domingo, novembro 28, 2021

FORTALEZA HOTEL



Como não fui à edição de 2020 do Cine Ceará, não tinha muito a noção de como estariam o Cineteatro São Luiz e a Praça do Ferreira neste cenário pandêmico, por mais que, no momento, a taxa de contaminação do vírus esteja baixa – mas com o temor da nova variante dominando o mundo. Se lembrarmos como foi em 2019, que abriu com a presença de Fernanda Montenegro e Marco Nanini, e contou com filmes importantes, como A VIDA INVISÍVEL, de Karim Aïnouz; GRETA, de Armando Praça; PACARRETE, de Allan Deberton; NOTÍCIAS DO FIM DO MUNDO, de Rosemberg Cariry; e RESSACA, de Patrízia Landi e Vincent Rimbaux (só para citar os títulos em longa-metragem brasileiros), ter uma edição mais modesta neste 2021 (do ponto de vista da produção) não deixa de ser um pouco triste, ainda que perfeitamente compreensível. Além da pandemia, ainda estamos tendo que lidar com o projeto de destruição do governo federal.

Cheguei à Praça do Ferreira um pouco deslocado. Achei que estava atrasado e fui logo entrando. Na entrada para a sala, há duas barreiras: a do comprovante de vacinação e, em seguida, a do convite ou credencial. No caso, eu tinha a credencial de imprensa, a pulseirinha disponível para receber e poder entrar. Como o Cine Ceará é também um momento de socialização, e nem sempre eu me sinto à vontade no lugar, é normal eu me sentir inquieto. Até porque é preciso ter um pouco de paciência, pois a cerimônia atrasa e, consequentemente, o filme da noite também. Depois de trocar umas palavras com o Arthur Gadelha, entrei e fiquei esperando lá na sala, que estava relativamente vazia. O formato híbrido, por mais que não seja tão democrático assim, já que nem todo mundo tem assinatura do Canal Brasil ou dos canais Globo, pelo menos diminui os riscos por conta de eventual lotação, que era algo comum de acontecer em noites de abertura do evento.

Depois de ficar impaciente e sair para comprar uma pipoca lá na praça, voltei para a sala, mas sem a minha garrafinha de água que havia trazido de casa. Um morador de rua havia pedido e eu não ia negar. Falando nisso, o espaço da praça, que já estava uma tristeza nos anos anteriores, me pareceu ainda pior, já que a atual situação econômica do país há tempos não esteve tão explicitamente agravante. Enquanto um telão passa filmes para alguns dos moradores de rua, outros preferem dormir na frente dos estabelecimentos comerciais.

Falar sobre este cenário antes de falar do filme da noite servirá no futuro para me fazer lembrar do momento, mas também tem tudo a ver com FORTALEZA HOTEL (2021), o segundo longa-metragem de Armando Praça, que, depois do sucesso de GRETA (2019), tem sua première mundial na cidade natal do realizador. Isso porque o filme lida com a necessidade do dinheiro dentro de cenários complicados na vida de duas mulheres. É como se o diretor lamentasse, ainda que indiretamente, a dependência que temos do dinheiro, quando certas coisas poderiam ser resolvidas de maneira mais humana em uma sociedade utópica.

Na trama de FORTALEZA HOTEL, Clebia Sousa é Pilar, uma camareira de um modesto hotel que já tem alguns anos trabalhando no estabelecimento, mas que planeja uma viagem para a Irlanda. Seu desejo é abandonar o país e ir morar bem longe para refazer sua vida. Apesar de jovem, ela já tem uma filha, e a garota namora um sujeito envolvido com o tráfico, e isso trará problemas para Pilar, e talvez uma mudança de planos.

O filme também acompanha o drama de uma mulher sul-coreana, Shin (Lee Young-lan), cujo marido havia morrido recentemente e agora ela pretende juntar dinheiro para cremar seu corpo e levar a urna de volta para seu país natal. Diferente de Pilar, que queria sair da cidade, Shin pretendia se estabelecer em Fortaleza, ter aquele lugar como novo lar. Shin escolhe Pilar para ajudá-la a resolver, com o português, algumas coisas pendentes e uma relação próxima da amizade nasce entre as duas.

É interessante esse processo de expansão do universo nos filmes de Armando Praça. Se em GRETA ele trouxe Marco Nanini a Fortaleza, dando um ar mais nacional e menos local a uma produção cearense, no novo trabalho ele internacionaliza o espaço da cidade ao trazer uma atriz sul-coreana para o centro da trama, além de vários diálogos em inglês, a língua da compreensão entre as duas protagonistas.

É um filme em que os temas da solidão e do sentimento de não-pertencimento se juntam à necessidade do dinheiro para diferentes situações das protagonistas. A maior parte da trama se ambienta em espaços fechados (o hotel, a casa da personagem de Clebia Sousa), mas há momentos de contemplação da paisagem urbana de Fortaleza também (as ruas do Centro, a ponte metálica). Gosto de como o cineasta usa as luzes e as cores para enfatizar o aspecto mais feminino de seu filme, em oposição ao universo mais masculino da produção anterior. E aquele final é tão tristemente belo, encontrando paralelo com o final de GRETA. É Armando Praça imprimindo sua assinatura com força em uma filmografia que está apenas começando.

+ DOIS CURTAS

A DAMA DO ESTÁCIO

Claramente uma homenagem ao clássico A FALECIDA, de Leon Hirszman, A DAMA DO ESTÁCIO (2012), de Eduardo Ades, nos apresenta a uma prostituta que já não vê mais muito sentido na vida e o melhor que pode fazer é conseguir o dinheiro para comprar um belo caixão. É um filme que me pareceu mais leve do que o tema dá a entender, e não sei se isso é um demérito ou não. De todo modo, talvez seja deliberado, já que o parceiro de quarto da protagonista é uma moça trans chamada Suely, sempre muito alegre e disposta a deixar a personagem de Montenegro um pouco mais pra cima. Gosto das participações de Nelson Xavier e Joel Barcellos e do samba cantado por Aracy de Almeida.

MATERIAL GIRL

Este bom curta de horror me fez lembrar o eficiente curta LIGHTS OUT (2013), de David Sandberg, pela brincadeira com o medo da escuridão e como as trevas podem estar (ou não) pregando peças na gente. MATERIAL GIRL (2020), de Kris Carr, é um pouco mais longo (6 min) e talvez até seja melhor, embora provoque menos sustos. De certa forma, isso é até um ponto positivo para os dias de hoje, já que jump scares hoje em dia parecem golpe baixo. É um filme que aposta mais na construção do medo e na boa performance da jovem atriz. Acabei encontrando o filme por acaso, no Letterboxd. Tem no YouTube.

sábado, novembro 27, 2021

ZEROS E UNS (Zeros and Ones)



Abel Ferrara foi o diretor que eu escolhi para ser meu primeiro “parceiro” no início da pandemia do Coronavírus. Aproveitei que estava com um pouco mais de tempo disponível e pude ver praticamente toda sua filmografia disponível durante esse período. Felizmente é um cineasta muito ativo e na própria Mostra Internacional de Cinema de São Paulo tive a chance de ver mais dois filmes inéditos dele, SIBÉRIA (2019) e SPORTIN’ LIFE (2020). Sendo que esse segundo já mostrava o mundo afetado pelo vírus. Ou seja, dos grandes cineastas em atividade, Ferrara é um dos poucos a deixar registrado em filme este momento trágico e delicado em que vivemos.

ZEROS E UNS (2021) segue neste caminho, de explicitar o momento pandêmico, ainda que seja em uma ficção e não em um documentário. Aqui ele usa o momento surreal em que vivemos para criar uma espécie de sci-fi pós-apocalíptica travestida de filme de espionagem. Não deixa de ser bizarro ver Roma tão deserta. No segundo lockdown na cidade, o diretor filmou durante o toque de recolher após as nove da noite, e por isso conseguiu esse resultado. E como boa parte da trama se passa em uma única noite e Ferrara opta por usar um tipo de câmera digital de baixa resolução, isso acaba por tornar a atmosfera do filme um bocado desconfortável. 

Também é desconfortável por conta da falta de um roteiro. O diretor, em entrevista ao site The Playlist, conta que gosta de filmar, que não gosta de planejar. E isso tem transparecido em seus últimos trabalhos. Já faz um bom tempo que ele parou de trabalhar com o roteirista Nicholas St. John, seu parceiro até OS CHEFÕES (1996), mas trabalhar em Hollywood meio que o forçava a usar roteiros prévios. Agora que mora na Itália há sete anos, tem feito trabalhos mais intuitivos.

