sábado, janeiro 29, 2022
A MORTE HABITA À NOITE
“Eu tenho meio século, porra!”, responde Raul (Roney Villela) à jovem Cássia (Endi Vasconcelos). Confesso que me identifiquei com o personagem neste momento, tanto pela minha idade atual quanto por me lembrar de meu pai, falecido aos 50 anos incompletos e em decadência física e moral. Um pouco como o personagem bukowskiano de A MORTE HABITA À NOITE (2020), brilhante longa-metragem de estreia do pernambucano Eduardo Morotó. Sua visão ao mesmo tempo lírica e dura desses personagens decadentes me deixou muito comovido e também muito encantado.
Logo no início do filme, Raul e sua mulher Lígia (Mariana Nunes) conversam amorosamente, tomando um vinho em seu quarto simples – mais tarde saberemos que eles estão prestes a ser despejados por deverem cinco meses de aluguel. A conversa cheia de chamego e contatos físicos é logo interrompida pela queda de um corpo, que passa rapidamente pela janela e ouvimos seu impacto no chão. Trata-se de mais uma pessoa que tira a própria vida no edifício onde eles moram. As primeiras cenas de um filme funcionam muitas vezes como suas sínteses e esse elemento dessa primeira cena é um indicativo do que ele tratará: morte, decadência, sensualidade e melancolia, não necessariamente nessa ordem, e muitas vezes caminhando juntos.
Antes de prosseguir falando sobre o filme em si, deixem-me fazer um breve desabafo. Acho uma pena que filmes brasileiros como esse sejam relegados a uma plateia tão pequena e que mesmo parte dessa plateia não esteja dando o devido valor à obra. Acredito que seja o caso de fazermos uma celebração pelo nascimento de mais uma produção feita em esquema de guerrilha e resultado em uma obra de qualidades estéticas e resultados emotivos impressionantes. Não falo apenas deste filme em si, mas eu diria que A MORTE HABITA À NOITE, mais um exemplar do excelente cinema produzido em Pernambuco, pode ser um exemplo perfeito dessa invisibilidade que nossos filmes são injustamente relegados. De todo modo, no caso deste trabalho de Eduardo Morotó, essa invisibilidade até que combina com seu espírito marginal.
O filme pode ser dividido em três atos. E esses três atos trazem três mulheres diferentes: Lígia, Cássia e Inês (Rita Carelli). No primeiro ato, Raul, apesar de viver na miséria, sem emprego, e depois arranjando um bico na feira, cortando peixe, ainda sente uma alegria de viver por causa da presença da mulher, que lhe é carinhosa, mas que também se sente muito desconfortável com a falta de dinheiro e de perspectiva do companheiro. E embora haja uma cena que flerte com o humor (a cena dos patos), há também algo de muito triste em ver alguém tendo que desempenhar tal ato para conseguir alguma coisa para jantar.
No segundo ato, que também explora bastante as ruas desertas da região central do Recife, temos a saída de cena de Lígia (que é algo corajoso para um diretor/roteirista fazer: dar adeus a uma ótima personagem) e entrada em cena da jovem garota de programa Cássia/Sandra. Ela representa uma vitalidade juvenil que vem junto com um pacote sombrio, seja da herança de família (ela fala algo trágico sobre a mãe), seja pelas circunstâncias em que vive. O fato de ela chegar na vida de Raul justamente quando ele está muito doente já simboliza um descompasso, embora se estabeleça ali uma relação de amizade que rende alguns momentos de alegria, regados a álcool e festas. Nesse segundo ato, comecei a prestar mais atenção no quanto Eduardo Morotó explora a beleza dos quadros, como na cena em que Cássia sente o sol da manhã em seu rosto na cama de Raul. (O diretor de fotografia, Marcelo Martins Santiago, é o mesmo de outros curtas escritos e/ou dirigidos por Morotó.)
Após um foco maior na tentativa de Raul de seguir em frente, o terceiro ato acontece após uma tragédia e se encaminha para o surgimento no final da última personagem feminina, Inês, cujo nome parece sugerir uma ironia, vindo da famosa frase “Inês é morta”. E há uma beleza transcendental nas cenas de Raul com Inês, nas conversas que surgem nos instantes em que o filme cruza a fronteira da materialidade para a espiritualidade. E isso ocorre quando ficamos sabendo de um lado de Raul até então pouco explorado pelo filme, que é seu lado romancista, sua tentativa de exercer sua arte e não alcançar visibilidade. E aqui chegamos novamente à questão da falta de visibilidade que nosso cinema vem sofrendo. A única alegria no meio de tanta melancolia e desesperança é acreditar que o abraço da morte pode, no final, ser um abraço carinhoso, caloroso. E isso, meus amigos, pode sim ser lindo. Enquanto isso, vivamos.
+ DOIS FILMES
ALELUIA, O CANTO INFINITO DO TINCOÃ
O cinema pode funcionar como viagem para mundos distantes, mas também está aí para nos apresentar a pessoas que fizeram/fazem parte de nossa história artística/musical. Não conhecia Mateus Aleluia, e continuo não conhecendo, é certo, mas fui apresentado a uma parte significativa do cantor e compositor, suas reflexões profundas acerca da arte, sua relação forte com Angola, seu passado junto à banda Os Tincoãs, e a forte influência do candomblé em sua forma de ver o mundo e a vida. A diretora de ALELUIA, O CANTO INFINITO DO TINCOÃ (2020), Tenille Bezerra, faz o possível para evitar uma obra didática. Então há coisas básicas que podem ser encontradas dando um google e o filme não está em busca disso. Em vez disso, há uma intenção de ir mais fundo na filosofia de vida do homem e talvez fundir seu filme a seu objeto de estudo.
VENTO SECO
Interessante estudo sobre o desejo um tanto escondido de um homem. O personagem de Leandro Faria Melo é um sujeito bem fechado que tem encontros às escondidas com seu colega de trabalho e acaba por se apaixonar por outro sujeito. Os três trabalham em uma empresa de fertilizantes em uma região bem seca de Goiás (não sei se todo o estado é seco, na verdade). O diretor Daniel Nolasco exalta e assume o desejo pelos corpos masculinos, enfatizando partes íntimas de seus corpos e trazendo um pouco de fantasias relativas a fetiches, que é o que talvez eu tenha mais gostado no filme, essas cenas dos sonhos do protagonista. VENTO SECO (2020) não é exatamente um filme para convidar toda a família e os membros da igreja para assistir, mas é bom ver que existe um espaço para uma obra como essa no cinema, por mais que seja em sessões muito restritas. No Cinema do Dragão, imagino que tenha sido sessão única.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário