sábado, outubro 12, 2024

GOLPE DE SORTE EM PARIS (Coup de Chance)



Woody Allen foi (é) um dos cineastas mais importantes da história de minha cinefilia. Descobrir seus filmes, vistos primeiramente na televisão, foi uma alegria imensa. Lembro do quanto ri de madrugada sozinho enquanto assistia a SONHOS DE UM SEDUTOR (1972), que não é dirigido por ele, mas é como se fosse, pois a peça original é dele. E depois outros filmes seus também foram descobertos na televisão (acho que até me acostumei com o dublador dele, inclusive): BANANAS (1971), NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA (1977) e MANHATTAN (1979), que passou na Sessão de Gala com a obrigatoriedade por parte do autor de manter a janela original em scope, com o aviso no início da projeção. Não lembro, aliás, de ter presenciado algo parecido. A regra geral era sempre as tevês (na época da tela de tubo) mutilarem as projeções com esse aspecto ou mesmo no menos largo, em 1.85:1. Não enumero mais filmes vistos primeiramente na televisão pois ficaria um tanto monótono, mas poderia destacar mais dois muito especiais que só vi na televisão e nunca mais revi: MEMÓRIAS (1980) e HANNAH E SUAS IRMÃS (1986).

Depois disso, a minha memória mistura os filmes vistos no cinema com obras também vistas em VHS. Meu primeiro Woody Allen no cinema foi CRIMES E PECADOS (1989), ou seja, já estava diante de uma obra mais séria, mais pesada do realizador. E um filme incrível. Senti-me privilegiado. E a cada ano que passava tínhamos uma certeza: haveria um novo Woody Allen para ver no cinema. E era sempre um prazer começar a ver seus filmes com a familiaridade dos créditos iniciais em ordem alfabética, com fonte de cor branca aplicadas em fundo preto e um jazz ao fundo. Poucas vezes ele fugiu a essa regra. Sei que ele usou outro tipo de música na abertura de PONTO FINAL – MATCH POINT (2005) e talvez tenha feito algo parecido em A OUTRA (1988).

A era de ouro do cinema de Woody Allen pode até se concentrar no século XX, mas discordo totalmente que seu cinema tenha se tornando desinteressante nas últimas décadas. Entre suas obras da década de 2010, por exemplo, tenho MAGIA AO LUAR (2014) como um dos mais queridos; além de também podermos testemunhar interpretações gigantes de grandes atrizes em obras como BLUE JASMINE (2013) e RODA GIGANTE (2017). Mesmo os filmes menores têm sua graça. Mas de fato me decepcionei muito com O FESTIVAL DO AMOR (2020), um de seus filmes mais tristes. E triste justamente por ser uma comédia absolutamente sem graça e com homenagens cinematográficas muito óbvias. Há outros problemas e há o fato de ele já ter sido lançado diante da onda de cancelamento que o diretor estava enfrentando, com vários astros de Hollywood participando do apedrejamento em rede do autor. Tanto que até imaginava que seu último trabalho, GOLPE DE SORTE EM PARIS (2023), sequer fosse lançado nos cinemas. Felizmente foi lançado pela O2 Play, garantindo sua exibição em nosso circuito alternativo, e em alguns cinemas de shopping.

Foi um alívio ver seu novo filme sabendo que, se for seu último trabalho para cinema, não será uma despedida triste como teria sido se fosse com O FESTIVAL DO AMOR. Fazendo seu primeiro filme inteiramente numa língua não-inglesa, Allen ganha mais força e frescor, embora esteja revisitando temas caros a sua filmografia, como a infidelidade e o crime, que aqui é tratado de maneira até um pouco leve, longe de ter a carga trágica de CRIMES E PECADOS, PONTO FINAL – MATCH POINT e O SONHO DE CASSANDRA (2009).

A música que ouvimos na trilha é alegre o suficiente para fazer o espectador desacreditar em certo momento do crime que acontece. Lou de Laâge (que já havia me ganhado em 2014 com RESPIRE) está ótima como a jovem mulher que começa a trair o marido milionário com um ex-colega de escola que reaparece em sua vida e diz que sempre a amou. Desencantada com o casamento, ela logo passa a ver na figura do rapaz uma espécie de resposta a seu desencanto com o matrimônio.

Se o texto dado a Niels Schneider (AMORES INFIÉIS, de Mouret) é pobre e raso, Lou de Laâge ganha espaço para brilhar no papel de Fanny, a mulher angustiada pela vida dupla que passa a levar quando inicia um caso extraconjugal. E imagino que Allen coloca muito de sua própria experiência de vida nessas questões de infidelidade na angústia da personagem, embora se perceba que o registro aqui é mais leve.

Melvil Poupaud (GRAÇAS A DEUS, de Ozon), que faz Jean, o marido traído, vai se tornando um personagem cada vez mais interessante, à medida que revela seu real caráter, se transformando num das melhores construções vilanescas dos filmes do realizador. Tanto que ele ganha mais tempo de tela e faz justificar o fato de Allen não ter dado tanta atenção à construção do personagem de Schneider, quase um bobão sempre que fala que está apaixonado por Fanny. Não pelo sentimento em si, mas pelo desinteresse do realizador em dar uma dimensão mais tridimensional ao personagem. Talvez para não sofrermos tanto com seu desaparecimento em determinado momento da narrativa.