No caso de ZEROS E UNS, como se trata de um filme de espionagem, um gênero que por si só já lida com a confusão, até que combina. O senso de desorientação permeia o filme do início ao fim. E mesmo quando Ethan Hawke aparece após os créditos para contar que ele havia aceitado trabalhar sem roteiro algum, apenas confiando no diretor, ele mesmo conta que as próprias aparições dele no início e no fim do filme fazem parte do filme. Ou seja, Ferrara segue brincando com nossas percepções sobre suas obras.

Na “trama”, Hawke é ao mesmo tempo um soldado americano patrulhando a cidade e o seu irmão gêmeo, um revolucionário. O termo “revolucionário” é usado com uma certeza pelo diretor e pelo irmão soldado também. Se pensarmos nesse personagem duplo como uma espécie de alter-ego de Ferrara, podemos vê-lo como uma tentativa de apresentar tanto seu aspectos mais mundano, como também como uma espécie de mártir, disposto a morrer por seus princípios, ainda que esses princípios não tenham me parecido muito claros.

Aliás, nada no filme é muito claro e nem me refiro às imagens escuras, mas à trama em si. Ethan Hawke me pareceu meio perdido, mas pode ser só impressão minha, uma impressão de quem estava se sentindo perdido e talvez coloque os próprios sentimentos no personagem. Há também algumas citações intrigantes sobre Jesus, sobre a vida, sobre religião. Ainda que tenha se tornado budista, o catolicismo segue muito presente no espírito da obra de Ferrara.

E por mais que nem todo filme novo dele funcione para mim – TOMMASO (2019) e SPORTIN’ LIFE funcionaram bastante, enquanto SIBÉRIA e este novo nem tanto –, fico feliz em vê-lo ativo e louco para trabalhar. Atualmente o cineasta está fazendo um filme sobre o Padre Pio (ao que parece, com Shia LaBeouf), um documentário sobre Patti Smith e algo parecido com TOMMASO, sobre a vida de uma pessoa recuperada do vício nas drogas, estrelada por Asia Argento. Será que teremos três Ferraras em 2022?

+ DOIS FILMES

O SILÊNCIO DA CHUVA

Fico feliz que Daniel Filho tenha voltado a filmar com um intervalo de tempo menor entre os títulos. Achei que ele se aposentaria com a divertida comédia SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO - O FILME (2014), também estrelado por Lázaro Ramos, mas ainda tivemos uma adaptação muito boa de Nelson Rodrigues (BOCA DE OURO, 2019) e agora este policial bem amarradinho sobre a investigação em torno da morte de um homem rico. Ramos e Thalita Carauta são os investigadores da polícia civil responsáveis por desvendar o assassinato (ou seria suicídio?), que envolve traições, muita grana e a figura de um jovem ladrão. É engraçado que o filme já me ganhou no início, com o som da chuva na noite. O elenco ainda conta com gente boa como Mayara Neiva, Cláudia Abreu e Otávio Müller. Podia ter sido um filme mais inspirado, mas acho que cumpre seu papel, sem falar que é mais um título a engrossar esse movimento de trazer mais filmes policiais para nossa cinematografia. 

A PROFISSIONAL (The Protégé)

Parece ter um bom filme no meio da bagunça no roteiro e da falta de habilidade nas cenas de ação que resultaram neste A PROFISSIONAL (2021). Até fica parecendo que Martin Campbell, que outrora filmou ótimas cenas de ação em dois filmes da franquia 007 e tem no currículo o ótimo O FIM DA ESCURIDÃO (2010), ficou para trás nestes tempos de maior valorização das coreografias em detrimento de edições picotadas, como é o caso deste aqui. O fato de o filme ser vendido como uma produção do mesmo estúdio de JOHN WICK torna esse dado ainda mais evidente. No mais, há coisas no filme de que gosto, em especial a história de Anna, vivida por Maggie Q, que é resgatada quando criança após o massacre de sua família no Vietnã e agora é uma profissional treinada em lutas corporais e armas de todo tipo, graças a seu mentor (Samuel L. Jackson). O problema é que A PROFISSIONAL não funciona como filme de vingança, tem uma história meio enrolada sobre um inimigo de L. Jackson, tem o personagem interessante, mas mal desenvolvido de Michael Keaton (por que ele aparece antes de Maggie Q nos créditos, afinal?), e, por mais que tenha algumas boas cenas (gosto muito de um flashback, especificamente), o resultado é um filme tão perdido que parece envergonhado de si mesmo.

domingo, novembro 21, 2021

PAIXÃO DE FORTES / PAIXÃO DOS FORTES (My Darling Clementine)



Se pensarmos em grandes cenas da história do cinema, certamente muitas passarão como flashes em nossa memória afetiva. Eu poderia citar uma infinidade aqui, mas é melhor não desviar o foco, até para não tirar os holofotes que PAIXÃO DE FORTES (1946) merece. A minha cena favorita é aquela em que Clementine (Cathy Downs) convida o então xerife Wyatt Earp (Henry Fonda) para acompanhá-lo até ao local do culto inaugural da igreja de Tombstone. Os dois caminham como se fossem marido e mulher, com a música aumentando o volume enquanto eles se aproximam. É possível sentir a imensa alegria de Earp naquele momento, e o detalhe dele jogando fora o chapéu para convidá-la para dançar é o ápice desse instante de alegria. Se fosse possível listar cenas em que a alegria se manifesta de maneira extraordinária, certamente eu incluiria essa.

Não que PAIXÃO DE FORTES seja exclusivamente um filme sobre a alegria. Na verdade, há uma intensidade de tragédias e de situações melancólicas que intensificam e misturam sentimentos de tristeza e alegria. E por mais que essa seja a minha cena favorita, nem dá para dizer que este filme de John Ford seja especificamente uma história de amor entre homem e mulher (Clementine até aparece pouco). A história de amor proposta se expande para uma relação forte de amizade entre dois homens, um homem da lei (Earp) e uma figura carismática e fora-da-lei, Doc Holliday (Victor Mature). Ford e outros autores que trataram de contar a história da parceria dessas duas lendas do Velho Oeste ajudaram a criar uma mitologia.

A história de Earp e Holliday já havia sido contada por outro grande mestre da velha Hollywood em A LEI DA FRONTEIRA, de Allan Dwan, lançado no mesmo ano que Ford apresentou sua volta aos westerns com NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS (1939). E hoje costumam dizer que PAIXÃO DE FORTES não é um filme exatamente preciso no que se refere aos fatos. Mas isso tem realmente tanta importância quando o cineasta nos dá de presente uma obra de tão rara beleza, inclusive do ponto de vista formal?

Aliás, a primeira imagem do filme já nos deixa impactados com sua beleza, com os irmãos Earp trazendo o gado sob a luz do sol que se põe. Adoro essas imagens de crepúsculos, auroras e noites de Ford. Até quando, imagino eu, dá mais trabalho de filmar, ele faz esses quadros lindos. Além do mais, temos Henry Fonda, um dos atores que melhor representam a dignidade e a bondade nos westerns americanos. Ele havia representado o fundador da nação Abraham Lincoln em A MOCIDADE DE LINCOLN (1939) e é um perfeito Wyatt Earp fordiano. (Nos extras do box Ford Essencial há alguns extras que contam um pouco da história controversa de como o verdadeiro Earp tratou de contar a própria biografia para se sair melhor na foto, mas talvez falar sobre isso tire um pouco da poesia que o filme de Ford proporciona.)

Na trama de PAIXÃO DE FORTES, Earp chega com seus irmãos para passar a noite em Tombstone. Eles pretendem levar o gado até mais a Oeste e o irmão mais novo fica tomando de conta dos bois. Earp, já na primeira noite, mostra ser muito mais corajoso que o xerife local, é convidado a ficar com o cargo, mas só aceita mesmo quando, tragicamente, descobre que o seu irmão foi morto assassinado e o gado fora roubado. Uma coisa que eu acho um pouco estranho no filme é como Wyatt se distancia cada vez mais de seus irmãos enquanto está em Tombstone. Mas isso tem mais a ver com o que é mais importante ser contado na história dentro do pouco tempo disponível. Assim, os personagens mais importantes, além de Wyatt, passam a ser Holliday, Clementine e Chihuaha (Linda Darnell), a moça bonita que é conhecida como a namorada de Holliday e que canta também no saloon.

