terça-feira, março 30, 2021

LUA DE FEL (Bitter Moon)



O ano era 1994. Acordei cedo para ir ao trabalho e estava ansioso para saber se havia passado no vestibular. Naquela época não tinha esse negócio de internet e por isso comprei o jornal na banca que ficava perto da CABEC, onde trabalhava. Não consegui me conter e olhei ali na rua mesmo. Fiquei muito feliz quando vi meu nome. Não lembro qual foi a colocação, mas estava aprovado e iria começar o curso de Letras na Universidade Estadual do Ceará, no turno da noite, que era o turno possível pra mim, que trabalhava o dia todo. Nada podia perturbar o meu bom humor naquele dia, portanto.

À noite, resolvi que iria ao cinema. Não lembro que dia era da semana, mas o filme que estava em cartaz no Cine Fortaleza era LUA DE FEL (1992), meu primeiro Roman Polanski no cinema. Em casa já havia assistido a alguns clássicos dos anos 60, 70 e 80 do cineasta e sabia de sua importância. Convidei o Santiago para ver o filme comigo. Ele topou. Na bilheteria, a moça informou que a sala estava com problemas no ar condicionado. Não estava funcionando, na verdade. Aceitamos ver mesmo assim. E foi impressionante como, mesmo sentindo calor, eu me esqueci desse detalhe insignificante perante àquele filme imenso que se descortinava em minha frente.

Rever LUA DE FEL no último sábado foi também perceber o quão importante é a homenagem à narrativa clássica, seja a literária, seja a de origem oral ou a de origem hollywoodiana. A história que importa é, portanto, a do narrador, o escritor Oscar, um homem que em sua cadeira de rodas resolve contar sua história de vida para o viajante inglês Nigel, vivido por Hugh Grant. Ambos estavam viajando no cruzeiro com suas respectivas esposas, Mimi (Emmanuelle Seigner) e Fiona (Kristin Scott Thomas).

Ao convidar Nigel para ouvir sua história e já sabendo que o jovem ouvinte já havia conhecido sua bela esposa Mimi, Oscar sabia o quanto aquela história seria atraente para o viajante. E começam as sequências de flashbacks. Os flashbacks mais fascinantes do cinema dos anos 1990, pois nos jogam em uma narrativa que começa com uma história de amor. E tanto Polanski, com o belo uso da fotografia, quanto o narrador, com seu florear nas palavras, nos deixavam tão apaixonados quanto Oscar. Até porque a atriz escolhida para o papel, Seigner, esposa de Polanski, que já havia trabalhado com ele em BUSCA FRENÉTICA (1988), era estupidamente linda.

A história começa em um ônibus. A moça não tinha o tíquete, Oscar oferece o dele e é obrigado a descer do ônibus. Mas não sem esquecer daquela jovem, que ele procuraria pelas ruas de Paris durante alguns dias. Até que, por acaso, em um restaurante, ele a reencontra. E a partir daí começa um relacionamento apaixonado, que se inicia de maneira doce e até ingênua, mas que chega num crescendo de erotismo forte e belo (a cena do leite, por exemplo, é difícil sair da memória dos espectadores).

E esse erotismo também chega a crescer tanto que se confunde com perversão. Não que haja algum problema com isso, já que as brincadeiras são divertidas. O problema é que Oscar cansa de Mimi. Mesmo reconhecendo que ela era linda, ele sabia que a relação já estava no fim. Ainda assim, o espectador que vê o filme pela primeira vez se surpreende com o que está por vir.

Entre as sessões de narrativas de Oscar para Nigel, o filme nos ambienta tanto àquele navio, que frequentemente enfrenta tempestades, quanto à tensão que se estabelece entre o quarteto de personagens, principalmente porque Nigel estava ficando enlouquecidamente apaixonado por Mimi. Mas a Mimi é uma personagem múltipla. E por isso é a mais rica do filme, passando por diversas fases, seja de menina quase inocente, para uma ninfomaníaca, depois para uma mulher rejeitada e em seguida para uma mulher segura de si, de maquiagem carregada, mas também amargurada.

Mimi vai mudando, a princípio, não por vontade própria, mas imposições das situações que lhe eram impostas cruelmente. Até que chegou o momento em que ela surge para passar a impor as mudanças, a ser dona de seu destino, e do destino de Oscar, quando o filme começa a adquirir um tom de terror psicológico e tintas mais carregadas de dramaticidade, sem o menor temor em parecer cafona. Aliás, Polanski brinca muito com isso. O que é a cena das duas mulheres, justamente ao som de "Slave to love", de Bryan Ferry? E antes, na festa, tocando "Hello", de Lionel Ritchie?

O espírito da época também contribuiu, se pensarmos tanto o uso do erotismo quanto do thriller. 1992 foi o ano de INSTINTO SELVAGEM, de Paul Verhoeven; de O AMANTE, de Jean-Jacques Annaud; de DRÁCULA DE BRAM STOKER, de Francis Ford Coppola; de TWIN PEAKS - OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER, de David Lynch; JAMÓN, JAMÓN, de Bigas Luna; PERDAS E DANOS, de Louis Malle; e até um filme de super-herói, BATMAN - O RETORNO, de Tim Burton, tinha um contorno erótico. Foi a primeira vez que Polanski adicionou o erotismo de maneira tão gráfica em um de seus filmes, e emulando muito a Velha Hollywood, o que torna seu trabalho ainda mais transgressor.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

domingo, março 28, 2021

FRANCISCO SANTIAGO DOS SANTOS (1961-2021)



Meu melhor amigo se foi. E agora me encontro aqui, tentando encontrar palavras para expressar a falta imensa que sinto e que ainda vou sentir dele. Ele era o irmão que nunca tive, conselheiro amoroso, agregador de pessoas especiais, parceiro de sessões de cinema, de altos papos sobre arte (música, livros, filmes), sobre a vida, sobre tudo. Alguém que viveu a vida intensamente. Eu, que sempre sofri com uma timidez paralisante - na vida amorosa, principalmente -, tinha nele uma espécie de versão da pessoa que gostaria de ser.

Era 1991 quando entrei na CABEC e odiava aquele emprego novo, depois de ter passado dois ótimos anos como estagiário no Banco do Nordeste. Colocaram-me em um trabalho bem chato para fazer, e ele saía da sala ao lado, no setor de investimentos, para conversar comigo. Aos poucos foi surgindo uma amizade boa, que durou todo esse tempo, para além da empresa.



Certo dia, saindo do expediente, passamos em frente a uma livraria, observei nas prateleiras que havia chegado a biografia do Woody Allen, falei que estava interessado, mas na época não tinha cartão de crédito. Ele se ofereceu para comprar no cartão dele. Fiquei comovido com o ato de generosidade e aceitei. Naqueles meus 18 anos de idade, eu não tinha muitos exemplos de generosidade que partissem de quem não fosse da minha família.

Hoje de manhã, ao mostrar uma foto para minha amiga Aleksandra, que agora mora nos Estados Unidos - na foto estamos ele, a Ariza (esposa dele), a Alê e eu -, ela disse: "ele com certeza era the light of the party." E é bem isso. Muito da alegria de nossas reuniões, fossem em shows, viagens, festas, barzinhos, praias, cinemas, cafés etc., se devia a seu espírito festivo, a seu sorriso contagiante. Um dos advérbios comumente usados por ele era “exponencialmente”. Ele usava para se referir à vida, ao modo como ela deveria ser vivida.



Os últimos anos não foram muito fáceis para meu amigo. Na verdade não estavam sendo fáceis já há alguns anos, seja pela ascensão da extrema direita, seja por essa pandemia que agora nos acometeu a todos e tem nos tirado tantas pessoas queridas. Ele, como uma pessoa de pensamento progressista, sofria muito com tudo isso. Chegou a sair diversas vezes das redes sociais para tentar se estabilizar psicologicamente. Não faz muito tempo, em alguns de seus momentos difíceis, eu o acompanhava em caminhadas pela Beira-Mar. Ele me agradecia pelo apoio, mas eu tinha muito mais a agradecê-lo. Creio que todos que estiveram ao redor do Santiago se sentiam e se sentem pessoas de muita sorte.

Lembro que em uma de nossas viagens, indo passar o réveillon em Guaramiranga com um grupo de amigos, na hora da virada do ano (não lembro que ano foi ao certo), eu recebi um abraço tão amigo e caloroso dele que me desarmou. Essa facilidade que ele tinha de expressar o carinho pelas pessoas também era algo que me servia de exemplo.

Agora, em tempos de distanciamento social, pensar nesse abraço me deixa ainda mais sem chão. É difícil saber que quando passar essa pandemia não iremos mais nos encontrar neste plano astral, mas é uma felicidade ter tido a honra de compartilhar tantos momentos bons com uma pessoa tão extraordinária.



sábado, março 27, 2021

O SAL DAS LÁGRIMAS (Le Sel des Larmes)



Os dias estão bem difíceis. Estou tentando escrever, já que não estou conseguindo me concentrar nem na leitura nem nos filmes. Preocupado com um amigo na UTI e triste por toda esta tragédia por que estamos passando, fica mais complicado buscar inspiração para escrever sobre um filme, por mais inspiradora que seja a obra. Mas vamos tentar. 

O filme em questão é O SAL DE LÁGRIMAS (2020), mais recente trabalho do mestre Philippe Garrel, novamente com a maravilhosa colaboração do lendário roteirista Jean-Claude Carrière - os dois trabalharam juntos também em dois dos melhores trabalhos de Garrel, À SOMBRA DE DUAS MULHERES (2015) e AMANTE POR UM DIA (2017). A parceria me pareceu aqui ainda mais acertada e apurada do que nos já brilhantes trabalhos citados. Como disse o crítico Carlos Natálio, do site À Pala de Walsh,

"Garrel é o artesão/marceneiro supremo. Nada está a mais. De filme para filme, a maré do que poderia estar “a mais” recua sempre, os cenários são os mínimos, as cenas cada vez mais precisas. Tudo o que é do drama convencional – mortes, gravidezes, desencontros, abortos – acontecem de súbito, em off."

E o uso da figura de um narrador onisciente neste filme é pontual, mas também muito precisa, tornando, inclusive, a cena final arrepiante, ao mostrar por meios também orais a imensa dor do protagonista. O uso da palavra, aliás, nunca foi um problema nos filmes franceses, que muitos consideram verborrágicos. Mas no caso desse cinema mais econômico de Garrel, as palavras são poucas e essenciais, mesmo aquelas que não partem da boca dos personagens. Saber, por exemplo, que Luc (Logann Antuofermo) não sabia ao certo da existência do amor ajuda bastante a nos solidarizarmos com ele.

Logo ele que é um personagem cuja principal característica apresentada é a covardia, sendo facilmente julgável. O que talvez mais doa, em suas atitudes pouco corretas, seja a cena do pai querendo falar com ele no apartamento, e ele fica calado, fingindo que não está. Logo o pai, que é o maior símbolo do amor na vida de Luc. Não o amor romântico, mas o amor em seu sentido maior. O amor romântico ele não procura, mas procura sim as mulheres.

Já no começo do filme, somos apresentados à jovem Djemila (Oulaya Amamra). Os dois se conhecem numa parada de ônibus e Luc puxa conversa, se aproxima, quer vê-la novamente, arranja novos encontros, tenta um contato físico mais íntimo. Mas chega o momento de ele voltar para o interior. Sua passagem por Paris era rápida, para fazer um teste para um curso de marcenaria. Aliás, é interessante esse detalhe da profissão e do anacronismo, já que o filme parece se passar nos dias de hoje, mas a tecnologia usada é antiga.

A segunda mulher do filme é uma antiga namorada de infância, que volta para a vida de Luc, Geneviève (Louise Chevillotte, vista em AMANTE POR UM DIA e também no ótimo SYNONYMES, de Nadav Lapid). Geneviève é uma moça perfeita, elegante e carinhosa. Mesmo assim, Luc não retribui o amor que ela sente por ele, age de maneira covarde quando ela mais precisa, e foge para Paris, sem dar mais notícias. Para ele, ser pai em uma idade tão jovem seria o fim de sua vida.

E de certa forma entendemos essa urgência no viver a juventude através da excelente cena da danceteria, filmada em um único plano-sequência e em um único take. A cena traz uma carga de alegria, excitação e, no meu caso, saudade dos bons tempos da juventude nas boates, que é mais uma prova da excelência de Garrel, de sua capacidade de nos colocar em um território de intensidade emocional. Até porque é naquela noite que Luc encontra a mulher que mudará um pouco sua descrença no amor, a bela Betsy (Souheila Yacoub, vista em CLIMAX, de Gaspar Noé).

E aí é que entra um tema que é muito caro a Garrel, que é a questão da poligamia versus monogamia, do ciúme, das tentativas de lidar com uma relação a três, já que Betsy quer viver também com outro rapaz dentro da mesma casa. A gente sabe que mesmo em sociedades que adotam a bigamia ou poligamia, o ciúme sempre aparece. Na Biblia vemos o caso de Abraão. Sara, sua esposa, tinha ciúme da escrava, Agar, principalmente por ela ter dado a Abraão seu primeiro filho.

Esse sentimento, tão próprio de nós, humanos, frágeis, possessivos e carentes, é um objeto de tanto interesse de Garrel que ele fez um filme com esse título, O CIÚME (2013), que faz parte da chamada "trilogia do ciúme", junto com os já citados À SOMBRA DE DUAS MULHERES e AMANTE POR UM DIA. E Betsy é uma personagem forte e quase toma o filme para si, com sua autoconfiança e sensualidade. Mas também contribui em determinado momento com as lágrimas salgadas do título, quando precisa dar uma notícia ruim para Luc. E o que é aquela porta fechada no final, hein? E aquelas palavras do narrador? Um dos melhores filmes recentes, sem dúvida.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

terça-feira, março 23, 2021

NO SILÊNCIO DE UMA CIDADE (While the City Sleeps)



Nossa, parecia que fazia anos que eu não via um noir de Fritz Lang, de tanta saudade que estava. Isso aconteceu porque ando bem lento na minha peregrinação pelo cinema do diretor e eu tinha visto DESEJO HUMANO (1954) em dezembro do ano passado. Depois disso, vi a aventura gótica em cores O TESOURO DE BARBA RUBRA (1955) e o seu último filme silencioso, A MULHER NA LUA (1929). Ou seja, havia justificativa mesmo de eu estar com saudade dos filmes noir do nosso querido cineasta austríaco. E a saudade aumenta quando tenho a consciência de que se trata de seu penúltimo trabalho em Hollywood. Depois disso ele faria mais três filmes na Alemanha e se aposentaria.

NO SILÊNCIO DE UMA CIDADE (1956) faz parte da dobradinha de longas lançados pela RKO no mesmo ano, no formato tela larga 2:1, SuperScope, não muito a contento de Lang, até porque os filmes eram filmados no formato 1,33:1 e depois cropados para o formato definitivo. Isso deve ter contribuído ainda mais para que Lang tivesse essa opinião de repúdio ao scope, eternizado em fala clássica de O DESPREZO, de Jean-Luc Godard. O outro da dobradinha, SUPLÍCIO DE UMA ALMA (1956), devo ver nos próximos dias. 

Uma das coisas que Lang gostou em NO SILÊNCIO DE UMA CIDADE foi do bom trabalho com o roteirista e do ótimo planejamento financeiro, de modo que houvesse uma possibilidade de ter um filme com vários astros famosos. Isso se deveu ao fato de que os atores e atrizes famosos tiveram que estar disponíveis no máximo cinco dias, no máximo,  para que a produção modesta ganhasse ares de produção mais cara. Além do mais, eles se adequaram bem aos seus papéis. O único ator ruim é John Barrymoore Jr., que faz o papel do maníaco sexual assassino.

Assim, além de ter como protagonista Dana Andrews, o filme ainda contava com George Sanders, Thomas Mitchell, Rhonda Fleming, Ida Lupino e Vincent Price. O ambiente da trama se passa principalmente dentro de uma grande rede jornalística que já havia incluído a televisão como um apoio naqueles novos tempos, ainda que a mídia impressa fosse até mais forte.

O filme se inspira no caso real de um assassinato ocorrido em Chicago, em que um homem escreveu no espelho com batom "Por favor, apanhem-me antes que eu mate outra vez". Assim, foi criada a ideia do assassino do batom, já que no filme, o assassino deixa no espelho a frase "Pergunte à mãe”, o que deixa no ar uma tendência de explorar o aspecto psicológico de linha freudiana, que era comum na época - e ainda seria, vide o sucesso retumbante de PSICOSE, de Alfred Hitchcock, que surgiria em breve. Nesse sentido, e também na relação do personagem do assassino com a mãe, o filme de Lang antecipa o clássico de Hitch.

Aliás, o que deixa muita gente decepcionada é que o prólogo pré-créditos do filme traz uma falsa impressão de que o que estaríamos prestes a ver seria um filme mais violento, até por ele ter feito algo bastante violento em OS CORRUPTOS (1953), além de ter flertado discretamente com o horror com seu trabalho anterior. Ou seja, até que seria um caminho lógico. Em vez disso, NO SILÊNCIO DE UMA CIDADE opta por explorar os dramas de seus personagens, os jornalistas, que se veem em uma situação de rivalidade gerada pelo novo chefe (Price), que diz que premiará quem conseguir pegar o assassino primeiro, quem conseguir o furo. Nesse sentido, o personagem de Andrews faz algo que remete à carta de A GARDÊNIA AZUL (1953).

Há algo que, por sua vez, remete a M - O VAMPIRO DE DUSSELDORF (1931), que é a capacidade que Lang tem de se solidarizar com o maníaco, já que ele, mais uma vez, não consegue evitar os seus atos criminosos, seu problema é de natureza mental. Enquanto isso, os jornalistas, ou boa parte deles, atravessam limites de ética para conseguir o que desejam de maneira bem consciente.

