terça-feira, dezembro 31, 2024

TOP 20 2024 E O BALANÇO DO ANO




1. ERVAS SECAS, de Nuri Bilge Ceylan
2. TRENQUE LAUQUEN, de Laura Citarelli
3. STRANGE DARLING, de JT Mollner
4. AINDA ESTOU AQUI, de Walter Salles




5. GARRA DE FERRO, de Sean Durkin
6. O DIA QUE TE CONHECI, de André Novais Oliveira
7. JARDIM DOS DESEJOS, de Paul Schrader
8. MUSIC, de Angela Schanelec




9. O QUARTO AO LADO, de Pedro Almodóvar
10. SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO, de Todd Haynes
11. ENTREVISTA COM O DEMÔNIO, de Cameron e Colin Cairnes
12. MAL VIVER, de João Canijo




13. MAIS PESADO É O CÉU, de Petrus Cariry
14. LOVE LIES BLEEDING – O AMOR SANGRA, de Rose Glass
15. POBRES CRIATURAS, de Yorgos Lanthimos
16. FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE, de Susana Lira




17. O SEQUESTRO DO PAPA, de Marco Bellocchio
18. SORRIA 2, de Parker Finn
19. JURADO Nº 2, de Clint Eastwood
20. HERE, de Bas Devos

Menções Honrosas

ZONA DE INTERESSE, de Jonathan Glazer
A PRIMEIRA PROFECIA, de Arkasha Stevenson
RIVAIS, de Luca Guadagnino
DUNA – PARTE 2, de Denis Villeneuve
OS OBSERVADORES, de Ishana Night Shyamalan
ALIEN: ROMULUS, de Fede Alvarez
QUEER, de Luca Guadagnino
TERRIFIER 3, de Damien Leone
GOLPE DE SORTE EM PARIS, de Woody Allen
AINDA TEMOS O AMANHÃ, de Paola Cortellesi

2024 foi um ano incrível. Acho bom começar o texto dessa maneira, pois em geral, se não me engano, a maioria dos textos de fim de ano neste espaço costumavam começar com este redator aqui reclamando de alguma coisa fora do campo dos filmes. Acredito que é importante deixar registrado quando estamos gratos pelo que a vida nos proporciona. No meu caso, sou muito grato pela presença da Giselle em minha vida, pelo nosso noivado, pela viagem excelente que fizemos a São Paulo, pelos filmes, shows (teve até Caetano e Bethânia!) e festas a que fomos, e até por estarmos juntos apenas para caminhar na beira-mar, por exemplo. Foi também um ano que fiz uma viagem maravilhosa para a Irlanda, um lugar cheio de belezas naturais exuberantes, pessoas gentis e uma experiência que trouxe lembranças que levarei para a vida, inclusive profissional, já que o principal motivo foi profissional.

Quanto aos filmes, a regra segue sendo a mesma desde 2020: títulos vistos por mim e do primeiro ao último dia do ano, não importando se foi ou não lançado no Brasil. Embora, deixo claro, eu tendo a esperar pelos filmes que eu sei que chegarão ao nosso circuito. Na viagem para a Irlanda, comprei ingresso para STRANGE DARLING sem saber nada a respeito do filme. E quando fiquei impressionado com a montagem, com a visceralidade, com as interpretações e com as surpresas, fiquei sem entender o motivo de esse filme não estar sendo tão esperado ou tão comentado assim. No Brasil, será lançado em março de 2025 e eu já vou querer ver de novo. Trata-se de mais um exemplar da excelente forma do cinema de horror atual.

E no cinema de horror, um de meus gêneros favoritos e um dos que mais me dá prazer, comparece no top 20 também ENTREVISTA COM O DEMÔNIO, uma das experiências mais divertidas (e também assombrosas) que tive. Foi ótimo poder ver no cinema numa sessão perto da meia-noite. Outra coisa linda de ver foi a surpreendente sequência de um filme mediano: SORRIA 2 traz um Parker Finn que parece outro, de tão inventiva que está sua direção. Ajuda também ter uma atriz maravilhosa como Naomi Scott. Aliás, é muito bom notar que os filmes de terror também têm ganhado com as interpretações, principalmente femininas. STRANGE DARLING também traz uma atriz impressionante, Willa Fitzgerald.

Outro filme que tangencia o horror e perto de seu final entra com força no body horror (e não é aquele com a Demi Moore!) é LOVE LIES BLEEDING – O AMOR SANGRA, que também conta com um par de atrizes extraordinárias. Nem preciso mais elogiar Kristen Stewart. Ela já virou uma das favoritas da casa faz tempo.

O que esses quatro filmes têm em comum, mesmo sendo tão distintos em suas propostas? Os quatro são obras de jovens cineastas, os quatro têm um interesse com o passado, na forma e na textura, seja usando o velho e bom filme em 35 mm, todo ou em parte, para sua realização, seja nos levando a décadas passadas (1970, 80, 2000) e se unindo à série de filmes do gênero que foram chamados de “terror analógico”. O único que se passa nos dias atuais é SORRIA 2, mas o abraçar o velho jump scare sem medo de parecer vulgar e ainda trazer sofisticação para as imagens, já pode fazer com que seja no futuro visto como um clássico. Outros filmes de horror do ano também têm essa pegada do horror analógico, que talvez signifique uma intenção de fuga da realidade presente, ou de buscar nos clássicos uma maior inspiração.

Às vezes (ou quase sempre) o terror é real. E é este terror real que o grande Marco Bellocchio apresenta em O SEQUESTRO DO PAPA, uma incrível história baseada em fatos de um garotinho que é levado à força de sua família judia para crescer dentro de um convento. Tudo porque o menino havia sido batizado por uma mulher católica, longe dos olhos dos pais. É o tipo de filme que deixa o espectador tão indignado quanto assombrado.

E falando em indignação, o cinema brasileiro mais uma vez busca os anos de chumbo como a grande representação de uma época aterrorizante e governada por covardes. AINDA ESTOU AQUI, de Walter Salles, é um filme que tem dado o que falar no mundo todo. E que bom que isso está acontecendo, já que apresenta uma história que merece ser mais conhecida. E Salles faz isso com muita propriedade, unindo o clássico com o moderno, o horror daquele regime autoritário com a alegria de uma música brasileira setentista. Além do mais, AINDA ESTOU AQUI representou um momento de sucesso também comercial para nosso cinema. Com projeção internacional e tudo. 

Em 2024 também tivemos filme novo de Petrus Cariry, um dos mais inventivos realizadores do Ceará, do Brasil e do mundo. Como um cineasta que tem um carinho especial pelo cinema de horror, esse gênero acaba invadindo suas histórias dramáticas. Em MAIS PESADO É O CÉU, temos uma família de pessoas que não têm nada na vida se unindo para sobreviver numa espécie de cidade fantasma, um espaço, aliás, recorrente no cinema do diretor.

Do outro lado do espectro, o cinema brasileiro também trouxe um filme que me fez sair da sessão com a sensação de estar levitando, de tão feliz, como naqueles antigos musicais hollywoodianos. Trata-se de O DIA QUE TE CONHECI, uma espécie de comédia romântica com pessoas bem normais, para os dias de hoje, e dirigido com a mão segura de André Novais Oliveira. O outro filme brasileiro que também me encantou imensamente foi um documentário sobre uma figura incrível e falecida precocemente, FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE, de Susanna Lira, que trata de uma mente inquieta, inteligente e apaixonante.