Sobre Holliday, a escolha de um ator não tão talentoso como Mature não foi uma escolha de Ford, mas do estúdio, a Fox, ou mais exatamente do chefão Darryl F. Zanuck. De todo modo, Mature faz um trabalho decente, tanto que é muito difícil não se emocionar com a cena do “ser ou não ser”, em que Holliday e Earp entram no estabelecimento para buscar o velho ator bêbado decadente e o encontram recitando o mais famoso monólogo de Hamlet. Os irmãos Clanton estavam rindo e tentando humilhar o velho ator e Holliday, temido por todos, ordena silêncio e mais adiante demonstra seu conhecimento da obra do bardo inglês. Vale procurar o texto “Ford on Hollywood”, de João Bénard da Costa, sobre esses elementos shakespearianos e homerianos na obra de Ford.

Além do mais, do ponto de vista católico, Holliday seria o personagem da redenção, o homem que passou por situações pouco nobres, chegando a se tornar um dos homens mais perigosos do Velho Oeste, tendo matado a muitos, e por isso o fato de ele ter morrido heroicamente no famoso tiroteio do OK Corral (e não no leito da cama, por causa da tuberculose) foi uma escolha feita para redimi-lo de seus pecados e levá-lo de anti-herói controverso e carismático a herói salvador.

Agradecimentos a Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES

REGARDE LA MER

Pouco antes da estreia em longa-metragem com SITCOM (1998), François Ozon já havia dirigido vários curtas e este REGARDE LA MER (1997), um média-metragem muito bom que antecipa alguns temas que seriam abordados posteriormente na obra do diretor, como o gosto pelo suspense (gênero que ele brinca de vez em quando) e alguma estranheza nas relações humanas. A personagem de Marina de Van é ótima no modo como aborda a jovem mãe vivida por Sasha Hails e sua bebê. Ela traz um tipo de perigo e suspense que dura até o final, ainda que seja um sentimento ambíguo. Mesmo em situações em que a personagem da estranha não esteja, sua presença acaba por levar a personagem de Hails a situações perigosas ou a querer se sentir um pouco mais livre novamente. É um filme que com certeza supera vários longas feitos com mais "esmero" e luxo pelo realizador.

O ALTAR DO DIABO (The Dunwich Horror)

O filme que escolhi para homenagear Dean Stockwell foi esta adaptação de um conto de H.P. Lovecraft (uma das primeiras), dirigida por Daniel Haller, um cineasta que já havia trabalhado com outro conto do escritor, MORTE PARA UM MONSTRO (1965). No caso de O ALTAR DO DIABO (1970), temos um filme bem sintonizado com sua época, influenciado pela lisergia que dá o tom nas cenas dos aparecimentos (ou não aparecimentos) das criaturas ou monstros ou deuses ou demônios lovecraftianos. Na trama, Stockwell é um homem misterioso interessado no famoso Necronomicon, presente em uma biblioteca. Para isso, ele acaba conquistando (ou hipnotizando?) uma estudante e levando-a para sua casa, um lugar amaldiçoado pelos habitantes de sua cidade. Acho que poderia ser um filme melhor com uns 15 minutos a menos, mas talvez eu precise lembrar que na era dos hippies a pressa não era exatamente uma virtude.

sábado, novembro 20, 2021

LOCKE & KEY – SEGUNDA TEMPORADA (Locke & Key – Season Two)



Quando vi que passei praticamente uma semana sem postar no blog, percebi mais uma vez que o tempo dedicado ao trabalho, por mais que tenha sido enriquecedor, também me tira muito da energia que preciso para me dedicar a escrever sobre os filmes (e as poucas séries) que assisto. Optar por cochilos agradáveis e revigorantes em vez de gastar o tempo com os textos também tem sido um dos motivos. Enfim, vamos ver se consigo, então, escrever um pouco sobre uma das séries mais legais que vi nos últimos dias, a segunda temporada de LOCKE & KEY (2021), que consegue me ganhar, mesmo sendo mais uma obra de fantasia do que de horror. De todo modo, o horror acaba por ser um elemento que me encanta e me atrai. Além do mais, gosto dos personagens.

Também gosto do próprio conceito e do espírito da série, que me faz remeter a algumas histórias que assistia quando criança no SÍTIO DO PICA-PAU AMARELO, um verdadeiro manancial de contos fantásticos para crianças e adolescentes. (É possível que essa tenha sido a primeira vez que fiz referência à criação de Monteiro Lobato aqui no blog, o que é um absurdo.) O uso criativo das diferentes chaves pelos personagens é fascinante. Quando vi, por exemplo, a chave minúscula que dá acesso a uma versão em miniatura da própria Key House, fiquei encantado. E daí vem aquela cena da aranha gigante, que parece ter saído de alguma ficção científica dos anos 1950 ou de alguma Sessão da Tarde que vi na infância.

Na trama, ao final da primeira temporada (2020), os irmãos Tyler (Connor Jessup), Kinsey (Emilia Jones) e Bode (Jackson Robert Scott) acreditam que estão livres do demônio Dodge, que aparecia na versão feminina (Laysla De Oliveira), mas que agora habita o corpo do amigo da família e agora namorado de Kinsey, Gabe (Griffin Gluck). E isso foi uma escolha muito acertada da trama, já que tanto Gluck faz uma excelente caracterização do vilão principal, quanto há o perigo de o mal estar ali pertinho, sem que a família saiba, pelo menos até determinada parte da trama. Enquanto eles estão alheios a essa informação, a série se mostra bem angustiante. Mesmo quando o inimigo passa a ser conhecido, a situação continua tensa. Destaco um episódio em especial, “O Labirinto”, cheio de tensão e perigo. Pena que depois desse episódio a temporada caia um pouco na qualidade e começa a se encaminhar para um final apressado e mais preocupado com o fim do que com o desenvolvimento.

LOCKE & KEY, especialmente nesta segunda temporada, é uma série sobre o fim da magia com a chegada da vida adulta. A memória das chaves e daquele universo mágico vai desaparecendo da lembrança das pessoas, à medida que elas se aproximam dos 18 anos de idade. Assim, há situações que remetem ao Alzheimer, que é quando os adultos veem uma situação fantástica, mas logo se mostram confusos e perturbados quando aquilo vai desaparecendo de sua memória. O efeito mais perturbador é o da namorada de Tyler, quando ele a leva para a Inglaterra usando a chave de qualquer lugar. A garota é alguns meses mais velha que ele e está começando a ficar adulta.

Nesse sentido, a entrada em cena do tio dos garotos na aventura seria uma espécie de permissão para que ele adentrasse aquele universo mágico junto a eles, se a recuperação da memória do tio não fosse tão importante para salvá-los – e salvar também a mãe, ameaçada de morte por Dodge, aqui muito mais malvado do que na primeira temporada.

Agora é esperar que a série se mantenha bem na já confirmada terceira temporada. Que pode ou não contar com a presença de Tyler. Será que não? De todo modo, minha personagem favorita é mesmo Kinsey. E agora que Emilia Jones meio que adentrou o primeiro escalão de Hollywood, com o delicioso NO RITMO DO CORAÇÃO, ela se torna uma aquisição ainda mais valiosa para a série.

+ DUAS MINISSÉRIES

O CINEMA E AS CIDADES

Gostaria muito que um projeto como este fosse copiado por outras cidades. É muito gostoso acompanhar, mesmo que em um registro tradicional de documentário (talking heads, cenas de filmes, com seus títulos e nomes de realizadores e técnicos e alguns atores). Mas eu diria que não é um formato que deva ser abandonado. Acho muito importante saber o filme que está sendo mostrado, nos ajuda a compreender a obra e também a nos interessar por alguns desses trabalhos que ficaram muito restritos ao Rio Grande do Sul. A ideia de O CINEMA E AS CIDADES (2021), de Eduardo Wannmacher, é apresentar e discutir 20 filmes que servem como representações da cidade. A distribuições deles através dos quatro episódios é de natureza temática, não obedecendo a uma ordem cronológica. O que me pareceu acertado. Alguns poucos eu vi, inclusive no cinema, mas já são de um momento de intensa atividade de nossos filmes e uma melhor exposição no circuito nacional. Ainda assim já apresentam um tipo de prenúncio do que se tornaria a Porto Alegre um tanto abandonada e hostil, como é o caso de CASTANHA (2014) e de TINTA BRUTA (2018). Também achei curiosa a opção por escolher filmes menos óbvios de certos diretores mais consagrados, como é o caso de INVERNO (1983), do Carlos Gerbase, ou ÂNGELO ANDA SUMIDO (1997), um dos poucos inéditos para mim de Jorge Furtado. Fiquei na pilha para ver o curta QUEM? (2000), de Gilson Vargas, mas principalmente por ser fã de Julio Andrade; ou o doc sobre Caio Fernando Abreu, SOBRE SETE ONDAS VERDES ESPUMANTES (2013); ou aquele com o Osmar Prado, AMORES PASSAGEIROS (2012). No mais, gosto de como o cinema gaúcho é aparentemente mais cosmopolita e mais ligado à capital, coisa que o cinema cearense demorou a ser, com sua tradição de olhar mais para o sertão (não que isso seja um problema, mas temos uma cidade enorme e muito complexa para explorar).

