domingo, abril 07, 2024

PADRE PIO



Um dos dias mais reveladores e bonitos do ano para mim foi o dia em que fui com a Giselle a uma missa no Instituto Hesed, um mosteiro lindo situado num bairro afastado da cidade. Era quinta-feira da Semana Santa e eu, a princípio, ia ao cinema à tardinha e ela me fez o convite, que fez com que eu mudasse de planos. Como tinha interesse em conhecer o local e também em estar com ela, aceitei de imediato. Mas confesso que não esperava gostar tanto. 

Para mim, que não fui criado em lar católico, boa parte da imagem que eu tenho da igreja vem muito do cinema, e muitas vezes dos filmes de horror, que se apropriam do imaginário católico, tão rico visualmente, para a construção de suas histórias. E há também os grandes cineastas católicos (Hitchcock, Scorsese, Bresson, Ferrara, Rohmer, entre outros) que ajudam a enriquecer a arte cinematográfica. Então, quando vi as imagens dos santos cobertos com um pano até o desvelar na Páscoa, achei tudo incrivelmente estranho e belo, e muito parecido com os filmes de terror. Até mesmo as vestimentas das freiras me pareceram dotadas de uma beleza e de um mistério incríveis.

Aprendi que não compreender tudo faz parte da graça e meu psicanalista ficava o tempo todo procurando palavras relacionadas ao evangelho quando eu falava de minha experiência nesse dia e a palavra “graça” era uma delas. E "graça” é uma palavra que tem, sim, um significado mais religioso nas pouco mais de duas horas que passamos na celebração. Para começar, achei lindos os cânticos, todos equilibrados entre a devoção mais emotiva e a técnica de coral que demanda muito esforço para chegar à perfeição. Tive experiência em coral e por isso valorizo muito trabalhos vocais bem construídos. Meus olhos já começaram a marejar com a música, mas o melhor viria com a homilia do padre colombiano Fidel Oñoro, convidado para o evento.

E Oñoro fez o mais belo sermão sobre a última ceia que já ouvi na vida, destacando a entrega de Jesus, a covardia (humana) dos apóstolos naquele momento de perseguição e perigo, o ensino da humildade através do lavar os pés, deixando claro que os pés naquela época eram muito mais sujos e sofridos que os de hoje. Eu às vezes curvava meu corpo para mais à frente, como se quisesse absorver mais das palavras do sacerdote. E há outra coisa bonita que não costumo ver com muita frequência nas igrejas evangélicas: a pausa para o silêncio, para a oração, algo de fato sagrado e um instante em que nosso espírito se abre para Deus. No momento em que doze pessoas sobem ao altar para representar os apóstolos, ouvimos uma canção que diz “que o maior é o que sabe servir / Que se abaixa e que sabe se inclinar / Porque grande é somente o amor”. Achei o ritual, o gesto, a canção, a letra, tudo de uma beleza imensa.

No final, numa espécie de performance (entendam que é a visão de alguém mais acostumado com as artes) em que os sacerdotes e freiras levam a imagem de Jesus coberto para outro local, enquanto as luzes vão se apagando, o som das vozes dá lugar às canções entoadas, à penumbra, e no meu caso ouvia o som dos grilos também, como se tudo que presenciei e que resumi muito brevemente aqui fosse também uma experiência sensorial, ou extra-sensorial, levando em consideração que pode muito bem ter ido além da percepção dos sentidos. Quis deixar registrado esse evento aqui como forma de reverência, aproveitando o espaço que ficará pequeno para falar de PADRE PIO (2022), de Abel Ferrara.

A respeito do filme sobre o celebrado padre, não dá para dizer que Abel Ferrara é um cineasta incoerente ou que seu cinema mudou do dia para a noite. Essa vontade (ou necessidade) de fazer filmes menores – agora, principalmente, morando na Itália – e sem se preocupar com bilheterias se manifesta mais uma vez em PADRE PIO, sobre um personagem que já foi objeto de estudo em seu documentário SEARCHING FOR PADRE PIO (2015), feito para a televisão, e que aqui aparece como protagonista, de certa forma.

Digo "de certa forma", pois o filme pode frustrar um pouco quem for buscar uma biografia mais comum do padre elevado a santo. Há talvez mais cenas do embate entre trabalhadores simpatizantes do comunismo e empresários e militares fascistas do que do padre. Ferrara apresenta uma espécie de batalha entre o bem e o mal, marcadamente pelas tensões políticas pós Primeira Guerra, quando a Itália sai vitoriosa, mas a vitória tem um gosto amargo ao vermos logo no início alguns homens voltando da batalha: um deles sem as pernas e feliz por continuar "sendo um homem" e o outro que trocou um olho por uma medalha. Há também a mulher que espera pelo marido, sem ter a confirmação se ele está vivo ou morto. E por isso a esperança das pessoas pobres e sofridas daquele vilarejo passa pelo comprometimento com as causas do socialismo, em alta naquele início dos anos 1920.

