domingo, abril 28, 2024

RIVAIS (Challengers)



Quando saí da sessão de LA CHIMERA, de Alice Rohrwacher, na quinta-feira passada, comentei com meu amigo Walker sobre o fato de não gostar muito de nenhum cineasta italiano surgido neste século. Mas acho que porque havia me esquecido de Luca Guadagnino, talvez por ele ter se tornado um cineasta internacional já faz algum tempo. Se bem que seu primeiro longa, THE PROTAGONISTS, é de 1999, mas acho que só fui saber de sua existência com 100 ESCOVADAS ANTES DE DORMIR (2005), e na época o chamariz estava mais em torno da adaptação do romance picante do que em qualquer outra coisa. De todo modo, podemos considerar Guadagnino como um diretor do século XXI, sim.

Levando em consideração o que eu pude ver até o momento de sua filmografia, vejo o cinema do diretor como de reinvenção – e talvez por isso não seja sempre abraçado com unanimidade. Foi uma reinvenção quando ele tentou fazer um remake de SUSPIRIA, de Dario Argento, em 2018 (SUSPÍRIA – A DANÇA DO MEDO); foi reinvenção quando ele contou uma história de canibais em ATÉ OS OSSOS (2022); foi reinvenção quando ele contou uma história de amor e descoberta juvenil entre dois homens em ME CHAME PELO SEU NOME (2017). Agora ele reinventa o filme de jogadores de tênis. E talvez ele tenha feito o melhor do subgênero desde LAÇOS DE SANGUE, de Ida Lupino, filme do início dos anos 1950. É importante notar que os três filmes de Guadagnino citados acima lidam com o sexo, de uma maneira ou de outra. (Ou seriam sobre sexo?)

RIVAIS mostra um diretor em pleno domínio de seu ofício, contando a história de um triângulo amoroso entre três esportistas do tênis. Ele faz uso de campo e contracampo e de câmeras chicoteando lá e cá nas disputas na quadra de modo a conferir dramaticidade à trama. Uma trama que vamos conhecendo no engenhoso vai-e-vem temporal, nos passeios entre passado e presente. Há também uso de efeitos digitais muito interessantes nas cenas de jogos. 

A primeira viagem ao passado é muito empolgante, quando a dupla de jovens jogadores de tênis vividos por Josh O'Connon (que está em LA CHIMERA também) e Mike Faist se mostram, ambos, muito interessados em Zendaya, uma jovem esportista cheia de autoconfiança e com um futuro brilhante pela frente. Para eles, ela é uma das mulheres mais sensuais que já viram. E por isso o interesse dos dois por ela parece mais do que uma disputa, parece um jogo em que a rivalidade de ambos também se apresenta como uma espécie de jogo erótico sutil. Gosto do jeito mais cafajeste de O’Connor, mas uma de minhas cenas favoritas de intimidade entre o trisal é uma bem melancólica, envolvendo Faist e Zendaya, na véspera do jogo.

A cena dos três juntos no mesmo quarto já ganhou seu lugar entre as mais memoráveis do ano. É dessas cenas de deixar sorrisos em salas inteiras de cinema mundo afora. Adoro as perguntas que a personagem feminina faz a eles, sobre suas intimidades, para logo em seguida dar a entender que o sonho de os dois transarem com ela ao mesmo tempo pode não estar tão distante assim. É bom ver que o cinema contemporâneo ainda tem espaço para cenas quentes e provocantes. Imagino que, para as novas gerações, uma cena como essa até ganhe certo ar de novidade e excitação. E há, claramente, cenas com maior ou menor apelo homoerótico. Inclusive, muito do sucesso de bilheteria do filme está vindo de sua ligação com as plateias LGBTQI. 

Zendaya, como uma das produtoras do filme, sabe muito bem o que está fazendo com sua carreira ao trazer tanto fortaleza quanto sensualidade para seus papéis, saindo, inclusive, do padrão físico então adotado em Hollywood. Além de tudo, a jovem atriz se confirma como uma das mais importantes do momento, ao estrelar justamente dois dos mais interessantes filmes deste início de ano  – o anterior é DUNA – PARTE DOIS, de Dennis Villeneuve. Essa menina vai longe.

Ah, e a trilha é ótima e de autoria da dupla Trent Reznor e Atticus Ross, tradicionais colaboradores dos filmes de David Fincher.

