scott e seu marido recebem uma maleta contendo 60.000 dólares em dinheiro. Algumas pessoas jogam o dinheiro no carro deles no meio da estrada. Ela põe os olhos no dinheiro e não vai querer se desfazer dele de forma alguma. Scott interpreta uma das mais brilhantes femmes fatales do cinema americano num filme cheio de aspereza, com direito a uma brilhante atuação de Dan Durya fazendo o típico cara malvadão ou mau caráter, como havia feito em outros títulos, como dois brilhantes trabalhos de Fritz Lang da mesma década, UM RETRATO DE MULHER e ALMAS PERVERSAS. LÁGRIMAS TARDIAS (1949), de Byron Haskin (mais lembrado hoje por A GUERRA DOS MUNDOS, 1953), bem que podia ser mais lembrado dentre os clássicos da era noir. No mais, fiquei bem interessado em ver outros filmes estrelados por Lizabeth Scott, com seu estilo muito particular de atuação. Visto no box Filme Noir Vol. 6.

COM AMOR E FÚRIA (Avec Amour et Acharnement)

Uma das dificuldades de se gostar plenamente de COM AMOR E FÚRIA (2022) está na quase impossibilidade de se afeiçoar aos personagens. Nem o homem de ego ferido de Vicent Lindon, nem a mulher dividida de Juliette Binoche, muito menos o pivô do triângulo amoroso, o personagem de Grégoire Colin, o cara por quem ela era apaixonada, o cara que a deixou para trás e agora ressurge em sua vida. Porém, gosto do uso da câmera na mão para acentuar o ambiente de perturbação no matrimônio, até lembrando um pouco o que Woody Allen fez em MARIDOS E ESPOSAS, embora passe longe do mesmo brilhantismo. O filme de Claire Denis não chega a julgar a personagem de Binoche, mas às vezes passa a impressão de que quer fornecer munição para que o espectador o faça. A realizadora parece tentar compreender os dois lados, o da mulher se sentindo tentada e o do homem cheio de insegurança com a situação. Nem sempre funciona, mas eu diria que é um filme que merece nossa atenção, sim.

domingo, dezembro 18, 2022

AVATAR – O CAMINHO DA ÁGUA (Avatar – The Way of Water)



Acho que se eu disser que estava com dor nas costas enquanto via AVATAR – O CAMINHO DA ÁGUA (2022) vão dizer que esse foi o motivo de eu estar tão mal humorado em relação a este novo projeto megalomaníaco de James Cameron. Mas o fato é que, dois dias atrás, eu também estava com dores e um filme mediano como O MENU conseguiu fazer eu me esquecer das dores e me concentrar no que via na tela, com interesse. Eu sei que tenho um histórico de cisma com James Cameron desde o primeiro AVATAR (2009) – que até gostei mais na revisão deste ano –, mas o trailer veiculado mostrando os efeitos inovadores 3D com imagens deslumbrantes me deixou esperançoso com o novo filme. Mas é a tal coisa: três minutos não são três horas e chega um momento que você não está nada encantado com as imagens.

Ao contrário, a personagem da menina, a filha adotiva de Jake Sully (Sam Worthington) e Neytiri (Zoe Saldaña), representaria esse espectador em estado de graça ao ver a fauna marítima e a paisagem natural. Para muitos espectadores isso funciona que é uma beleza, mas pra mim isso mais parece coisa de parque de diversão. Sem falar que Cameron e a Disney, que comprou a Fox, claramente têm interesse em explorar esse universo em seus parques temáticos nos Estados Unidos (como já vem explorando, na verdade). Aliás, a própria questão do 3D parece mais coisa de parque de diversão do que de cinema. 

O fato é que bastaram vinte minutos de AVATAR – O CAMINHO DA ÁGUA para eu prever que seria um suplício passar pelas mais de três horas de duração dessa sequência. Como não me encantei com as imagens, poderia ter me importado com os personagens (e isso não aconteceu e confesso que até torci pela morte de alguns deles); também não curti a cafonice – e em geral curto coisas cafonas, mas acho que Cameron não tem a mão boa para coisas do coração, já que está muito mais preocupado com questões técnicas. Na época de TITANIC (1997) a coisa funcionou um pouco mais porque havia uma ênfase na história de amor e na tragédia. Sem falar que estávamos vendo pessoas “de verdade” e não algo que não querem vender como animação, mas que, para mim, não deixa de ser. Deixando claro: não se trata aqui de não abraçar a animação de última geração, que já foi tão explorada no início do novo milênio, antes de surgir AVATAR, por Robert Zemeckis, principalmente.

Além do mais, me incomodou a simplicidade, para não dizer a pobreza, dos diálogos. É como se Cameron tivesse feito uma aposta com alguém que conseguiria fazer um filme com uma quantidade muito pequena de vocabulário. E por mais que Cameron esteja interessado na ecologia e em mensagens bonitas, ele não deixa de lado seu tesão por máquinas e armas gigantes, herdeiras de ALIENS – O RESGATE (1986), e que seguem aparecendo como elemento usado principalmente pelos vilões da trama, as "pessoas do céu", como os nativos de Pandora os denominam. Ou seja, em vários momentos Cameron mais parece um menino com seus brinquedos caros e com carta branca dos pais para gastar com o que quer que seja.

O prólogo já me deixou muito incomodado, como se fosse algo feito às pressas: parece confuso e mal editado. Depois disso, vemos a luta dos povos da floresta com o “pessoal do céu” e isso me fez querer ver um western de verdade, com índios derrubando trens de homens brancos e coisas do tipo. Fiquei pensando: puxa, como seria legal se ele tivesse feito um faroeste, sem essa limpeza toda nas imagens, com todo esse dinheiro na produção, mas sem abrir mão da poeira e da sujeira. Mas depois o filme parte para um novo e aparentemente definitivo momento, que é o espaço da água, habitado por um povo meio anfíbio de cor esverdeada que acolhe a família de Sully e Neytiri, antes de hesitar um pouco. Afinal, a presença daquela família ali poderia chamar a atenção de seus perseguidores. O grande vilão do filme é o militar vivido por Stephen Lang, morto no filme anterior, mas trazido de volta, agora na pele de um na’vi.

A artificialidade das imagens faz com que cenas de suspense que seriam envolventes acabem sendo pouco eficientes, como é o caso do momento em que o filho mais novo de Sully, Lo’ak (Britain Dalton, talvez o mais próximo de um protagonista do filme), é ameaçado e perseguido por um bicho parecido com um tubarão. A cena é boa, mas já vimos tantos filmes de tubarão mais eficientes e mais baratos que não vou comprar essas imagens como algo excelente, não. Mas a coisa piora, quando Lo’ak, depois de ser salvo por um bicho gigante parecido com uma baleia, começa a puxar assunto com ela e fazer amizade. É possível que Cameron tenha pensado no público infantil nessas cenas, já que elas são as mais constrangedoras em se tratando de diálogos.

E o último ato, dedicado à ação, é quase interminável. Ainda assim, acho que prefiro esse ato (até por estar mais próximo de o filme acabar), do que toda aquela tentativa de mostrar a fauna inventada dos mares como a oitava maravilha do mundo, quando um documentário do Discovery Channel pode ser mais eficiente nesse sentido. Então, as cenas de ação me pareceram um pouco mais ousadas, inclusive no quesito violência gráfica (um pouquinho, na verdade) na  possibilidade maior de haver baixas dos heróis. Além do mais, há cenas que remetem diretamente a TITANIC, como uma espécie de autorreferência do diretor.

Enfim, vou pensar duas vezes quando estrear o terceiro filme. Olhando para o lado positivo, AVATAR 2 me ajudou a valorizar ainda mais os filmes mais baratos e imperfeitos. E sobretudo, os filmes mais humanos. Sem falar nas verdadeiras obras-primas. São tantas esperando para ser vistas pela primeira vez por este cinéfilo um tanto negligente.

+ DOIS FILMES

O MENU (The Menu)

Um dos grandes méritos deste O MENU (2022) é nos deixar interessados na trama do início ao fim. Não chega a ser um grande filme de suspense e até mesmo as cenas supostamente chocantes não são tão chocantes assim, mas o senso de humor me ganhou. Sem falar que o embate entre Ralph Fiennes e Anya Taylor-Joy ajuda bastante a enriquecer a experiência, assim como o elenco de apoio e o papel de cada um deles no jogo apresentado pelo chef (Fiennes). O diretor Mark Mylod é pouco conhecido no cinema (dirigiu vários episódios da querida e saudosa série ENTOURAGE) e parece ser amigo de Will Ferrell e Adam McKay, que aparecem como produtores nos créditos. Como eles dois são pessoas bastante associadas à comédia, é fácil compreender a aproximação. Na trama, Taylor-Joy entra como convidada pelo aficionado por culinária vivido por Nicholas Hoult. Confesso que esperava algo mais sangrento, mas gostei bastante, no fim das contas.

A INICIAÇÃO (The Initiation)

Eis um filme curioso este dirigido por Larry Stewart, já que parece uma colcha de retalhos, como se o roteiro tivesse passado por várias pessoas que não sabiam direito o que fazer. A princípio, temos uma cena confusa da infância da protagonista vivida por Daphne Zuniga. A confusão da cena é proposital, como podemos ver na surpresa deixada para o final. Engraçado que o que eu achei mais interessante foi mesmo a possibilidade de trabalhar com um trauma de infância e o filme fazer um link ainda maior com PSICOSE (além da participação de Vera Miles no elenco, em papel pequeno, mas sendo a primeira dos créditos). No mais, as cenas de morte de A INICIAÇÃO (1984) são pouco inspiradas e o que conta mesmo é tentar adivinhar quem é o assassino, quais suas motivações etc. Um slasher que até pode se beneficiar do rótulo de trash para ganhar a simpatia da audiência. Visto no box Slashers IV.  

quinta-feira, dezembro 15, 2022

FAUSTO FAWCETT NA CABEÇA



Dezembro de 2022 começou como um mês especial para mim, com essa possibilidade incrível que foi o Fest Aruanda, e que ainda deve render pelo menos mais uma ou duas postagens por aqui. O problema foi que, ao chegar de volta ao lar, estava tão cheio de pendências na escola, que nesses dias até suspeitei de pressão alta. Nem sei se é, mas talvez seja o caso de dar uma passada num especialista em breve. Enquanto isso, vou aproveitando esta brecha para falar de um dos melhores filmes exibidos no Fest Aruanda, FAUSTO FAWCETT NA CABEÇA (2022), de Victor Lopes, que teve sua première brasileira no Festival do Rio e agora tem passado por alguns outros festivais ou mostras.

A obra máxima, ou pelo menos o clássico maior do cantor, compositor, romancista e pensador Fausto Fawcett, talvez ainda seja “Kátia Flávia, Godiva do Irajá”, lançada em 1987 e que fez um sucesso tremendo nas rádios. O som do baixo é contagiante, assim como é fascinante o estilo falado (rap) de Fausto, ao contar a história dessa ex-Miss Febem casada com um figurão da contravenção e que ficou famosa por andar toda nua num cavalo branco pelas noites do Rio de Janeiro. A letra parece delirante no modo como une as informações para construir uma espécie de mito de uma mulher provocante e misteriosa. E loira, talvez a primeira de outras loiras fatais de canções de Fawcett. 

Vendo o filme de Lopes somos apresentados ao incrível processo de trabalho de Fausto, que, para minha surpresa, roubou o sobrenome artístico da atriz americana Farrah Fawcett. Para mim foi uma surpresa, e uma prova de que eu tenho muito a aprender sobre o artista. Não só eu, aliás. O filme está aí para tornar o artista, hoje injustamente pouco lembrado, como um dos mais inventivos e originais dos anos 1980/90. Ou melhor, da contemporaneidade, pois Fausto segue escrevendo romances e fazendo suas performances. 

Um dos aspectos mais brilhantes de FAUSTO FAWCETT NA CABEÇA é o modo como Victor Lopes incorpora a estética do artista biografado e foge com frequência de uma cinebiografia tradicional. Há o fato de o biografado estar vivo e ajudar a compor com o cineasta a obra, a partir de novas performances e de reencontros com colegas para criar no calor do momento novas composições. Como não sorrir na hora que Fausto e Carlos Laufer compõem uma canção de improviso com base numa espécie de visão de Fausto sobre uma fotografia recente de Brooke Shields? Destaque também para o modo como o cineasta capta esse momento, com uma distorção da imagem dos artistas, com recursos visuais muito interessantes. Aliás, as intervenções visuais de Lopes no filme são de encher os olhos, chegando até mesmo a mudar a paisagem de Copacabana.