Temos aqui outra bela parceria de Allen com o diretor de fotografia Vittorio Storaro, que gosta dos tons de amarelo, laranja e marrom do outono, também presentes no lugar de encontro mais íntimo do casal, o apartamento charmoso com a luz que entra pela janela.

Não sei se Allen tem interesse em fazer outro filme na França, mas na minha opinião a experiência deu muito certo e podia ser repetida. Poderíamos ser presenteados com pelo menos mais uma obra sua. Com quase 90 anos de idade, o realizador deve estar um pouco cansado, mas sabemos o quanto continuar fazendo filmes, a exemplo de Clint Eastwood, o mantinha/mantém mais vivo e mais disposto.

+ TRÊS FILMES

CASA COMIGO? (Leap Year)

Nem sabia da existência deste filme. Quem me apresentou foi a Giselle, que viu no Amazon Prime e me contou um pouco a respeito. Fiquei interessado pelo tema, pela Amy Adams e por se passar na Irlanda. Além do mais, eu sinto falta de boas comédias românticas, um subgênero que está em baixa já faz um tempo. CASA COMIGO? (2010) tem alguns momentos brilhantes, como aquele perto do final, depois que a personagem de Adams faz uma proposta (confesso que até queria que o filme terminasse ali). Naquele momento eu vi uma força incrível também na direção. Inclusive, fui checar o currículo do realizador e Anand Tucker é o diretor do ótimo HILARY & JACKIE (1998). Pra quem queria saber por onde ele andava, eis um dos títulos. O filme é um sucesso na construção da tensão entre o casal vivido por Adams e Matthew Goode. Ela quer chegar a Dublin para propor casamento ao noivo no dia 29 de fevereiro, de modo que ele não possa recusar (como é tradição no país, neste dia). Mas o o noivo é um bocó (Adam Scott) e o filme tem o mérito de construir muito bem uma ótima química entre a moça dos Estados Unidos que quer chegar a Dublin para materializar seu sonho e o sujeito um tanto ranzinza que a ajuda a chegar lá neste road movie que, além de tudo, encanta com as paisagens irlandesas. CASA COMIGO? também explora bem a tradição da comédia romântica e traz alguns momentos de esquentar o coração.

OS FANTASMAS AINDA SE DIVERTEM – BEETLEJUICE BEETLEJUICE (Beetlejuice Beetlejuice)

Acho que o único filme do Tim Burton que amei mesmo foi ED WOOD (1994). Os outros de que gostei dele, como BATMAN – O RETORNO (1992), A LENDA DO CAVALEIRO SEM CABEÇA (1999) ou PLANETA DOS MACACOS (2001) nem chegam perto. Sua tentativa de resgatar o seu bom momento com uma continuação de um projeto do início da carreira parece até desespero, mas funciona, em muitos aspectos. Gosto do visual da personagem de Monica Bellucci, da inclusão de Jenna Ortega, uma atriz nova que curte estar em projetos do gênero, e ter novamente a dupla principal do primeiro filme, Michael Keaton e Winona Ryder. Confesso que não acho lá muito engraçado o Beetlejuice, mas talvez não tenha nascido para ser engraçado, apenas apresentar um humor estranho e, sendo assim, tudo bem. Em OS FANTASMAS AINDA SE DIVERTEM – BEETLEJUICE BEETLEJUICE (2024), Burton soube juntar os antigos efeitos práticos hoje retrôs e a computação gráfica com um bom resultado visual. E acho curiosos como os personagens masculinos são mostrados de maneira quase sempre pouco confiáveis. Não entendo muito bem os motivos, mas não deixa de ser algo que combina com outros trabalhos mais recentes de Burton que exaltavam as personagens femininas em detrimento dos abusos dos homens, como em ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (2010) e GRANDES OLHOS (2014), dentro ou fora do registro do fantástico.

COMO VENDER A LUA (Fly Me to the Moon)

Eis uma comédia romântica à moda antiga, tanto que parece até anacrônica, inclusive no modo esquemático do roteiro (o gato preto aparecendo como função importante é o melhor exemplo). Mas isso acaba fazendo bem ao tipo de história que se deseja contar, uma que se passa às vésperas da chegada do homem à lua, em 1968/69, com Scarlett Johansson no papel de uma mulher que esconde muitos segredos e que é convidada pelo governo americano a usar sua grande capacidade de convencimento para alavancar o interesse político pela corrida espacial, em momento de queda de popularidade, através de instrumentos de marketing e até dados falsos. O personagem de Channing Tatum no começo parece apenas o par romântico da história de amor, mas defende bem o personagem o suficiente para que ganhe força ao longo do desenvolvimento do enredo. O diretor de COMO VENDER A LUA (2024) é Greg Berlanti, o mesmo de COM AMOR, SIMON (2018), que não se destaca nos aspectos formais de seu trabalho, mas que consegue manter o interesse até o fim nesta agradável sessão da tarde.

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