+ DOIS FILMES

GARRA DE FERRO (The Iron Claw)

Certos filmes baseados em histórias reais ganham muito mais quando não sabemos absolutamente nada a respeito. E é o caso de GARRA DE FERRO (2023), de Sean Durkin, que nos leva ao mundo da luta livre no Texas, esporte brega, extravagante e muitas vezes cômico, mas que pode trazer situações dramáticas incríveis no cinema (vide O LUTADOR, de Darren Arronofsky). Aqui temos a história de uma família de lutadores de wrestling, irmãos que são encorajados pelo pai, lendário lutador no seu tempo, a ingressar no meio. Zac Efron está bem diferente como o irmão mais velho que sente a necessidade e a vontade de estar com os mais novos. Trata-se de um personagem que vai crescendo ao longo do filme, à medida que sua posição de protagonista vai se tornando cada vez maior. As surpresas da narrativa, no que se refere à tal maldição da família, ajudam a trazer um tom cada vez mais sombrio a uma história que parece a princípio apenas curiosa. Num filme cheio de testosterona, duas personagens femininas se destacam de diferentes maneiras. A matriarca, vivida por Maura Tierney, é uma espécie de mãe que aceita a filosofia de vida do marido (Holy McCallany), enquanto Lily James é a esposa carinhosa que auxilia na transformação do marido num homem mais confiante. Não à toa, o destino do personagem de Efron é diferente dos demais irmãos. O filme também tem o mérito de nunca subestimar a inteligência da audiência, como na cena da moto, e ainda faz uso do elemento surpresa a ponto de causar espanto e tristeza. Desde já, um dos melhores lançamentos da safra recente.

FERRARI

A última vez que havia visto um Michael Mann no cinema foi com INIMIGOS PÚBLICOS (2009), um belo e subestimado filme de gângster. Depois veio o fracasso de HACKER (2015), que vi na telinha, e acho que nem chegou aos cinemas brasileiros. O retorno com esta biografia de Enzo Ferrari (vivido por Adam Driver), o então dono da fábrica de automóveis luxuosos e principalmente de corrida, foca num momento bastante conturbado de sua vida, com a leve pressão da amante doce (Shailene Woodley), o olhar de insatisfação e ira da esposa em luto (Penélope Cruz), e um fato que iria modificar sua vida, mostrado perto do final da narrativa. Usando tons mais soturnos para contar essa história, o cineasta valoriza os espaços em que os personagens se colocam pela tela, e faz uma obra um tanto fria e prejudicada pelo sotaque italiano. Duvido que se FERRARI (2023) fosse um filme que se passasse na França colocassem o povo falando inglês com sotaque francês; ou se fosse na Alemanha etc. Assim, demorei metade do filme para me acostumar com esse “detalhe”, que já não deu certo com CASA GUCCI, e que poderia muito bem ser completamente limado. Há algo nos rostos de alguns personagens que é curioso: passam como fantasmas ao longo da narrativa, casos de Sarah Gadon e do próprio Gabreil Leone. É como se a câmera quisesse evitá-los. Não sei o quanto isso é proposital (teria associação com a culpa do protagonista?), mas o resultado não deixa de ser curioso e interessante. Na verdade, estava incomodado com a projeção que ficou tremida durante metade do filme, e que foi regularizada (acho que com o desligamento do ar condicionado) na metade seguinte. Curiosamente, foi a mesma sala (Vip) onde vi, com os olhos brilhando de alegria, POBRES CRIATURAS, de Yorgos Lanthimos, em toda sua glória e resplandecência.

sábado, abril 27, 2024

MUSIC (Musik)



Na quarta-feira, consegui uma folguinha do trabalho e aproveitei para ver a última sessão disponível de MUSIC (2023), de Angela Schanelec. Não conhecia o cinema da diretora, mas o comentário que havia ouvido dos amigos é que se tratava de um filme quase incompreensível. Logo, já cheguei no cinema com a disposição de encarar o desafio naquele horário “de herdeiro” (13h40, um horário que fez com que eu tivesse que me organizar em almoçar fora e procurar um bom e caprichado expresso fora do espaço do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura). Além do mais, como ainda sigo com uma crise alérgica e resquícios de uma virose, fui buscando alternativas para estar com a mente e o corpo dispostos o bastante para aquela sessão. Felizmente, deu certo. 