NO SILÊNCIO DE UMA CIDADE também representou um momento de atrito entre Lang e os produtores, algo que já era contínuo, mas que faria com que ele desistisse de Hollywood para sempre. Um episódio que vale usar como exemplo é a cena em que Lupino mostra a/esconde de Andrews um daqueles monóculos com foto no bar. Essa cena teria sido cortada pela vontade do produtor Gene Fowler. Felizmente, a cena provocou risadas na sessão de pré-estreia e acabou ficando na versão definitiva. Foi um exemplo da richa que Lang tinha com os produtores, que sempre mexiam em seus trabalhos. Ele dizia que o único filme que ele teve direito a corte final foi M.

domingo, março 21, 2021

SMALL AXE



Depois de três semanas (ando lento, eu sei), terminei de ver os cinco filmes da antologia SMALL AXE (2020), de Steve McQueen. Imperdível. Seguem comentários breves, feitos no calor do momento em que foram vistos. 

OS NOVE DE MANGROVE (Mangrove)

Curioso como a gente foi educado para pensar sempre a sociedade britânica como se fosse essencialmente branca. Eles mesmos são muito apegados à herança da monarquia e fazem esse processo de apagamento das identidades negras em seus produtos culturais (filmes e séries, principalmente), mesmo havendo muita gente negra na Inglaterra, especialmente advinda da América Central. E que bom que Steve McQueen agora está trazendo esta série de filmes que tratam da cultura e da luta dessas pessoas, o quanto elas são alvo do ódio e do ataque da sociedade branca, em especial da polícia. Até poderíamos achar que o filme estaria exagerando nas ações violentas dos policiais, mas no mundo de hoje sabemos que não há limites para a maldade. Aqui o que temos é uma história de tribunal, mas muito tensa e que nos leva a um sentimento de revolta muito potente, e nos carrega com interesse até a conclusão. A série/antologia chegou à GloboPlay sem muito alarde, o que é uma pena, pois merece ser vista por muitos. Outro problema que me incomodou foi o fato de a Globo ter optado por cortar os lados da fotografia em scope para que coubesse na tela 1,78:1. Ao menos os outros filmes da antologia não utilizam essa janela de aspecto. 

LOVERS ROCK

Faz todo sentido ver LOVERS ROCK depois de OS NOVE DE MANGROVE, o primeiro da antologia de McQueen. Isso porque, se o primeiro se apoia em tensão e terror para a comunidade negra, LOVERS ROCK" representa um abrigo para aquele grupo de jovens negros proibidos de frequentarem clubes brancos, mas muito felizes nessas festas privadas dos anos 1980, em uma simples casa, mas com DJs com muita disposição para transformar aqueles momentos de diversão, namoro e encantamento com a música e a dança em um gesto político. O diretor não se preocupa aqui em um plot. Quem chega esperando por isso talvez se frustre. Aqui é pegar um beck (ou imaginar um, procurando relaxar) e se deixar levar por aquela atmosfera de empolgação, sensualidade e, de vez em quando, alguns atritos, porque gente mal intencionada existe em todo lugar. Há uma cena em especial que é lindona, ao som de "Silly Games", de Janet Kay, canção que pra mim foi uma descoberta maravilhosa.

VERMELHO, AZUL E BRANCO (Red, White and Blue)

Steve McQueen segue contando mais uma conto de racismo na Inglaterra, desta vez com a história se passando em um momento mais próximo de nosso presente, mas em uma realidade em que ainda não havia policiais negros. E um homem negro ser policial é um tanto arriscado para sua própria aceitação pela comunidade, por questões compreensíveis. O personagem de John Boyega deixa de lado uma carreira de pesquisador das ciências para tentar fazer a diferença naquele sistema corrompido e violento contra quem não é branco. O próprio pai do protagonista havia sido agredido gravemente pelos policiais apenas pelo fato de ser negro. E ele mesmo enfrentaria uma série de situações desanimadoras e revoltantes na corporação. A sensação de impotência é inevitável e o fato de o filme terminar com aquele diálogo entre pai e filho traz uma força que o filme necessitava, principalmente em sua meia hora inicial. John Boyega está ótimo.

ALEX WHEATLE

Sem ver o quinto filme da antologia ainda, arrisco dizer que este quarto é o menos inspirado. A trama se passa basicamente dentro de um flashback, quando Alex Wheatle (Sheyi Cole), o protagonista, depois de ser preso, conta ao colega de cadeia um pouco de sua história. É quando vemos sua criação em um orfanato, as dificuldades iniciais de socialização, a diferença que ele tem da educação distanciada da comunidade negra/jamaicana de Brixton e posteriormente sua busca por um identidade própria. É um filme que foca menos nos ataques sofridos pelos negros por policiais brancos (embora haja) do que os demais, e mais na personalidade interessante de Wheatle. McQueen também usa, em determinado momento, imagens de arquivo para trazer seu trabalho da ficção para mais perto da realidade.

EDUCAÇÃO (Education)

O mais bonito dos cinco filmes de SMALL AXE é este último. Talvez tenha me comovido mais, pois trata de um tema que me é muito caro, a descoberta da leitura, a importância de ensinar ao outro o prazer de ler. Na história, o pequeno Kingsley é um garoto que tem dificuldades de acompanhar as aulas em sua escola, mas que, em vez de ser incentivado, sofre bullying dos colegas e dos professores, além de ser "convidado" a deixar a escola e ingressar em uma outra, "especial". O filme destaca o quanto as pessoas negras eram deliberadamente tratadas desde a alfabetização pelo governo britânico. Um dos tantos méritos do filme é ainda usar um estilo visual que muito lembra os filmes e programas de televisão da década de 1970. Mas o melhor mesmo é a emoção que este pequeno filme provoca, não apenas na questão da educação pedagógica, mas no ensinar a valorização da cultura e história do povo negro. Todos deveriam ver.

sexta-feira, março 19, 2021

A MULHER NA LUA (Frau im Mond)



Terminei a fase silenciosa de Fritz Lang. De certa forma foi um alívio, já que tenho mais dificuldade de me concentrar em filmes mudos. E Lang, talvez por ser um dos mais importantes realizadores da Alemanha na época, fazia filmes bem longos. Este último, A MULHER NA LUA (1929), tem quase três horas de duração. Mas para quem já maratonou as duas partes de AS ARANHAS (1919, 1920), as duas partes de DR. MABUSE, O JOGADOR (1922) e as duas partes de OS NIBELUNGOS (1924), isso não é nada. Na verdade, dá uma sensação boa. Não só de dever cumprido, mas também de que foi recompensador acompanhar essa fase da filmografia do genial diretor e já ir percebendo suas obsessões.

Em A MULHER NA LUA suas obsessões seguem firmes, como o gosto por lidar com a espionagem e seu combo, que inclui chantagem, intrigas, vilões que mudam de rosto, coisa que ele já havia trabalhado também em seu fantástico vilão Dr. Mabuse. Este filme tem, porém, uma ambição que o distingue dos outros, que é sua intenção de ser mais próximo da realidade do que se pensava naquela época a respeito de viagem em foguete. Houve consultoria científica de dois especialistas em foguetes, Hermann Oberth e Willy Ley. Com a ascensão do nazismo, Ley fugiu para os Estados Unidos e Oberth se tornou um nazista. Mais ou menos o que aconteceu com Lang e sua esposa, a roteirista Thea von Harbou.

Para os dias de hoje, UMA MULHER NA LUA mais parece fantasia do que ficção científica, tendo em vista a evolução que se deu ao longo dos anos. Tanto é que o filme de Lang até faz lembrar VIAGEM À LUA, clássico da aurora do cinema silencioso dirigido por Georges Méliès. Mas, sem dúvida, deve sim ser considerado uma ficção científica, já que tem toda uma preocupação em explicar o processo de decolagem, a questão da gravidade, o detalhe do lado escuro da Lua etc.

É até bastante divertido acompanhar esse processo, que vai da decolagem até a volta para a Terra. Mas antes disso há cerca de uma hora de intrigas de espionagem e a apresentação de um vilão que muito lembra Adolf Hitler, especialmente pelo cabelinho lambido. Depois disso, há a memorável cena da decolagem. Lang, inclusive, tinha o orgulho de dizer que foi o seu filme que inventou a contagem regressiva para um foguete, que seria usada décadas depois nos Estados Unidos e na União Soviética. Como um mestre do suspense que é, Lang injeta uma expectativa grande no momento da decolagem.

Há também questões sentimentais. O personagem principal, Wolf Helius, vivido por Willy Fritsch, é apaixonado por Friede Velten, papel de Gerda Maurus - ambos os atores estiveram em OS ESPIÕES (1928), de Lang. Mas Friede está em processo de casamento com Hans Windegger (Gustl Gstettenbaur), seu amigo e engenheiro-chefe da empreitada. No fim das contas, Friede resolve ir junto na viagem, que também leva o inimigo deles e o velho cientista que acredita haver ouro na Lua.