Falando em paixão, também tivemos histórias de amor neste top 20. HERE, de Bas Devos, é uma história de amor muito particular na forma como é contada. Um filme misterioso, verde, úmido e que parece um sonho. Outro também que tem essa característica onírica é o argentino TRENQUE LAUQUEN, de Laura Citarelli, que mantém uma espécie de tradição de um cinema contemporâneo do país que brinca com narrativas longas e cheias de camadas. São quatro horas e vinte minutos de dar gosto. Outro filme misterioso, mas que parte para uma seara mais bressoniana é MUSIC, da cineasta alemã Angela Schanelec, que conta uma tragédia inspirada nos gregos antigos, mas num formato pós-moderno e hermético.

Quem também faz um cinema inventivo, mas que se utiliza um pouco mais da narrativa clássica, embora distante do que nos acostumamos com o cinema feito nos Estados Unidos, é o turco Nuri Bilge Ceylan, que eu meio que escolhi como meu favorito do ano, desde que eu saí da sessão. ERVAS SECAS é um de seus trabalhos mais bonitos, mas também bastante amargos, com um quê de Dostoiévski.

Como de doce já basta a vida, algo que costumo dizer com frequência, filmes amargos costumam me agradar muito. Entra nesta categoria O QUARTO AO LADO, do grande Pedro Almodóvar, que conta a história de uma mulher que opta por escolher quando partir deste plano, devido a um câncer em estágio avançado. Outro filme amargo que conta, inclusive, com uma atriz em comum (Julianne Moore) é SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO, de Todd Haynes, que trata da delicada relação de uma mulher bem mais velha que seu companheiro. (Na verdade, o problema não é exatamente esse.)

O veterano Paul Schrader também trouxe alegria aos cinéfilos com o terceiro da trilogia bressoniana dos “filmes de profissão”. JARDIM DOS DESEJOS foi o único dos três que eu tive o privilégio de assistir na telona. Que coisa linda. Outro diretor veterano, mas que até então desconhecia, foi apresentado a mim com MAL VIVER. O português João Canijo também fez VIVER MAL, um filme que casa com o anterior. Se em MAL VIVER, temos a história do ponto de vista dos donos do hotel, no outro, há o ponto de vista dos hóspedes. Uma pena que o segundo não chegou aos cinemas de Fortaleza. 

Também tivemos o mais novo (talvez o derradeiro) filme do gigante Clint Eastwood, mais uma vez lidando com a temática da culpa, com muita propriedade e muita humanidade. JURADO Nº 2 é aquele filme que todo mundo viu na telinha com vontade de ver na telona.

Na categoria histórias malucas, temos dois representantes muito diferentes. Um deles, GARRA DE FERRO, de Sean Durkin, chama a atenção por ser baseado numa história real. Trata-se da saga trágica de uma família de lutadores de wrestling. É preciso ver para acreditar. A outra história maluca é a comédia-sci-fi steampunk de Yorgos Lanthimos, POBRES CRIATURAS. Uma espécie de reinvenção da história do monstro de Frankenstein, misturando preto e branco com cores que explodem na tela. Uma coisa linda de ver.

Pois é. Não dá para dizer que 2024 não foi ótimo também para o cinema. No mais, pela primeira vez não haverá nem top 5 dos piores (evitei muita tranqueira) e nem top 5 de séries e minisséries, pois não consegui acompanhar quase nada. Não sei se é uma tendência ou se no próximo ano voltarei a dar mais atenção aos bons trabalhos feitos para a telinha.

Top 5 – Musas do Ano



Rebecca Ferguson comparece neste ano novamente, desta vez com DUNA – PARTE 2, o delicioso épico sci-fi de Denis Villeneuve. Nascida na Suécia, chega ao auge da beleza, do sucesso e da popularidade aos 40 anos. 



Emma Stone, a moça de olhos expressivos e marcantes, compareceu aos cinemas neste ano com dois filmes do mesmo realizador, o controverso cineasta grego Yorgos Lanthimos. A dobradinha POBRES CRIATURAS e TIPOS DE GENTILEZA não apenas chamou a atenção para o talento da atriz, como também para sua coragem de se entregar a papéis que poucas atrizes de nome já estabelecido ousariam. Foi a vencedora do Oscar de atriz deste ano. 



Talvez os Estados Unidos já estejam com uma nova namoradinha. E ela talvez seja Sydney Sweeney, que neste ano esteve em três filmes completamente diferentes, a comédia romântica TODOS MENOS VOCÊ, a aventura de super-heróis MADAME TEIA e o terror IMACULADA. Versatilidade, simpatia e um quê de quem nasceu para ser estrela. Sem falar que ela não tem problema em trabalhar um tipo de sex appeal mais acentuado, que faz lembrar Marilyn Monroe.



Quem vê JARDIM DOS DESEJOS certamente cria alguma conexão com a personagem de Quintessa Swindell, que representa uma espécie de redenção para o protagonista. É importante que a atriz tenha um bom empresário, para que consiga papéis em filmes de grandes realizadores, como foi o caso aqui com este de Schrader.



Da nova geração de atrizes, a porto-riquenha Adria Arjona tem chamado muito a atenção. Está em ASSASSINO POR ACIDENTE, a divertida comédia criminal de Richard Linklater, fazendo um misto de femme fatale com mocinha indefesa. Engraçado que eu havia me esquecido dela, mas bastou eu olhar no currículo e checar em meu texto, que na minissérie IRMA VEP, ela já havia me chamado a atenção, e num papel pequeno.

Clássicos (ou Quase) Vistos ou Revistos na Telona 

A GRANDE TESTEMUNHA, de Robert Bresson
A HORA DA ESTRELA, de Suzana Amaral
CORISCO & DADÁ, de Rosemberg Cariry
DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS, de Bruno Barreto
DUNA, de Denis Villeneuve
ESTÔMAGO, de Marcos Jorge
ISTO É PELÉ, de Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto
O SOL POR TESTEMUNHA, de René Clément
OS FANTASMAS SE DIVERTEM, de Tim Burton
STOP MAKING SENSE, de Jonathan Demme

Melhores Não-Lançamentos Vistos pela Primeira Vez na Telinha

A ESPOSA SOLITÁRIA, de Satyajit Ray
A FILHA DE SATÃ, de Sidney Hayers
A LONGA CAMINHADA, de Nicolas Roeg
A MARCA DA BRUTALIDADE, de Michael Ritchie
ANJO DO MAL, de Samuel Fuller
CASA DE BAMBU, de Samuel Fuller
DO LODO BROTOU UMA FLOR, de Robert Montgomery
ESCRAVAS DO MEDO, de Blake Edwards
FRANKENSTEIN CRIOU A MULHER, de Terence Fisher
MANDINGO – O FRUTO DA VINGANÇA, de Richard Fleischer
NA CAMA COM VITÓRIA, de Justine Triet
O CAMINHO DA TENTAÇÃO, de Andre De Toth
O HOMEM DE ALCATRAZ, de John Frankenheimer
O SAMURAI, de Jean-Pierre Melville
OS ASSASSINOS SÓ MATAM AOS SÁBADOS, de Duccio Tessari
QUATRO NOITES DE UM SONHADOR, de Robert Bresson
QUERO VIVER!, de Robert Wise
TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO, de Billy Wilder
TORMENTA SOB OS MARES, de Samuel Fuller
UMA LAGARTIXA NUM CORPO DE MULHER, de Lucio Fulci

Revisões na Telinha

A ORGIA DA MORTE, de Roger Corman
A PROMESSA, de Sean Penn
CHRISTINE, O CARRO ASSASSINO, de John Carpenter
NOSSO SONHO, de Eduardo Albergaria
O CHICOTE E O CORPO / DRÁCULA, O VAMPIRO DO SEXO, de Mario Bava
O MONSTRO DO CIRCO, de Tod Browning
O TERCEIRO HOMEM, de Carol Reed
PAIXÃO, de Brian De Palma
PARAÍSO PERDIDO, de Monique Gardenberg
PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL, de Don Siegel
TENEBRE, de Dario Argento
UNIDOS PELO SANGUE, de Sean Penn

Feliz Ano Novo!