Algo que já chama a atenção em MUSIC (2023), de Angela Schanelec, é o quanto ele instiga em sua narração, que com frequência nos faz indagar o que está acontecendo, por que tal ação foi mostrada depois da anterior, qual o sentido dos pés feridos, entre outras particularidades e preferências formais, que remetem muitas vezes ao cinema de Bresson (as mãos, o extracampo, o estilo de dramaturgia). Para quem teve o início de sua cinefilia nutrida com doses de Lynch e Buñuel e depois se apaixonou por Bresson, esse tipo de sensação de não estar entendo tudo e, mesmo assim, estar curtindo muito, não é exatamente novidade.

Aos poucos, no meio de tantas elipses, uma história principal vai se mostrando um pouco mais clara, principalmente perto da metade do filme, quando uma moça que trabalha num presídio se envolve afetivamente com um jovem presidiário, o jovem que é preso por matar acidentalmente outro, durante férias com um grupo de jovens no que parece ser a Grécia. Sobre os tais pés feridos, é curioso que isso já se mostra presente na primeira vez que somos apresentados a Jon, o protagonista. A primeira coisa que vemos dele são seus pés feridos e sujos, descendo de um carro, aparentemente dos anos 1990. A juventude em flor é apresentada em cenas em que os jovens do grupo tomam banho nus ou seminus num lago. Logo à frente, quando Jon está preso, percebemos que os presos usam tamancos de madeira, tão desconfortáveis a ponto de todos ficarem, consequentemente, com os pés feridos.

A preocupação com o enredo é menor, ainda que ela exista sim (não à toa o filme ganhou o prêmio de melhor roteiro em Berlim-2023). Livremente baseado em Édipo Rei, de Sófocles, o filme deve ganhar bastante com uma revisão, em termos de compreensão da trama, mas, em termos de apreciação das imagens e da ambientação, a primeira vez é o suficiente para nos encantarmos com muito do que Schanelec traz.

Gosto de como a diretora drena a carga dramática dos atores/personagens, mesmo nos momentos mais trágicos, e faz com que essa dramaticidade mais excessiva permita se apresentar de forma mais contundente nas cenas musicais, que são poucas, mas muito expressivas. Aliás, para um filme chamado MUSIC, o que temos bastante é silêncio. Até os diálogos são reduzidos ao máximo, num trabalho de subtração tanto de dramaticidade quanto de enredo. É o tipo de filme em que saímos do cinema sem ter entendido muito, mas muito satisfeitos com a experiência, um filme que nos convida a ler nas entrelinhas, a procurar entendê-lo a partir de imagens que às vezes funcionam como símbolos. É uma obra que funciona como um jogo de compreensão, e que, por isso, é tão desafiadora quanto recompensadora.

+ DOIS FILMES

LA CHIMERA

Tendo visto apenas dois longas e um curta-metragem da carreira já generosa de Alice Rohrwacher, percebo que ainda tenho dificuldade de me aproximar com vontade e carinho de sua poética, por mais que perceba sua assinatura de cara - e vejo isso como um ponto positivo para um autor. A fotografia granulada, vindo de película 16mm e 35mm, chama atenção mais uma vez para as imagens e as cores nesta história estranha sobre um homem que tem o dom de encontrar artefatos enterrados na região onde mora, outrora lar dos etruscos. Em LA CHIMERA (2023), o inglês Josh O'Conner é o protagonista, homem que está de volta a sua terra, depois de um tempo distante. Aos poucos vamos sabendo um pouco mais sobre ele e sobre as pessoas que o circundam e o circundavam. O que eu sinto falta no filme de Rohrwacher pode até ser bobagem, mas talvez seja algo de mais atraente em seus personagens. Também fico sentindo falta de me encantar com os elementos fantásticos trazidos para o filme, embora veja sim o final como bonito e poético. Carol Duarte está bem como a empregada da personagem de Isabella Rossellini, e que esconde da patroa duas crianças pequenas no próprio casarão onde vive. Ou seja, o filme com frequência põe situações estranhas dentro de uma narrativa que pende, aparentemente, para o realismo. Imagino que vá gostar mais do filme numa revisão, ou quando me sentir um pouco mais confortável com seu estilo.

