sábado, agosto 27, 2022

NÃO! NÃO OLHE! (Nope)



É difícil não ficar impressionado com a trajetória ainda curta de Jordan Peele como autor e perceber que suas escolhas para cada novo trabalho na direção têm sido tão acertadas quanto ousadas. Seu sucesso inicial com uma produção de baixo orçamento como CORRA! (2017), que rendeu até indicações ao Oscar (algo pouco comum para filmes de horror), foi o suficiente para que os holofotes se posicionassem a seu favor e o colocassem na lista não apenas dos mais importantes e melhores cineastas de horror contemporâneo (ao lado de caras como Ari Aster, Mike Flanagan, Robert Eggers, entre outros), mas como um dos grandes autores do cinema atual, não importando o gênero. 

Depois de NÓS (2019), o segundo filme que tratava de questões raciais e que conquistou muitos críticos, Peele aponta para uma nova direção com NÃO! NÃO OLHE! (2022), sua produção mais cara até o momento, e que teve uma ótima divulgação por parte da Universal. Isso fez com que uma obra totalmente nova e original conseguisse chegar aos cinemas de shopping e até mesmo às salas IMAX. O que é, aliás, essencial, já que muitas cenas foram filmadas com essa belíssima tecnologia.

Ter a oportunidade de ver o filme nos cinemas, e ainda por cima em uma sala IMAX, não tem preço. O que não deixa de bater um pouco de tristeza, sabendo que são poucas as cidades que disponham de cinemas, quanto mais de uma sala com tela gigante. Logo, futuramente, ele será aquele tipo de filme que será visto na telinha com os espectadores pensando: “puxa, esse filme deve ser fantástico de ser apreciado na tela de cinema”. E isso acaba funcionando como um ato de resistência do cinema a esse momento de crise, em que as pessoas estão se distanciando da sala escura, da telona, do som de altíssima qualidade, muito por causa dos streamings, mas também pelos novos hábitos adquiridos com a pandemia.

E NÃO! NÃO OLHE! é principalmente um filme sobre cinema, uma grande homenagem do diretor ao cinema, à sua história, às diversas maneiras de capturar imagens, seja de forma analógica, seja de forma digital; seja através de um celular, seja com câmeras IMAX (e até sem eletricidade). E há também citações à televisão, às sitcoms, com a subtrama envolvendo um chimpanzé que enlouquece em um set e mata várias pessoas. O capítulo dedicado ao chimpanzé, aliás, é tão bom que faz com que a gente imagine um futuro filme de Peele sobre algo do tipo, de como ele é hábil para trazer o horror. Mesmo o horror mais convencional, já tantas vezes utilizado ao longo de mais de 100 anos de cinema. Mas não: ele prefere contar uma história com uma originalidade incrível.

O olhar para o céu de NÃO! NÃO OLHE! é tão mágico que é preciso uma janela gigante para que o filme possa ser apreciado em sua plenitude. Daí a lembrança que a obra traz eventualmente de westerns, como os de John Ford, especialmente para a apreciação do céu e dos grandes espaços abertos. Mas esse espaço aberto pode ser tão aterrador quanto um espaço fechado, o que gera claustrofobia. Lembrei-me recentemente de O ATALHO, de Kelly Reichardt, um western com tintas de suspense e mistério, que trata desse tipo de sensação. Mas Peele vai além do realismo e também me fez lembrar de A AMEAÇA QUE VEIO DO ESPAÇO, de Jack Arnold, seja pelo tema do extraterrestre, seja por esses espaços abertos.

Gosto de como o diretor estende o mistério e no final ainda não dá respostas simples para o espectador. Ele é talvez o que o Scorsese chama de cineasta contrabandista, que leva a alta arte para as salas mais comerciais. Por mais que fiquem pouco claras as alegorias, o filme funciona como suspense e mistério independente do que possa querer significar. E isso faz toda a diferença quando se tenta vendê-lo para um público amplo, como é a intenção do cineasta.

A mudança de Peele para o horror de ficção científica é também uma prova de seu amor pelo subgênero e pelas histórias fantásticas de séries como ALÉM DA IMAGINAÇÃO – tanto que ele chegou a criar uma nova para a série em 2019-2020. Sua passagem pela televisão também rendeu a série LOVECRAFT COUNTRY (2020). Porém, em nenhuma dessas séries ele botou a mão na massa como diretor. Sua carreira na direção, portanto, segue invicta com seus três celebrados longas.

É possível pensar alguns simbolismos de NÃO! NÃO OLHE! como provocações de Peele com a indústria cinematográfica. O que temos são personagens negros que se apresentam como caubóis, o que não deixa de ser pouco usual na trajetória do gênero. E há também a questão de que o primeiro filminho criado foi o de um jóquei negro em cima de um cavalo, sendo que se sabe o nome do diretor, mas não daquele homem negro. Além do mais, o fato de o que parece ser um disco voador no começo se apresentar como um chapéu também pode chamar a atenção para a ameaça proveniente dos homens brancos que invadiram o território americano e impuseram sua cultura. Essa criatura no céu suga todos aqueles que parecem ser uma ameaça. E quer algo mais ameaçador do que um grupo de jovens negros com música de altíssima qualidade se destacando na indústria cultural?

O filme guarda tantos detalhes e riquezas que ainda será muito falado e analisado por muitos anos. Enquanto isso, podemos ficar lembrando do prazer e do maravilhamento que é olhar para o céu daquela telona e ainda por cima termos a sorte de ver as ótimas interpretações do trio Daniel Kaluuya, Keke Palmer e Brandon Perea, além da ótima participação de Steven Yeun (até então não tinha sequer citado os atores). Mais uma indicação que se trata de um filme de autor, acima de tudo?

+ DOIS FILMES

TREM-BALA (Bullet Train)

É curioso ver os efeitos de TREM-BALA (2022) no espectador (no caso, em mim). Ao mesmo tempo que achei divertido e inteligente (o inteligente vem do livro original japonês, imagino eu), é também vazio de sentimento. Por mais que alguém vá lembrar de Tarantino e ver como referência, o diretor de KILL BILL sabia como fazer com que nos importássemos com os personagens. Aqui todos os passageiros do trem são partes de uma engrenagem bem desenvolvida, mas pouco importa quem morre na história - inclusive o personagem de Brad Pitt, que, por causa do ator, é o mais carismático do time. David Leitch, que já foi dublê e teve papel decisivo no primeiro John Wick (2014), tem uma mão forte nas cenas de ação e alguns momentos têm uma riqueza visual impressionante, como a cena em que o personagem de Aaron Taylor-Johnson pula para alcançar o trem-bala em movimento. Há outras cenas bem espetaculosas que causam diversão e geram um boa impressão, ainda que isso vá ser esquecido rapidamente, ao final da sessão. No mais, a fotografia cheia de nitidez se destaca, principalmente em uma sala IMAX.

ELVIS

Por sorte, e também pelo estilo de Baz Luhrman, ELVIS (2022) é uma cinebiografia que se aproxima mais de filmes como THE DOORS e A FERA DO ROCK do que de BOHEMIAN RHAPSODY e RAY. Ou seja, há algo de diferente na forma como a história é contada. Pelo menos no primeiro terço. Depois disso, o filme vai ficando um pouco mais convencional, mas sem nunca deixar de ser interessante. Ainda assim, há coisas que incomodam, como a narração do Tom Hanks, que é o grande vilão do filme, o empresário fdp, mas que também tem seus momentos de estado ridículo, como nas cenas do especial de natal. No mais, ELVIS é um filme muito devedor de sua montagem, mas também da caracterização humanizada do jovem Austin Butler, por mais estranho que pareçam os efeitos visuais em seu rosto. Algumas cenas de arrepiar: "Trouble", que é o momento que vemos o potencial de Elvis para ser muito mais do que foi; o retorno no fim dos anos 1960, depois de amargar um esquecimento da mídia com uma carreira de ator não muito bem-sucedida; e a fase Las Vegas (é possível achar no Youtube a performance dele de "Suspicious Minds"). Gosto muito também de quando o herói se aproxima dos artistas pretos de Memphis, de sua amizade com B.B. King, da aparição mágica de Little Richard. A tragédia que é o seu destino final, ainda por cima, é mais emocionante do que eu esperava. Belo filme de Luhrmann para quem gosta de Luhrmann. E de quebra ainda pode emocionar os fãs do Elvis.

quinta-feira, agosto 25, 2022

CEGA OBSESSÃO (Môjû)



Atualmente a Versátil Home Video está fazendo um trabalho fantástico de criação de livros temáticos, que são presenteados como brindes para quem compra em pré-venda nos primeiros dias os packs de cada mês. Já foram publicados e enviados Filme Noir – Dez Filmes Essenciais da Coleção, Obras-Primas do Terror – Dez Filmes Essenciais dos Spin-Offs e um que estou aguardando ansiosamente para que chegue em minha casa, Mestres Japoneses – Dez Filmes Essenciais do Cinema Clássico Nipônico. Os recortes em dez filmes desses livros acabam por chamar atenção para os títulos escolhidos, como se fossem indicações dentro das indicações, já que considero o trabalho de curadoria dos boxes excelente. Nem preciso dizer que recomendo a todos que não estão acompanhando esses lançamentos que comecem a prestar atenção.

CEGA OBSESSÃO (1969), de Yasuzô Masumura, foi visto com certa “antecedência” por mim justamente por integrar a lista dos filmes essenciais entre os títulos lançados em spin-offs da coleção Obras-Primas do Terror (dedicados a horror japonês, francês, espanhol e italiano). Cada filme recebe uma crítica caprichada de um convidado, geralmente um especialista no assunto. Eu tive a honra de ser convidado para um dos livros vindouros, o de faroeste, previsto para outubro. Mal posso esperar para ter meu exemplar em mãos. Ah, e sobre a palavra “antecedência” em parênteses, isso se justifica pelo fato de eu já ter visto o DVD da Magnus Opus diversas vezes nas locadoras e acabava sempre deixando para ver num outro dia.

CEGA OBSESSÃO é incrível. E o curioso é que, em sua primeira parte, mais ou menos em seu terço inicial, eu não estava gostando. Tanto estranhava o tom excessivamente teatral dos diálogos, quanto pouco me empolgava com a história do sequestro da modelo (Mako Midori) pelo escultor cego psicopata (Eiji Funakoshi). Eis que o filme vai nos surpreendendo – e por isso que recomendo que o espectador que ainda não o viu veja sem saber nada a respeito – e encerrando de maneira violenta e poética.

Gosto muito da voice-over da personagem feminina, que traz o filme para a literatura, um claro traço do romance Moju, de Edogawa Rampo, escritor especialista em mistério e suspense cujo pseudônimo é uma homenagem ao mestre Edgar Allan Poe. Essa ênfase na força da palavra traz algo de lírico para o filme, que também destaca bastante a força das imagens, e elas ressaltam as esculturas de pedaços de mulheres feitas em tamanho gigante no armazém habitado pelo escultor, claramente fascinado pelo corpo feminino.

Essa imagens contribuem para uma sensação de psicodelia muito característica da segunda metade da década de 1960. O aspecto exploitation e também sexploitation traz uma carga de transgressão que me encantou. Além do mais, ao contrário do que possa parecer, a jovem personagem feminina é mais dona da situação do que se imagina, mesmo estando numa situação de prisão e terror. É possível dizer que o filme antecipou o tom erótico e trágico de IMPÉRIO DOS SENTIDOS, o clássico moderno de Nagisa Oshima.

A questão da mulher-objeto, que hoje é trazida à reflexão com mais frequência na sociedade do novo milênio para que tenhamos um pouco mais de consciência do sofrimento alheio, pode vir à tona com frequência, especialmente quando o próprio filme já apresenta a personagem da modelo nua e acorrentada em várias fotos de um fotógrafo de vanguarda, para exposição, no prólogo. A liberdade da moça dura muito pouco tempo na metragem do filme, já que logo ela é raptada pelo escultor cego e por sua mãe, que tem com ele uma espécie de relação edipiana, explorada com ênfase em diálogos com o trio de personagens. Inclusive, se pensarmos bem, para um homem que não teve relação com nenhuma outra mulher a não ser com sua mãe, a geografia dos corpos femininos deve ter vindo principalmente da mãe. 

Essa questão também é de forma inteligente percebida pela modelo, que diz que o fato de ele fazer esculturas enormes de partes do corpo de mulheres deixa claro que a figura da mulher para ele se prende bastante à figura materna. Essa teoria fica ainda mais aceitável (ou evidente, melhor dizendo) quando sabemos que o escultor ainda é virgem e o fato de a mãe ser morta em determinado momento, em uma discussão entre os três, explicita a substituição da primeira figura feminina para a posterior, a da amante.

Não sei se CEGA OBSESSÃO se aprofunda tanto nessas questões, mas até prefiro que aquilo que nasceu como principal motivo da realização do filme, que é a vontade de chocar, passe à frente dessas questões, embora os instantes finais também sejam um convite ao pensar a relação dos dois, a condição da mulher, a questão ambígua da dominação feminina frente à ingenuidade masculina etc. Mas o principal, ao final, acaba sendo a expansão dos prazeres provenientes do tato, para uma exploração também da dor e das fantasias cada vez mais doentias do casal. No fim, o filme se torna também uma reflexão sobre a arte e o ato de fazer amor, com a escultura criada pelo homem cego sendo um espelho do real e lembrando de imediato a Vênus de Milo. 

Filme presente no box Obras-Primas do Terror - Horror Japonês 2.

+ DOIS FILMES

CAPRICÓRNIO UM (Capricorn One)

Na esteira dos filmes de paranoia, cinismo e descrédito do governo americano da década de 1970, chegou este ótimo exemplar, que usa uma teoria de conspiração já muito pensada e que até hoje é considerada: o fato de a ida à lua em 1969 ter sido uma farsa. Em CAPRICÓRNIO UM (1977), o governo americano prepara sua primeira viagem a Marte, mas no momento da partida do foguete, os astronautas são tirados de cena e convidados a entrar numa conspiração em que técnicas de cinema seriam usadas para fazer a simulação da decida ao planeta vermelho. Fiquei admirado com o elenco de estrelas do filme e do quanto tem cara de filme "A" (acredito que seja, embora não tanto). Peter Hyams e os produtores enfrentaram obstáculos quando do lançamento nos cinemas, por causa do tom supostamente antinacionalista e talvez por dar ainda mais espaço para a teoria que desacredita a ida à lua. De todo modo, o que conta aqui é o quanto o filme nos empolga do começo ao fim, inclusive quando se torna um thriller de ação, em sua segunda metade, com direito a atos heroicos de seus atores principais (Elliot Gould e James Brolin). Filme visto no box Clássicos Sci-Fi Vol. 9.

CHAMAS DA MORTE (The Burning)

Slasher que hoje parece pouco inventivo, mas que foi lançado em um ano que pipocavam produções do tipo. Só o chefe dos efeitos especiais, Tom Savini, já vinha de duas produções do subgênero, o primeiro SEXTA-FEIRA 13 e QUEM MATOU ROSEMARY?. Eu ainda prefiro QUEM MATOU ROSEMARY?, pela qualidade dos efeitos e também por ser mais charmoso. Mas CHAMAS DA MORTE (1981), de Tony Maylam, tem a vantagem de ser relativamente direto, já começando com a pegadinha que deu errado e que ocasionou queimaduras no corpo de um homem, que depois se tornaria o maníaco do acampamento, com sua tesoura de jardim. Divertido ver a participação de Jason Alexander no elenco e é muito difícil deixar de associá-lo ao George de SEINFELD. Das personagens femininas, gostei particularmente de uma moça loirinha, que infelizmente é vítima do assassino, na segunda leva. Há um momento de suspense que gosto bastante, que é a chegada de um grupo a uma das canoas perdidas. Enfim, não é desses filmes que vão me marcar, mas acredito que tem sua importância na popularização e na manutenção do subgênero por mais alguns anos. Filme visto no box Slashers (o primeiro).

segunda-feira, agosto 22, 2022

OS PRIMEIROS SOLDADOS



“Quem vai saber o que você sentiu?
Quem vai saber o que você pensou?
Quem vai dizer agora o que eu não fiz?
Como explicar pra você o que eu quis”
(Renato Russo-Marcelo Bonfá, “Soldados”)

Logo na primeira sequência de OS PRIMEIROS SOLDADOS (2021) ouvimos a voz em off do personagem de Johnny Massaro citando, ainda que discretamente, um trecho de “Soldados”, da Legião Urbana, essa canção que já ganhou homenagem em peça de Marcelo Rubens Paiva, que por sua vez foi adaptado para o cinema em DEPOIS DE TUDO, de Johnny Araújo. Soube depois que a canção deveria estar no filme - o que faz todo o sentido -, mas que seus direitos não foram concedidos, muito provavelmente por causa dessa rixa judicial que o filho de Renato Russo anda criando, para a tristeza dos fãs da banda.

De todo modo, para quem conhece a canção, que é uma espécie de hino cifrado de uma homossexualidade proibida, esse início de filme já vai ajudando a situar a ação. A melancolia do personagem de Massaro, que visita a família na virada de 1982/83, antecipa uma aproximação com Caio Fernando Abreu, um dos artistas mais célebres a referenciar a morte em sua obra, junto com Cazuza e Renato Russo. Quem leu, por exemplo, o conto “Linda, uma História Horrível” pode fazer certos paralelismos com esse personagem que esconde seu maior segredo e sofre em solidão. Mas o filme se demora um pouco a explicitar a AIDS como grande vilão a ser combatido em batalha injusta.

Antes disso, a obra nos apresenta a outros dois personagens que também lidam com seus medos e suas angústias, a travesti e performer Rose (Renata Carvalho) e o cinegrafista Humberto (Victor Camilo). Humberto é o personagem menos trabalhado pelo filme, mas sua função de documentar a si e aos outros será de importância decisiva para o terceiro e mais emocionante ato do filme.

Já Rose, por trabalhar em uma casa de espetáculos de público LGBTQI, traz a alegria e a tristeza andando lado a lado. Em seu show, ela aparece montada com um figurino espalhafatoso e dublando canções. Na virada do ano novo ela escolhe uma canção um triste, lindamente triste: “Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)”, na voz de seu autor, Gonzaguinha. Esse momento, além de nos trazer arrepios de emoção, tem algo de hipnotizante, de paralisador do tempo. E como sempre costumo dizer, ver o filme no cinema para ter o privilégio de ouvir a canção em caixas Dolby de sete canais faz muita diferença no modo como a música amplifica os sentimentos.

Aliás, todas as utilizações de música no filme são lindamente acertadas ("Nossa linda juventude", do 14 Bis, surgindo em um momento irônico e triste; "Seja o meu céu", de Robertinho do Recife, sendo um registro feliz de uma das costumeiras festas caseiras dos anos 80).

Chama a atenção no filme de Rodrigo de Oliveira o tom muitas vezes teatral, quase empostado, das falas, que funciona muito bem - a citação a Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, não é à toa. Quanto ao drama dos personagens em seus destinos para a morte iminente, será preciso esperar pelo lindo último ato para conhecer mais sobre suas lutas, pelo ato ato desesperador de acreditar que a ciência poderá encontrar a cura para aquela nova doença antes que a morte os leve. Esse terceiro ato é também simbólico de como o cinema, em sua magia, pode “ressuscitar” um personagem, através da montagem, do uso do flashback prolongado, e das próprias imagens gravadas pelo personagem do cinegrafista.

Com a morte de um dos personagens do filme, somos levados àquele momento da história humana em que os próprios médicos legistas tinham medo do contato com os cadáveres infectados. Ou seja, é como se fosse negado ao morto e a seus familiares o mínimo de dignidade em seu instante final. Mal comparando, é possível lembrar do momento recente da pandemia de COVID, quando nos foi negado a ida aos funerais de nossos amigos.

O último ato traz também algo de belo nessa aproximação lenta da morte, como uma maneira de a pessoa vitimada poder acompanhar a evolução da própria doença e consequentemente se preparar melhor para a chegada da ceifadora. Há muitos relatos de pessoas com câncer que também trazem esse tipo de alento.

OS PRIMEIROS SOLDADOS talvez seja a obra máxima de Rodrigo de Oliveira. Um filme de muitas emoções, andamento lento e um cuidado visual e de produção de dar gosto. Um filme que vai além da mera narração simples de uma história, explorando a dilatação do tempo nas cenas e a valorização dos rostos e da natureza nas imagens. Seria maravilhoso se fosse visto pelo maior número possível de espectadores. 

+ DOIS FILMES

SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS

Juntar o desejo sexual com a pandemia, do ponto de vista de um homem bastante precavido, por assim dizer, é talvez o que há de mais novo nesta comédia dramática com toques de documentário. Acho que o ponto alto do filme é o diálogo do próprio Fábio Leal com o também cineasta Marcus Curvelo (os dois interpretando personagens fictícios). Curvelo deve ter contribuído bastante para o tom cômico/paranoico dessa primeira parte. Quem conhece seus ótimos trabalhos provavelmente terá essa impressão também. Diferente do parceiro Gustavo Vinagre, com quem dirigiu DEUS TEM AIDS (2021), Leal opta por um sexo simulado nas cenas de intimidade. O interesse em se aproximar mais das preocupações do protagonista se sobrepõe ao desejo sexual e as cenas de intimidade procuram ser mais carinhosas do que agressivas, o que é muito coerente com o momento apresentado. No mais, SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS (2022) funcionará como uma ótima cápsula do tempo daqui a alguns anos, inclusive para que se possa entender as relações humanas no ambiente virtual nos anos 2020-2021.

LET ME DIE A WOMAN

Acho muito difícil fazer um julgamento de um filme como LET ME DIE A WOMAN (1977), uma espécie de documentário exploitation sobre as angústias de pessoas trans, com direito a cenas dramatizadas que às vezes parecem saídas de um suspense B. O filme procura ser também uma obra que traz esclarecimentos sobre as cirurgias de mudanças de sexo, com detalhes bem explícitos das operações e da anatomia das pessoas. Como sempre tive a curiosidade de ver os filmes de Doris Wishman, gostei da chance de ver algo que me deixou muito interessado do início ao fim, embora em alguns momentos eu tenha preferido virar o rosto. Como a diretora tem muita experiência com filmes de gênero, eu destaco como uma das cenas mais interessantes aquela em que uma pessoa com poucos meses de operada já quis tentar fazer sexo para se sentir uma mulher. Um filme único, mas que certamente seria visto com algumas restrições pelas novas gerações.

domingo, agosto 21, 2022

X – A MARCA DA MORTE (X)



Quando vi A CASA DO DIABO (2009) fiquei bem interessado em conhecer mais o trabalho de Ti West. Infelizmente, depois que vi HOTEL DA MORTE (2011), este entusiasmo esfriou bastante, mas não a ponto de me deixar desinteressado pelo seu trabalho. O problema mesmo é a falta de tempo e também o fato de eu querer abraçar o mundo do cinema com braços curtos. Como não me fixo em apenas um gênero ou dois, é cada vez mais difícil dar conta do quanto quero ver. Além do mais, mesmo que eu me fixasse apenas no horror, no cinema fantástico, acompanhar tanto o trabalho de diretores novos quanto de clássicos do passado é, por si só, uma tarefa hercúlea. Passada a desculpa inicial, falemos de X – A MARCA DA MORTE (2022), o mais novo trabalho de West, depois de ele ter trabalhado em várias produções para a televisão nos últimos anos – seu longa-metragem anterior foi o western NO VALE DA VIOLÊNCIA (2016).

X – A MARCA DA MORTE é o primeiro filme de West a ser lançado nos cinemas brasileiros. Até então, ele era aquele diretor conhecido apenas por uma fatia pequena de fãs de horror, com alguns filmes lançados em DVD ou em streaming. Às vezes, nem isso, imagino. E assim como A CASA DO DIABO emulava o terror sobrenatural da década de 1970 em seu visual, este novo trabalho emula o slasher sujo e de baixo orçamento que fez a festa da juventude na virada dos anos 1970-80, inclusive com um tipo de textura muito diferente do que geralmente se vê em filmes recentes, o que é corajoso, pois vai fazer alguns espectadores acharem que o fato de a imagem não ser tão nítida pode ser defeito do projetor. Achei charmoso isso.

O filme de West tem dividido opiniões, mas em geral os fãs de slasher têm gostado. Afinal, por mais que X seja uma obra que traga muito conteúdo para reflexão, superficialmente falando, não deixa de ser uma obra divertida sobre dois velhos matando jovens, tendo o espectador como um voyeur que se diverte com a situação familiar apresentada. As cenas de violência e gore são encaradas como algo divertido, para o bem e para o mal, mas há também um bem-sucedido uso do suspense nos momentos que antecedem o perigo, como é o caso da cena do jacaré se aproximando da personagem de Mia Goth (SUSPÍRIA - A DANÇA DO MEDO). Trata-se de um grande momento, inclusive do ponto de vista visual.

X – A MARCA DA MORTE é um filme sobre os abismos existentes entre a juventude em seu auge e a velhice que não se conforma com a decadência física. No meio de tudo isso, o sexo como elemento comum, não deixando de ser um ponto também de desejo e não de negação do casal de velhos que aluga uma casa em seu terreno para que um grupo de seis jovens rode um filme pornô barato para ser lançado no mercado de vídeo, antecipando o sucesso vindouro desse mercado. Tendo os corpos como elementos essenciais, é natural que a sexualidade surja até em pequenos momentos, como quando Mia Goth sai apenas com o macacão (sem sutiã ou calcinha) para nadar no rio, ou quando Jenna Ortega (vista no novo PÂNICO) resolve aderir à energia sexual da locação na cena que talvez seja a mais erótica do filme.

Há também algo que merece ser levado em consideração, que é a questão da punição de todos, começando pelos homens, os primeiros a morrer, sendo que os mais autoconfiantes de sua potência sexual – o produtor e o ator pornô de membro gigante – são levados para a morte em trajes sumários. Quanto às mulheres, destaque para a cena de Mia Goth sendo molestada pela velha assassina, que se deita em sua cama para acariciá-la e “pintá-la” com sangue. Aquilo tem algo de cômico, mas principal de aterrorizante.

O fato de X se afastar do visual limpo faz com que as cenas de gore sejam mais realistas e empolgantes, sem que perca, com isso, traços de humor que costumam ser uma característica do subgênero. Há, inclusive, espaço para um tipo de humor mais ácido, como nas cenas finais com a televisão ligada em um culto evangélico. O que, aliás, é outro aspecto que merece ser levado em consideração em análises sobre o filme. Apesar de a trama se passar em 1979, X é um produto de 2022, quando visões mais progressistas convivem com pensamentos cada vez mais “conservadores”, para usar um termo mais gentil para grupos compostos por uma grande parte de pessoas hipócritas.

Ou seja, a televisão exibindo o culto está na casa dos velhos que condenam os atos libidinosos do jovem, quando na verdade o que sentem é inveja de não possuírem mais aqueles corpos bonitos e desejáveis de outrora. Isso fica bem claro na cena em que a velha (também vivida por Mia Goth) se apresenta ameaçadoramente Brittany Snow, cuja personagem feminina é a mais bem-resolvida de sua própria sexualidade.

Em breve, poderemos ver o prequel, PEARL (2022), também estrelado por Mia Goth, e contando a história da principal vilã de X – A MARCA DA MORTE. Promete.

+ DOIS FILMES

A FERA (Beast)

Ao que parece o diretor islandês Baltasar Kormákur encontrou a sua especialidade: o filme de sobrevivência. Provavelmente seus filmes mais lembrados sejam EVERESTE (2015) e VIDAS À DERIVA (2018), produções em língua inglesa, mas ele pode acrescentar no currículo SOBREVIVENTE (2012), feito em sua terra natal. Em A FERA (2022) ele muda de habitat, saindo de ambientes gelados ou do mar para o calor do deserto africano, sendo que o principal foco de perigo agora é um leão intoxicado pela raiva contra seus caçadores. Vendo assim, os principais inimigos são os tais caçadores e não o leão, mas é do animal que a família do personagem de Idris Elba mais precisa fugir durante a maior parte da metragem do filme. Há várias cenas bem eletrizantes e uma outra, perto do final, que chega a ser inacreditável. Grande momento de Elba como ator de ação em um filme bastante eficiente na condução do suspense.

GÊMEO MALIGNO (The Twin)

É possível que no futuro GÊMEO MALIGNO (2022) seja resgatado como um bom exemplar de filme de seita, embora não seja exatamente isso. O primeiro filme em língua inglesa do finlandês Taneli Mustonen nos apresenta a uma família de três pessoas: um homem, uma mulher (Teresa Palmer) e um menino, que teria sido o gêmeo que sobreviveu a um acidente de automóvel. O começo do filme incomoda por trazer uma trama aparentemente muito genérica, por mais que se perceba algum trabalho bonito de composição na fotografia e na direção de arte. A princípio, os eventos parecem ter sido vistos em vários outros filmes. Até que, em certo momento, a história vai se encaminhando por uma trilha menos óbvia (embora em algum momento faça lembrar O BEBÊ DE ROSEMARY), para depois fazer lembrar uma série de terror recente muita querida (não falo qual é pois pode entregar um spoiler do final). Um filme de mais baixos do que altos.

sábado, agosto 20, 2022

BETTER CALL SAUL – 6ª TEMPORADA (Better Call Saul – Season Six)



Sempre tive fantasias sobre uma máquina do tempo que pudesse me fazer voltar ao passado e refazer certas situações de que me arrependo. Algumas delas, de coisas que fiz e que me causam arrependimento, e outras, de coisas que não fiz, e que geram em mim um sentimento de perda equivalente (ou pior) ao arrependimento. Mais recentemente, já um pouco conformado com o fato de que nada posso fazer para mudar o passado, e consequentemente o presente, comecei a fantasiar sobre possibilidades de voltar ao passado a fim de reviver alguns momentos particularmente felizes de minha vida, que aos poucos vão se tornando difusos com o passar do tempo.

A questão do arrependimento e de uma possibilidade (inexistente, no meu caso) de tentar corrigir a situação trouxe o tema para minha última sessão de terapia. (Ajudou também eu ter lido um quadrinho português que trata de algo similar chamado Balada para Sophie, de Filipe Melo e Juan Cavia.) Arrependimento é certamente uma das palavras-chave dos dois últimos episódios da última temporada de BETTER CALL SAUL (2022), criação da dupla Vince Gilligan e Peter Gould.

Isso se dá porque tanto Kim (Rhea Seehorn) e Saul (Bob Odenkirk) lidam, cada um à sua maneira, com esse sentimento que corrói a alma. Sei que estou começando a falar desta temporada pelo final, mas é que a segunda parte, além de estar mais fresca na memória, é o que mais ficará cravado em nossa memória. O ideal, em séries tão boas quanto BETTER CALL SAUL, seria fazer reviews semanais de cada episódio, mas isso, felizmente, é possível ver e ler em ótimos canais de YouTube e em ótimos sites, especialmente americanos. Digo isso - sobre a necessidade dessas reviews sobre cada episódio -, pois BETTER CALL SAUL tem um trabalho tão fantástico de construção que muitos detalhes são dignos de nota, tanto para não esquecermos, quanto para fazermos necessárias reflexões. Nada é em vão.

O que parecia ser um spin-off supostamente inferior a BREAKING BAD (afinal, a série de Walter White é tida como uma das melhores da história da televisão), acabou se tornando algo maior, mais sensível, mais cheio de nuances. A opção por mostrar em paralelo as trajetórias de Saul/Jimmy e Mike (Jonathan Banks) ao longo da série se mostrou mais do que acertada e é admirável imaginar que cada ação pode ter sido pensada desde o início por seus criadores. Esta sexta e última temporada leva os personagens de Saul e Kim para os infernos das consequências de seus atos. Mas não sem antes de nos colocar como testemunhas de tudo, às vezes felizes, às vezes muito angustiados com o modo como tudo vai se desenrolando, especialmente quando vidas de personagens queridos como Nacho (Michael Nando) e Howard (Patrick Fabian) são postas em cheque.