SCENES FROM A MARRIAGE

E depois de muito torcer o nariz por uma versão americana de CENAS DE UM CASAMENTO, de Ingmar Bergman, até que o resultado de SCENES FROM A MARRIAGE (2021) foi bastante positivo. É possível perceber como as mudanças na sociedade repercutem na troca de papéis que acontece entre o casal. O responsável pela direção dos episódios e pelos roteiros é o israelense Hagai Levi, o criador da série BE’ TIPUL (2005-2008), que deu origem ao remake EM TERAPIA (2007-2010), pela HBO. A maior força desta minissérie está em Jessica Chastain e Oscar Isaac, o casal em crise. Excelentes os seus desempenhos. Uma coisa que diferencia esta minissérie da original é a brincadeira metalinguística de mostrar os atores chegando no set, como se quisesse enfatizar o caráter teatral, ou nos lembrar que aquilo é uma representação. Por sorte, nos vemos muitas vezes apegados o bastante para nos esquecermos disso. O melhor episódio é certamente o quarto (o penúltimo), mas gosto de como a minissérie termina.

segunda-feira, novembro 15, 2021

CHEGA DE SAUDADE



Como tenho por hábito acompanhar a programação de cinema da cidade e não deixar passar alguns filmes que julgo importantes, fiquei confuso quando percebi que não havia visto ainda CHEGA DE SAUDADE (2007), que acabou se tornando o meu favorito da diretora Laís Bodanzky. E olha que eu gosto bastante dos outros três longas dela – não estou contando com PEDRO (2021), exibido na Mostra de São Paulo e ainda inédito no circuito. Enfim, como sei que o lançamento nacional foi em março/2008, alguma coisa pode ter acontecido, como o choque com o Cine Ceará ou alguma viagem que porventura eu tenha feito.

Mas não importa mais. Só pensei nisso porque trata-se de um filme com muita música e muita emoção e geralmente isso me pega de jeito numa sala de cinema, um espaço que intensifica a nossa relação com o filme. Assim como fiz questão de ir duas vezes ao cinema para ver PARAÍSO PERDIDO, de Monique Gardenberg, é bem possível que tivesse feito o mesmo com o filme de Bodanzky. Aliás, CHEGA DE SAUDADE talvez até tenha uma intensidade maior, já que se passa o tempo inteiro (exceto algumas cenas finais) dentro do salão de baile. Logo, todo o carrossel de emoções dos vários personagens parece muito mais condensado. Inclusive, lembrei de um filme recente e muito louvado de Steve McQueen, LOVERS ROCK, que fez parte do projeto SMALL AXE, que também se passa em um ambiente fechado e com muita música.

O diferencial de CHEGA DE SAUDADE é que estamos diante de personagens muito carentes, a maioria deles idosos. O salão de baile que toca Martinho da Vila, Pixinguinha, Reginaldo Rossi, Marvin Gaye, Rita Lee, Dorgival Dantas, Lulu Santos, entre outros, e tem Elza Soares e Marku Ribas no papel de crooners de uma banda, é um espaço que mais parece um paraíso, embora um paraíso também pontuado por uma série de aflições e angústias de seus personagens, que encontram na dança e na música um escape para a vida lá fora – em nenhum momento vemos alguém reclamando de falta de dinheiro, por exemplo.

Entre os dramas de destaque, temos os dois personagens mais idosos, vividos por Tônia Carrero e Leonardo Villar. Que honra para Bodanzky ter uma estrela tão importante como Tônia em seu filme, interpretando uma mulher com um problema que ela mesma já sofria, a séria perda gradual de memória. Ela e Villar são responsáveis pelo momento mais emocionante do filme. Mas temos também os personagens mais jovens. Paulo Vilhena é o rapaz que cuida do som e Maria Flor é a namorada que o acompanha e que nunca havia estado em uma festa do tipo antes. Acaba gostando muito e não se incomoda com as abordagens do mulherengo vivido por Stepan Nercessian, que a tira para dançar e a deixa muito feliz. Para ciúme da namorada do sujeito, vivida por uma encantadora Cássia Kiss. O que é aquela cena das lágrimas de Cássia ao som de “Carinhoso”?

Outra estrela que comparece em um papel de cortar o coração é Betty Faria. Para uma atriz que já foi um símbolo sexual em outras épocas, interpretar uma mulher que é rejeitada na festa não deve ser fácil. De todo modo, um papel é um papel e Betty Faria brilha como sempre. Percebe-se, então, que inevitavelmente o filme não conseguirá fugir do tema da velhice, mas o diferencial está no modo como aquelas pessoas lidam com o passar dos anos. Há um personagem que representa muito bem essa opção por preferir a diversão relativamente perigosa a ter que ficar deitado num caixão esperando a morte chegar.

O uso da câmera pertinho dos atores nos deixa quase dançando com eles, no salão, e nossa posição deixa de ser de meros espectadores, a partir dessa escolha da cineasta. O nosso voyeurismo fica tão próximo e tão pouco “seguro”, que é como se assumíssemos também a dor e o prazer de estar ali, com aqueles personagens, ouvindo a música, lembrando de um evento ou outro de nossa vida ou simplesmente esquecendo de tudo e se concentrando no agora.

Agradecimentos a Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES

BOB CUSPE - NÓS NÃO GOSTAMOS DE GENTE

É impressão minha ou nosso quadrinho nacional é tão underground que mesmo os nossos maiores cartunistas e quadrinistas são pouco conhecidos de verdade pelo grande público? Lembro quando encontrava a Chiclete com Banana nas bancas, mas conheci poucos amigos que a compravam. Eu mesmo nunca adquiri um exemplar. Por isso é admirável que esses personagens - os do Angeli, os da Laerte - tenham não só sobrevivido mas se tornado de certa forma clássicos. É o caso do Bob Cuspe que envelheceu aqui como seu criador Angeli. Em BOB CUSPE - NÓS NÃO GOSTAMOS DE GENTE (2021), de Cesar Cabral, que pega emprestado características de documentário, ficamos sabendo que o personagem foi inspirado no próprio autor, em sua fase jovem. Quanto ao filme, só não me ganhou mais porque eu sou um chato e cochilo em animações e tive a impressão de que faltou um interesse maior na criação de um roteiro. Mas não deixa de ser uma alegria ver uma sala de cinema com um número de pessoas bem razoável para ver uma animação made in Brazil.

ALL TOO WELL: THE SHORT FILM

Não conheço o trabalho de Taylor Swift, mas tenho simpatia por esses projetos que usam o videoclipe e transformam em curta-metragem. Deu muito certo lá atrás com “Thriller”, do Michael Jackson. Agora é um outro momento e as pessoas, aparentemente, não ligam muito para clipes, então seria uma maneira de chamar a atenção. ALL TOO WELL: THE SHORT FILM (2021), dirigido pela própria cantora, usa a canção-tema para contar uma história de amor que acabou em separação e depois em "superação", por assim dizer. As cenas dramáticas, ainda que poucas, são boas, a música é agradável e o filminho de 15 minutos passa como se tivesse apenas cinco.

quinta-feira, novembro 11, 2021

ETERNOS (Eternals)



Quando a Marvel Studios anunciou seus filmes e séries para o início da chamada fase 4 ficou claro que estávamos mesmo diante de algo muito grandioso e ousado. Não no que se refere à forma do filme e ao aspecto cinematográfico das obras. Quanto a isso, creio que Kevin Feige e os demais executivos que mandam no estúdio não têm mesmo intenção de entregar um filme a um autor e deixá-lo fazer uma obra de fato autoral. Por isso a expectativa em torno de ETERNOS (2021) era grande pelo fato de ser assinada por Chloé Zhao, a diretora chinesa vencedora do Oscar por NOMADLAND (2020) e que tem uma filmografia curta, mas já marcadamente interessada em algo próximo do documental e também do intimista.