20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS (20.000 Especies de Abejas)

Eu tenho aquele velho e ridículo problema (que não sei ainda explicar) de ter sono com filmes protagonizados por crianças. Mas acho que, no caso deste, estar gripado e o horário da tardinha podem ter contribuído. Ainda assim, fiquei muito interessado no estilo de narrativa de 20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS (2023), de Estibaliz Urresola Solaguren, e de ir descobrindo aos poucos as angústias de suas personagens, principalmente da criança e de sua mãe. Ela, por ficar confusa em relação à sua sexualidade, de não querer mais aceitar ser um menino, aos oito anos de idade, e a mãe por se sentir surpresa com esse momento de descoberta da garota durante as férias de verão da família, numa aldeia ligada à apicultura. A diretora opta muitas vezes (ou sempre?) pela câmera na mão, quase como se estivesse espiando as personagens. O filme não é do tipo que leva o espectador pelo braço: faz com que ele vá descobrindo o que está acontecendo aos poucos. A menina, Sofía Otero, está ótima e muito natural em seu papel. Seu prêmio em Berlim parece merecido.

sábado, abril 13, 2024

A PRIMEIRA PROFECIA (The First Omen)



Na década de 1970, havia dois movimentos distintos ocorrendo e ambos repercutiam na cultura, nas artes, seja no cinema, seja na música. Ao mesmo tempo em que havia uma espécie de pânico em relação ao satanismo, havia também uma certa simpatia, principalmente por parte dos jovens dispostos a enfrentar as instituições de autoridade, e a igreja era uma dessas instituições. Uma simpatia que nascia da rebeldia. Por isso, quando os Rolling Stones tocavam “Sympathy for the Devil” ou Raul Seixas cantava “Rock do Diabo”, eles estavam mais querendo trazer choque para a sociedade mais tradicional da época do que exatamente convidar adeptos para cultos de invocação ao demônio.

Enquanto isso, o cinema refletia esse medo do satanimo em diversos títulos, como OS DEMÔNIOS, de Ken Russell, O EXORCISTA, de William Friedkin, SATÂNICO PANDEMONIUM, de Gilberto Martínez Solares, A SENTINELA DOS MALDITOS, de Michael Winner, UMA FILHA PARA O DIABO, de Peter Sykes e Don Sharp, entre outros tantos. E há A PROFECIA (1976), de Richard Donner, um dos grandes clássicos do gênero e que lida com o tema da chegada do Anticristo. De certa forma, pelo que me lembro, não chega a ser tão transgressor quanto O BEBÊ DE ROSEMARY, de Roman Polanski, ou O EXORCISTA, feito por cineastas mais simpatizantes da ambiguidade. Assim, se enquadraria bem mais num filme de terror mais católico.

A PROFECIA, depois de ganhar algumas sequências que, dizem, não são boas, recebeu uma refilmagem em 2006, dirigida por John Moore, que resultou numa obra bem esquecível. E aí, quando menos esperávamos, e dirigido por uma cineasta estreante, a jovem Arkasha Stevenson, no meio de vários filmes de horror ruins no circuito mais mainstream, chega o ótimo A PRIMEIRA PROFECIA (2024), uma prequel do filme de Donner. E que grata surpresa.

O filme já encanta de cara, com sua beleza plástica, seu cuidado com a reconstituição de época (anos 1970), inclusive com uma fotografia que emula a dessa década. Até o andamento da trama é mais lento, o que pode causar alguma estranheza em certos espectadores. O brilhante filme de Stevenson anda com suas próprias pernas, e até pode ter uma continuação, já que sua protagonista é encantadora e a trama pode seguir em paralelo à trama onde começa o filme de 1976. Além do mais, há todo um cuidado em nos levar junto a ela pelas ruas de Roma, e a conhecer até boates da cidade. 

Na história, Nell Tiger Free (da ótima série SERVANT), é uma jovem americana que começa a se preparar para a vida de freira em Roma, quando percebe que há uma ala demoníaca dentro daqueles muros. A atriz, mais uma vez brilhante, está tão bem no papel que o filme parece não querer se desgrudar dela. Não sou tão apreciador de filmes sobre profecias de anticristo (acho datados, muito anos 70), mas o grande mérito do filme de Stevenson é que a sua maior preocupação é na construção da atmosfera e em cenas de impacto visual. E isso a diretora consegue fazer unindo elegância e uma sabedoria em lidar com a iconografia católica em prol do horror.