Gosto de como a temporada se divide em dois momentos bem distintos e da preferência por um tom mais amargo e mais lento no processo de narrar a série como um derivado (e um tributo) do gênero filme noir, inclusive com o uso da fotografia em preto e branco para as cenas do presente. Aliás, sem querer me atropelar e já me atropelando, o que é aquela cena de Kim e Jimmy dividindo o cigarro na prisão? É ao mesmo tempo arrebatadora e melancólica. E há o simbolismo de Kim entrando atrás (da sombra) das grades para fumar aquele cigarro com Jimmy, como que repetindo um ato que costumeiramente faziam quando estavam juntos e a sós. Não há espaço para abraços ou soluções melodramáticas nesse momento. O mais próximo que há de um contato físico entre eles é a junção das mãos dos dois para o acender do cigarro e o olhar mais próximo no olho do outro. E há o detalhe da chama amarela destoando poeticamente do preto e branco estilizado, como que para relembrar a cor de tempos mais felizes. 

BETTER CALL SAUL é certamente um dos maiores contos morais já produzidos para a televisão. E há tantos episódios que mereceriam um destaque à parte. Para lembrar de três desta temporada, "Point and Shoot", que destaca a grandeza do vilão Lalo (Tony Dalton); seguido por "Fun and Games", sobre crime e castigo; e há "Waterworks", dedicado à Kim, que é de cortar o coração e enfatiza a grandeza de Seehorn como atriz. Enfim, todo o desenvolvimento final da série, toda a conclusão amarga, nos faz valorizar ainda mais tudo que foi visto antes.

Um acontecimento raro ter algo assim, realizado com tanto esmero na direção, no roteiro, nas atuações, na direção de arte, nos figurinos, na fotografia, nas pequenas imagens mostradas no início de cada episódio, como prenúncios e simbolismos. Além do mais, “Saul Gone”, o episódio final, especialmente na cena em que Saul se despede de seu alter-ego e diz se chamar Jimmy (isso, depois de assumir a identidade de Gene para se esconder da polícia), faz com que percebamos BETTER CALL SAUL como uma série também sobre a arte performática, a excelência da atuação. Saul/Jimmy joga para cima uma chance de ganhar apenas sete anos na prisão para receber uma sentença de 86 anos. “Convidar” Kim para assistir sua última performance é demonstrar que, no fim, ela ainda é a mulher de sua vida. É nos fazer acreditar que toda aquela história de máquina do tempo para ganhar mais dinheiro ou de lembrar de ter falhado em algum golpe era só uma maneira de se blindar dos sentimentos.

Lembremos que a série traz um salto temporal bastante significativo do momento em que Kim o deixa para o momento em que Saul Goodman já é aquele personagem espalhafatoso e autoconfiante que conhecíamos desde BREAKING BAD. Então, não pudemos ver o comportamento imediatamente posterior de Jimmy com a partida de Kim, o quanto sofreu e o quanto trabalhou para superar tudo isso e abraçar a profissão de advogado de criminosos e a vontade de fazer dinheiro como sendo as coisas mais importantes de sua vida.

Então, as respostas para as perguntas que surgem do tipo: “Saul alguma vez teve uma consciência?” ou “ele de fato se arrepende de alguma coisa?” se tornam claras, especialmente com os flashbacks que trazem de volta personagens falecidos, seu irmão Chuck (Michael McKean); seu parceiro no crime mas um exemplo de grande coração Mike; e o anti-herói Walter White. A grande season finale responde a essas perguntas. E nos deixa ainda mais machucados. Ter a consciência de ter acompanhado uma obra de arte feita com tanto cuidado e ter experimentado tantos sentimentos é tão doloroso quanto gratificante. Meu muito obrigado a todos os envolvidos.

+ DOIS FILMES

UM HERÓI (Ghahreman)

Estranha a inclusão de UM HERÓI (2021) na Mostra Varilux deste ano, levando-se em consideração que a única coisa francesa nele é o dinheiro da coprodução. Mas não tenho do que reclamar, pois não está dando para confiar no minguado circuito local e eu tenho por hábito apreciar os filmes de Asghar Farhadi. Este mais recente trabalho é uma espécie de conto moral sobre questões mais complexas acerca da verdade e da mentira, da honestidade e da desonestidade. Na trama, Rahim (Amir Jadidi) é um homem que está preso por causa de dívidas e recebe dois dias de liberdade condicional, que usa para rever a família e a namorada, a quem encontra às escondidas. Uma bolsa com moedas de ouro encontrada pela namorada e sua posterior decisão de devolver ao dono é o ponto de partida para uma série de situações que trarão tanto sorte quanto azar. Farhardi é um mestre da construção de diálogos tensos e aqui ele opta por planos mais fechados do que abertos, na maior parte das cenas, enfatizando o bom desempenho de seus atores e atrizes. Poderia ser um pouco mais curto para não cansar tanto, por causa da sucessão de plot twists, mas não há como negar que se trata de outro filme marcante do cineasta.

AS AVENTURAS DE MOLIÈRE (Molière)

É curioso como essas comédias históricas francesas costumam me dar um pouco de preguiça. Mas aos poucos este AS AVENTURAS DE MOLIÈRE (2007), de Laurent Tirard, foi me fazendo rir e me envolvendo com sua história simples em que o ainda não tão célebre dramaturgo do título (Roman Duris) se infiltra em uma família disfarçado de padre para ajudar um homem rico (Fabrice Luchine) a ser um bom ator, de modo a conquistar uma bela jovem (Ludivine Sagnier) com seus dotes artísticos. Enquanto isso, Molière fica interessado na esposa do tal homem abobalhado (Laura Morante). Não é um filme que desejo ver novamente, mas, para uma obra que me prometia muita preguiça, até que as duas horas de duração passaram rapidinho.

sábado, agosto 13, 2022

CRIMES OF THE FUTURE



Podemos perceber em alguns autores veteranos uma tendência a trazer uma reflexão mais explícita sobre o corpo envelhecido, à medida que o peso da idade traz, cada vez mais, uma mudança na maneira como nos comportamos ou sentimos o mundo, devido a insuficiências crescentes. Pedro Almodóvar fez um filme sobre suas doenças em DOR E GLÓRIA; Clint Eastwood vem abordando o peso do envelhecer desde pelo menos os anos 1980, mas isso fica ainda mais explícito no mais recente CRY MACHO – O CAMINHO PARA A REDENÇÃO; Jean-Claude Brisseau preferiu aprofundar suas reflexões entre o corpo e o espírito em QUE LE DIABLE NOUS EMPORTE; Martin Scorsese usa as novas tecnologias para trabalhar o rejuvenescimento dos corpos (nem sempre com sucesso) em O IRLANDÊS; e agora temos o retorno de David Cronenberg, abordando, à sua maneira, as transformações no corpo, especialmente ao apresentar um protagonista tão frágil, vivido pelo ator com quem ele mais trabalhou, Viggo Mortensen.

CRIMES OF THE FUTURE (2022) é a volta de Cronenberg ao universo do body horror e da ficção científica numa chave mais próxima da arthouse do novo milênio, como em COSMÓPOLIS (2012), do que de algo do entretenimento, como em A MOSCA (1986). Mesmo assim, é um poço de autorreferências de seus filmes dos anos 1980/90, e novamente com a estranheza da relação entre tecnologia e corpo humano. E reutilizando o título de um filme de sua fase pré comercial, o homônimo de 1970.

Cronenberg nos faz refletir sobre o aspecto cada vez mais artificial do homem, à medida que ele se afasta de seu lado animal. O homem é um ser cujo modo de vida está cada vez mais atrelado a modificações provocadas pela ciência e por fatores culturais. Hoje em dia, por exemplo, pode-se dizer que a maternidade, para o ser humano, é mais uma construção social do que um instinto. Além disso, a quantidade de remédios que tomamos hoje modifica praticamente todos os aspectos de nosso viver.