Enquanto isso, Padre Pio enfrenta as forças de Satanás numa batalha interior que o aflige, o maltrata, o perturba. No início, até acho que o filme apresenta algo de dúbio, se aquilo é algo de natureza espiritual ou psicológica, mas vendo o final é fácil perceber o quanto Ferrara abraça o sobrenatural. 

Apesar da irregularidade, depois do massacre no final e das últimas imagens de Padre Pio em contato com Deus/Jesus, percebemos o quanto Ferrara optou pela devoção católica de forma muito bonita. Ou seja, num mundo cheio de injustiças, crueldade e ainda longe de encontrar a paz, a mão de Jesus está ali para consolar os espíritos, especialmente de alguém que tem uma maior consciência do ataque das forças malignas, como Pio. Há duas conversas com pessoas que vêm procurar o padre: uma delas, um "homem alto" vivido por Asia Argento, é logo expulsa pelo padre, como símbolo da maldade e da tentação contra a fé, aos gritos de “Diga que Jesus é o Senhor!”. Destaco também a fotografia de Alessandro Abate (CÓPIA FIEL), que enfatiza tanto as sombras quanto a luz divina apresentada, especialmente, nas cenas em que a luz adentra a igreja.

Texto dedicado com amor e gratidão à Giselle.

+ DOIS FILMES

AS 4 FILHAS DE OLFA (Les Filles d'Olfa)

Um dos cinco indicados a melhor documentário do Oscar deste ano (perdeu para 20 DIAS EM MARIUPOL), este AS 4 FILHAS DE OLFA (2023) nem é a primeira participação da diretora Kaouther Ben Hania na academia: seu O HOMEM QUE VENDEU SUA PELE (2020) havia concorrido a melhor filme internacional não faz muito tempo. Além do mais, ela já goza de certo prestígio em festivais. A ideia para a realização, eu considero um de seus maiores trunfos: chamar a própria mãe (Olfa) e suas duas filhas mais novas para representarem a si mesmas numa dramatização dos eventos que levaram ao "desaparecimento" de suas filhas mais velhas de casa. Para isso, somos convidados a conhecer uma cultura diferente e a perceber a ameaça de uma organização como o Estado Islâmico, que operava na Síria na época em que Olfa deixou a Tunísia para lá trabalhar. A Tunísia também é um país cheio de tensões entre grupos islâmicos e seculares e isso acaba por afetar também a herança de educação que Olfa traz para suas quatro filhas. O embate de gerações surge quando as filhas se apresentam mais donas do documentário do que a própria mãe, representando o futuro, uma quebra de padrões estabelecidos, que guardam os traumas e a saudade da saída das irmãs mais velhas do lar habitado basicamente por mulheres, já que os homens que por lá passaram não foram exemplos de boas figuras paternas. Desse modo, há algo de muito bonito na relação que se estabelece entre a diretora, a família (seu objeto de estudo) e as jovens atrizes contratadas para interpretarem as irmãs mais velhas. AS 4 FILHAS DE OLFA talvez só peque por se estender um pouco além da conta, prejudicando um pouco seu ritmo.

THE FIRE WITHIN – A REQUIEM FOR KATIA AND MAURICE KRAFFT

Muito provável que a forma com que vi THE FIRE WITHIN – A REQUIEM FOR KATIA AND MAURICE KRAFFT (2022) ("em fascículos") tenha atrapalhado e muito a minha apreciação. Além do mais, nas cenas de sinfonia de vulcões, com imagens tão incríveis que não parecem deste mundo, fiquei o tempo todo pensando em como seria ter a chance de ver este filme no cinema. Trata-se também de mais uma obra de Werner Herzog que traz personagens tão apaixonados quanto obcecados, como os vistos em FITZCARRALDO (1982) ou O HOMEM URSO (2005). Aqui o diretor faz uma homenagem a um casal de apaixonados/cientistas/cineastas especializados em vulcões, que morreram em seu ofício. E isso não chega a ser um spoiler: é uma informação que o diretor dá logo no início, quando mostra imagens do casal no Monte Unzen, em Nagazaki, Japão, antes de morrerem em um fluxo piroclástico. Sobre a beleza das imagens, ainda fico achando que houve alguma manipulação. Não é possível. No meio disso tudo, o diretor optou por muitas óperas alternado canções típicas de certos países visitados pelo casal de cientistas e cineastas.

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