sábado, novembro 06, 2021

MARIGHELLA



Finalmente MARIGHELLA (2019), de Wagner Moura, estreia nos cinemas! O local ideal para vê-lo. O filme sofreu com censura, problemas burocráticos envolvendo a Ancine (o que pode ser a mesma coisa), a pandemia, vazamento de uma cópia e muito se especulava se algumas redes de cinema, supostamente bolsonaristas, não topariam exibi-lo. Para nossa alegria, o filme foi lançado em diversas salas de cinema, tanto as de multiplex, quanto os cinemas de rua ou os que exibem filmes mais arthouse e já é o filme brasileiro mais visto em 2021 nos cinemas.

Pode não ser o filme perfeito que gostaríamos, mas é de uma intensidade e uma paixão que encantam. Há coisas que eu cortaria, algumas falas, mas são poucas. No balanço geral não chega a prejudicar. Do jeito como foi pensado e realizado o filme é tanto um thriller muito tenso sobre um grupo de poucas pessoas que lutam perigosamente contra um sistema gigante e poderosíssimo, quanto um registro necessário para estes tempos de fascismo vigente.

Sobre o fato de o grupo comandado por Carlos Marighella (Seu Jorge) ser muito pequeno, isso chegou a ser alvo de críticas, mas me pareceu interessante ver aquelas pessoas ou como heróis ou como suicidas, já que, ao longo do filme, vamos vendo a queda (morte) de vários deles. Ao mesmo tempo, é poderoso o momento em que Marighella diz, após sofrer tantas derrotas: “a gente não vai parar”, ou quando ele diz, depois de ser acusado de ser terrorista, que as pessoas, especialmente seus inimigos, vai ter terror sim.

São poucos os momentos do filme em que vemos vitórias do pequeno grupo de Marighella. O maior problema para eles estava na dificuldade de furar a censura. Isso já fica muito claro na cena em que o delegado Lúcio, vivido por um Bruno Gagliasso quase enfeiado para o papel, diz o que um jornalista deve escrever após a ação do grupo de revolucionários a um banco. Isso, em seguida, é ainda mais enfatizado e por isso uma vitória como a invasão via ondas de rádio nos parece tão preciosa. 

Foi muito feliz da parte de Moura optar pela câmara rente aos corpos de seus personagens. Isso, além de esconder as limitações da produção, faz com que o filme adquira um tom urgente muito interessante. A própria fala de Marighella de que ele não tem tempo para ter medo, por mais que pareça pouco natural, combina com esse espírito urgente. E a cena de amor entre Marighella e a personagem de Adriana Esteves, momentos antes de ele ser assassinado pelos policiais, já deixa claro que cada instante vivido é especial.

Também muito feliz o filme ter uma cena de assalto a um trem ao som de “Banditismo por uma Questão de Classe”, de Chico Science & Nação Zumbi. A escolha de uma canção dos anos 1990 não deixa o filme nos anos 1960/70. Além do mais, essa é uma daquelas canções transgressoras, que exalta um fora-da-lei como Lampião e apresenta a polícia como uma instituição que mata gente inocente. Sem falar nos tambores e nos riffs poderosos de guitarra. Tudo isso arrepia, combinando com o estilo de filme de ação que Moura adota.

Ao fazer um filme político e popular, como foram os dois "Tropas" de José Padilha, ou certos filmes políticos brasileiros dos anos 1970, ele convida uma grande plateia para comungar com a experiência de seu cinema de corpo. E são muitos os corpos ensanguentados e sofridos, inclusive. E por mais que o diretor pudesse ter optado por cenas ainda mais violentas, levando em consideração o grau de brutalidade das técnicas de tortura da polícia, o recorte que vemos já é suficiente para deixar nosso sangue intoxicado.

No mais, Wagner Moura não poupa seus personagens. Todos eles têm suas falhas e muitas delas dependem do julgamento do espectador. Optar pela luta armada é tanto um ato de intensa coragem quanto um ato de desespero ou talvez pura burrice – isso é discutido em uma cena envolvendo os líderes comunistas, como os personagens de Luiz Carlos Vasconcelos e Herson Capri. O elenco mais jovem também está uma beleza, em especial Humberto Carrão e Bella Camaro. A juventude dos atores traz mais dinamismo para as cenas de ação.

Ao optar por um filme que aposta mais na ação do que na historicidade, Moura pode não agradar a muitos. Mas foi uma escolha que, com certeza, resultou em um filme bem poderoso. Além do mais, para quem é brasileiro, muitas coisas ficam nas entrelinhas e desnecessárias que sejam tão explicadas em um filme que pretende fazer um recorte muito específico da vida de um dos homens mais importantes da resistência durante os anos de chumbo da ditadura civil-militar no Brasil.

+ DOIS FILMES

BAGDÁ VIVE EM MIM (Baghdad in My Shadow)

O fato de BAGDÁ VIVE EM MIM (2019) ser dirigido por um iraquiano de nome Samir (acho estranho não ter um sobrenome) ajuda a aceitarmos a simplicidade e o modo como há poucos tons de cinza nos personagens. Mas certamente é um filme bem-vindo, ao mostrar um grupo de iraquianos residentes em Londres que ainda sofrem com problemas relativos à intolerância, seja ela de gênero, de orientação sexual ou até de opção por se distanciar da religião islâmica. A trama é um pouco complicada, a princípio, mas vai logo ficando bem clara, à medida que o filme se aproxima da conclusão.

WHAT DO WE SEE WHEN WE LOOK AT THE SKY? (Ras Vkhedavt, Rodesac Cas Vukurebt?)

Um filme bem desconcertante este WHAT DO WE SEE WHEN WE LOOK AT THE SKY? (2021), de Alexandre Koberidze. É, ao mesmo tempo, bastante moderno, mas também utiliza muitas técnicas herdadas do cinema mudo, além da própria tradição da literatura oral dos contos de fadas. Pode frustrar quem procura uma história de amor nos moldes tradicionais, pois na verdade não é, embora o ponto de partida e o esqueleto da trama sejam, já que lidam com um amor impossibilitado por uma maldição, um feitiço, ainda que seja um feitiço sem uma explicação. Mas isso não importa, na verdade. É curioso o modo como o filme parece largar seus personagens principais, o casal de apaixonados, em determinado ponto para se estruturar em um modelo de narrativa mais lenta e mais desapegada à trama, ou inserindo uma outra trama, de um casal de fotógrafos. Destaco uma bela cena de adolescentes jogando futebol. Talvez a mais bonita. Gosto também do senso de humor, nas poucas cenas que tentam trazer os cachorros como também entusiastas do futebol e da Copa do Mundo. Aliás, Messi e os argentinos estão bem populares lá pelos lados da Geórgia, hein.

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