domingo, novembro 21, 2021

PAIXÃO DE FORTES / PAIXÃO DOS FORTES (My Darling Clementine)



Se pensarmos em grandes cenas da história do cinema, certamente muitas passarão como flashes em nossa memória afetiva. Eu poderia citar uma infinidade aqui, mas é melhor não desviar o foco, até para não tirar os holofotes que PAIXÃO DE FORTES (1946) merece. A minha cena favorita é aquela em que Clementine (Cathy Downs) convida o então xerife Wyatt Earp (Henry Fonda) para acompanhá-lo até ao local do culto inaugural da igreja de Tombstone. Os dois caminham como se fossem marido e mulher, com a música aumentando o volume enquanto eles se aproximam. É possível sentir a imensa alegria de Earp naquele momento, e o detalhe dele jogando fora o chapéu para convidá-la para dançar é o ápice desse instante de alegria. Se fosse possível listar cenas em que a alegria se manifesta de maneira extraordinária, certamente eu incluiria essa.

Não que PAIXÃO DE FORTES seja exclusivamente um filme sobre a alegria. Na verdade, há uma intensidade de tragédias e de situações melancólicas que intensificam e misturam sentimentos de tristeza e alegria. E por mais que essa seja a minha cena favorita, nem dá para dizer que este filme de John Ford seja especificamente uma história de amor entre homem e mulher (Clementine até aparece pouco). A história de amor proposta se expande para uma relação forte de amizade entre dois homens, um homem da lei (Earp) e uma figura carismática e fora-da-lei, Doc Holliday (Victor Mature). Ford e outros autores que trataram de contar a história da parceria dessas duas lendas do Velho Oeste ajudaram a criar uma mitologia.

A história de Earp e Holliday já havia sido contada por outro grande mestre da velha Hollywood em A LEI DA FRONTEIRA, de Allan Dwan, lançado no mesmo ano que Ford apresentou sua volta aos westerns com NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS (1939). E hoje costumam dizer que PAIXÃO DE FORTES não é um filme exatamente preciso no que se refere aos fatos. Mas isso tem realmente tanta importância quando o cineasta nos dá de presente uma obra de tão rara beleza, inclusive do ponto de vista formal?

Aliás, a primeira imagem do filme já nos deixa impactados com sua beleza, com os irmãos Earp trazendo o gado sob a luz do sol que se põe. Adoro essas imagens de crepúsculos, auroras e noites de Ford. Até quando, imagino eu, dá mais trabalho de filmar, ele faz esses quadros lindos. Além do mais, temos Henry Fonda, um dos atores que melhor representam a dignidade e a bondade nos westerns americanos. Ele havia representado o fundador da nação Abraham Lincoln em A MOCIDADE DE LINCOLN (1939) e é um perfeito Wyatt Earp fordiano. (Nos extras do box Ford Essencial há alguns extras que contam um pouco da história controversa de como o verdadeiro Earp tratou de contar a própria biografia para se sair melhor na foto, mas talvez falar sobre isso tire um pouco da poesia que o filme de Ford proporciona.)

Na trama de PAIXÃO DE FORTES, Earp chega com seus irmãos para passar a noite em Tombstone. Eles pretendem levar o gado até mais a Oeste e o irmão mais novo fica tomando de conta dos bois. Earp, já na primeira noite, mostra ser muito mais corajoso que o xerife local, é convidado a ficar com o cargo, mas só aceita mesmo quando, tragicamente, descobre que o seu irmão foi morto assassinado e o gado fora roubado. Uma coisa que eu acho um pouco estranho no filme é como Wyatt se distancia cada vez mais de seus irmãos enquanto está em Tombstone. Mas isso tem mais a ver com o que é mais importante ser contado na história dentro do pouco tempo disponível. Assim, os personagens mais importantes, além de Wyatt, passam a ser Holliday, Clementine e Chihuaha (Linda Darnell), a moça bonita que é conhecida como a namorada de Holliday e que canta também no saloon.

Sobre Holliday, a escolha de um ator não tão talentoso como Mature não foi uma escolha de Ford, mas do estúdio, a Fox, ou mais exatamente do chefão Darryl F. Zanuck. De todo modo, Mature faz um trabalho decente, tanto que é muito difícil não se emocionar com a cena do “ser ou não ser”, em que Holliday e Earp entram no estabelecimento para buscar o velho ator bêbado decadente e o encontram recitando o mais famoso monólogo de Hamlet. Os irmãos Clanton estavam rindo e tentando humilhar o velho ator e Holliday, temido por todos, ordena silêncio e mais adiante demonstra seu conhecimento da obra do bardo inglês. Vale procurar o texto “Ford on Hollywood”, de João Bénard da Costa, sobre esses elementos shakespearianos e homerianos na obra de Ford.

Além do mais, do ponto de vista católico, Holliday seria o personagem da redenção, o homem que passou por situações pouco nobres, chegando a se tornar um dos homens mais perigosos do Velho Oeste, tendo matado a muitos, e por isso o fato de ele ter morrido heroicamente no famoso tiroteio do OK Corral (e não no leito da cama, por causa da tuberculose) foi uma escolha feita para redimi-lo de seus pecados e levá-lo de anti-herói controverso e carismático a herói salvador.

Agradecimentos a Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES

REGARDE LA MER

Pouco antes da estreia em longa-metragem com SITCOM (1998), François Ozon já havia dirigido vários curtas e este REGARDE LA MER (1997), um média-metragem muito bom que antecipa alguns temas que seriam abordados posteriormente na obra do diretor, como o gosto pelo suspense (gênero que ele brinca de vez em quando) e alguma estranheza nas relações humanas. A personagem de Marina de Van é ótima no modo como aborda a jovem mãe vivida por Sasha Hails e sua bebê. Ela traz um tipo de perigo e suspense que dura até o final, ainda que seja um sentimento ambíguo. Mesmo em situações em que a personagem da estranha não esteja, sua presença acaba por levar a personagem de Hails a situações perigosas ou a querer se sentir um pouco mais livre novamente. É um filme que com certeza supera vários longas feitos com mais "esmero" e luxo pelo realizador.

O ALTAR DO DIABO (The Dunwich Horror)

O filme que escolhi para homenagear Dean Stockwell foi esta adaptação de um conto de H.P. Lovecraft (uma das primeiras), dirigida por Daniel Haller, um cineasta que já havia trabalhado com outro conto do escritor, MORTE PARA UM MONSTRO (1965). No caso de O ALTAR DO DIABO (1970), temos um filme bem sintonizado com sua época, influenciado pela lisergia que dá o tom nas cenas dos aparecimentos (ou não aparecimentos) das criaturas ou monstros ou deuses ou demônios lovecraftianos. Na trama, Stockwell é um homem misterioso interessado no famoso Necronomicon, presente em uma biblioteca. Para isso, ele acaba conquistando (ou hipnotizando?) uma estudante e levando-a para sua casa, um lugar amaldiçoado pelos habitantes de sua cidade. Acho que poderia ser um filme melhor com uns 15 minutos a menos, mas talvez eu precise lembrar que na era dos hippies a pressa não era exatamente uma virtude.

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