Há uma cena, inclusive, que me fez lembrar a dobradinha MADRE JOANA DOS ANJOS e OS DEMÔNIOS, o que eu encaro como um grande elogio, e há outra que faz lembrar POSSESSÃO, de Andrzej Zulawski, quando a protagonista começa a ver coisas e a gritar enlouquecida na rua. O interessante também é que, por mais que o filme seja um pouco mais longo do que o habitual para o gênero, não há cenas desnecessárias. Mesmo os jump scares gratuitos (são poucos) não incomodam. Além do mais, o primeiro jump scare é apavorante de fato e impõe uma relação de respeito entre filme e espectador. E a cena do parto... poxa...incrível. 

Fico feliz em ver uma nova diretora surgindo no gênero e acredito que seu futuro será brilhante, por essa amostra incrível que é A PRIMEIRA PROFECIA. Além do mais, sendo ela uma diretora, acredito que isso contribui para que o ponto de vista feminino da protagonista (e da maioria dos personagens do filme), incluindo seus medos e traumas, seja ainda mais favorecido e valorizado. Ah, e o filme tem a Sônia Braga, muito bem, como uma freira ameaçadora. E também gosto muito da atriz que faz a noviça que mora com a personagem de Tiger Free, uma jovem espanhola lindíssima chamada María Cabellero. Acho um charme quando ela aparece vestida de freira, com maquiagem caprichada e sensual nos olhos. Ou seja, além de tudo, A PRIMEIRA PROFECIA ainda se aproveita das coisas atraentes que o ciclo dos nunsploitation trouxe.

+ DOIS FILMES

FALE COMIGO (Talk to Me)

De vez em quando algum pequeno filme de horror australiano ganha os holofotes mundiais. Creio que FALE COMIGO (2022), de Danny e Michael Philippou, teve maior repercussão que, por exemplo, WOLF CREEK – VIAGEM AO INFERNO e O BABADOOK, para citar dois títulos das últimas duas décadas. E o que me ganhou neste novo exemplar foi o quanto ele é carregado de surpresas, e também o quanto ele adentra territórios muito mais sombrios do que estamos acostumados a ver. Não se trata apenas de um filme sobre possessão envolvendo uma mão misteriosa, mas é também um filme sobre traumas, sobre inconsequência juvenil, sobre desespero e desesperança – e ainda pode ser uma alegoria sobre o uso de drogas pesadas. O filme tem uma mudança de chave para um território mais pesado em determinado momento do jogo da possessão, por assim dizer, e daí em diante as coisas só ficam mais e mais bizarras. Com o sucesso, uma continuação está a caminho. E espero que os diretores não percam a mão na sequência. Sem trocadilhos.

A BRUXA DOS MORTOS – BAGHEAD (Baghead)

Nem dá para dizer que Alberto Corredor copiou os irmãos Philippou, de FALE COMIGO, com a história de ter contato com os mortos por uma janela de tempo muito pequena. Afinal, Corredor já havia feito um curta em 2017 de nome BAGHEAD, que inspirou o longa. O resultado, A BRUXA DOS MORTOS – BAGHEAD (2023), não foi essas maravilhas todas, mas há alguns momentos muito bons. E isso acaba me deixando esperançoso para os novos trabalhos do diretor. Gosto, por exemplo, da cena em que a protagonista (Freya Allan) adentra o buraco onde fica a bruxa encapuzada. Aliás, a ideia de uma bruxa que aparece com um capuz é muito boa. Acentua o tom de terror. Também gosto bastante da conclusão, principalmente pelo aspecto plástico. Uma pena que o filme já começa com um prólogo desanimador, mas gosto dos problemas que surgem à medida que a jovem herdeira fica mais tempo na velha casa. A jovem Freya Allan parece ter futuro em Hollywood: em breve a veremos em PLANETA DOS MACACOS – O REINADO.

domingo, abril 07, 2024

PADRE PIO



Um dos dias mais reveladores e bonitos do ano para mim foi o dia em que fui com a Giselle a uma missa no Instituto Hesed, um mosteiro lindo situado num bairro afastado da cidade. Era quinta-feira da Semana Santa e eu, a princípio, ia ao cinema à tardinha e ela me fez o convite, que fez com que eu mudasse de planos. Como tinha interesse em conhecer o local e também em estar com ela, aceitei de imediato. Mas confesso que não esperava gostar tanto. 