Então, será que Zhao conseguiria imprimir sua marca em uma mega produção cheia de efeitos especiais? Será que a Marvel permitiria? Ou será que ela seria mais um autor engolido pelas engrenagens da grande indústria? A propósito, vale destacar que nem sempre se trata de muito dinheiro envolvido, já que os filmes de super-heróis da DC, na Warner, têm a cara de seus realizadores. Na Marvel, certos diretores conseguiram deixar algumas de suas marcas, como Taika Waititi, em THOR – RAGNAROK, e James Gunn, em GUARDIÕES DA GALÁXIA (2014) e sua continuação (2017).

No caso de ETERNOS, não consegui ver a assinatura da diretora, mas talvez, com um pouco de esforço, isso seja possível de visualizar. No mais, já adianto que gostei dos personagens e dos atores e atrizes (boa parte deles), gostei do visual (faltou eu ter lido os quadrinhos de Jack Kirby, mas imagino que a transição para o cinema foi bem pensada), gostei da ousadia da Marvel ao trazer personagens de seu repertório desconhecidos até de muitos leitores, gostei da pluralidade de raças para representar os eternos, sendo que o respeito às minorias também se estende à orientação sexual, forma física etc.

O problema é que o filme cansa um bocado, não por ser muito expositivo (embora isso também incomode), mas o que poderia ser o momento mais empolgante do filme, o seu clímax, é talvez o mais tedioso – nesse sentido, lembra muito o que aconteceu com SHANG-CHI E A LENDA DOS DEZ ANÉIS. E onde está o sentido de perigo, a angústia, o senso de urgência de um fim iminente ou da própria descoberta da natureza dos heróis? Tudo isso não deveria ser sentido pelo espectador? Terá sido culpa da falta de liberdade criativa que a Marvel tem deixado de conceder aos cineastas contratados, resultando em obras genéricas e sem alma? Por isso acredito que a Marvel precisa parar de se preocupar menos no big picture e focar mais em filmes como objetos individuais minimamente independentes.

Uma das dificuldades de ETERNOS estaria no quanto se trata de um projeto a respeito de um universo inteiramente novo para o cinema, e portanto é preciso que a direção e o roteiro tenham a tarefa de contar a história desses seres que estariam entre nós há séculos, mas que não poderiam interferir nos problemas dos terrestres, a não ser para defender a Terra dos deviantes, seres monstruosos vindos para matar e destruir. Era essa a função dos eternos, seres fisicamente parecidos com os humanos e com poderes individuais. Por isso a duração longa de duas horas e meia para poder contar essa história.

A Marvel aqui aposta principalmente em atores menos famosos na telona, como Gemma Chan (PODRES DE RICOS) e Richard Madden (série GAME OF THRONES), que são os protagonistas, mas também traz atrizes coadjuvantes extremamente importantes para a trama, como Angelina Jolie e Salma Hayek. Isso traz um bom equilíbrio para o elenco. Ainda que não seja o suficiente para salvar o filme, não deixa de ser mais um de seus atrativos.

O perigo, eu diria, não está nas ousadias da Marvel em trazer heróis quase desconhecidos do grande público (isso até pode funcionar como propaganda e apresentação para os iniciantes nos quadrinhos), mas em não se preocupar mais com a qualidade de seus filmes individualmente. Por mais que os fãs continuem lotando os cinemas e vendo as séries lançadas agora no streaming próprio, até quando essa fidelidade resistirá a filmes medianos?

+ DOIS FILMES

VENOM - TEMPO DE CARNIFICINA (Venom - Let There Be Carnage)

Há filmes que nos deixam sem palavras. É o caso desta sequência de VENOM (2018), a primeira aventura do anti-herói bocudo e que está mais para um encosto do que para um alienígena. Venom tem ganhado popularidade nos quadrinhos desde sua criação, nos anos 1990. Mas o caso de eu ter ficado sem palavras em VENOM – TEMPO DE CARNIFICINA (2021), dirigido por Andy Serkis, foi pelo fato de ver um desses trabalhos tão ruins que nem o melhor dos montadores do mundo conseguiria fazer milagre na sala de edição para que ele se tornasse meramente assistível. Nem mesmo a intenção de transformá-lo numa comédia funciona, já que as piadas não têm a menor graça. E aí a gente percebe que a Michelle Williams está no filme! Uma das melhores atrizes de sua geração! E o diretor de fotografia é o grande Robert Richardson, conhecido por seus trabalhos com Tarantino e Scorsese. O que fazem essas pessoas tão boas numa produção tão tosca? Qual seria a história por trás da criação deste filme? Muitos dizem que a finalidade deste filme foi garantir uma cena pós-créditos atraente. Sério?! A que ponto chegamos no grau de industrialização de produtos "Marvel" para que produtores e artistas comprometam suas reputações? É a força do dinheiro que ergue e destrói coisas belas, como diz o Caetano.

PATRULHA CANINA - O FILME (PAW Patrol - The Movie)

Filme que vi com meu sobrinho de dois anos. E engraçado que ele já conhecia os personagens, tem brinquedos e coisas a respeito da franquia, que já existe desde 2013 na televisão e eu não sabia da existência. Tecnicamente, PATRULHA CANINA - O FILME (2021), de Cal Brunker, é uma animação bem realizada, mas falta alma na construção da trama e dos personagens e, por mais que seja muito interessante a questão do medo e da insegurança de um dos cachorrinhos do grupo, a estrutura de "missão a cumprir" é tão clara que já sabemos o quanto falta para o filme acabar. Outra coisa curiosa é notar o quanto a gente está acostumado a fazer comparações com o nosso ambiente político. O inimigo da história é um prefeito que tem em seu plano de governo destruir a arte, a cultura e ainda prender todos os cachorros. Fica difícil não lembrar de um certo governante.

domingo, novembro 07, 2021

COMPANHEIROS, QUASE UMA HISTÓRIA DE AMOR (Tian Mi Mi)



É interessante como a “descoberta” de certos filmes parte de diferentes meios. Seja através da busca de mais filmes de determinado diretor (ou até atriz ou ator) de que gostamos, seja por indicações em listas de melhores filmes do ano (ou da década) ou realizada por algum crítico de cinema renomado. E há também aqueles filmes que despontam em destaque em listas feitas por críticos amigos que a gente respeita. No caso, COMPANHEIROS, QUASE UMA HISTÓRIA DE AMOR (1996), de Peter Chan, costumou aparecer com frequência em algumas listas e destaques do amigo Chico Fireman. E vale lembrar que esse filme integrou uma retrospectiva sobre o cinema de Hong Kong realizada em São Paulo, com curadoria de Filipe Furtado, e acabou ganhando certa popularidade.

E é fácil que um filme como este ganhe popularidade. É muito mais acessível para um público maior que os filmes de Wong Kar-wai ou Johnnie To, por exemplo. COMPANHEIROS... tem um viés mais clássico, do ponto de vista narrativo, mas não clássico no sentido de autocontido, de pouco romântico. Na verdade, há cenas com arroubos dramáticos lindíssimos, com uso de música e cenas de partir o coração. A fotografia também tem um tipo de luz especial, como se houvesse uma aura mágica em torno dos personagens. Inclusive, gosto muito de como, na primeira parte do enredo, em vários momentos vemos apenas os dois protagonistas, com uma quase ausência de fundo.

Temos aqui uma história que se passa em um período de tempo de cerca de dez anos, e em cuja primeira metade se constrói a relação de amor e amizade entre o rapaz (Leon Lai) e a moça (Maggie Cheung), ambos saídos da China continental para tentar a sorte em Hong Kong. Eles se tornam melhores amigos, mas seus objetivos de vida são diferentes. Enquanto ele, Xiaojun Li, chega a Hong Kong com o objetivo de ganhar dinheiro para poder, futuramente, se casar com a noiva que ficou na China, ela, Qiao Li, tem mais ambições, naquela espécie de oásis do consumismo.

O filme começa com a chegada de Xiaojun na estação, sofrendo muito para se comunicar, já que as pessoas de Hong Kong não entendem o seu mandarim e o tratam como uma espécie de caipira. Ele conhece então a bela e desenrolada Qiao, que o ajuda a entrar em um curso de inglês (o professor é vivido pro Christopher Doyle) e a ir se adaptando àquele novo mundo. Xiaojun se abriga na casa de uma tia, uma mulher que coordena um bordel e que tem saudades do astro americano William Holden, que teria conhecido na época em que ele esteve em HK para atuar em SUPLÍCIO DE UMA SAUDADE.