A trama de CRIMES OF THE FUTURE se passa num futuro em que as pessoas não sentem mais dor, sendo que algumas delas pagam para poder sentir um pouco. Afinal, sentir dor é sentir-se vivo também. Enquanto isso, um homem (Mortensen) começa a ter órgãos estranhos nascendo e crescendo dentro de seu corpo. O que nos faz lembrar do útero mutante da personagem de GÊMEOS – MÓRBIDA SEMELHANÇA (1988). O protagonista do novo filme usa essa peculiaridade de seu corpo para fazer espetáculos de arte com sua parceira (Léa Seydoux). Nas apresentações, ela é a agente ativa, abrindo o corpo dele, para retirar os tais órgãos, que ainda por cima surgem com tatuagens. “Cirurgia é o novo sexo”, diz a personagem de Kristen Stewart, após assistir a uma dessas performances. E de fato enquanto ele está sendo cortado e mexido por dentro, Mortensen deixa notar um prazer próximo do gozo do sexo.

Muito do magnetismo do filme vem das duas moças, Léa e Kristen Stewart. E eu diria que a cena mais erótica (envolvendo Kristen) chega a se aproximar (de maneira mais bizarra, até) da carga sensual de CRASH – ESTRANHOS PRAZERES (1996). Na tal cena, ao pedir, com lágrimas nos olhos e com a voz falhando, que Mortensen faça uma cirurgia nela em uma de suas performances, fica muito claro que aquilo é a representação linda de uma jovem implorando para fazer sexo com aquele homem. E isso é sublime de ver. O sentimento, a fragilidade e o desejo, juntos.

Por isso CRIMES OF THE FUTURE alcança muito mais força quando lida com as cirurgias, as performances e esse novo sexo. Como Cronenberg adora trazer à tona situações em que o desconforto anda de mãos dadas com o prazer, as cenas provocam esse misto de sentimentos. A cena do zíper, por exemplo, é genial no modo como explicita a feminilização do corpo de Mortensen e a masculinização do comportamento de Seydoux. (Claro que vivemos em um momento particularmente mais complexo quanto às definições do que é masculino ou feminino, mas tais noções ainda são adotadas para definir ações ou papéis.)

Há alguns momentos que me tiraram um pouco do filme – em especial as cenas com um detetive de polícia (Welket Bungué) –, mas tudo o mais parece muito interessante e por vezes empolgante. Também adoro a trilha sonora de Howard Shore, parceiro do diretor em diversos trabalhos. Em vários momentos, Shore amplifica os nossos sentimentos e sensações. Além do mais, não é sempre que temos um Cronenberg novo nos cinemas. Celebremos.

+ DOIS FILMES

BUIO OMEGA

Finalmente vi o lendário BUIO OMEGA (1979), de Joe D’Amato, um dos títulos selecionados por Carlão Reichebach para integrar as até hoje muito lembradas sessões do Comodoro. O próprio Carlão era muito entusiasta deste exploitation. Recentemente vi o filme original, O TERCEIRO OLHO (1966), e gostei bastante. D'Amato pega a história e reconstrói de modo a torná-la mais violenta e explícita. Vejo BUIO OMEGA até mais devedor de PSICOSE do que o filme de 1966, já que Franca Stoppi, a governanta bruxa, parece muito mais com a "sra. Bates", que chega para fazer a limpeza quando o rapaz, Frank (Kieran Canter), mata mais uma de suas vítimas. Há, inclusive, uma relação meio edipiana entre os dois, sendo que ela é apaixonada por ele, enquanto ele só quer saber da noiva empalhada, deitada inerte na cama. Grandes momentos: a cena da autópsia/empalhamento; o embate final entre Frank e a governanta; e, principalmente: o momento da carona, depois do recolhimento do corpo no cemitério. Filme visto no box Obras-Primas do Terror - Horror Italiano.

SONHOS ALUCINANTES (Let’s Scare Jessica to Death)

Eis um daqueles filmes que, por algum motivo, eu jurava ter visto, e que por ocasião de um comentário elogioso de um amigo percebi que não tinha visto e que estava de fácil acesso vê-lo. SONHOS ALUCINANTES (1971), de John D. Hancock, é uma obra que bebe muito da atmosfera do cinema da virada da década de 1960 para os anos 1970, com algo de lisérgico em seu andamento e na composição da personagem principal, Jessica, que acabou de sair de um sanatório e está se mudando para uma cidade do interior, uma cidade desconhecida e que tem aquela estranheza bizarra já mostrada em vários filmes americanos que tratam de pessoas do meio rural como algo desconhecido e que por isso mesmo cabe dentro do gênero. O fato de Jessica não confiar naquilo que vê funciona como um elemento conflituoso para o espectador. Outra coisa muito legal é que SONHOS ALUCINANTES não se vende como um filme do subgênero específico que fazia sucesso na época (não vou dizer qual é para não dar spoiler). Além do mais, há uma beleza na atuação dos quatro atores e atrizes que o afasta da categoria dos exploitation movies. O crítico de cinema que fala nos extras do DVD até o compara a títulos dirigidos por Robert Altman na época, para se ter uma ideia do seu aspecto mais sofisticado. Filme visto no box Obras-Primas do Terror 13.

quarta-feira, agosto 10, 2022

CHA CHA REAL SMOOTH – O PRÓXIMO PASSO (Cha Cha Real Smooth)



Nem tinha pensado em escrever um texto um pouco mais dedicado sobre CHA CHA REAL SMOOTH - O PRÓXIMO PASSO (2022), mas, apesar de ter alguns sentimentos mistos sobre o filme (ou talvez por causa deles), ele permaneceu nas minhas lembranças por alguns dias. Por mais que Cooper Raiff possa ser comparado a seus antecessores das comédias sentimentais, como Woody Allen e Emmanuel Mouret, é admirável vê-lo tão jovem, com apenas 25 anos, trazendo uma forte assinatura já em seu segundo longa-metragem. A comparação com Allen e Mouret procede, embora o aspecto mais abobalhado de Raiff seja suavizado com sua persona mais gentil e de certa forma mais atraente para as mulheres.

Acho muito bonita a atitude expositiva de Cooper Raiff em sua obra ainda em formação. Este novo filme é bastante coerente com o anterior, O CALOURO (2020), que também trata do amadurecimento, das dores de estar apaixonado e de estar um tanto perdido na vida adulta. O fato de o personagem não ser assim tão jovem para estar ainda sem saber o que fazer da vida e num subemprego explicita uma situação de fragilidade diante da vida e de forte apego à mãe. Isso se apresenta nos dois filmes, sendo que neste segundo até poderia se pensar que o apaixonar-se pela personagem de Dakota Johnson, por ela ser um pouco mais velha do que ele (mas não tanto), seria algo próximo de um complexo de Édipo, lembrando que o filme já começa com ele como garotinho, apaixonado por uma mulher adulta.

Dakota está tão adorável, doce e frágil no filme que não apaixonar-se por ela é quase impossível. Sua primeira aparição surge quanto Andrew, o personagem de Raiff, acompanha o irmão mais novo a um bar mitzvá. Ela aparece na festa acompanhada da filha adolescente, uma jovem que sofre bullying por ser um pouco mais velha (e mais alta) que seus colegas de sala. A garota se atrasou um ano ou dois na escola e lida com o autismo, que diminui sua predisposição a socialização. Andrew, com seu jeito simpático, consegue fazer com que a garota dance com ele na pista. E isso chega a ser fundamental para que ele ganhe a simpatia da personagem de Johnson, uma mulher que tem seus problemas de lidar com o mundo, por conta de problemas de depressão desde a juventude.

O filme cresce muito com a presença de Johnson na tela, com sua sensualidade, seu falar suave, seu olhar ao mesmo tempo lânguido e tentador. Há a cena do banheiro, que é essencial para uma aproximação maior dos personagens. Andrew passa a ser a única pessoa que sabe de um segredo dela, ajuda a levá-la para casa, trata com carinho e atenção a filha. A amizade tende a se encaminhar para algo mais íntimo, mas o fato de ela estar noiva atrapalha um pouco os planos de Andrew.