Para mim, que não fui criado em lar católico, boa parte da imagem que eu tenho da igreja vem muito do cinema, e muitas vezes dos filmes de horror, que se apropriam do imaginário católico, tão rico visualmente, para a construção de suas histórias. E há também os grandes cineastas católicos (Hitchcock, Scorsese, Bresson, Ferrara, Rohmer, entre outros) que ajudam a enriquecer a arte cinematográfica. Então, quando vi as imagens dos santos cobertos com um pano até o desvelar na Páscoa, achei tudo incrivelmente estranho e belo, e muito parecido com os filmes de terror. Até mesmo as vestimentas das freiras me pareceram dotadas de uma beleza e de um mistério incríveis.

Aprendi que não compreender tudo faz parte da graça e meu psicanalista ficava o tempo todo procurando palavras relacionadas ao evangelho quando eu falava de minha experiência nesse dia e a palavra “graça” era uma delas. E "graça” é uma palavra que tem, sim, um significado mais religioso nas pouco mais de duas horas que passamos na celebração. Para começar, achei lindos os cânticos, todos equilibrados entre a devoção mais emotiva e a técnica de coral que demanda muito esforço para chegar à perfeição. Tive experiência em coral e por isso valorizo muito trabalhos vocais bem construídos. Meus olhos já começaram a marejar com a música, mas o melhor viria com a homilia do padre colombiano Fidel Oñoro, convidado para o evento.

E Oñoro fez o mais belo sermão sobre a última ceia que já ouvi na vida, destacando a entrega de Jesus, a covardia (humana) dos apóstolos naquele momento de perseguição e perigo, o ensino da humildade através do lavar os pés, deixando claro que os pés naquela época eram muito mais sujos e sofridos que os de hoje. Eu às vezes curvava meu corpo para mais à frente, como se quisesse absorver mais das palavras do sacerdote. E há outra coisa bonita que não costumo ver com muita frequência nas igrejas evangélicas: a pausa para o silêncio, para a oração, algo de fato sagrado e um instante em que nosso espírito se abre para Deus. No momento em que doze pessoas sobem ao altar para representar os apóstolos, ouvimos uma canção que diz “que o maior é o que sabe servir / Que se abaixa e que sabe se inclinar / Porque grande é somente o amor”. Achei o ritual, o gesto, a canção, a letra, tudo de uma beleza imensa.

No final, numa espécie de performance (entendam que é a visão de alguém mais acostumado com as artes) em que os sacerdotes e freiras levam a imagem de Jesus coberto para outro local, enquanto as luzes vão se apagando, o som das vozes dá lugar às canções entoadas, à penumbra, e no meu caso ouvia o som dos grilos também, como se tudo que presenciei e que resumi muito brevemente aqui fosse também uma experiência sensorial, ou extra-sensorial, levando em consideração que pode muito bem ter ido além da percepção dos sentidos. Quis deixar registrado esse evento aqui como forma de reverência, aproveitando o espaço que ficará pequeno para falar de PADRE PIO (2022), de Abel Ferrara.

A respeito do filme sobre o celebrado padre, não dá para dizer que Abel Ferrara é um cineasta incoerente ou que seu cinema mudou do dia para a noite. Essa vontade (ou necessidade) de fazer filmes menores – agora, principalmente, morando na Itália – e sem se preocupar com bilheterias se manifesta mais uma vez em PADRE PIO, sobre um personagem que já foi objeto de estudo em seu documentário SEARCHING FOR PADRE PIO (2015), feito para a televisão, e que aqui aparece como protagonista, de certa forma.

Digo "de certa forma", pois o filme pode frustrar um pouco quem for buscar uma biografia mais comum do padre elevado a santo. Há talvez mais cenas do embate entre trabalhadores simpatizantes do comunismo e empresários e militares fascistas do que do padre. Ferrara apresenta uma espécie de batalha entre o bem e o mal, marcadamente pelas tensões políticas pós Primeira Guerra, quando a Itália sai vitoriosa, mas a vitória tem um gosto amargo ao vermos logo no início alguns homens voltando da batalha: um deles sem as pernas e feliz por continuar "sendo um homem" e o outro que trocou um olho por uma medalha. Há também a mulher que espera pelo marido, sem ter a confirmação se ele está vivo ou morto. E por isso a esperança das pessoas pobres e sofridas daquele vilarejo passa pelo comprometimento com as causas do socialismo, em alta naquele início dos anos 1920.