Que 2025 seja um daqueles anos que marquem positivamente a vida da gente, que consigamos uma melhora na economia de modo a podermos usufruir de viagens e momentos especiais, que nossa saúde se mantenha firme e melhor, que tenhamos paz de espírito e sabedoria para trabalhar e saber tomar as melhores decisões, e que mantenhamos o nosso entusiasmo pelo amor. E que tenhamos tempo para exercitar nossa paixão pelo cinema, razão de este blog existir por mais de 22 anos. 

segunda-feira, dezembro 30, 2024

A HORA MÁGICA



Uma pena que um cineasta do gabarito de Guilherme de Almeida Prado não seja tratado com o devido respeito pela nossa “indústria”. A HORA MÁGICA (1999), um de seus filmes mais geniais e criativos, passou batido quando de seu lançamento nos cinemas e, infelizmente. nem ganhou uma edição em DVD, sendo possível vê-lo apenas numa péssima cópia distribuída na internet, ripada de uma exibição na televisão (*). E trata-se de um filme cuja qualidade plástica é necessária para uma melhor apreciação. Assim, sem poder vê-lo da melhor maneira possível, o que me restou foi ficar imaginando a maravilha que seria ver o filme na gloriosa tela grande. Mesmo assim, consegui apreciá-lo e ver o quanto é um grande trabalho.

O título “A Hora Mágica” aparece num cinema no final de A DAMA DO CINE SHANGHAI (1987), e o filme também fala de uma tal Dulce Veiga, que apareceria num filme que só seria concluído nove anos depois, ONDE ANDARÁ DULCE VEIGA? (2008), também restrito ao circuito alternativo e com poucas cópias distribuídas. Aliás, o próprio Almeida Prado, em seu livro Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo, diz que não sabe fazer filmes populares. Em suas palavras, “meus filmes são do tipo que ninguém esperava ver ou, algumas vezes, nem queria ver”. Quer dizer, são filmes para um público bem específico, mais sofisticado, eu diria.

A HORA MÁGICA é baseado num conto do genial escritor argentino Júlio Cortázar, e mostra um ator de novelas de rádio (Raul Gazolla) que sempre interpreta o papel de vilão. Ele também complementa a renda dublando um ator de voz péssima no cinema. O filme se passa num momento em que a televisão estava prestes a chegar ao Brasil e que o rádio é que era ainda o grande meio de comunicação de massa. Há um crime que acontece no apartamento vizinho e logo depois ele conhece uma moça que lhe escreve cartas de amor e por quem se apaixona (Júlia Lemmertz).

Os dois ficam juntos, mas ele começa a suspeitar que ela tem algo a ver com o crime. Mas o interessante é que isso só a torna mais interessante aos seus olhos. E realmente Julia Lemmertz nunca me pareceu tão bela quanto neste filme de Almeida Prado. E vale dizer que a trama é menos importante do que o modo como o cineasta resolve contá-la, de maneira bem diferente do que se costuma ver.

John Herbert interpreta um colega de trabalho do protagonista, o sujeito que sempre pega o papel de mocinho da trama e que mais recebe cartas das fãs. Maitê Proença faz um papel duplo, mas é José Lewgoy quem rouba a cena nos momentos em que aparece, interpretando vários papéis. Imara Reis e Walter Breda, que trabalharam com o diretor em FLOR DO DESEJO (1984), aparecem em papéis de pequeno destaque, e Tânia Alves abre o filme com sua voz cantando um tango, com sua boca, destacada pela câmera.

* Texto publicado originalmente em janeiro/2012 na Revista Zingu! Depois, uma cópia em HD de A HORA MÁGICA estaria disponível para melhor apreciação do filme, coisa que ainda não o fiz.

+ TRÊS FILMES

AVENIDA BEIRA-MAR

Um filme que pode se dar ao luxo de ter Andrea Beltrão como coadjuvante. Ou quase. Quem guia a narrativa de AVENIDA BEIRA-MAR (2024) , de Maju de Paiva e Bernardo Florim, e nos convida a acompanhar essa história sobre solidão, amizade e aceitação é a adolescente vivida por Milena Pinheiro, que faz Rebeca, filha de Beltrão, num momento em que as duas estão se mudando para uma casa no litoral do estado do Rio, em Niterói. A jovem conhece Mika, uma menina trans de 13 anos que desafia os pais e a sociedade agressiva em sua volta. Uma das cenas mais representativas desse desafio é o jantar das meninas na casa de Mika, com os pais da menina que insiste em usar as roupas de sua irmã, em vez das roupas masculinas que lhe são destinadas. A escolha pela janela scope garante tanto uma aproximação maior dos personagens na lente quanto opções que valorizam a paisagem da praia e cenas internas, mais intimistas.

O CLUBE DAS MULHERES DE NEGÓCIOS

Terminando de ver este O CLUBE DAS MULHERES DE NEGÓCIOS (2024) fiquei me perguntando se o real motivo do relançamento de DURVAL DISCOS (2002) foi para lembrar ao mundo que Anna Muylaert não é a diretora desta coisa desengonçada e feia deste ano, mas, inclusive, a cineasta que estreou em longa-metragem com o pé direto com um objeto estranho, mas muito criativo e antológico, há 22 anos. Este novo filme me parece uma ideia ruim que se assemelhou em algum momento a uma ideia boa e que, dada a importância que a diretora ganhou ao longo dos anos, vide principalmente QUE HORAS ELA VOLTA? (2015), acabou juntando um elenco de notáveis numa piada de mau gosto. A trama se passa num universo em que as mulheres mandam e os homens são uma espécie que sofre abuso e obedece, inclusive, vestindo roupas que se assemelham às roupas femininas. Mas aqui as mulheres são tão tóxicas quanto os homens em seus piores momentos, e isso é mostrado de maneira bem caricata. O problema é que o filme não funciona nem como comédia pesada, nem como uma alegoria do abuso do sexo frágil, por assim dizer. Quando achamos que o filme não podia ficar pior, ele consegue terminar no fundo do poço.