As cenas dentro da nave são admiravelmente belas, além das cenas que apresentam a luminosidade da paisagem lunar. Lang sabia trabalhar interiores dentro de estúdio como ninguém e construiu aqui um espaço muito interessante em que cada personagem fica deitado durante toda a fase de subida do foguete. A cena da nave atingindo uma velocidade intensa me fez lembrar do recente O PRIMEIRO HOMEM, de Damien Chazelle. Assim, por mais que, ao chegar na Lua, a história se encaminhe mais para uma aventura fantasiosa, é preciso lembrar que aqueles eram outros tempos. 

quarta-feira, março 17, 2021

DUBLÊ DE CORPO (Body Double)



Depois de rever DUBLÊ DE CORPO (1984), no belo BluRay lançado recentemente pela Versátil, fui ver os extras presentes em um DVD. O que mais me deixou admirado foi saber o quanto o filme recebeu críticas negativas na época de seu lançamento, além das acusações que fizeram a Brian De Palma de estar exercitando a misoginia. Quanto às críticas negativas, pra mim foram novidade, pois comecei minha cinefilia vendo os críticos da revista SET enaltecendo esta e outras obras dele. Mas tudo bem. É um caso clássico de filme incompreendido em sua época. Se bem que se fosse lançado hoje também poderia ser alvo de controvérsia.

Para aprofundar meus estudos em De Palma, consegui um livro muito interessante, Brian De Palma’s Split-Screen - A Life in Film, de Douglas Keesey. Como o próprio título indica, trata-se de um livro que pretende analisar a obra levando em consideração fatos da vida do realizador. Esse tipo de estudo muito me interessa. Na época da faculdade, meu TCC foi sobre a vida e a obra de Edgar Allan Poe. No caso de De Palma, minha surpresa em saber certos detalhes de sua juventude me ajudou a tirar a imagem que eu tinha dele como um cineasta mais técnico e exclusivamente focado no cinema, bebendo da fonte de Hitchcock e de outros diretores, como Antonioni, Eisenstein ou Kubrick, para construir sua própria carreira. Algo que outros diretores pós-modernos, como Tarantino e Leone, também fazem/fizeram.

Acontece que há um homem de carne e osso por trás da câmera. Alguém que, assim como seus mestres, tem seus próprios traumas, seus próprios demônios a exorcizar (ou a alimentar). No caso de De Palma, ele foi criado como sendo o irmão menos inteligente da família; família que parecia promover uma competição entre ele e o irmão Bruce. E Bruce era o gênio da família, enquanto Brian ficava à sua sombra. 

Em DUBLÊ DE CORPO, vemos um homem frágil (Craig Wasson), tanto por sofrer de claustrofobia e isso lhe custar o emprego como ator de um filme de terror B, quanto por flagrar a namorada transando com outro homem quando voltava para casa. Assim, depois de ficar sem ter nem onde dormir, encontrar refúgio em uma casa muito especial e que ainda podia ver, através de um telescópio, uma linda mulher se masturbando e se despindo, isso parecia ser um alento e tanto, por mais que houvesse ali algum tipo de culpa pelo ato voyeurístico, mesmo que uma culpa não tão explicitada.

Outro evento importante na vida de De Palma aconteceu quando ele estava no ensino médio. Sua mãe tentou o suicídio com pílulas. O motivo: o marido a estava traindo. Disposto a proteger a mãe, o jovem De Palma gravou escutas telefônicas para servirem de provas do adultério do pai. Além disso, ele subiu numa árvore para tirar fotos comprometedoras do pai, e em seguida, o rapaz ainda entrou abruptamente em seu escritório e o flagrou com a amante. Isso foi fundamental para o processo do divórcio.

Quem leu esse parágrafo acima e teve contato com boa parte da obra do cineasta pode ficar, assim como eu fiquei, impressionado com as similaridades desses eventos com as tramas dos filmes do realizador. É possível fazer um estudo sobre questões morais, além de refletir o aspecto voyeurístico de suas obras. Curiosamente, seu contato com UM CORPO QUE CAI, do Hitchcock se deu poucos meses após ele ter fotografado o pai.

E é principalmente de UM CORPO QUE CAI, mas também, obviamente, de JANELA INDISCRETA, que ele se inspira para a materialização deste trabalho. Que é mais um exemplar também de excelência técnica, de um virtuosismo que poucos diretores vivos possuem. E o engraçado é que ele faz isso em DUBLÊ DE CORPO sem medo dos excessos. Para que melhor exemplo do que a cena do beijo na praia em 360º? Há uma questão interessante que Keesey levanta: o beijo que o protagonista ganha daquela mulher dos sonhos (Deborah Shelton) teria sido um prêmio por ele ter sido um "bom garoto", ao conseguir reaver a bolsa da moça. 

O homem depalmiano dividido pode ter visto a figura do "índio" como se fosse uma espécie de versão sombria de si. Afinal, assim como ele, o "índio" também apareceu primeiro em sua visão enquanto ele estava espiando a moça em seu balé sensual, que só depois ele descobriria que era feito para ele. Ou seja, assim como em UM CORPO QUE CAI, uma mulher havia sido contratada para enganar o protagonista de modo que houvesse um álibi para o assassino. A principal diferença em comparação a Hitchcock é que talvez De Palma use mais humor, um tom de sátira, que perpassa todo o filme e é um convite ao sorriso durante toda a metragem. Inclusive nas cenas de violência, como a que mostra o "índio" perfurando a vítima com uma furadeira elétrica gigante.

E embora goste muito do filme até aquele momento do assassinato da morena, acredito que DUBLÊ DE CORPO consegue ficar ainda mais interessante com a entrada em cena da loira vivida por Melanie Griffith, que faz a atriz pornô contratada para dançar para o personagem de Wasson sem que ele saiba. A entrada do personagem dentro do universo dos filmes pornográficos é também muito divertida e isso acabou causando problema ao diretor, já que ele chegou a contratar os serviços da estrela pornô Annette Haven e Hollywood odeia se misturar com o mundo dos filmes adultos. Por isso são tão poucos os diretores que se atrevem a contratar essas estrelas (Paul Thomas Anderson, John Waters, Steven Soderbergh e David Cronenberg são alguns deles).

E, nos bastidores, é curiosa a entrada de Melanie e a aceitação dela em fazer a cena sensual, imitando uma atriz pornô, já que ela havia rejeitado um papel em CARRIE, A ESTRANHA (1976), do próprio De Palma, pois não queria beijar um homem desconhecido. Anos depois, eis que ela aceita fazer este papel bem mais ousado, talvez por já ter feito cena de striptease em CIDADE DO MEDO, de Abel Ferrara, no mesmo ano. O ar doce e ingênuo mas também sensual de Melanie lembra um pouco Marilyn Monroe, e funcionou muito bem para o papel. Além do mais, como bom discípulo de Hitchcock, De Palma adorou trabalhar com a filha de uma estrela do mestre do suspense - Melanie é filha de Tippi Hedren (de OS PÁSSAROS e MARNIE - CONFISSÕES DE UMA LADRA).

Quanto à questão da misoginia, algo que pode depor bastante contra De Palma é o final do filme, quando vemos uma jovem bonita sendo filmada no chuveiro como vítima do vampiro e depois sendo substituída por uma dublê, que não tem o rosto tão bonito, mas tem seios mais belos. Ou seja, em De Palma, a ideia da mulher ideal se explicita na própria produção cinematográfica, quando a "magia do cinema" pode transformar duas belas mulheres em uma mulher ideal.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

terça-feira, março 16, 2021

DUAS MINISSÉRIES E DOIS EPISÓDIOS ESPECIAIS DE UMA SÉRIE



Tenho visto pouca série/minissérie nestes dias. Mas é bom quando consigo ver uma ou outra e vejo o quanto elas são eficientes em captar minha atenção, mesmo em tempos tão nebulosos. Como não estou com muita disposição física e mental para escrever com mais profundidade sobre estes trabalhos televisivos, que merecem sim nossa atenção, vamos de textos menores, textos feitos no calor do momento, na verdade.

THE UNDOING

Às vezes THE UNDOING (2020) parece uma versão estendida e muito sem-vergonha de thrillers estilo Supercine, mas a verdade é que há uma baita diferença quando temos alguém tão bom no uso dos diálogos na televisão quanto David E. Kelley. Assim como BIG LITTLE LIES (2017,2019), a trama foca em um assassinato que abala pessoas ricas; no caso, o casal vivido por Nicole Kidman e Hugh Grant, além do filho do casal (Noah Jupe). O que mais me impressionou nesta minissérie foi o desempenho de Grant. Já sou fã do ator desde a virada dos anos 80/90, mas tenho gostado muito de suas escolhas ousadas para fugir do estereótipo de galã cínico/tímido de comédias românticas. A minissérie A VERY ENGLISH SCANDAL já apontava isso e  THE UNDOING é uma espécie de continuação desse momento rico da carreira do ator. Quanto a Nicole Kidman, ela está muito à vontade, pois já vem de outro trabalho do mesmo criador e já faz tempo que provou ser uma ótima atriz. Sua ambiguidade faz parte da força da minissérie. Foi interessante o efeito que esta obra provocou em mim em diversos momentos. Foi como se eu estivesse um pouco no lugar do acusado do crime. Gosto de como a tensão nas cenas de tribunal são bem desenvolvidas, menos pelo script e mais pela atmosfera. Todos os episódios foram dirigidos por Susanne Bier.