Há quem ache que Raiff, mais uma vez interpretando um homem carente, mas muito gente boa, estaria escondendo possíveis falhas mais graves de sua personalidade. De todo modo, ficarei feliz de acompanhar a evolução de um diretor que parece estar usando seu trabalho como um divã. Claro que vários cineastas o fazem (até um tempo atrás eu não tinha ideia do quão pessoais são os filmes de Brian De Palma, por exemplo), mas não de maneira assim tão exposta e tão disposta a deixar a emoção vir sem a menor vergonha e com um tanto de ingenuidade.

+ DOIS FILMES

BOA SORTE, LEO GRANDE (Good Luck to You, Leo Grande)

Que Emma Thompson é uma atriz de primeira grandeza, isso todo mundo já sabe. Mesmo assim, eu diria que ela consegue se superar neste magnífico trabalho de atuação e entrega que é BOA SORTE, LEO GRANDE (2022), de Sophie Hyde, um filme realizado apenas em interiores, a maior parte das vezes em um quarto de hotel, e que lida com o sexo e as frustrações que vêm com o envelhecimento para uma mulher que não teve a chance ou a coragem de se permitir. Thompson faz o papel de uma professora de educação religiosa aposentada que contrata os serviços de um profissional do sexo. O filme aposta mais nos conflitos interiores dos personagens, principalmente da ex-professora. Como são poucos os filmes que tratam da sexualidade na "terceira idade", este é mais do que bem-vindo, pois trata o corpo envelhecido com o devido respeito, e traz a ele a beleza, o brilho e a sensualidade que não deixam de haver com as marcas do tempo. O jovem Daryl McCormack está ótimo. Contracenar ao lado de uma atriz como Thompson o tempo todo não é para qualquer um. E o público do cinema parecia muito feliz com o filme, rindo bastante. Finalmente uma obra destinada ao público adulto que pode chamar a atenção de uma audiência maior.

LAÇOS (Lacci)

Um filme que lida muito bem com os dramas de seus personagens em dois momentos distintos de suas vidas. O diretor, Daniele Luchetti, é o mesmo dos muito bons MEU IRMÃO É FILHO ÚNICO (2007) e ANOS FELIZES (2013), filmes que tiveram a sorte de chegar a nosso circuito, ao contrário da maioria dos títulos do realizador. Em LAÇOS (2020), temos a história de um casal que tem sua relação quebrada quando o marido (Luigi Lo Cascio) resolve contar para a esposa (Alba Rohrwacher, sempre ótima) que está tendo um caso extraconjugal e que possivelmente estaria apaixonado por outra mulher (Linda Caridi, a bela moça de ENTRE TEMPOS). A situação ganha contornos dramáticos pelo modo como ambos lidam com a situação, levando em consideração o fato de terem filhos pequenos. Mais adiante, poderemos ver o casal em sua versão mais madura e o filme trazendo luz para rancores e outros sentimentos acumulados ao longo dos anos. Ótimas atuações e uma montagem bem acertada.

domingo, agosto 07, 2022

O INCRÍVEL HOMEM QUE ENCOLHEU (The Incredible Shrinking Man)



É impressão minha ou o gênero ficção científica sofre ainda mais preconceito por parte da cinefilia e do meio mais prestigiado da mídia do que o gênero horror? Confesso que eu mesmo não dava muita bola para o gênero, apesar de sempre responder quando me perguntavam qual o meu filme favorito com 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO. Mas aí estamos falando de uma obra-prima dirigida por um gênio, uma produção classe A requintada. Antes da obra de Kubrick, a maior parte das produções sci-fi eram filmes B produzidos na década de 1950 com o intuito maior de serem diversões escapistas, embora todas fossem reflexo do medo da bomba atômica durante a primeira fase da Guerra Fria. E há o caso de uma produção cara, como O PLANETA PROIBIDO, de Fred M. Wilcox, que hoje é visto como camp ou inferior por muitos.

Recentemente, ao adquirir alguns volumes da coleção Clássicos Sci-Fi, da Versátil Home Video, fui dando atenção maior a algumas dessas obras, principalmente as que não são assinadas por autores consagrados. E muitas delas são não apenas deliciosas de ver, mas muito inventivas e ricas em significado. O INCRÍVEL HOMEM QUE ENCOLHEU (1957), de Jack Arnold, está entre os melhores exemplares. Na trama, não há disco voador nem milagre da ciência ou robôs fantásticos e alienígenas, coisas que se costuma esperar do gênero. Mas temos algo que é bastante comum no ciclo de produções sci-fi da década de 1950, que é a interferência da radioatividade para a destruição da vida humana.

No caso, o herói do filme, Scott Carey (Grant Williams), está descansando em um barco com sua esposa Louise (Randy Stuart), quando uma nuvem misteriosa passa por ele. Dentro de poucos dias, ele começa a perceber que está ficando menor a cada dia. Primeiramente ele percebe nas roupas, que começam a parecer mais largas, e depois na altura, quando ele se percebe de estatura mais baixa que a esposa. Os médicos não conseguem entender o que está acontecendo com aquele homem, apenar percebem que, de fato, ele está encolhendo.

Interessante que eu jurava que já tinha visto este filme. Talvez algumas imagens tenham sido vistas por mim de alguma maneira ou talvez seja um exemplo do poder do inconsciente coletivo. O fato é que até um dia desses O INCRÍVEL HOMEM QUE ENCOLHEU era inédito para mim em sua versão integral. O curioso desta produção de Arnold é que ele vinha de dois westerns, gênero não muito associado ao diretor atualmente. O que marcou mesmo foi sua incursão na ficção científica e o quanto ele elevou o gênero naquele período, com este filme e com o ótimo A AMEAÇA QUE VEIO DO ESPAÇO (1953).

O impressionante desta história sobre um homem que fica menor a cada dia é como a trama é criativa em colocá-lo em situações distintas e em nos deixar admirados com os efeitos visuais inventivos. Há as cenas envolvendo os móveis na casa, a cena em que ele sai e conversa com anões de circo, a cena do gato e as ainda mais dramáticas cenas no porão, quando o filme nos leva para a solidão imensa do herói, agora tido como morto pelo gato de sua casa e tendo que enfrentar aranhas e ameaças daquele novo mundo.

E se no filme de 1953 Arnold tinha a história de Ray Bradbury, neste ele tem Richard Matheson no roteiro. Dois gênios da literatura sci-fi juntos na década mais importante para o gênero no cinema. Além de tudo, há a questão envolvendo o sentimento de extrema vulnerabilidade e de impotência do personagem (inclusive no primeiro terço), que faz com que ele ganhe contornos psicológicos mais profundos. E o que é aquele desfecho emocionante e trazendo uma espécie de esperança que não parece coincidir com o gosto amargo que sentimos, próximo de uma profunda indignação pelo destino do herói?

Filme visto no box Clássicos Sci-Fi - Anos 50 (volume 1), que conta com quase uma hora de extras sobre a produção, incluindo uma gostosa conversa com Joe Dante.

+ DOIS FILMES

O MOINHO DAS MULHERES DE PEDRA (Il Mulino delle Donne di Pietra)

Eis um dos filmes que representa um momento definitivo para o horror italiano, tendo estreado próximo do lançamento de A MALDIÇÃO DO DEMÔNIO, de Mario Bava. Há quem diga que o clássico de Bava eclipsou este trabalho de Giorgio Ferroni, mas acho que foi mesmo o brilho de Bava e sua excelência no que fez durante toda sua carreira o "culpado". Ainda assim, O MOINHO DAS MULHERES DE PEDRA (1960) merece ser mais conhecido, por mais que eu ache a primeira metade do filme um pouco travada na situação envolvendo o jovem estudante (Pierre Brice) e a filha de um homem que ganha dinheiro exibindo bizarras estátuas de mulheres em cenários de morte. Acho que o filme demora um bocado a dizer o que está de fato se passando no castelo do velho, que parece bastante com o Dr. Mabuse de Fritz Lang - imagino que a referência tenha sido justamente essa. Aliás, vejo a figura desse homem meio louco (Wolfgang Preiss) como um dos pontos altos do filme. As cenas das transfusões de sangue, imagino que podem ter causado certo desconforto para as plateias da época. Filme presente no box Obras-Primas do Terror - Gótico Italiano.