MOTEL DESTINO

Uma das coisas que mais admiro no cinema de Karim Aïnouz é o quanto ele costuma levar suas narrativas seguindo mais uma intuição do que um pensamento racional. Por isso sua poética funciona tão bem em documentários ou trabalhos ensaísticos, como VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO (2009), NARDJES A. (2020) e MARINHEIRO DAS MONTANHAS (2021), embora nem sempre nas ficções, que às vezes carecem de maior cuidado na construção da trama e dos personagens. MOTEL DESTINO (2024) ganha muito quando entra em cena o personagem de Fabio Assunção, o dono de um motel numa cidadezinha litorânea do Ceará. Ele é o personagem mais complexo e mais interessante, enquanto Iago Xavier e Nataly Rocha fazem as vezes, em certo momento, de protagonistas de uma história que remete aos filmes noir, mas com um humor que desconcerta e talvez atrapalhe, na medida em que nos tira o suspense que supostamente poderia resultar dessa história. Porém, se vemos o filme como algo mais próximo de um ACOSSADO do que de um PACTO DE SANGUE, é possível aceitar melhor seu desenvolvimento e especialmente sua conclusão. Não compro, por exemplo, as falas finais do protagonista, ainda mais depois de uma sessão em que o público participou com muitos risos e gargalhadas. De todo modo, é um filme que tem uma singularidade que nos faz torcer pelo seu sucesso. Afinal, não é sempre que vemos uma obra que se permite entrar no funcionamento de um motel à brasileira. Ah, e quanto ao sexo, tenho também minhas reservas, já que, por mais que haja nudez frontal e certas liberdades, é como se houvesse ainda uma trava no que se refere à capacidade ou vontade de excitar a audiência. Ou talvez já tenhamos passado dessa fase.

sábado, dezembro 28, 2024

JURADO Nº 2 (Juror #2)



Fico pensando: será que não bate uma pontinha de arrependimento por parte desses novos executivos da Warner quando leem milhares de críticas sobre JURADO Nº 2 (2024) enfatizando o quão absurdo um filme como este ser lançado diretamente para compras online e depois em streaming? Eu nem queria ficar repetindo o que todo mundo já diz, mas talvez seja importante ser mais uma voz de indignação. Afinal, Clint Eastwood é certamente um dos cinco melhores cineastas americanos vivos e um artista que vem fazendo filmes relevantes em quantidade e regularidade incríveis, mesmo com a idade avançada. Além do mais, seus filmes nunca deram prejuízo e ele sempre entrega tudo no prazo. Outra coisa: o cara tem no currículo dois filmes vencedores do Oscar na categoria principal, além de outros indicados ao prêmio.

JURADO Nº 2 é outro de seus trabalhos que busca o sentimento de culpa como base. Ele já havia nos apresentado a pistoleiros que carregam na consciência muitas mortes na obra-prima OS IMPERDOÁVEIS (1992) e outros personagens com conflitos interiores intensos, em filmes como UM MUNDO PERFEITO (1993), SOBRE MENINOS E LOBOS (2003), MENINA DE OURO (2004), GRAN TORINO (2008) e SNIPER AMERICANO (2014).

Neste novo trabalho, existe uma luta interior na consciência do personagem de Nicholas Hoult. Uma luta que tira seu sono. No júri ele é uma representação do chamado à verdade para os demais jurados, mais ou menos como acontece com o personagem de Henry Fonda em 12 HOMENS E UMA SENTENÇA, de Sidney Lumet. Mas esse herói, humano, sabe também que aquilo que ocorreu foi um acidente e, nesse sentido, há uma crítica, ainda que sutil, ao sistema jurídico. Esse sistema que não é perfeito, mas é o que eles têm, como afirma o personagem do advogado do homem acusado de matar a namorada.

Aqui Hoult não é exatamente um homem de um ato heroico, por assim dizer, como os apresentados em SULLY – O HERÓI DO RIO HUDSON (2016), 15:17 – TREM PARA PARIS (2018) ou O CASO RICHARD DEWELL (2019). Hoult interpreta um homem que luta contra o alcoolismo, que quase o destruiu, e que agora está num casamento salvador, com uma esposa amável em uma gravidez de risco. Ele é escolhido para fazer parte do júri de um suposto caso de assassinato. Na verdade, o réu já está na cadeia e tudo leva a crer que a narrativa de que ele, homem com perfil violento, é o culpado, é a narrativa mais comprada. Gosto de como o filme usa o recurso de um flashback que adentra a trama principal como se fosse uma imaginação do protagonista. A princípio, como se fosse uma reconstituição, mas depois se percebe que se trata de uma memória do protagonista da cena, de estar presente no bar.

Quem acaba dividindo com ele a parcela da dor na consciência numa das imagens mais emblemáticas do filme, a cena dos dois sentados no banco em frente ao tribunal, é Toni Collette, a procuradora de justiça que em determinado momento passa a suspeitar de que está do lado errado da justiça, uma vez que investiga um pouco mais sobre o caso.

JURADO Nº 2 é muito provavelmente um dos mais brilhantes filmes de tribunal já realizados. Para dizer o mínimo, já que sua simplicidade é apenas aparente, como geralmente acontece nos filmes do velho Clint. Além disso, todas as atuações estão incríveis: de Hoult e Collette, passando por J.K. Simmons, Chris Messina e Gabriel Basso. Só quem eu achei estranho no filme foi Kiefer Sutherland, mas por associá-lo ao Jack Bauer de 24 HORAS. Quando ele aparece baixinho (na verdade, ele tem 1,75 m), em comparação com os quase dois metros de altura de Hoult, fica estranho de ver. Um detalhe bobo, eu sei, mas talvez mais alguém tenha notado.

+ TRÊS FILMES

GLADIADOR II (Gladiator II)

A única maneira de gostar de GLADIADOR II (2024) é não o levando a sério. Afinal, dá para gostar das cenas da arena, do embate com o homem montado num rinoceronte, dos inusitados tubarões e de outros embates. No mais, os diálogos são ruins, o roteiro é bem qualquer coisa e quem acaba conseguindo brilhar nas cenas que aparece é Denzel Washington, que faz um comprador de escravos muito influente e de passado misterioso. Assim como também é misterioso, mas nem tanto assim, o passado do personagem de Paul Mescal, cuja esposa é morta em batalha contra os romanos e ele é levado vivo para ser escravo e gladiador. O ator agora bem musculoso está até bem no papel, levando em consideração o que tem à disposição. As cenas de lutas, por mais que não sejam extraordinárias, não são irritantes como no primeiro filme, quando o diretor era um dos que comandavam a moda das montagens picotadas em cenas de ação, que depois seria bem-recebidas pela crítica e ajudaram a dar uma cara à franquia "Bourne", por exemplo. Ridley Scott parece que continua fazendo um filme ruim para cada bom, se consideramos NAPOLEÃO (2023) como um dos bons, apesar de irregular.

MEGALÓPOLIS (Megalopolis)

Francis Ford Coppola finalmente materializou seu velho sonho. MEGALÓPOLIS (2024) é um projeto de 40 anos da vida de um artista - muito provavelmente o maior cineasta americano dos anos 1970. E só por isso é um filme que merece nosso respeito. Coppola é um cineasta que já enalteceu sonhos que se tornaram verdade, mas que tiveram que enfrentar a lógica brutal do mercado no ótimo TUCKER – UM HOMEM E SEU SONHO (1989) e aqui apresenta um herói (Adam Driver) que imagina um mundo melhor, mais distante do cinismo e da falta de perspectiva do capitalismo reinante, representado pelo prefeito vivido por Giancarlo Esposito. Esse sonho fica nebuloso para nós, espectadores, dado o aspecto confuso que se instala a narrativa fragmentada/truncada do filme, mas todo sonho (enquanto ainda sonho) é mesmo nebuloso. Não sei o quanto o resultado foi intencional ou o quanto já fazia parte dos planos do realizador, uma vez que seu filme parece, muitas vezes, uma adaptação literária cheia de pedaços deixados na sala de montagem. O tom do filme, seu interesse maior na beleza plástica do que numa narrativa mais convencional, o liga mais a O FUNDO DO CORAÇÃO (1981) do que aos herdeiros do noir e do filme de gângster que são costumeiramente associados à obra de Coppola. A narração de Laurence Fishburne parece mais uma tentativa tímida de dar um tom de fábula e as referências aos clássicos latinos parecem soltas. No mais, gosto do casal principal (Driver e Nathalie Emmanuel), de como se forma essa relação, cuja força está mais no olhar dos atores do que no desenvolvimento do enredo, que é o ponto fraco, com personagens que somem ou não têm relevância (Dustin Hoffman, Jason Schwartzman) e outros que têm bons momentos pontuais (Jon Voight, Shia LaBeouf). É possível que seja um filme que ganhe mais força com o tempo ou com uma revisão.