Outro ápice visual do filme é o momento em que a câmera se aproxima para captar a imagem de Fausto no que parece ser um terraço (o edifício do MIS) e está chovendo na cidade. O tom de melancolia que de vez em quando invade o filme, até por ter sido gravado durante a pandemia de COVID-19, parece encontrar um momento muito feliz (no sentido “artístico” do termo) nessa imagem. Mas encontramos também a melancolia quando o filme abre espaço para que conheçamos um pouco de Fausto Borel Cardoso, o homem, e um pouco menos o artista, o verdadeiro foco. Há algumas frases de Fausto que ajudam a enfatizar essa melancolia e essa solidão, como “O amor é predador” ou “Confesso que não sou muito bom com sentimento, não.” Não podemos deixar de mencionar a própria residência de Fausto, um apartamento bem pequeno (a “cela 1107”, como ele a apresenta) em Copacabana, que fica mais pequeno ainda na maravilhosa cena final, com uma fala tão brilhante que me fez lembrar o prólogo de EROS – O DEUS DO AMOR, de Walter Hugo Khouri. A diferença é que saímos de São Paulo e entramos no Rio; trocamos Marcelo por Fausto, por acaso (ou não?) duas personas essencialmente masculinas com ares mitológicos.

O documentário é um reflexo do próprio espírito singular do artista. Fausto, ao mostrar um de seus métodos de composição, fazendo associações com imagens na parede, como um mural, imagens que aparentemente não têm muita ligação uma com a outra, nos deixa ainda mais impressionados com seu trabalho. O cantor e compositor de “Kátia Flávia...”, “Rio 40 Graus” (gravada por Fernanda Abreu) e “Básico Instinto”, entre outras, foi o primeiro artista a colocar um rap nas rádios e que trouxe um estilo muito particular e original de composição e de apresentação, usando recursos multimídia, como dançarinas, DJs, vídeos, samplers etc.

Essas várias facetas do artista são vistas no documentário, que se conjuga com a inventividade do artista a partir do uso de imagens, efeitos, colagens, ruídos, tudo isso enquanto somos arremessados ao passado e ao presente de Fausto e a seu local-fetiche, o bairro de Copacabana. Ou seja, não se trata apenas de um documentário que mexe com nossa nostalgia e traz novas informações sobre o objeto de estudo, mas também encanta como cinema de experimentação e de invenção.

+ DOIS FILMES

MANGUEBIT

Quem viveu a juventude nos anos 1990 certamente sentiu a alegria de ver e ouvir Chico Science & Nação Zumbi, uma banda tão grande e tão importante que se percebe um esforço por parte do diretor deste filme de dar um espaço em pé de igualdade não apenas a eles e ao mundo livro s/a, mas também a outras bandas e outros artistas pernambucanos surgidos nesse boom ocorrido nessa década tão particular. Há também em MANGUEBIT (2022), de Jura Capela, um espaço para falar um pouco de um filme que surgiu na esteira do sucesso dessas bandas, BAILE PERFUMADO, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Ótimo trabalho de montagem e muito emocionante ver e ouvir tanta música boa. A gente sai da sessão querendo ouvir guitarra e tambores no talo.

LUPICÍNIO RODRIGUES – CONFISSÕES DE UM SOFREDOR

Além de LUPICÍNIO RODRIGUES – CONFISSÕES DE UM SOFREDOR (2022), de Alfredo Manevy, ser um convite a adentrarmos a vida e a obra de Lupicínio Rodrigues, saí da sessão com a certeza de que o Brasil possui uma das melhores músicas do mundo. Isso porque Lupicínio, em determinado momento, comenta sobre as mudanças que ele vê a música brasileira passar, com o advento da bossa nova, do iê-iê-iê e do tropicalismo, enquanto seu estilo vai ficando “ultrapassado” pelas novas gerações. E além de aprendermos, inclusive com áudio do próprio cantor e compositor, de sua história, ainda percebemos o quanto sua música segue viva, tendo sido gravada por vários artistas contemporâneos. Aquela versão de Gal Costa de “Volta” é de fazer chorar.

domingo, dezembro 11, 2022

PROPRIEDADE



Há filmes que logo percebemos seu potencial de impacto para além de um pequeno círculo de cinéfilos. E é uma pena que boa parte desses filmes acabem não conseguindo chegar a uma audiência maior, por mais que mereçam demais. Mas claro que há esperança e PROPRIEDADE (2022), o segundo longa-metragem de Daniel Bandeira, poderá ser um sucesso tão grande quanto foi BACURAU, de Kleber Mendonça Filho. A comparação com os dois filmes tem razão de ser pois ambos os autores embarcam no cinema de gênero para tratar de questões sociais. Eu diria que Daniel Bandeira abraça o gênero de maneira ainda mais intensa. Ao final da sessão, e depois de passar por uma sucessão de emoções, fiquei sonhando com o surgimento de uma onda de produções de terror e suspense brasileiros que chamasse a atenção do grande público e que gerasse, dentro da quantidade, o consequente nascimento de obras-primas do gênero, como aconteceu com o giallo na Itália nos anos 1970, por exemplo.

Falando especificamente de PROPRIEDADE, trata-se de um caso empolgante de obra dirigida com maestria. Na minha cabeça, em vários momentos, passaram imagens de filmes de Brian De Palma, Steven Spielberg e George A. Romero. E até de CUJO, de Lewis Teague, aquele filme do cão raivoso que ataca uma mulher com crianças dentro de um carro. Um filme menor e um pouco esquecido, mas que definitivamente é um caso especial de condução de suspense de fazer o espectador se segurar com força em seu acento. Além do mais, percebemos a influência dos filmes de zumbis criados por George A. Romero a partir de seu A NOITE DOS MORTOS-VIVOS.

A diferença é que Bandeira utiliza esses códigos dentro de uma estrutura mais realista. Em vez de zumbis ou um cão raivoso há uma turba de trabalhadores furiosos, tenham eles razão ou não. O modo como o filme é recebido por parte do espectador pode depender de seu viés político, pois nesse sentido o filme borra as fronteiras entre heróis e vilões. Principalmente pelo fato de que o ponto de vista do filme é de uma mulher burguesa.

Na trama, Malu Galli (PARAÍSO PERDIDO) é Tereza, uma mulher que sofre de um trauma após ter sido refém de um criminoso seguido de um tiro na cabeça do bandido. Após o ocorrido, Tereza fica cada vez mais presa em sua casa, com medo de tudo. O marido (Tavinho Teixeira, de O CLUBE DOS CANIBAIS) procura uma maneira de ela sair de casa e espairecer. Chega com um carro blindado e moderno e a leva para sua fazenda, na zona rural de Pernambuco.

O fato de o filme já começar com o ponto de vista dos personagens burgueses pode interferir na dificuldade de identificação com os personagens que aparecerão a seguir, os trabalhadores da fazenda, que começam a ficar muito preocupados quando passam a saber que aquele espaço será transformado num hotel de luxo e eles perderão seus empregos. O trabalho de montagem da cena que faz intersecção com as duas histórias é brilhante e amplia o suspense logo de cara. E muito suspense ainda viria em doses cavalares ao longo de todo o filme.

A excelência do trabalho dos atores, de todos eles, é outro elemento que deve ser mencionado. Lembrando que eu não me importo muito com filmes de terror ou suspense com atores abaixo da média. Nem acho que isso seja tão importante. Mas ter um filme de gênero com um trabalho de atuação tão boa faz com que o alcemos a um outro patamar, e sem dúvida esse é o caso de PROPRIEDADE.

Uma das questões que o filme tem levantado, especialmente em debates com a crítica, vem do fato de que é mais fácil se solidarizar com a causa da mulher burguesa do que com os trabalhadores assalariados. Isso talvez se dê pela falta de um maior aprofundamento na história daquelas pessoas em particular, embora seja compreensível que o diretor espere dos espectadores uma compreensão histórica das condições de exploração e escravidão de um sistema de casa grande e senzala que teima em se perpetuar, ainda que de maneira menos explícita do que no século XIX.