CARRO REI

O longa-metragem anterior de Renata Pinheiro, AÇÚCAR (2017), usa os elementos do cinema de gênero (no caso, o horror) de maneira muito feliz. Senti o domínio da diretora na construção de uma atmosfera de medo e mistério, e o filme ainda consegue trazer uma crítica social muito eficiente. Em CARRO REI (2021), o brainstorming dos três roteiristas, que inclui também Pinheiro, aposta numa sci-fi distópica sobre garoto que tem a habilidade de falar com carros. O roteiro um tanto furado não seria problema se o filme fosse suficientemente bom na direção. O simbolismo com o Brasil do bolsonarismo que sequestrou os símbolos patrióticos e conquistou seu legado com robôs, em vez de tornar o filme urgente ou politicamente atraente, acaba desanimando. Além do mais, sente-se uma dúvida sobre como deveria ser a performance de Matheus Nachtergaele no filme. E que coincidência ter outra obra sobre uma mulher que transa com um carro no mesmo ano de TITANE.

quinta-feira, agosto 04, 2022

ROSA LA ROSE, GAROTA DE PROGRAMA (Rosa la Rose, Fille Publique)



“Se a paixão fosse realmente um bálsamo, o mundo não pareceria tão equivocado...”
(Renato Russo)


Eu sabia que quando voltasse às aulas minha energia ficaria cada vez mais limitada. Aliás, esse já é um problema meu há alguns anos, mas tenho notado que tem se tornado cada vez mais um lamento, tendo deixado de ser uma preocupação, pois a preocupação demanda também energia. E, por isso, uma coisa de que gosto muito de fazer, que é escrever para este espaço, tendo algo para falar e uma disposição física razoável ao menos, aliada a um tempo disponível, acabou se tornando artigo raro. Mas eis que aqui estou, tentando ver se consigo escrever sobre um filme que tanto me encantou, ROSA LA ROSE, GAROTA DE PROGRAMA (1986), de Paul Vecchiali, um cineasta tão brilhante quanto marginalizado pelo nosso circuito, cultuado por um pequeno círculo de cinéfilos que tiveram a alegria de entrar em contato com sua obra.

Até então, do cineasta, eu só tinha visto É O AMOR (2015), que fora exibido numa única sessão numa das valiosas mostras retrospectativas do Cinema do Dragão. Ou seja, nem chegou a ter uma semana de exibição comercial. E acredito que nenhum de seus filmes anteriores tenha ganhado espaço em nosso circuito. Seus filmes são pequenos no quesito produção e pelo que vi no IMDB trata-se de um cineasta incansável, já tendo no currículo 57 títulos na direção, entre longas, curtas e produções televisivas. Recentemente, dentro de uma bolha da cinefilia brasileira, Vecchiali voltou a chamar a atenção quando ROSA LA ROSE... e também UMA VEZ MAIS (1988) apareceram em diversas listas de melhores filmes dos anos 1980. Então, antes tarde do que nunca o reconhecimento maior de sua obra.

É muito bom conhecer poéticas estranhas, totalmente novas e não só por isso fascinantes. Ao ver ROSA LA ROSE, GAROTA DE PROGRAMA abracei sua estranheza com muita animação. E animação é a palavra certa no primeiro terço do filme, em que vemos o universo de garotas de programa como um espaço de riso, leveza, alegria e muita gentileza, especialmente da parte de Rosa (Marianne Basler, apaixonante), a protagonista cheia de vida e encanto, que de tão linda, simpática, sorridente e feliz, não lhe faltam clientes. E essa primeira parte do filme culmina com o aniversário de Rosa, que parece saído de um filme de Josef von Sternberg, pela estilização adotada. 

Essa primeira parte também lembra FRENCH CAN CAN, de Jean Renoir, tanto pela alegria quanto pelo quanto dá uma espetada no falso moralismo. Mesmo assim, nem tudo são flores, pois há algo de agridoce na situação das profissionais do sexo nessa primeira parte, especialmente aquelas que estão há mais tempo na profissão e que agora se sentem rejeitadas pelos clientes, ainda mais tendo uma jovem tão bela e requisitada quanto Rosa competindo.

Mas eis que surge algo para tirar os pés de Rosa do chão, um homem por quem ela se vê apaixonada. E notamos essa diferença logo no momento em que os dois entram no ambiente privado do quarto. O amor aqui (ou a paixão, na verdade, sua forma mais enlouquecida e mais ligada ao sofrimento) é um elemento trágico, febril, desnorteador. Tanto que em pouco tempo vemos o filme de tornar um melodrama, com direito a citação a TARDE DEMAIS PARA ESQUECER, de Leo McCarey, com a diferença no tipo de dramaturgia: sai o realismo romântico de Hollywood e entra um tipo de atuação mais próxima do teatro, talvez. 

Com o surgimento da paixão, os pensamentos ficam nublados, obscurecidos, e a luz do sol do raiar do dia parece apenas um alento. Especialmente na cena perto do final, em que a personagem-título está na cama e pede para que abram a janela do quarto. O sol tem essa representação da alegria de viver que o filme apresentou tão bem no início. No mais, há uma cena de carnaval de rua com samba brasileiro que é linda. No entanto, é uma cena que já chega em um momento emocionalmente instável para Rosa. Eis o motivo de tantos de nós não estarmos dispostos a nos apaixonarmos. O cair do fall in love na língua inglesa é especialmente feliz ao retratar essa condição. 

+ DOIS FILMES

DEITE COMIGO (Lie with Me)

Confesso que o que me chamou a atenção para este filme foi a informação (não sei se totalmente verídica) de que as cenas de sexo são todas reais, embora não sejam explícitas. O curioso de DEITE COMIGO (2005), de Clement Virgo, é que engana um pouco ao ser apresentado como a jornada de uma jovem mulher pelo sexo insaciável. Acaba sendo uma história de amor, com alguns detalhes curiosos. Por exemplo, há a opção de não se falar em outra coisa nos diálogos a não ser o estar com a pessoa, o desejo, a saudade, a necessidade, a vontade de estar para sempre com ela. Até mesmo na subtrama dos pais da personagem feminina isso também se limita ao estar ou não com alguém. Por outro lado, o filme ganha com diálogos simples mas espontâneos, ganha com momentos de intimidade que passam uma liberdade com o corpo muito interessante. E curiosamente eu diria que um dos momentos mais fortes do filme é quando os personagens enfrentam a própria insatisfação amorosa e sexual. Detalhe presente em um dos cartazes de divulgação: uma comparação com 9 CANÇÕES, o musical erótico de Michael Winterbottom que fez um leve sucesso no cinema alternativo na época. Nem sei se faz sentido a comparação, mas para chamar a atenção, está valendo.

O SEGREDO DE MADELEINE COLLINS (Madeleine Collins)

Caso raro de atriz que se tornou "quente" no cinema internacional depois dos 40, Virginie Efira é tão bela quanto impressionantemente talentosa. O SEGREDO DE MADELEINE COLLINS (2021), de Antoine Barraud, foi o filme que ela fez logo após o impacto de BENEDETTA e explora ainda mais sua versatilidade. A princípio, achei que se tratasse de uma versão feminina de MONSIEUR VERDOUX (do Chaplin), mas a trama vai além do mostrar uma pessoa com vida dupla. No caso, começamos o filme vendo a personagem de Efira fazendo viagens constantes entre França e Suíça para duas famílias diferentes e estilos de vida diferentes, e vendo seu mundo desmoronar quando começa a não ter mais controle da situação de ser secretamente mãe e esposa de duas famílias. Aliás, a situação é bem mais complexa do que se imagina a princípio e Efira em certo momento lembra a Gena Rowlands em UMA MULHER SOB INFLUÊNCIA, de John Cassavetes, tal a entrega física e mental aos abismos de sua personagem. Uma das melhores interpretações que vi recentemente