O HOMEM DE ALCATRAZ (Birdman of Alcatraz)

Impressionante filme baseado na história real de Bob Stroud, um homem que ficou encarcerado durante 54 anos de sua vida, sendo 42 deles em confinamento solitário. Mas o mais incrível de sua história é seu interesse pelos pássaros, que o tornou um cientista autodidata especializado e respeitado por seus pares. O filme de John Frankenheimer protagonizado por Burt Lancaster (brilhante!) já havia me ganhado desde as primeiras imagens e fica ainda mais fascinante quando apresenta a mãe de Stroud (Thelma Ritter, excelente!), uma senhora que depois veremos se tratar de uma mãe dominadora e possessiva. Ou seja, a história de Stroud, ao que parece, já havia algo de castração desde sua criação (um filme sobre a vida dele antes da prisão seria muito bem-vindo também). Apesar de O HOMEM DE ALCATRAZ (1962) ser um filme discreto do ponto de vista formal, há cenas que se destacam pelo uso do alto contraste (o lendário John Alton foi um dos diretores de fotografia, depois demitido e substituído por Burnett Guffey, de BONNIE & CLYDE – UMA RAJADA DE BALAS). O uso da fotografia em preto e branco ajuda a disfarçar um pouco o fato de que Lancaster já estava perto dos 50 anos quando interpreta um homem na faixa dos 20, assim como foi necessária também porque o equipamento em cores era muito quente e iria incomodar os pássaros. Por mais que possamos imaginar que o filme tenha tornado Stroud um herói que talvez não tenha sido na realidade, o que importa aqui é a verdade do filme, que é tocante, sensível e um dos melhores da filmografia de Frankenheimer. Filme visto no box O Cinema de John Frankenheimer, que conta com quase uma hora de extras sobre O HOMEM DE ALCATRAZ. Também li o excelente texto de Rafael Amaral sobre o filme presente no livro O Cinema de... - Outros Filmes Essenciais da Coleção. Aliás, um dos motivos de eu ter pego o filme para ver foi sua inclusão como destaque neste livro.

quarta-feira, dezembro 25, 2024

A ESPOSA SOLITÁRIA (Charulata)



A cada ano que passa fico com a impressão de que minhas lacunas com grandes diretores ou obras fundamentais da história do cinema só aumentam. E como ultrapassei a metade de meu tempo neste mundo sei que é preciso desencanar e fazer o que posso para entrar em contato com esses trabalhos incríveis, como é o caso de A ESPOSA SOLITÁRIA (1964), meu primeiro contato com o cinema de Satyajit Ray, que via sendo citado principalmente como o diretor da trilogia de Apu, a saber: A CANÇÃO DA ESTRADA (1955), O INVENCÍVEL (1956) e O MUNDO DE APU (1959). São filmes que ainda não conheço, mas que ficarão por enquanto na minha lista de “a ver”, para o futuro próximo. 

Comecei meu contato com Ray com A ESPOSA SOLITÁRIA, uma de suas obras mais festejadas pela crítica e pela cinefilia. E confesso que se não fosse o início do ensaio apaixonado de Sergio Alpendre sobre o filme para o livro da Versátil O Cinema de... – Outros Filmes Essenciais da Coleção, onde ele fala sobre seu encantamento e estupefação na primeira vez que teve contato com a obra no cinema, se não fosse esse texto, é bem provável que não tivesse escolhido para vê-lo nesses dias. Inclusive, outro livro da Versátil, Olhares do Mundo – Obras-Primas de Diferentes Cinematografias, também destaca outro filme de Satyajit Ray, O SALÃO DE MÚSICA (1958).

Aliás, mais uma vez deixo aqui meus agradecimentos à Versátil e principalmente a Fernando Brito, o curador da distribuidora, por essa iniciativa de criar uma pequena biblioteca Versátil, que até agora conta com 40 títulos, trazendo tanto cinema de autor quanto cinema de gênero (não que cinema de gênero também não possa ser cinema de autor, com frequência) ou cinema de épocas específicas ou “escolas” específicas do cinema. Desses 40 livros, só li completamente dois, pois gosto de ler os textos apenas dos filmes que já vi há pelo menos uma distância temporal suficiente para lembrar um pouco do título constante no ensaio. Os livros funcionam como mais um incentivo para conhecermos muitas obras.

Falando em livros, fui checar no 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer qual filme de Ray estaria presente e vi que há quatro filmes do realizador: os três da trilogia Apu e O SALÃO DE MÚSICA (que aparece com o título “A Sala de Música”). Já Mark Cousins, em seu História do Cinema (um de meus livros de cinema favoritos) destaca o cinema indiano a partir dos anos 1940, também nascido na região de Bengala, no noroeste da Índia, a mesma de Ray. Bengala é uma área que ficou sendo parte da Índia depois do fim do domínio britânico, em 1947, quando houve uma divisão do território que fez nascer o Paquistão. Os cineastas indianos que mais se destacaram no Ocidente foram justamente aqueles que saíram do chamado cinema “All India”, os filmes de duração enorme e com vários números musicais. Embora os filmes de Ray não tenham sido grandes sucessos comerciais na própria Índia na época de seus lançamentos ele acabou se tornando o diretor indiano mais celebrado.

Infelizmente vi A ESPOSA SOLITÁRIA nas piores circunstâncias: “em fascículos”, pela falta de tempo e pelo cansaço, e o tempo inteiro olhando para as imagens deslumbrantes e pensando no quanto seria incrível assistir uma obra como essa na telona. A atriz que faz a personagem do título original, Madhavi Mukherjee, é incrível e também um encanto. Tanto que o filme cresce muito mais quando ela está em cena, enquanto perde um pouco da força ao retratar o marido jornalista e idealista.

Na Calcutá de 1879, acompanhamos Charulata, uma mulher que vive uma vida tediosa, de não fazer nada, a não ser de criar pequenas peças artesanais para o esposo. Ela é de uma casta rica e tem empregados em casa, mas é uma mulher solitária e um pouco desprezada pelo próprio esposo. Por isso talvez tenha se sentido tão atraída pelo primo do marido, estudante de literatura, que aparece na casa para passar uma temporada e é convidado pelo marido dela a encorajá-la a escrever. Afinal, ela costuma ler bons livros de literatura.

A ESPOSA SOLITÁRIA é também um belo filme sobre o processo criativo, e como ele vem tanto do esforço, quanto do talento e do sentimento. As primeiras imagens da casa, em tom neoclássico, enchem os olhos e já provocam um impacto inicial que persiste e só aumenta à medida que a personagem vai se despindo aos poucos de sua tentativa de esconder seus sentimentos. O fato de a história se passar quase que totalmente dentro da casa torna esse sentimento represado ainda mais à flor da pele. É uma obra muito sutil e muito delicada, e que certamente deve se tornar ainda mais bela nas revisões. Um sonho seria uma exibição dele no cinema em cópia restaurada.