Enquanto isso, Padre Pio enfrenta as forças de Satanás numa batalha interior que o aflige, o maltrata, o perturba. No início, até acho que o filme apresenta algo de dúbio, se aquilo é algo de natureza espiritual ou psicológica, mas vendo o final é fácil perceber o quanto Ferrara abraça o sobrenatural. 

Apesar da irregularidade, depois do massacre no final e das últimas imagens de Padre Pio em contato com Deus/Jesus, percebemos o quanto Ferrara optou pela devoção católica de forma muito bonita. Ou seja, num mundo cheio de injustiças, crueldade e ainda longe de encontrar a paz, a mão de Jesus está ali para consolar os espíritos, especialmente de alguém que tem uma maior consciência do ataque das forças malignas, como Pio. Há duas conversas com pessoas que vêm procurar o padre: uma delas, um "homem alto" vivido por Asia Argento, é logo expulsa pelo padre, como símbolo da maldade e da tentação contra a fé, aos gritos de “Diga que Jesus é o Senhor!”. Destaco também a fotografia de Alessandro Abate (CÓPIA FIEL), que enfatiza tanto as sombras quanto a luz divina apresentada, especialmente, nas cenas em que a luz adentra a igreja.

Texto dedicado com amor e gratidão à Giselle.

+ DOIS FILMES

AS 4 FILHAS DE OLFA (Les Filles d'Olfa)

Um dos cinco indicados a melhor documentário do Oscar deste ano (perdeu para 20 DIAS EM MARIUPOL), este AS 4 FILHAS DE OLFA (2023) nem é a primeira participação da diretora Kaouther Ben Hania na academia: seu O HOMEM QUE VENDEU SUA PELE (2020) havia concorrido a melhor filme internacional não faz muito tempo. Além do mais, ela já goza de certo prestígio em festivais. A ideia para a realização, eu considero um de seus maiores trunfos: chamar a própria mãe (Olfa) e suas duas filhas mais novas para representarem a si mesmas numa dramatização dos eventos que levaram ao "desaparecimento" de suas filhas mais velhas de casa. Para isso, somos convidados a conhecer uma cultura diferente e a perceber a ameaça de uma organização como o Estado Islâmico, que operava na Síria na época em que Olfa deixou a Tunísia para lá trabalhar. A Tunísia também é um país cheio de tensões entre grupos islâmicos e seculares e isso acaba por afetar também a herança de educação que Olfa traz para suas quatro filhas. O embate de gerações surge quando as filhas se apresentam mais donas do documentário do que a própria mãe, representando o futuro, uma quebra de padrões estabelecidos, que guardam os traumas e a saudade da saída das irmãs mais velhas do lar habitado basicamente por mulheres, já que os homens que por lá passaram não foram exemplos de boas figuras paternas. Desse modo, há algo de muito bonito na relação que se estabelece entre a diretora, a família (seu objeto de estudo) e as jovens atrizes contratadas para interpretarem as irmãs mais velhas. AS 4 FILHAS DE OLFA talvez só peque por se estender um pouco além da conta, prejudicando um pouco seu ritmo.

THE FIRE WITHIN – A REQUIEM FOR KATIA AND MAURICE KRAFFT

Muito provável que a forma com que vi THE FIRE WITHIN – A REQUIEM FOR KATIA AND MAURICE KRAFFT (2022) ("em fascículos") tenha atrapalhado e muito a minha apreciação. Além do mais, nas cenas de sinfonia de vulcões, com imagens tão incríveis que não parecem deste mundo, fiquei o tempo todo pensando em como seria ter a chance de ver este filme no cinema. Trata-se também de mais uma obra de Werner Herzog que traz personagens tão apaixonados quanto obcecados, como os vistos em FITZCARRALDO (1982) ou O HOMEM URSO (2005). Aqui o diretor faz uma homenagem a um casal de apaixonados/cientistas/cineastas especializados em vulcões, que morreram em seu ofício. E isso não chega a ser um spoiler: é uma informação que o diretor dá logo no início, quando mostra imagens do casal no Monte Unzen, em Nagazaki, Japão, antes de morrerem em um fluxo piroclástico. Sobre a beleza das imagens, ainda fico achando que houve alguma manipulação. Não é possível. No meio disso tudo, o diretor optou por muitas óperas alternado canções típicas de certos países visitados pelo casal de cientistas e cineastas.