A TEACHER

Uma minissérie que tem os seus altos e baixos, mas quando atinge altos provoca emoções fortes. Gosto muito do último episódio de A TEACHER (2020), por mais que ele tenha uma carga de didatismo. Mas diria que a minissérie se sai muito bem ao lidar com o drama dos personagens: uma professora e um aluno de 17 anos que têm um caso durante o terceiro ano do ensino médio e passam a arcar pelas consequências do ato. A princípio, a série até lida com a alegria dos atos inconsequentes, mas depois a coisa vai ficando muito pesada. Além do mais, nos EUA, professora que transa com aluno menor de idade vai mesmo pra cadeia. Boa interpretação de Kate Mara. O jovem Nick Robinson também é muito bom. Solidarizei-me com a paralisia dos personagens em determinado momento do último episódio. A criadora da minissérie é Hannah Fidell, que já havia feito um longa-metragem contando a mesma história em 2013, com um outro elenco.

EUPHORIA - TROUBLE DON'T LAST ALWAYS

No meio da pandemia, com todos os cuidados especiais de distanciamento e testes de Covid, Sam Levinson convidou Zendaya e Colman Domingo para este "especial de Natal" de EUPHORIA. Um presente para os fãs da série, que ficaram sem uma segunda temporada neste ano que passou. E como se trata de uma série sobre depressão, vício em drogas, autodestruição e dificuldades nos relacionamentos, não dá para esperar nada muito leve de um episódio novo. O que temos em TROUBLE DON'T LAST ALWAYS (2020) é um trabalho bem simples de conversa em um café. Zendaya ainda está usando drogas, não tem forças para largar; Domingo é o sujeito que está à disposição para ajudá-la, sendo ele também um dependente químico afastado há alguns anos das drogas. Às vezes parece uma reunião do N.A., mas é muito importante o serviço que uma série como essa oferece para os jovens, pois não se trata apenas de dizer que drogas fazem mal, destroem a vida etc. É tudo mais profundo, como fazer uma visita ao inferno pessoal, se sentir ainda mais fraco, mas ao menos se conscientizar de algo. O olhar desesperançado de Zendaya deve me assombrar pela noite adentro. Que menina talentosa! 

EUPHORIA - FUCK ANYONE WHO'S NOT A SEA BLOB

Depois do episódio estrelado por Rue (Zendaya), chegou a vez do ponto de vista de Jules (Hunter Schafer), a garota trans que mexeu com a cabeça de Rue e que também se apaixonou por ela. O episódio especial , FUCK ANYONE WHO'S NOT A SEA BLOB (2021), é basicamente uma conversa da personagem com sua psicanalista, e envolve assuntos bem profundos de sua feminilidade, das dúvidas sobre o seguimento do tratamento hormonal, dos problemas com a mãe, da saudade de Rue, de um pesadelo. Mas há também cenas que me surpreenderam, fora do ambiente do consultório. Várias até. Bem mais que o episódio da Rue. E funciona para que nos encantemos ainda mais com Jules. Esses dois episódios especiais ajudam a enfatizar o quão fundo a série de Sam Levinson pretende ir.

domingo, março 14, 2021

THE WORLD TO COME



As melhores histórias de amor são aquelas que mostram as pessoas enamoradas tendo que lidar com obstáculos imensos, seja da sociedade, seja de outros fatores que às vezes são até de natureza fantástica. No caso de histórias de amor entre duas mulheres que se passam em um ambiente histórico passado, talvez os maiores exemplos nos últimos anos sejam CAROL, de Todd Haynes, passado na Nova York dos anos 1950, e RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS, de Céline Sciamma, passado na região da Bretanha do fim do século XVIII. 

THE WORLD TO COME (2020), segundo longa-metragem da norueguesa Mona Fastvold, é mais um filme a engrossar o número de obras de época que abordam o amor proibido. Dessa vez são duas mulheres casadas, que vivem na área rural da Nova York do século XIX, que se apaixonam e passam a ter encontros às escondidas dos maridos, embora eles, aos poucos, passem a disconfiar e a ficar cada vez mais irritados com a situação.

O filme pode agradar pelos mesmos motivos que pode desagradar a certas audiências. No caso, muitos poderão não gostar da voiceover de Abigail, a personagem de Katherine Waterston. Para mim, porém, é uma das coisas mais bonitas que o filme oferece, trazendo um ar poético e lírico para a trama, e ajudando a tornar o passar dos dias como um elemento de angústia. Em alguns dias, nada acontece; em outros, a protagonista prefere estendê-los, de modo a mostrar os momentos de intimidade das duas mulheres. Adoro o som (e o tom) da voz de Waterston.

Na trama, Abigail é casada com Dyer (Casey Affleck). Os dois sofrem a perda recente da filhinha pequena. O casamento não anda muito bem. Um dia um novo casal aparece na redondeza, Tallie (Vanessa Kirby) e Finney (Christopher Abbot) alugam uma casa ali perto. Quem primeiro presta uma visita à vizinha é Tallie, que aparece elegante e com seu cachorro, enquanto Abigail está tirando a neve da varanda. O interesse amoroso que surge entre as duas se intensifica já neste primeiro café. O diário de Abigail nos ajuda a entender seus sentimentos e a perceber não só sua sensibilidade, como também seu talento como escritora. E é fácil entendermos o encanto que Abigail sente por Tallie e seus longos cabelos ruivos. Aliás, Vanessa Kirby está em outro papel intenso no mesmo ano de PIECES OF A WOMAN. Impressionante como esse ano que passou foi positivo para a atriz.

Um dos momentos mais belos de THE WORLD TO COME é o do primeiro beijo das duas mulheres. "Você tem cheiro de biscoitos", diz Abigail, um detalhe bonito e que faz rir, depois da tensão sexual que surge nos momentos anteriores ao beijo. A alegria das duas passa a ser a companhia uma da outra. Em determinada cena, Dyer percebe quando a esposa abre a porta sorrindo, achando ser Tallie e deixa de sorrir quando vê que é ele à porta. Ainda assim, dos dois maridos, ele é o que se mostra mais compreensivo. É um papel que combina com o jeito mais tranquilo, ou mais depressivo, de Casey Affleck, que é também um dos produtores do filme. Por outro lado, Christopher Abott talvez não tenha sido a melhor das escolhas para viver Finney, o marido que tenta escravizar a esposa usando versículos da Bíblia.

O filme é baseado em um conto de Jim Shepard, que assina o roteiro junto com Ron Hansen, o autor do romance que serviu de inspiração para O ASSASSINATO DE JESSE JAMES PELO COVARDE ROBERT FORD, de Andrew Dominik, e que também conta com Affleck no elenco. Talvez por ser a adaptação de um conto (e não de um romance) o filme respire melhor. Enquanto via as cenas de desespero de Abigail, por exemplo, lembrava das adaptações de Madame Bovary, que não conseguiam expressar esse momento de dor de maneira tão boa, muito provavelmente pelo compromisso de adaptar um romance. No filme de Fastvold, há espaço o bastante para que possamos apreciar a natureza, em suas mudanças ao longo das estações. As locações na Romênia são lindíssimas.

Outra coisa que muito me agradou em THE WORLD TO COME foi a trilha sonora de Daniel Blumberg, romântica e sombria com seu uso de cordas e clarinetes. Lembrou-me de imediato os arranjos usados no álbum O de Damien Rice. Além da trilha do estreante Blumberg, há também uma canção com o mesmo título do filme que sintetiza os sentimentos e as sensações que o filme traz e que nos deixa olhando, comovidos, para os créditos subindo.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante o filme.

sexta-feira, março 12, 2021

AUDÁCIA!



Aqui se percebe uma evolução de Carlos Reichenbach na maior espontaneidade com que ele fala de seus interesses, em especial o pensar cinema e o fazer cinema. Carlão achava uma ironia o fato de estar terminando a faculdade de cinema com a intenção de ser roteirista e estar dirigindo um filme sem roteiro, todo pensado à medida que ia sendo filmado. Esse é o clima de AUDÁCIA! (1970), uma continuação espiritual de AS LIBERTINAS (1968), no sentido de ser da mesma produtora independente, mas com uma evolução técnica maior.

Há também bem mais citações à Nouvelle Vague e a Samuel Fuller. O filme se inicia como um documentário apresentando a Boca do Lixo, o cenário em que trabalhavam os principais cineastas de São Paulo. Lá estão Rogério Sganzerla, José Mojica Marins, Ozualdo Candeias, Maurice Capovilla. Aliás, há cenas do set de O PROFETA DA FOME, de Capovilla. Carlão faz uma transição para a ficção de maneira bem inteligente ao colocar sua protagonista, a cineasta Paula Nelson (Maria Cristina Rocha), entrevistando José Mojica Marins, interpretando a si mesmo e dando conselhos para a novata.