A ESPOSA SOLITÁRIA é tido pelo próprio Ray como sua obra mais querida e melhor acabada. É uma adaptação de uma novela de Rabindranath Tagore, um dos mais importantes escritores de Bengala. Algumas cenas certamente ficarão grudadas em nossa memória: Charu se balançando (com a câmera acoplada nela, cantando) enquanto Amal lê deitado na grama; Charu chorando e pedindo para Amal nunca ir embora; Charu correndo para fechar a janela enquanto uma tempestade repentina surge; Charu no processo de criação literária; Charu convidando o marido para entrar na casa, na cena final, em imagem congelada.

+ TRÊS FILMES

CRÔNICAS DO IRÃ (Ayeh Have Zamini)

Uma obra feita de maneira tão desafiadora e ousada, frente à estrutura autoritária e teocrática do Irã, que é muito difícil imaginar os diretores voltando a fazer cinema no próprio país. A opção narrativa é de várias pequenas histórias contadas com o recurso da câmera estática, com uma pessoa conversando com outra, sendo que a outra é a câmera. E essa câmera representa a figura que abusa da autoridade. Ou seja, CRÔNICAS DO IRÃ (2023), de Ali Asgari e Alireza Khatami, é um filme que aponta pequenas (ou não tão pequenas) violências cotidianas que pessoas de diferentes idades enfrentam em locais públicos e privados. Mas é também um filme que aponta o dedo para essas figuras de "autoridade", em maior ou menor grau. Seja um policial, uma diretora de escola, um censor de cinema estatal, um funcionário público, ou até mesmo uma vendedora de roupas. Ou seja, trata-se de algo tão presente na sociedade (pelo menos desde a chamada revolução de 1979), que só os mais jovens parecem dispostos a enfrentar atualmente o sistema, como temos visto com alguma frequência nos noticiários. Além do mais, ainda acho incrível o quanto os cineastas iranianos têm conseguido fazer no sistema vigente um cinema com pouco ou quase nada de recursos, e ainda aparecem com obras transbordando talento e atrevimento.

CAMINHOS CRUZADOS (Crossing)

O diretor sueco de ascendência georgiana Levan Akin, de E ENTÃO NÓS DANÇAMOS (2019), traz seu interesse novamente para a comunidade LGBTQI, mas através de olhos ligeiramente mais distantes, já que os dois personagens principais são pessoas vindas da Geórgia que saem numa missão em Istambul. Em CAMINHOS CRUZADOS (2024), a professora aposentada Lia está em busca de sua sobrinha trans, de paradeiro desconhecido, e o rapaz Achi quer apenas sair de seu país e aproveitar a chance para, quem sabe, mudar de vida, indo de carona com aquela senhora para a Turquia. Trata-se de um road movie bem humano que vai construindo a relação dos dois ao longo dessa busca que vai parecendo cada vez mais difícil. Enquanto isso, a trama também nos apresenta à terceira personagem mais importante do filme, uma advogada trans que luta pela causa das prostitutas trans de um bairro decadente. O que me incomodou um pouco no filme foi talvez o que pode até ganhar muitas plateias: o monólogo final de Lia. Talvez tenha achado didático demais. Mas sei o quanto certas coisas precisam ser ditas da maneira mais clara possível.

COMO GANHAR MILHÕES ANTES QUE A AVÓ MORRA (Lahn Mah)

A família é um terreno inesgotável de histórias sobre amor, aproximações por interesse e outros tipos de relações mais complexas e até mesmo mais sombrias. Mas são poucos os filmes que escolhem a família, e com isso coisas delicadas como a herança, como eixo de suas narrativas. Este filme tailandês presente na shortlist do Oscar 2025 ainda é um convite à reflexão sobre o sentimento de abandono pelo que os idosos passam a sofrer depois que seus filhos se casam e têm agora sua própria família como prioridade. Na trama de COMO GANHAR MILHÕES ANTES QUE A AVÓ MORRA (2024), de Pat Boonnitpat, o jovem M é um rapaz bem egoísta e claramente interessado apenas em dinheiro, embora não tenha muita disposição para trabalhar ou estudar. Vê no exemplo da prima, que herdou uma casa de seu avô, tendo cuidado dele na velhice, uma forma de ganhar dinheiro e viver uma vida confortável. É natural, então, que a vovó Amah, recém-diagnosticada com câncer estágio 4, desconfie de seu interesse repentino em ajudá-la em casa e no seu pequeno negócio de vendas. Aos poucos, porém, o rapaz começa a, de fato, gostar muito da avó. E por isso a conclusão do filme é tão bonita e tão tocante.

sábado, dezembro 14, 2024

QUEER



Talvez escrever com um pouco de aflição na alma seja ideal para se entrar um pouco no espírito de um filme que nos apresenta a um personagem que carrega consigo uma espécie de maldição. Pelo menos ele assim se sente. Daniel Craig é um homem gay americano viciado em drogas (heroína) e álcool que perambula pela Cidade do México dos anos 1950. Ele é William Lee, alter-ego do escritor William Burroughs, autor do romance inacabado em que o filme é baseado e só publicado em 1985. Aliás, estava lendo há pouco sobre Burroughs e soube (ou me lembrei?) do estranho caso envolvendo a morte de sua segunda esposa. Ele a matou supostamente errando, enquanto bêbado, na brincadeira da maçã na cabeça de Guilherme Tell. Em vez de atirar na maçã, atirou na cabeça da mulher. Tal referência aparece em tom de pesadelo em QUEER (2024), o novo filme de Luca Guadagnino.

Daniel Craig encarna aqui não só o personagem mais corajoso de sua carreira, mas sua melhor interpretação, despindo-se de vez da persona James Bond para se arriscar em cenas homoeróticas bem ousadas e só vistas mesmo (com atores de Hollywood) se dirigidos por algum cineasta europeu. O fascinante personagem William Lee é uma espécie de ser angustiado e com muita sede e fome daquilo que lhe dá prazer, mas que é proibido no mundo normativo. O que não quer dizer que não seja possível dentro daqueles espaços de nicho que são os bares gay da cidade do México, aqui apresentados com cores primárias que por vezes lembram o cinema de Almodóvar. 

O fato de ter sido filmado nos estúdios Cinecittà, em Roma, contribui muito para um maior controle do diretor no que se refere aos cenários, à direção e à fotografia, a cargo de Sayombhu Mukdeeprom, o tailandês que trabalhou com Guadagnino em ME CHAME PELO SEU NOME (2017), SUSPÍRIA – A DANÇA DO MEDO (2018) e RIVAIS (2024). Inclusive, como ele também é o diretor de fotografia de MEMORIA, de Apichatpong Weerasethakul, quando chegamos ao terceiro capítulo da narrativa, essa informação passa a fazer mais sentido.

Luca Guadagnino vem mostrando uma vontade de fazer cinema invejável. Só neste ano, foram dois lançamentos seus. Se QUEER não vai ter a mesma repercussão de RIVAIS, é até compreensível, pois o filme dos tenistas talvez fale a um público maior – lembro que quando fui vê-lo no cinema algumas pessoas na fila se referiam a ele como “o filme de Zendaya”. Diria que QUEER guarda mais semelhanças com o meu favorito do diretor, ATÉ OS OSSOS (2022), que também apresenta personagens famintos, malditos e que perambulam pelo mundo. A diferença é que em ATÉ OS OSSOS esses personagens são literalmente canibais.

QUEER é dividido em três capítulos e um epílogo e são capítulos que têm uma cara muito própria. Gosto de como o diretor traz canções fora da época retratada (Nirvana, New Order, Prince, além de canções originais de Trent Reznor e Atticus Ross) de modo a dar um ar pós-punk e de decadência à história. O tom um tanto trágico da narrativa se dá pelo apaixonar-se do personagem, que perde um pouco sua expressão de superioridade e masculinidade para se mostrar muitas vezes ridículo frente ao jovem por quem se apaixona, Eugene, vivido por Drew Starkey.