A trama do filme começa em 1986, um momento positivo para quem fazia suas economias em Hong Kong, como era o caso de Qiao, que ficava feliz ao tirar o seu extrato bancário e acreditar que estaria ficando rica. A festa acaba no ano seguinte, com a quebra da Bolsa de Valores e quando a moça precisa trabalhar ainda mais para conseguir se manter, aceitando um trabalho de massagista. Esse pano de fundo político e econômico é importante para nos situar naquele espaço e tempo, mas o aspecto principal segue sendo a relação entre os dois, que vai evoluindo para uma atração física e depois para uma paixão. Como Xiaojun não tem coragem de romper com a namorada, é natural que ocorram atritos e até separações, por mais que a paixão entre eles seja nítida e intensa.

Muito da força do filme está no quanto Peter Chan e sua roteirista Ivy Ho tratam com sensibilidade a evolução do relacionamento e da química do casal. Assim, nas quase duas horas de duração torcemos o tempo todo por eles. E quanto mais surgem obstáculos, mais a vontade de vê-los juntos novamente aumenta. Aliás, isso é uma regra básica de histórias de amor: é preciso haver obstáculos para que elas funcionem, seja para aquecer nossos corações, seja para parti-los. E Chan e Ho sabem fazer isso muito bem, aliando comédia e melodrama de modo encantador.

Agradecimentos a Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES

UMA HISTÓRIA DE FAMÍLIA (Family Romance, LLC)

A aproximação de Werner Herzog com o documentário foi tão intensa nos últimos anos que fica difícil não associar a linguagem deste filme com a de um documentário. Seja pelo tipo de imagem digital usada, seja pelas escolhas onde posicionar a câmera ou o trabalho de edição, que às vezes lembra o de uma matéria jornalística. Na trama de UMA HISTÓRIA DE FAMÍLIA (2019), homem que trabalha em uma empresa de realização de sonhos, é pago para representar o pai de uma adolescente. Ao mesmo tempo, também vamos acompanhando outros casos que a firma vai aceitando, e nisso o filme vai nos mostrando um mundo de pura ilusão e mentira, onde tudo que é necessário para a alegria precisa ser comprado ou contratado. Em alguns momentos achei que o filme ia abraçar situações mais íntimas, por assim dizer, entre os personagens, mas, até por se passar no Japão, Herzog opta pelo distanciamento físico. É um filme de desilusão, em que até o ato de abraçar parece um problema.

DE VOLTA PARA CASA (Coming Home Again)

Wayne Wang adapta, junto com o próprio autor do texto original, o sul-coreano Chang-Rae Lee, a história muito íntima e sensível, de quando Lee acompanhou os últimos dias de vida de sua mãe, com câncer no estômago. A história é contada de maneira paradoxalmente fria (no interesse do cineasta em usar tons frios nos interiores e ter um cuidado em cada plano) e ao mesmo tempo emotiva, já que está lidando com a memória e também com uma presença que logo se transformará em ausência. Em DE VOLTA PARA CASA (2019), o protagonista resolve abandonar o emprego para se dedicar exclusivamente à mãe. Há alguns momentos bem dolorosos.

sábado, novembro 06, 2021

MARIGHELLA



Finalmente MARIGHELLA (2019), de Wagner Moura, estreia nos cinemas! O local ideal para vê-lo. O filme sofreu com censura, problemas burocráticos envolvendo a Ancine (o que pode ser a mesma coisa), a pandemia, vazamento de uma cópia e muito se especulava se algumas redes de cinema, supostamente bolsonaristas, não topariam exibi-lo. Para nossa alegria, o filme foi lançado em diversas salas de cinema, tanto as de multiplex, quanto os cinemas de rua ou os que exibem filmes mais arthouse e já é o filme brasileiro mais visto em 2021 nos cinemas.

Pode não ser o filme perfeito que gostaríamos, mas é de uma intensidade e uma paixão que encantam. Há coisas que eu cortaria, algumas falas, mas são poucas. No balanço geral não chega a prejudicar. Do jeito como foi pensado e realizado o filme é tanto um thriller muito tenso sobre um grupo de poucas pessoas que lutam perigosamente contra um sistema gigante e poderosíssimo, quanto um registro necessário para estes tempos de fascismo vigente.

Sobre o fato de o grupo comandado por Carlos Marighella (Seu Jorge) ser muito pequeno, isso chegou a ser alvo de críticas, mas me pareceu interessante ver aquelas pessoas ou como heróis ou como suicidas, já que, ao longo do filme, vamos vendo a queda (morte) de vários deles. Ao mesmo tempo, é poderoso o momento em que Marighella diz, após sofrer tantas derrotas: “a gente não vai parar”, ou quando ele diz, depois de ser acusado de ser terrorista, que as pessoas, especialmente seus inimigos, vai ter terror sim.

São poucos os momentos do filme em que vemos vitórias do pequeno grupo de Marighella. O maior problema para eles estava na dificuldade de furar a censura. Isso já fica muito claro na cena em que o delegado Lúcio, vivido por um Bruno Gagliasso quase enfeiado para o papel, diz o que um jornalista deve escrever após a ação do grupo de revolucionários a um banco. Isso, em seguida, é ainda mais enfatizado e por isso uma vitória como a invasão via ondas de rádio nos parece tão preciosa. 

Foi muito feliz da parte de Moura optar pela câmara rente aos corpos de seus personagens. Isso, além de esconder as limitações da produção, faz com que o filme adquira um tom urgente muito interessante. A própria fala de Marighella de que ele não tem tempo para ter medo, por mais que pareça pouco natural, combina com esse espírito urgente. E a cena de amor entre Marighella e a personagem de Adriana Esteves, momentos antes de ele ser assassinado pelos policiais, já deixa claro que cada instante vivido é especial.

Também muito feliz o filme ter uma cena de assalto a um trem ao som de “Banditismo por uma Questão de Classe”, de Chico Science & Nação Zumbi. A escolha de uma canção dos anos 1990 não deixa o filme nos anos 1960/70. Além do mais, essa é uma daquelas canções transgressoras, que exalta um fora-da-lei como Lampião e apresenta a polícia como uma instituição que mata gente inocente. Sem falar nos tambores e nos riffs poderosos de guitarra. Tudo isso arrepia, combinando com o estilo de filme de ação que Moura adota.

Ao fazer um filme político e popular, como foram os dois "Tropas" de José Padilha, ou certos filmes políticos brasileiros dos anos 1970, ele convida uma grande plateia para comungar com a experiência de seu cinema de corpo. E são muitos os corpos ensanguentados e sofridos, inclusive. E por mais que o diretor pudesse ter optado por cenas ainda mais violentas, levando em consideração o grau de brutalidade das técnicas de tortura da polícia, o recorte que vemos já é suficiente para deixar nosso sangue intoxicado.

No mais, Wagner Moura não poupa seus personagens. Todos eles têm suas falhas e muitas delas dependem do julgamento do espectador. Optar pela luta armada é tanto um ato de intensa coragem quanto um ato de desespero ou talvez pura burrice – isso é discutido em uma cena envolvendo os líderes comunistas, como os personagens de Luiz Carlos Vasconcelos e Herson Capri. O elenco mais jovem também está uma beleza, em especial Humberto Carrão e Bella Camaro. A juventude dos atores traz mais dinamismo para as cenas de ação.

Ao optar por um filme que aposta mais na ação do que na historicidade, Moura pode não agradar a muitos. Mas foi uma escolha que, com certeza, resultou em um filme bem poderoso. Além do mais, para quem é brasileiro, muitas coisas ficam nas entrelinhas e desnecessárias que sejam tão explicadas em um filme que pretende fazer um recorte muito específico da vida de um dos homens mais importantes da resistência durante os anos de chumbo da ditadura civil-militar no Brasil.

+ DOIS FILMES

BAGDÁ VIVE EM MIM (Baghdad in My Shadow)

O fato de BAGDÁ VIVE EM MIM (2019) ser dirigido por um iraquiano de nome Samir (acho estranho não ter um sobrenome) ajuda a aceitarmos a simplicidade e o modo como há poucos tons de cinza nos personagens. Mas certamente é um filme bem-vindo, ao mostrar um grupo de iraquianos residentes em Londres que ainda sofrem com problemas relativos à intolerância, seja ela de gênero, de orientação sexual ou até de opção por se distanciar da religião islâmica. A trama é um pouco complicada, a princípio, mas vai logo ficando bem clara, à medida que o filme se aproxima da conclusão.