A partir de então começa de verdade o segmento "A Badaladíssima dos Trópicos x Os Picaretas do Sexo", em que Paula decide conseguir dinheiro com seu namorado, um rico fazendeiro, para fazer seu primeiro filme. Durante as filmagens, o namorado se envolve com a atriz principal e ela, por sua vez, se envolve com um amigo ator, ainda que seja um envolvimento sem sexo. Curiosamente Paula se orgulha de permanecer virgem. O que é, aliás, algo que faz parte das contradições comuns de se encontrar nos filmes de Carlão, vide GAROTAS DO ABC (2003), que traz uma jovem negra namorando um neonazista.

A figura de Paula parece claramente um alter-ego de Carlão, tanto pela paixão pelo cinema, quanto pelo desejo de fazer filmes e seus ideias libertários e políticos sendo explicitados na fala e nos gestos. O filme vai perdendo um pouco do bom ritmo interessante de seu início à medida que a ficção (o filme sendo realizado por Paula) vai se misturando com a realidade. Ainda assim, é um prazer poder ver mais este filme do realizador. Até por ser um filme que se aproxima mais com as obras que Carlão tanto amava, que eram os filmes B americanos, os exploitations e as obras de jovens cineastas da época.

O longa se encerra com o segmento de cerca de meia hora chamado "Amor 69", de Antônio Lima, que também apresenta a história de um cineasta obcecado (dessa vez um homem) que procura locações para seu filme. Ao final, o diretor quer mesmo é ver a atriz tirando a roupa para seu filme. Bem mais descompromissado que o filme do Carlão, o segmento de Lima expande o amor pelo cinema brasileiro, ao incluir homenagens explícitas a nomes como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Roberto Santos, entre outros.

AUDÁCIA! traz um clima de contracultura muito mais intenso do que AS LIBERTINAS, embora seja tão irregular quanto. Eu até diria que AS LIBERTINAS sai ganhando um pouco por causa do curta de João Callegari.

quinta-feira, março 11, 2021

AS LIBERTINAS



"Quando nós três, eu, Callegaro e Lima, resolvemos que iríamos fazer um filme ruim, decidimos filmar tudo da maneira como não se deve filmar habitualmente. Tivemos que desaprender cinema."
Carlos Reichenbach
(retirado do livro Carlos Reichenbach - O Cinema como Razão de Viver, de Marcelo Lyra)

Alguns filmes de Carlos Reichenbach seguem inacessíveis. Um dos que mais tenho vontade de ver é O PARAÍSO PROIBIDO (1981). Quem sabe um dia surge uma oportunidade. Assim como surgiu agora, com a exibição de dois filmes raros do início da carreira de Carlão, em exibição durante a Mostra de Cinema de Gostoso, que este ano está acontecendo online e gratuito, no período de 10 a 14 de março. Portanto, caso vocês queiram ver os filmes em segmentos AS LIBERTINAS (1968) e AUDÁCIA (1970), eis uma chance de ouro.

Falemos de AS LIBERTINAS, que foi o que eu pude ver até o momento. Trata-se de um filme feito graças aos esforços iniciais de Carlão e João Callegaro, que eram colegas na Faculdade de Cinema São Luís. Callegaro estava insatisfeito com o fato de eles serem proibidos de filmar durante o primeiro ano de curso. Assim, AS LIBERTINAS foi todo feito com recursos próprios e de forma amadora, e inspirado em filmes de praia com um pouco de nudez, em especial um que estava indo bem de bilheteria chamado SEXY GANG, de Henry Jacques.

Como era proibido falar de política naquele momento, o caminho parecia fazer filme sobre sexo. O cartaz de AS LIBERTINAS é até engraçado, pois mostra como o filme é vendido como um produto intensamente relacionado ao sexo, mas isso é algo que pode desapontar ao espectador de hoje que for com muita sede ao pote, esperando por cenas picantes. Na verdade, é mais um filme de histórias de infidelidade, todas se passando no litoral paulista, e um retrato muito interessante do Brasil do final dos anos 1960, que equilibra tanto o clima de revolução sexual com o conservadorismo do país. Isso é usado com humor na cena que mostra o casal no quarto com duas camas separadas, falando do quanto isso foi influenciado pela Hollywood pós-codigo Hays.

O primeiro episódio (que foi o último a ser rodado) é "Alice", dirigido por Carlão, que mostra um homem que se divide entre a esposa (a Alice do título) e a amante. Mas há também outros personagens na trama, mas nem sempre entendemos muito bem seus propósitos. Na verdade, a bagunça deste episódio tem sua razão de ser, além de um posicionamento ideológico, com essa coisa de fazer um filme ruim - em certo momento, o próprio Carlão chutou o tripé da câmera de seu diretor de fotografia, que ficou “p” da vida com ele por isso.

O que ocorreu é que os episódios já filmados de Antônio Lima ("Angélica") e de João Callegaro ("Ana") não davam 40 minutos de duração. Assim, Carlão teve que espichar seu segmento, para que pudesse os três pudessem dar um longa-metragem comercializável. Assim, logo que a personagem Ana sai de cena, o filme continua com outros personagens, meio que à deriva e sem muito sentido. Em certo momento, até achei que já se tratava do episódio seguinte, mas não: era mesmo fruto da imposição dos produtores e uma batata quente que caiu justo nas mãos de quem filmou o seu segmento por último.

A segunda história, "Angélica", dirigida por Antônio Lima, é bem menor e me fez lembrar algumas obras de Éric Rohmer, por causa do ar litorâneo e do interesse na juventude, mas talvez a influência maior tenha sido mesmo de Jean-Luc Godard (neste e também no filme do Carlão). Esse filme destaca uma mulher apaixonada por um homem e sente muito ciúme dele. O sujeito, por sua vez, está se envolvendo com uma garota na praia.

A terceira história, "Ana", dirigida por Callegaro, é a mais bem-resolvida e conta a história de um casal que, passando férias numa casa de praia, conhece uma jovem moça. O homem acaba se envolvendo com a moça e acontece uma reviravolta bem interessante. Aliás, é curioso como esse é o único dos três segmentos que parece ter um plot bem estabelecido. E é o único que faz valer a intenção do filme de ser graficamente erótico, graças a uma cena de três minutos de um strip-tease. Depois desse, fiquei curioso para ver O PORNÓGRAFO (1970), o único longa-metragem solo de Callegaro.

O fato é que, mesmo com todas as dificuldades de produção, AS LIBERTINAS foi um sucesso de bilheteria, conseguiu se pagar e render o suficiente para que a produtora Xanadu Produções Cinematográficas fizesse um segundo filme em segmentos, AUDÁCIA, dirigido apenas por Carlão e Antônio Lima. 

domingo, março 07, 2021

ENORME (Énorme)



Assisti a ENORME (2019) em janeiro passado e demorei muito tempo para escrever a respeito, mas vou tentar agora recorrer um pouco à minha memória, pois considero o filme de Sophie Letourneur um dos mais interessantes lançamentos deste ano, por mais que seja uma obra problemática do ponto de vista moral. O filme chamou a atenção do círculo de cinéfilos quando apareceu no top 10 da Cahiers du Cinéma do ano passado (em nono lugar). O registro de comédia grotesca me fez lembrar ROCK'N ROLL - POR TRÁS DA FAMA, de Guillaume Canet. Ou seja, ao que parece os franceses têm um senso de humor bem diverso.

Foi o segundo filme em um intervalo de uma semana que tratou do assunto gravidez/parto que eu vi - o outro foi PIECES OF A WOMAN, de Kornél Mundruczó, totalmente distinto em tom, registro, intenção etc. O registro de ENORME é o de comédia escrachada, mas depois há uma mistura com momentos dramáticos muito bonitos e também um flerte com o documentário, o que o torna ainda mais bizarro, um objeto estranho, singular.

É estranho, pois é um filme que se assume fantasioso em determinado momento e também por nos trazer situações não exatamente confortáveis. Somos apresentados a uma pianista de sucesso, Claire (Marina Foïs), que é totalmente focada em seu trabalho, não encontra tempo para pensar nem mesmo na própria alimentação ou em outros "detalhes" da vida normal. Para isso ela tem como assistente o próprio marido, Frédéric (Jonathan Cohen), que faz tudo para ela: agenda seus voos e espetáculos, organiza seus remédios, faz as compras, e, quando vê que ela está estressada oferece a ela sexo oral. Até mesmo no dia do aniversário dele, que ela esquece, ele dá como solução ele mesmo comprar o próprio presente para que ela não tenha nenhum trabalho.