A princípio, não gostei tanto do terceiro capítulo e fiquei com a impressão de que o filme sofreria de certa gordura, mas agora que relembro das cenas mais lisérgicas vejo que se trata de um momento bastante especial do filme, e que tem muito mais a ver com o Burroughs a que costumamos associar, o homem viciado em drogas que no cinema é mais lembrado por MISTÉRIOS E PAIXÕES, de David Cronenberg. Assim, tanto o terceiro capítulo, centrado na busca por uma planta na América do Sul (inclusive com uma participação incrível de Leslie Manville), quanto o primeiro (centrado no sexo) e o segundo (nas drogas), trazem cenas que ficarão grudadas em nossa memória por muito tempo. É o tipo de filme que se assemelha a uma droga que bate de forma retardatária.

+ TRÊS FILMES

RETRATO DE UM CERTO ORIENTE

Um desses filmes que parece ter faltado pouco para ser uma obra grandiosa, inclusive por ser um dos trabalhos mais ambiciosos de Marcelo Gomes, ao lado de JOAQUIM (2017). Em RETRATO DE UM CERTO ORIENTE (2024) acompanhamos a história de dois irmãos libaneses (um rapaz e uma moça) que fogem de seu país natal para tentar a sorte no Brasil. E o mais legal é ver o Brasil sendo apresentado primeiramente pelo norte: antes, por Belém, depois num navio rumo a Manaus e com uma escala numa aldeia indígena. Gomes sabe tanto tecer o drama de seus personagens e trazer uma heroína feminina encantadora (Wafa'a Celine Halawi) quanto nos deixar encantados com a pluralidade de culturas, línguas, comportamentos, crenças, e numa embalagem particularmente caprichada, especialmente quanto a natureza se destaca na fotografia em preto e branco. Gosto especialmente das cenas em que os personagens se mostram como detalhes em meio à vastidão de parte da Floresta Amazônica. As cenas de amor e sexo são também cheias de poesia: os amantes na floresta depois de terem chupado uma manga olhando para o outro, aquilo é cheio de uma lascividade encantadora. Achei curiosa a questão do ciúme do irmão pela irmã. Seria algo recorrente na obra de Milton Hatoum?

CIDADE; CAMPO

Juliana Rojas assina dois dos filmes de terror mais importantes e empolgantes da década passada: o longa AS BOAS MANEIRAS (2017), junto com Marco Dutra, e o curta O DUPLO (2012). Só por isso, cada novo trabalho seu merece a devida atenção e respeito. CIDADE; CAMPO (2024) é um trabalho mais próximo talvez de TRABALHAR CANSA (2011), em que o sobrenatural aparece de maneira um pouco mais discreta, principalmente no primeiro segmento. Dividido em duas histórias, a primeira se passando na cidade, e a segunda no campo, o filme começa nos apresentando a uma mulher que perdeu tudo, vivida por Fernanda Vianna, que vai parar na casa da irmã em São Paulo, para recomeçar a vida. Muito bonito o modo como o filme apresenta o desenvolvimento da amizade da personagem com o sobrinho-neto e depois com suas colegas de emprego, num aplicativo que segue a lógico de um Uber ou um iFood, só que para faxineiras. Inclusive faz isso com certo sarcasmo e convidando à percepção de uma crueldade com o trabalhador. A segunda história, eu quase gosto tanto quanto da primeira, mas é verdade que ela se perde em determinado momento, especialmente com uma saída de cena de Bruna Linzmeyer. Ela e Mirella Façanha são duas mulheres da cidade que vão para o campo após a morte do pai de uma delas, para recomeçar a vida juntas num ambiente mais idílico. Eis que as coisas não saem como planejado. Gosto da cena de amor mais físico entre as duas, gosto da entrada em cena de uma terceira personagem feminina, mas o sobrenatural surge de forma menos sutil e pouco envolvente. Ainda assim, na pior das hipóteses podemos ver esse segundo segmento como uma espécie de bônus, como um presente para o espectador fã da diretora.

O AUGE DO HUMANO 3 (El Auge del Humano 3)

Este filme já começa estranho pelo título. O AUGE DO HUMANO 3 (2023). O diretor Eduardo Williams não fez o 2, pulou para o 3 (não deve curtir o número 2). Eu e meu amigo Walker ficamos fazendo piadas sobre ele não gostar dos filmes “2” das trilogias, de preferir O PODEROSO CHEFÃO – PARTE III, DE VOLTA PARA O FUTURO 3, JURASSIC PARK III etc. Mas a estranheza não para por aí e quem viu o primeiro filme já sabe que o que Williams oferece não é facilidade para o espectador, é desafio. Por isso, é bom já estar preparado para uma experiência bem diferente. Logo no começo, a câmera perambula por um lugar que parece ser o Sri Lanka (na verdade, achei que fosse a Índia), e a câmera mal mostra os rostos dessas pessoas, amigos que conversam um papo um tanto fragmentado, num plano-sequência que se demora por vários minutos. Adoro quando surge um amigo que lembra o outro de colocar o computador na geladeira (!). Há vários momentos viajantes. Gosto do começo, quando a câmera nos leva para o escuro da vegetação de uma praia. E depois quando o mesmo grupo está num outro país (Hong Kong, Peru etc.), o que torna a necessidade de compreender uma história dentro do tempo e do espaço em algo pouco importante. O que mais importa é viajar pelo que o filme oferece de sensorial, do que pequenas frases trazem, ou não trazem, sendo que o visual importa mais. Lá pelo final fiquei com um pouco de náuseas, pelos efeitos visuais pouco usuais. Só reclamaria um pouco da duração: duas horas é muito para uma obra tão experimental e tão desapegada de uma trama. Mas uma coisa é certa: senti-me muito grato pela oportunidade de ver um filme tão fora do comum no cinema, ainda que na sala só tenha estado presentes três espectadores. Mas talvez esse seja o número máximo permitido para ver O AUGE DO HUMANO 3. 😊

sábado, dezembro 07, 2024

A LONGA CAMINHADA (Walkabout)



Nos extras do box Ozploitation, da Versátil, dedicado a filmes australianos cultuados, há um comentário de Danny Boyle em que o diretor afirma que Nicolas Roeg é o maior cineasta inglês de todos os tempos. Um comentário um tanto corajoso, levando em consideração que Hitchcock é inglês e há também uma disputa com gente de peso como David Lean e a dupla Powell e Pressburger. Mas vendo A LONGA CAMINHADA (1971) eu percebo o quanto deveria ter dado mais atenção à filmografia de Roeg, que brilhou especialmente na década de 1970. Do cineasta, só havia visto até então INVERNO DE SANGUE EM VENEZA (1973) e O HOMEM QUE CAIU NA TERRA (1976) e um que não sei se dá pra considerar, do fim da carreira, a comédia CONVENÇÃO DAS BRUXAS (1990).

Talvez começar logo com A LONGA CAMINHADA ajude a chamar mais atenção para o trabalho bastante original do diretor, do quanto se trata de um autor mais apegado às imagens e ao som do que às palavras. Elas, as palavras, são até um empecilho no filme, já que a menina adolescente e seu irmão pequeno conseguem pouca comunicação com o jovem aborígene que os salva da morte por fome e sede naquele outback australiano. A menina, vivida por Jenny Agutter, é a personagem principal do trio, é a maior aproximação com o espectador, assim como ela letrado e mais atento à sexualidade que a criança e mais conhecedor do que se ensina nos livros – conhecimento que se torna quase nulo quando o que se precisa é matar um animal para sobreviver ou saber de onde se tira água de um lugar de onde só se vê lama.