WHAT DO WE SEE WHEN WE LOOK AT THE SKY? (Ras Vkhedavt, Rodesac Cas Vukurebt?)

Um filme bem desconcertante este WHAT DO WE SEE WHEN WE LOOK AT THE SKY? (2021), de Alexandre Koberidze. É, ao mesmo tempo, bastante moderno, mas também utiliza muitas técnicas herdadas do cinema mudo, além da própria tradição da literatura oral dos contos de fadas. Pode frustrar quem procura uma história de amor nos moldes tradicionais, pois na verdade não é, embora o ponto de partida e o esqueleto da trama sejam, já que lidam com um amor impossibilitado por uma maldição, um feitiço, ainda que seja um feitiço sem uma explicação. Mas isso não importa, na verdade. É curioso o modo como o filme parece largar seus personagens principais, o casal de apaixonados, em determinado ponto para se estruturar em um modelo de narrativa mais lenta e mais desapegada à trama, ou inserindo uma outra trama, de um casal de fotógrafos. Destaco uma bela cena de adolescentes jogando futebol. Talvez a mais bonita. Gosto também do senso de humor, nas poucas cenas que tentam trazer os cachorros como também entusiastas do futebol e da Copa do Mundo. Aliás, Messi e os argentinos estão bem populares lá pelos lados da Geórgia, hein.

quinta-feira, novembro 04, 2021

ASAS DO DESEJO (Der Himmel über Berlin)



Lembro com saudade da excitação que foi sair do trabalho sozinho à noite para ir a um cinema da Aldeota (o saudoso Cine Center Um) para ver ASAS DO DESEJO (1987). Acho que foi em 1989, e justamente por isso já posso imaginar o quanto aquele meu primeiro ano como cinéfilo estava mexendo com minha cabeça e me deixando tão entusiasmado para conhecer o trabalho de cineastas aclamados pela crítica. É bom lembrar que naquela época Wim Wenders estava no seu auge, vinha da obra-prima PARIS, TEXAS (1984) e de outros filmes feitos nos Estados Unidos, e por isso sua reputação estava intacta.

Uma das coisas que mais me impressionou em ASAS DO DESEJO foi minha identificação com o anjo Damiel (Bruno Ganz). Principalmente sua solidão, sua invisibilidade e seu amor platônico pela trapezista Marion (Solveig Dommartin, deslumbrante). Também me identifiquei com a ânsia (e a inveja) dele pela vida terrena, pelo cansaço do etéreo e da pureza divinal. Vindo de família evangélica e de uma educação austera e de proibições, demorei a me permitir viver a vida com mais intensidade. Ainda nem tinha 18 anos de idade, mas era como se sentisse o peso do tempo passando rapidamente, como se sentisse uma urgência imensa. E é curioso como esse filme trouxe toda essa carga de sentimentos de maneira tão forte em mim.

Muito do meu entusiasmo por este filme e por outros de destaque que chegavam ao circuito local vinha das críticas e ensaios que lia na revista SET, a primeira e praticamente a única publicação de cinema que me servia de farol. O auge da revista foi justamente em fins dos anos 1980 e início dos 90. Antonio Querino Neto escreveu um texto grande sobre o filme na edição de maio de 1989 em que destacou a sensibilidade de Wenders para falar sobre a solidão, o tédio e a incomunicabilidade. Na verdade, sobre o filme em si ele escreveu pouco: traçou um longo painel sobre a carreira e as obsessões de Wenders para confirmá-lo como um dos grandes autores de seu tempo.

ASAS DO DESEJO foi feito sem roteiro. Wim Wenders tinha essa ideia sobre dois anjos vagando por Berlim em um filme com fotografia em preto e branco, mas não tinha muito mais em mente. Teve sorte de ter um currículo excepcional e assim receber financiamento para a produção de um filme sem um script de apresentação. E até mesmo o amigo com quem ele contava para fazer o roteiro não topou, apenas ajudou a criar alguns diálogos poéticos e existencialistas. Esse amigo era Peter Handke, grande escritor austríaco que ganharia em 2019 o prêmio Nobel de literatura, e que havia colaborado com dois filmes dos anos 1970 do diretor.

Então, Wenders foi fazendo o filme como se tateando, como se esperasse mensagens de rádio ou dos anjos a cada novo dia de filmagens. Quando convidou Peter Falk, o eterno Columbo, para interpretar a si mesmo em passagem pela Alemanha (ainda dividida), o ator topou, mesmo sabendo que não havia roteiro pronto. Ele já tinha experiência em trabalhar com John Cassavetes, que fazia algo parecido. Há uma cena em que Falk experimenta chapéus para o figurino que Wenders filmou sem compromisso e acabou entrando no corte final.

Das cenas mais marcantes, a que mais ficou em minha memória foi a da performance de Nick Cave. Nunca tinha visto nada parecido e a música se amplifica e muito numa sala de cinema. Era uma época em que o rock começava a me deixar apaixonado. E paixão tem tudo a ver com essa cena, já que é o momento em que, durante um sombrio e belo show de rock, duas almas se encontram: o homem que já foi um anjo e abdicou de sua imortalidade por amor e a mulher que, de certa forma, já sentia a sua presença invisível. Então, toda a expectativa que o filme criara até então no sentido de uni-los se manifesta naquela cena especial. E são estranhas as palavras que o escritor Peter Handke põe na boca de Marion, beirando o artificial, no momento que ela encontra Daniel, mas é uma estranheza que me agrada.

Além do mais, é difícil não se apaixonar por Marion/Solveig Dommartin desde sua primeira aparição no circo. É como se ela tivesse mais leveza do que os próprios anjos. A atriz aprendera o ofício de trapezista para o papel. E fez aquelas cenas sem a rede de proteção e sem dublês. Wenders conta que ela chegou a cair no chão uma vez e a melhor coisa a fazer, segundo o pessoal do circo, era agir como se não tivesse sido um grande problema e fazê-la retornar rapidamente ao trapézio, para que não gerasse um trauma ou algo parecido. Como revi o filme no BluRay lançado pela Versátil, e com comentários em áudio de Wenders, fiquei impressionado com o fato de ele não citar em nenhum momento a beleza da atriz, ou sua morte, ocorrida em 2005, ainda muito jovem, aos 45 anos.

Antes da antológica cena do show (e do encontro do casal), os anjos passeiam pela cidade e se solidarizem com as aflições humanas, em sequências lentas e contemplativas, abrindo espaço para reflexões, seja da própria vida, do estar vivo como um mortal comum, seja de questões como guerra e paz, algo ainda presente nas feridas da própria Berlim, que, ainda por cima, possuía aquele muro horrível em sua geografia. Ou seja, ASAS DO DESEJO é um filme que transcende a história de amor de Damiel e Marion.

Do ponto de vista formal, a exuberante fotografia de Henri Alekan, seja em lindíssimo preto e branco ou em technicolor destacado, além dos travellings de Wenders em lugares como a biblioteca ou as ruas da cidade, tudo isso contribui para que uma atmosfera que mistura angústia e encantamento se apresente coerente com esse pensar e sentir de maneira intensa e urgente.

Agradecimentos a Paula, pela companhia durante a sessão.    

+ DOIS FILMES

MEU FIM. SEU COMEÇO. (Mein Ende. Dein Anfang.)

O filme é vendido como algo que traz uma história que enfatiza o deja vu. No fim das contas, esse elemento é muito pouco usado em MEU FIM. SEU COMEÇO. (2019), de Mariko Minoguchi, embora haja um jogo temporal interessante, traçando um paralelo entre a vida da protagonista feminina e a do homem cuja filha precisa fazer um transplante de medula. E há também os flashbacks da personagem com o namorado, que nos apresentam à relação dos dois, à intimidade, à gênese. Acredito que o filme funcionaria melhor se fosse uma história de luto pura e simples do que o jogo temporal que intenciona tecer. Também senti falta de mais calor (sentimentalmente falando) nas cenas de intimidade entre os casais. E não creio que seja culpa da cultura alemã, supostamente mais fria.