Nesse sentido, o que vemos até então é a visão de uma mulher um tanto egoísta, de certa forma, o que aliás é comum de se ver em grandes artistas, aqueles que podem se dar ao luxo de focar suas vidas inteiramente em seu trabalho. As coisas mudam para Frédéric quando ele ajuda uma mulher a dar à luz em um voo. Isso desperta seu “instinto paternal” e ele acredita que precisa ter um filho. Mas o que fazer se a mulher não quer? Ele faz, então, uma ação abominável: troca os anticoncepcionais dela por comprimidos com açúcar, para que, assim, ela possa engravidar, contra a própria vontade. Detalhe: a ideia partiu da mãe de Frédéric. E assim entramos em um território altamente espinhoso, que é o território da violação do corpo da mulher. Como se não bastasse, a diretora e seu corroteirista optam por um exagero no modo como a barriga da mulher cresce, de maneira monstruosa. Sem dúvida, um tipo de humor bem estranho.

As coisas ficam ainda mais surreais quando o filme dá uma guinada e se transforma também em um drama sobre direitos, especialmente quando a mulher descobre que o marido mentiu para ela e agiu contra sua vontade. O reconhecimento (ou não) do ato imoral por parte de Frédéric e a crise no casamento levam o filme para caminhos inesperados, que também se misturam com cenas de especialistas reais da medicina nos consultórios e depois a uma longa cena de parto, que muito impressiona.

Ou seja, temos aqui uma obra controversa, especialmente para os dias de hoje, que brinca com a troca de papéis de marido e esposa, como se fosse uma comédia dos anos 1980 ou 90, que tem uma ambiguidade torta no modo como vemos os personagens, mas que de certa forma é um convite à reflexão sobre limites, maternidade e individualidade.

sábado, março 06, 2021

WANDAVISION



Foi um presente para os fãs da Marvel esta minissérie tão bem desenvolvida e tão bem planejada. Depois de um ano em que não tivemos nenhum filme da Casa das Ideias por causa do atual cenário mundial, só de ver novamente a vinheta da Marvel já foi uma alegria. E quando damos de cara com uma série tão inventiva, que brinca com a história da televisão americana em seus primeiros episódios, com as sitcoms de diferentes décadas, ao mesmo tempo que segue sendo uma trama de ação, comédia e mistério, tudo isso só nos deixa ainda mais impressionados. O passo que a Marvel deu com WANDAVISION foi decisivo para conquistar agora também os lares, depois de ter conquistado os cinemas.

É verdade que houve um bocado de decepção na conclusão de WANDAVISION (2021), mas é inegável que esta primeira minissérie da Disney + fez o que praticamente nenhuma outra série conseguiu. Mais até do que LOST, pois os tempos agora são outros e os canais de YouTube, cada vez mais nossos companheiros nesses tempos de pandemia, se mobilizaram bastante durante as nove semanas que durou a minissérie. Aliás, que bela estratégia essa da Marvel de não repetir o que a Netflix faz e entregar apenas um episódio por semana. Pensava-se que isso estaria perdido com o fim de GAME OF THRONES, mas felizmente não está.

Em vez de jogar todos os episódios de uma só tacada e garantir uma repercussão de uma semana, WANDAVISION garante uma repercussão gigante de pelo menos nove semanas. Digo “pelo menos”, pois a Marvel está sempre interligando seus filmes e esta é a primeira série da Casa das Ideias que realmente é essencial que seja vista junto com os filmes para cinema, ao contrário das demais (AGENTES DA S.H.I.E.L.D, AGENTE CARTER, e principalmente as séries do DEMOLIDOR, JESSICA JONES etc., exibidas na Netflix), que não tinham uma ligação tão estreita com esse universo. E isso é totalmente coerente com o espírito dos quadrinhos da Marvel, que sempre tiveram essa forte preferência pela continuidade. Por mais que acabem os arcos, todas as histórias seguem continuando e continuando e sendo integradas com as histórias de outros heróis. E assim foi construído também o Universo Cinematográfico Marvel desde HOMEM DE FERRO (2008).

É impressionante a ousadia que a equipe da Marvel teve e também seu bem-sucedido planejamento (não é incrível que eles já tenham prontas todas essas séries em plena pandemia?). A ousadia aqui, no caso, se refere principalmente à ótima ideia de homenagear séries de televisão de maneira muito criativa. A trama principal é inspirada tanto em Visão, a premiada minissérie mais recente de Tom King e Gabriel Hernandez Walta, quanto nas histórias dos anos 1970 dos Vingadores que mostraram o drama da Feiticeira Escarlate depois que soube que seus filhos não são reais, mas criados por sua mente. Ou seja, souberam aproveitar a história de uma mulher extremamente poderosa que entra em colapso e faz coisas inimagináveis.

Como nos quadrinhos, há uma participação fundamental de Mefisto (o diabo da Marvel), era natural que se criassem inúmeras teorias sobre a participação do vilão na história de WANDAVISION. E muita gente quebrou a cara, assim como quebraram a cara quando acreditaram que o Pietro, não o Pietro do UCM, morto em VINGADORES - ERA DE ULTRON (2015), mas o dos X-Men (da Fox), vivido por Evan Peters, e quem seria uma possível indicação de que a Marvel estaria trazendo à tona o conceito de multiverso.

De todo modo, não creio que as escolhas dos Estúdios Marvel tenham sido ruins. Ao contrário, ao final ficamos sabendo sobre o que é de fato a série: sobre perda e luto. E trazer isso dentro de um formato colorido e cheio de momentos também de bom humor, até como forma de esquecer as dores, só mostra o quanto os criadores da série foram sensíveis aos personagens e ao assunto.

Também é sobre o amor intenso de Wanda pelo Visão, o sintozóide morto em VINGADORES - GUERRA INFINITA (2018), e que ganha vida graças aos poderes de manipulação da realidade de Wanda. Aliás, vale destacar aqui o excelente trabalho de interpretação de Elizabeth Olsen e Paul Bettany, que formaram até agora o mais comovente e bonito casal do UCM. Eles funcionam tanto no registro da comédia (quando a série emula as sitcoms), quanto no registro dramático. Destaquemos também a grande vilã, Agnes/Agatha Harkness, vivida por Kathryn Hahn.

Uma curiosidade é o nome de Jac Schaeffer, que aparece como criadora da minissérie. Vendo no IMDB, ainda que apareça vários créditos dela como roteirista, seu único longa-metragem na direção é o pouco conhecido TIMER - CONTAGEM REGRESSIVA PARA O AMOR (2009), uma mistura de comédia romântica com ficção científica. Ou seja, tem tudo a ver com WANDAVISION, aparentemente. Isso só mostra o quanto a Marvel é antenada em descobrir jovens realizadores que podem contribuir com seus talentos para a companhia.

terça-feira, março 02, 2021

LA FLOR



Foi então que eu percebi que eu não queria um filme: eu queria fazer centenas de filmes com elas! Eu queria que "filmes com elas" se tornasse um gênero próprio. Foi então que tive a ideia de fazer um filme que seria todos os filmes.
(Mariano Llinás, em entrevista à revista CinemaScope)

Achei linda essa declaração de Llinás acima, ao falar não apenas da razão de ser de sua obra-prima LA FLOR (2018), mas do quanto ele queria trabalhar com as quatro atrizes, que não eram muito famosas na época do início das filmagens, em 2008. Sim, o filme demorou cerca de 10 anos para ficar pronto. Mas isso é apenas mais um dos fatos extraordinários acerca deste trabalho. E voltando à paixão por suas atrizes, sim, isso é sentido do lado de cá da tela, até porque nos apaixonamos por elas também.

Llinás havia visto as quatro no teatro e simplesmente quis fazer algo com elas. Só que um filme só não era o bastante. Havia muitas ideias, muitos desejos, muitas imagens em sua mente. Por isso LA FLOR se tornou esse objeto estranho e singular, em que temos seis filmes em um ao longo de quase 14 horas. E são filmes com durações bem distintas, sendo que um deles tem cerca de seis horas, outros de duração mais “comercial” e os últimos são algo próximos de curtas-metragens. E são todos eles exercícios com diferentes gêneros cinematográficos.

Quanto às atrizes, são elas: Laura Paredes, que eu havia visto em LA PRINCESA DE FRANCIA, de Matías Piñero, mas em papel pequeno, nem lembrava mais dela; Elisa Carricajo, que também esteve no referido filme de Piñero, e que vi recentemente nos cinemas em UM CRIME EM COMUM, de Francisco Márquez - fiquei impressionado com sua performance; Pilar Gamboa, que havia visto em O FUTURO ADIANTE, de Constanza Novick, também nos cinemas, há um par de anos; e Valeria Correa, cujo trabalho me era até então completamente desconhecido. Nem preciso dizer que surgiu um interesse grande em vê-las mais vezes, assim como surgiu um interesse maior pelo cinema argentino, que tão pouco chega a nosso circuito.

Depois de uma espirituosa explicação e apresentação do filme pelo próprio Llinás logo no início, adentramos o primeiro episódio, que é um filme de horror B sobre uma múmia que aterroriza um grupo de arqueólogos. O episódio em si não tem aquele clima de susto, passa sempre aquela impressão de que "estamos vendo um filme" ou de uma brincadeira que não se leva muito a sério. Mas isso marcou o início de uma das mais bonitas parcerias entre cineasta e elenco que eu já vi.