Tanto ela quanto o jovem de pele escura começam a sentir uma atração um pelo outro em determinado momento da narrativa e esse sentimento ou sensação é evidenciado por usos diferentes e criativos da câmera. Ora um close-up, ora uma imagem dos dois frente a frente, ora o olhar de cada um individualmente. Sem falar no que passa pela cabeça de cada espectador ao longo do desenvolvimento da trama. O uniforme escolar de saia curtinha da garota e as imagens do corpo seminu do rapaz, bem como as cenas antes cortadas (e resgatadas) da moça nua, parecem algo que vão além da sugestão, embora o filme trate isso com muita sutileza. Da parte do rapaz, inclusive, o desejo não descamba para a violência sexual: de sua aldeia, ele havia aprendido o cortejar através de rituais. 

O filme é às vezes tão brutal quanto PELOS CAMINHOS DO INFERNO, de Ted Kotcheff, no que se refere à matança dos animais, mas se equilibra bem com a doçura, a beleza e a suavidade das imagens e também da jovem, que precisa ser uma espécie de mãe do garotinho, naquela situação de abandono e aflição.

Há uma cena que parece pouco importante, mas que eu destacaria, que é quando o menino diz que história de super-herói não tem graça, pois ele já sabe que esse herói não vai morrer: vai vencer. E ele tem razão: numa história como essas, tudo é possível. Como, por exemplo, encontrar depois de muitos dias a “civilização” e os dois não receberem abrigo.

A LONGA CAMINHADA foi o segundo filme de Nicolas Roeg, e seu primeiro solo. O primeiro creditado a ele havia sido PERFORMANCE (1970), codirigido por Donald Cammel. A LONGA CAMINHADA ajudou a impulsionar o Novo Cinema Australiano. No ano de sua realização, entrou em vigor o Australian Film Development Corporation, que, graças a incentivos fiscais, ajudou a fazer nascer obras de cineastas de renome, como Peter Weir, Gillian Armstrong, Phillip Noyce, Fred Schepisi e George Miller.

+ TRÊS FILMES

A HISTÓRIA DE 'O' (Histoire d'O)

Meu maior interesse por A HISTÓRIA DE 'O' (1975), de Just Jaeckin, se deu para conferir novamente o talento e a elegância de Corinne Cléry, que vi recentemente no thriller de ação exploitation O FUGITIVO SANGUINÁRIO. A atriz vinha de alguns filmes que exploravam sua beleza, em especial esta adaptação do clássico romance de sadomasoquismo, certamente um dos trabalhos mais importantes dentro da ficção que explora o BDSM. Na década de 1970, a apresentação desse tipo de fetiche ganhava mais corpo no cinema, principalmente o europeu, que havia conquistado uma maior liberdade na apresentação da nudez, do sexo e das fantasias eróticas. Este trabalho do diretor de EMMANUELLE (1974) tem um refinamento que valoriza a exuberância de Cléry, ao mesmo tempo que se perde bastante na narrativa, com uma montagem um tanto confusa. Na cópia que consegui, a maior parte do áudio está em inglês, mas há pequenos trechos em francês, o que sugere que fazem parte de alguma versão estendida. Na trama, “O” é uma jovem fotógrafa de moda que ama tanto seu marido que aceita a vontade que ele tem de levá-la para passar uma temporada num local em que ela será presa, chicoteada, humilhada, entre outras coisas, das mais diferentes maneiras. A passagem de “O” por essa casa é a primeira parte do filme. A segunda me parece mais interessante e traz mais empoderamento, por assim dizer, para a heroína. A escritora do romance é uma mulher, o que não quer dizer que não esteja contaminada pelo machismo estrutural, mas esse jogo de dominador e submisso não escolhe gênero.

O SOL POR TESTEMUNHA (Plein Soleil)

Como sou desconhecedor da poética de René Clément, não tenho como reconhecer certas marcas de seu cinema neste seu trabalho mais famoso, estrelado por um Alain Delon em estado de graça - no mesmo ano, seria lançada a obra-prima ROCCO E SEUS IRMÃOS, de Luchino Visconti. Havia visto O SOL POR TESTEMUNHA (1960) na televisão, há mais ou menos uns 30 anos, e rever agora, no cinema, o torna tão melhor, tão mais brilhante em cada detalhe. Até porque, na revisão, não precisamos esperar um filme tão eletrizante (a pegada aqui é outra), embora a lembrança de FESTIM DIABÓLICO, de Hitchcock, seja quase inevitável na cena da conversa entre os dois "amigos" no barco, sobre como se daria o plano de Tom de matar o próprio amigo rico. Aliás, o filme também nos deixa, como nos suspenses de Hitchcock, torcer pelo assassino, torcer para que ele consiga se livrar da polícia ou de encontrar alguém que venha atrapalhar seus planos bem-sucedidos. Alain Delon é uma presença tão magnética que, mesmo interpretando um psicopata que se descobre um gênio do crime, a aproximação dele não chega a ser repulsiva, especialmente nas cenas com Marie Laforêt. O filme é o que muitos chamam de noir solar, que nos deixa até um tanto desconcertados diante de crimes acontecendo no meio da noite e um acobertamento de cadáver sendo visto até com certo humor e leveza. Adoro o modo como o Clément termina, longe do clichê dos filmes policiais. Exibido no Festival Varilux deste ano e presente no box Filme Noir Francês: Alain Delon, com vários extras.

PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (Dirty Harry)

Don Siegel foi um diretor que começou sua carreira com filmes noir B nos anos 1940 e fazia milagre com aquelas produções de baixo orçamento. Fez uma transição linda para a Nova Hollywood nos anos 1970, em especial com os filmes estrelado por seu parceiro Clint Eastwood, um discípulo prestes a se tornar maior que o mestre, mas também um ator que esbanja carisma e dá munição para os filmes masculinos e um tanto fascistas do período. É o caso deste PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL (1971), que já começa com uma homenagem respeitosa aos policiais de São Francisco, mortos em serviço. Fez-me lembrar os primeiros filmes de guerra de Samuel Fuller. A estrutura deste primeiro título estrelado pelo inspetor Harry Callahan é simples, apresentando de cara o principal vilão, um psicopata chamado scorpio, que vem matando as pessoas usando um rifle de longo alcance. E pessoas do signo de escorpião, embora essa informação me pareça pouco importante. Eu tinha poucas lembranças de PERSEGUIDOR..., mas a memória veio forte na cena do estádio de futebol, com aquela memorável cena de afastando do local. Achei interessante o quanto é uma obra que não se importa em ser pouco sutil. Lá pelo final do filme, o vilão já fica passeando todo serelepe para chamar a atenção de seu inimigo. Um dos motivos que me chamaram a atenção para revê-lo foi o comentário entusiasmado de Quentin Tarantino em seu livro Especulações Cinematográficas. Segundo Tarantino, Siegel customizou seu filme para plateias mais velhas, para homens rancorosos e muito incomodados com as mudanças que a contracultura trouxe para a sociedade. Hoje certamente encontraria seu público, noutro contexto, embora o personagem de Clint não seja tão simples assim de ler. Tanto é que nosso querido ator/cineasta seria talvez o mais progressista dos republicanos com sua sensibilidade e sua visão crítica do país, mesmo quando enaltece heróis comuns.