FIM DE CASO (The End of the Affair)

Mais uma experiência de retirar do arquivo quase morto da memória uma lembrança adormecida. Só o que me lembrava de FIM DE CASO (1999), de Neil Jordan, era de ter saído do Cine São Luiz sob o impacto de algo especial. Foi bom rever até para tê-lo agora em mente sob um outro prisma. Agora a questão da fé me pareceu mais forte do que a própria ênfase no relacionamento amoroso que o casal Ralph Fiennes e Julianne Moore tem e que é finalizado após uma situação específica. Neil Jordan nos coloca como se estivéssemos vendo um filme dos anos 1950, como aqueles melodramas da época, seja pela voice over, seja pela intensidade dramática e pela música que vai nos levando a um território de provável dor. Não foi a única adaptação do romance de Graham Greene. Em 1955, Edward Dmytryk também o adaptou, estrelado por Deborah Kerr. Aqui no Brasil esse filme se chamou PELO AMOR DE MEU AMOR. Faz todo o sentido pela história.

segunda-feira, novembro 01, 2021

DUNA (Dune)



Tenho uma lembrança nebulosa de quando DUNA, a versão de 1984 dirigida por David Lynch, foi exibida na televisão. Foi em julho de 1989 e eu trabalhava no setor de compensação do Banco do Nordeste. Se não me engano foi em uma semana em que estrearam vários outros filmes atraentes na Rede Globo e eu ficava animado por essas possibilidades de ver coisas diferentes em um tempo em que nem videocassete eu tinha ainda. E acredito que foi em um momento em que nem era fã do Lynch também. E embora eu tenha achado confuso pra caramba essa produção complicada, achei linda a fotografia de Freddie Francis e o filme em si um bocado charmoso. Anos depois tive a oportunidade de rever em DVD e vi que se tratava mesmo de um filme complicado. Muito disso por causa dos produtores, que cortaram muita coisa do que foi filmado e a trama ficou bem pouco inteligível para quem não leu o romance de Frank Herbert.

Ao que parece, a única pessoa que ficou feliz com o fracasso da adaptação cinematográfica de Duna foi Alejandro Jodorowsky, que levou anos tentando montar uma super-equipe para, ele mesmo, fazer a adaptação, mas que, infelizmente, não deu certo. Isso pode ser visto no ótimo documentário JODOROWSKY’S DUNE, de Frank Pavich.

E eis que Dennis Villeneuve abraça o projeto de levar Duna para as telas de forma mais bem-sucedida. Como ele já vinha de duas sci-fies muito boas, A CHEGADA (2016) e BLADE RUNNER 2049 (2017), o nome do diretor foi facilmente aceito. Levando em consideração o tom cada vez mais solene e sério de seus filmes, seriedade, em todos os sentidos, é o que se esperaria de uma adaptação do clássico romance de Herbert. 

E DUNA (2021) é apenas a primeira parte. Isso fica claro logo no começo dos créditos. Sem ter certeza se o estúdio aprovaria a continuação, ele fez a aposta arriscada em um filme de duas horas e meia que conta metade da trama. Nada mais justo para um romance tão complexo e que necessitaria de tempo para dar conta das explicações acerca das particularidades daquele universo.

Villeneuve descobriu o livro na adolescência e sonhou em adaptá-lo por muitos anos, a ponto de se tornar uma espécie de projeto para sua vida. Quando conseguiu terminar a produção, veio a pandemia e a dificuldade de obter uma bilheteria boa o bastante parecia complicada. 

A trama lida com imperialismo, colonialismo, magia e vermes gigantes em um planeta altamente inóspito chamado Arrakis que detém o bem mais precioso do universo, a especiaria. Faz lembrar, de propósito, a época das grandes navegações, nos séculos XIV e XV. Em Arrakis, só é possível viver graças a um tipo de tecnologia que permite que a água do corpo seja reaproveitada e consumida de modo que as pessoas não morram desidratadas. Não à toa, ser capturado e assassinado para ter o sangue consumido é claramente uma possibilidade.

O andamento lento e paciente que Villeneuve adota é perfeitamente necessário, portanto, não apenas para que conheçamos detalhes desse universo, mas para que também possamos conhecer um pouco melhor os nossos heróis. Timothée Chalamet vive Paul Altreides, o jovem sucessor do Duque Leto Altreides (Oscar Isaac) e de uma mulher cheia de conhecimentos de magia, Lady Jessica, vivida de maneira brilhante por Rebecca Ferguson. Aliás, digo, sem dúvida nenhuma, que Lady Jessica é minha personagem favorita e que Ferguson nunca esteve tão bem, seja de beleza, quanto de interpretação.

Quanto a Chalamet, seu físico franzino funciona bem para o papel, dando um tipo de fragilidade que parece necessária para alguém que vai se aventurar em um planeta como esse com sua família. Na primeira hora de duração, vemos seus treinamentos com o chefe dos soldados do Duque, vivido por Josh Brolin, junto com um tipo de tecnologia que protege o corpo com um escudo de força invisível, e vemos também seu treinamento mental com a mãe. Ele, assim como ela, é dotado de uma força psíquica. Mais à frente, ambos os treinamentos serão necessários para a sobrevivência de mãe e filho.

Quanto aos coadjuvantes, Zendaya aparece muito pouco, mas sua presença é como um fantasma, como uma espécie de espírito atraente e também perigoso para o jovem Paul. Mas quem chama a atenção logo de cara é Javier Bardem, muito provavelmente o ator mais versátil de sua geração. Sua presença de cena no momento que ele se apresenta para o Duque Leto é impressionante. Tanto Zendaya quanto Bardem estarão mais presentes na segunda parte de DUNA. Ou seja, a segunda parte tem tudo para ser tão boa ou melhor que a primeira. Outros coadjuvantes de peso no filme são vividos por Dave Bautista, Jason Mamoa, Stellan Skarsgård, Chang Chen e Charlotte Rampling. Um elenco impressionante.

Algo que chama muito a atenção em DUNA é o quanto ele possui imagens escuras. Isso pode incomodar a muitos, mas me pareceu bastante interessante. Por isso é importante escolher uma excelente sala de cinema de sua cidade (se for uma IMAX, melhor ainda) para aproveitar a grandiosidade épica do filme. E é bom também já ir preparado para uma narrativa mais lenta e não algo frenético como MAD MAX – ESTRADA DA FÚRIA, para citar outro grande filme que se passa em um deserto. Villeneuve opta pelo tom solene, pela tensão de quem chega em um planeta muito perigoso. Se lembrarmos do tipo de tensão que Villeneuve usou em filmes tão distintos quanto OS SUSPEITOS (2013) e SICARIO – TERRA DE NINGUÉM (2015), podemos ficar tranquilos: DUNA está em boas mãos.

+ DOIS FILMES

ESPÍRITOS OBSCUROS (Antlers)

Certamente se o próprio Guillermo Del Toro tivesse dirigido ESPÍRITOS OBSCUROS (2021) o resultado seria bem mais interessante. Scott Cooper não tinha nenhuma intimidade com o gênero horror até então, o que não quer dizer que não funcionasse em sua primeira vez, mas me parece que seria necessário maior domínio da atmosfera para que o filme funcionasse e não parecesse um horror genérico, por mais que haja algo de diferente no enredo, principalmente quando se aproxima da conclusão. Na trama, professora percebe um comportamento estranho em uma criança, ao mesmo tempo que terríveis assassinatos começam a aparecer na cidadezinha. O filme desde o começo flerta com a mitologia, como forma de fazer um link com o monstro, mas achei o resultado final fraco. Digo uma coisa, porém: sou a favor de passarem o filme nas escolas para mostrar o que uma professora é capaz de enfrentar.

HALLOWEEN KILLS - O TERROR CONTINUA (Halloween Kills)

David Gordon Green erra a mão nesta sequência, depois de ter feito um trabalho muito bom anteriormente. A intenção de fazer o capítulo mais sangrento, mais violento e com mais mortes de todos acaba fazendo com que a violência seja banalizada e as cenas de mortes sejam vistas com tédio. Em nenhum momento de HALLOWEEN KILLS - O TERROR CONTINUA (2021) nos preocupamos minimamente com os personagens e isso é um problema em se tratando desse tipo de filme - por mais que o subgênero já esteja desgastado, ainda é possível reinventar. O lado positivo do filme é o quanto ele também funciona melhor como uma história sobre as pessoas da cidade de Haddonfield. Tanto que vários personagens ainda crianças no filme de 1978 são trazidos de volta neste novo. Há também uma tentativa de trazer um pouco da ingenuidade do mito do bicho-papão, presente no original de Carpenter, mas nem sempre de maneira bem-sucedida. No mais, que final bagunçado e torto foi esse, hein? Parece que Gordon Green entregou para o estagiário terminar e foi embora.