Esse primeiro filme/episódio não me empolgou tanto assim, mas o segundo foi uma experiência extraordinária. Trata-se de um musical com toques de suspense hitchcockiano. Mas não foi nem o suspense que me deixou em êxtase - embora tenha achado esse aspecto de uma elegância impressionante. O que mais me ganhou foram as canções belíssimas e como elas e a história trazem para o filme um melodrama de cores bem latinas. Foi quando percebi que também estava me apaixonando pela sonoridade da língua espanhola, seja nas canções, seja na voz off que se faz bastante presente nessa história de corações feridos e construções de lendas e narrativas.

Aliás, é impressionante como o cineasta tem um apreço por narrativas clássicas, por mais que seu filme se aproxime de algo mais moderno ou de vanguarda. No fundo, o que vemos e ouvimos é herdeiro do cinema dos mestres. O próprio diretor citou na já citada entrevista sua paixão por diretores como Jean Renoir, Alfred Hitchcock e Roberto Rossellini. Ou seja, LA FLOR é uma ode à narrativa clássica, muitas vezes uma narrativa que muito se assemelha à do romance, seja pela trajetória mais longa, seja pelo prazer com que a palavra em si é usada.

Por mais que em alguns momentos o uso da narração em voice-over pareça uma opção criativa para disfarçar um orçamento modesto, ela funciona também para dar um ar mais amoroso ao filme, principalmente no terceiro episódio, o thriller de espionagem na guerra fria, em que as quatro mulheres são espiãs prestes a encontrar um grupo inimigo em uma área rural da América do Sul, enquanto carregam um homem como refém. Esse terceiro episódio, até pela sua maior metragem, é o que mais explora a força das quatro atrizes. Os flashbacks das histórias de vida de cada uma das quatro engrandecem e muito o filme, ao acentuar suas histórias sofridas, passadas em diferentes partes do globo. Esse terceiro episódio, falado em várias línguas, levou quase seis anos para ficar pronto.

Daí a solução para o quarto episódio ser ainda mais inventiva. O diretor não sabia de fato o que iria fazer, as ideias foram surgindo à medida que ele ia trabalhando com sua equipe filmando árvores. Curiosamente, ele teve uma ideia de um filme que já havia sido feito, FIM DOS TEMPOS, de M. Night Shyamalan, sobre as árvores se voltando contra a raça humana. Seus amigos avisaram que essa ideia já havia sido usada e ele então desistiu. E que bom que desistiu, pois esse quarto episódio tem tanta invenção e surpresas que é difícil não se pegar sorrindo enquanto se assiste. Seja pelos jogos de metalinguagem, seja pela ideia genial de fazer um filme de bruxas.

Nesse quarto episódio as quatro atrizes aparecem pouco, mas aquele final com elas sendo filmadas de maneira íntima e amorosa é tão bonito que a declaração de amor se torna cada vez mais tocante e explícita. Sem falar que, mesmo estando ausentes, nesse filme de quase quatro horas, elas meio que têm seus espíritos sempre presentes e rondando toda parte, como se fossem de fato forças sobrenaturais.

Terminar o projeto com uma homenagem (ou um roubo, como o diretor prefere dizer) a UM DIA NO CAMPO, de Jean Renoir, e depois, com o sexto episódio, fazendo uma espécie de filme mudo emulando pinturas impressionistas, me deixou sentindo falta das vozes, principalmente das vozes das atrizes. Mas foi muito fácil aceitar as opções do cineasta e terminar essa jornada com um forte sentimento de gratidão.

Agradecimentos à Paula por acompanhar comigo essa obra tão desafiadora quanto deliciosa.

segunda-feira, março 01, 2021

GLOBO DE OURO 2021



O Globo de Ouro é uma festa que se justifica, pelo menos pra mim, não exatamente por seus prêmios. É gostoso ver as celebridades do cinema e da televisão juntas para uma festa descontraída e com direito a mesas para cada equipe de filme ou série. Há também o tapete vermelho esplendoroso onde as mais belas mulheres desfilam com seus vestidos cuidadosamente pensados para a ocasião. Mas em tempos de Covid não há isso. O tapete vermelho com as poucas pessoas nem foi televisionado pela TNT (deve ter passado no E!). Nada de mesas com bebidas com os astros e estrelas. As mesas estavam com pessoas que trabalharam nos serviços essenciais. 

A solução dada para a direção do prêmio foi até criativa, levando em consideração a situação. Achei que várias coisas dariam muito errado, inclusive por causa dos escândalos recentes da associação de críticos estrangeiros de Los Angeles. Eles conseguiram fazer uma bela festa, prometeram resolver a questão da representatividade e acredito que o prêmio sobreviverá por vários anos.

Quanto à solução, de trazer Amy Poehler e Tina Fey apresentando a festa distantes fisicamente, uma em Los Angeles, outra em Nova York, e os candidatos "recebendo os prêmios" de suas casas, tudo funcionou bem. No começo, com o primeiro prêmio para Daniel Kaluuya, o microfone ficou mudo e achei que os problemas técnicos seriam a tônica da noite. Felizmente não foi. O próprio Kaluuya conseguiu falar, enfatizando a necessidade da continuidade da militância. De todo modo, podemos destacar pelo menos uma situação esquisita: o prêmio de filme em língua estrangeira para MINARI - EM BUSCA DA FELICIDADE, justamente a produção americana que estava concorrendo. São regras que a organização precisa rever.

Os grandes vencedores da categoria cinema na noite foram NOMADLAND, que ainda ganhou o prêmio de direção para Chloé Zhao, e BORAT - FITA DE CINEMA SEGUINTE, que conquistou o prêmio de ator para Sasha Baron Cohen, que fez piada nas duas vezes que recebeu o prêmio, a primeira agradecendo a Rudy Giuliani e a segunda dizendo que Donald Trump já estava contestando os resultados.

O momento mais emocionante da noite foi a premiação póstuma para Chadwick Boseman, por A VOZ SUPREMA DO BLUES. Quem "recebeu o prêmio" foi a viúva do ator, que, muito emocionada, imaginou as possibilidades de pessoas a quem ele agradeceria em seu discurso, mas disse com tristeza, "eu não tenho as palavras dele, mas temos que usar cada momento para celebrar aqueles que amamos".

Quanto aos prêmios de televisão, é sempre curioso como os indicados funcionam para mim como um meio de me deixar interessado nas séries, minisséries e telefilmes indicados. Alguns indicados já estão na minha listinha. Só não vou dizer quais são, pois posso acabar não vendo.

Os grandes vencedores da noite foram THE CROWN, com quatro prêmios (sendo que havia atrizes que competiam entre si); SCHITT'S CREEK, com dois prêmios, e O GAMBITO DA RAINHA, com dois prêmios, sendo que Anya Taylor-Joy também concorria na categoria de cinema por EMMA..

Agora é torcer/orar para que no próximo ano estejamos vivos e possamos estar de volta à normalidade. Aqui no Brasil não sei se ainda será possível, mas imagino que os americanos terão mais sorte.



Cinema

Filme (Drama): NOMADLAND
Filme (Comédia/Musical): BORAT - FITA DE CINEMA SEGUINTE
Direção: Chloé Zhao (NOMADLAND)
Ator (Drama): Chadwick Boseman (A VOZ SUPREMA DO BLUES)
Ator (Comédia/Musical): Sasha Baron Cohen (BORAT - FITA DE CINEMA SEGUINTE)
Atriz (Drama): Andra Day (ESTADOS UNIDOS VS BILLIE HOLIDAY)
Atriz (Comédia/Musical): Rosamund Pike (EU ME IMPORTO)
Ator Coadjuvante: Daniel Kaluuya (JUDAS E O MESSIAS NEGRO)
Atriz Coadjuvante: Jodie Foster (THE MAURITANIAN)
Roteiro: OS 7 DE CHICAGO
Trilha Sonora: SOUL
Canção Original: "Io Sì (Seen)" (ROSA E MOMO)
Animação: SOUL
Filme em Língua Estrangeira: MINARI - EM BUSCA DA FELICIDADE (EUA)

Televisão

Série (Drama): THE CROWN
Série (Comédia/Musical): SCHITT'S CREEK
Minissérie ou Telefilme: O GAMBITO DA RAINHA
Ator de Série (Drama): Josh O'Connor (THE CROWN)
Ator de Série (Comédia): Jason Sudeikis (TED LASSO)
Ator em Minissérie ou Telefilme: Mark Ruffalo (I KNOW THIS MUCH IS TRUE)
Atriz de Série (Drama): Emma Corrin (THE CROWN)
Atriz de Série (Comédia): Catherine O'Hara (SCHITT'S CREEK)
Atriz em Minissérie ou Telefilme: Anya Taylor-Joy (O GAMBITO DA RAINHA)
Ator Coadjuvante em Série, Minissérie ou Telefilme: John Boyega (SMALL AXE)
Atriz Coadjuvante em Série, Minissérie ou Telefilme: Gillian Anderson (THE CROWN)