Nesse sentido, levando em consideração essa compreensão de um Brasil desigual e que parece um barril de pólvora, a cena do carro blindado sendo levado para seu destino final na conclusão do filme é de um poder simbólico absurdo. Além do mais, essa falta de uma delimitação mais clara de bem e mal, acaba tornando PROPRIEDADE uma obra ainda mais provocadora do que o próprio BACURAU, que trazia um tipo de violência mais facilmente aceita, principalmente por parte da esquerda, por trabalhar de maneira mais clara o maniqueísmo. O filme de Bandeira, mesmo que não seja visto de um ponto de vista político, oferece um final tão amargo quanto coerente com certos filmes de terror e suspense.

Quando falei da questão da distribuição e da necessidade de um trabalho de marketing maior para um filme como PROPRIEDADE é porque o meu desejo é que um número cada vez maior de espectadores possa conferir o filme. Espectadores que não têm o hábito de ir ao cinema, inclusive. De modo que isso provoque uma procura maior de produções do gênero, além de uma valorização, uma conscientização e um orgulho maior do que se produz no Brasil.

+ DOIS FILMES

FIM DE SEMANA NO PARAÍSO SELVAGEM

O fato de eu estar com sono enquanto via FIM DE SEMANA NO PARAÍSO SELVAGEM (2022) (o horário pós 18h é cruel pra mim), resultou em sentimentos conflituosos em relação a ele. Mas acho que não tem importância deixar registradas umas impressões quase etílicas, já que o filme de Severino tem um quê de noir delirante, de pesadelo, ao mostrar a investigação da morte de um homem, afogado em circunstâncias misteriosas. Sua irmã claramente desconfia da elite econômica da cidadezinha à beira-mar, em especial da antagonista que parece chefiar a família. A especulação imobiliária e a luta de classes, tema caro ao cinema pernambucano, comparece aqui quase como um personagem. Há questões pouco claras no filme, mas isso, além de contribuir para seu charme, faz parte da tradição do noir, sub-gênero favorito do diretor, segundo ele mesmo disse em coletiva de imprensa.

BIA

Um dos aspectos que mais encanta em BIA (2022), o novo filme de Taciano Valério, é o quanto ele passa uma carga de verdade em sua dramaturgia. E nem me refiro às cenas em que a protagonista entrevista mulheres do MST para seu trabalho de doutorado, mas principalmente das cenas de convivência entre ela e seus pais. Isso se deve muito ao método do diretor de utilizar muita improvisação e optar por se desprender de um roteiro de ferro. Na verdade, não havia exatamente um roteiro para o filme, mas orientações e uma busca para que cada momento se aproximasse mais de uma verdade. E, claro: ajuda muito ter um trio de atores excelentes, como Verônica Cavalcanti (O BARCO), Fernando Teixeira (BAIXIO DAS BESTAS) e Zezita Matos (PACARRETE). Eles são, respectivamente, filha, pai e mãe vivendo em situações delicadas. A filha não dá conta de estudar e cuidar de seus pais idosos, sendo que a mãe tem dificuldade de mobilidade. A personagem Bia foi inspirada numa amiga do diretor Taciano e as cenas de entrevistas adotam naturalmente um tom documental. Ter Verônica Cavalcanti como corroteirista ajuda a trazer mais verdade para a condição da mulher em uma sociedade patriarcal ainda mais forte no espaço do sertão. Por mais que haja um carinho da filha pelo pai, acho muito interessante quando ela se nega a fazer o jantar para ele, já que ele claramente está mal acostumado. Há uma discussão mais explícita sobre a independência da mulher (ou algo próximo a essa conquista) também nas entrevistas. Ao menos há essa compreensão maior do espaço de conquista da mulher. Na coletiva de imprensa, após a exibição do filme no Fest Aruanda, Fernando Teixeira disse que essa foi sua melhor experiência como ator, tendo em vista a liberdade criativa dos diálogos, e houve uma declaração amorosa e emocionante de Zezita Matos, ao dizer que as cenas que fez foi imaginando ser mãe de verdade de Verônica. Certamente, é um filme que merece uma maior visibilidade quando de sua estreia no circuito.