domingo, dezembro 31, 2017

TOP 20 2017 E O BALANÇO DO ANO

1. APESAR DA NOITE, de Philippe Grandrieux
2. PERSONAL SHOPPER, de Olivier Assayas
3. A CRIADA, de Chan-wook Park
4. JOHN WICK - UM NOVO DIA PARA MATAR, de Chad Stahelski

5. SIERANEVADA, de Cristi Puiu
6. PATERSON, de Jim Jarmusch
7. EM RITMO DE FUGA, de Edgar Wright
8. COLO, de Teresa Villaverde

9. CORRA!, de Jordan Peele
10. LA LA LAND - CANTANDO ESTAÇÕES, de Damien Chazelle
11. MANCHESTER À BEIRA-MAR, de Kenneth Lonergan
12. A MORTE DE LUÍS XIV, de Albert Serra

13. FRANTZ, de François Ozon
14. JOVEM MULHER, de Léonor Serraille
15. TONI ERDMANN, de Maren Ade
16. COLUMBUS, de Kogonada

17. LADY MACBETH, de William Oldroyd
18. JACKIE, de Pablo Larraín
19. DETROIT EM REBELIÃO, de Kathryn Bigelow
20. SILÊNCIO, de Martin Scorsese

Menções honrosas

NA VERTICAL, de Alain Guiraudie
120 BATIMENTOS POR MINUTO, de Robin Campillo
BLADE RUNNER 2049, de Denis Villeneuve
BOM COMPORTAMENTO, de Bennie e Josh Safdie
FRAGMENTADO, de M. Night Shyamalan
LUCKY, de John Carroll Lynch
AS DUAS IRENES, de Fabio Meira
BEDUÍNO, de Júlio Bressane
BINGO, O REI DAS MANHÃS, de Daniel Rezende
EU NÃO SOU SEU NEGRO, de Raoul Peck

Fora de competição


TWIN PEAKS - O RETORNO, de David Lynch e Mark Frost



Mantendo ainda a minha tradição, os melhores do ano acima correspondem a filmes contemporâneos vistos exclusivamente nos cinemas no ano corrente. Por isso, não estranhem a presença do romeno SIERANEVADA, de Cristi Puiu, que é um desses filmes que parece que nada acontece, em uma reunião de família. Só houve duas exibições em Fortaleza. Uma no final de 2016 e outra na mostra Retrospectiva/Expectativa. 

Também não estranhem a ausência de TWIN PEAKS - O RETORNO, o grande evento audiovisual do ano, que muitos veículos de respeito estão colocando como melhor filme de 2017. Eu até já votei nele no prêmio do Cinema na Varanda como melhor filme do ano, mas isso porque as regras permitiam. E porque não houve nada mais impactante que o retorno do nosso querido Lynch depois de um longo hiato. Para nossa sorte, Lynch nunca esteve em melhor forma e tão inspirado.

Lynch está presente também no trabalho de alguns de seus seguidores. Muito provavelmente, o maior deles seja o ainda pouco conhecido Philippe Grandrieux, cujo APESAR DA NOITE possui inúmeros elementos claramente lynchianos. Até mesmo a dúvida se se trata de um filme de horror ou não está presente, embora seja ao mesmo tempo um filme que transborda amor e cheira a medo, muito medo.

Falando em medo, outro filme francês se destacou em nosso circuito. PERSONAL SHOPPER, de Olivier Assayas, é a segunda parceria do diretor com Kristen Stewart, e desta vez ele preferiu investir em menos texto e mais atmosfera. Muito amor para este filme. O horror também esteve presente em outras obras fantásticas, sendo o grande destaque, inclusive nas premiações, CORRA!, de Jordan Peele, que lida com a questão do racismo de maneira genial.

Dois dos melhores filmes de ação da década despontaram este ano também: JOHN WICK - UM NOVO DIA PARA MATAR, de Chad Stahelski, e EM RITMO DE FUGA, de Edgar Wright. São dois trabalhos bem distintos: um mais herdeiro do cinema de ação de Hong Kong; outro que brinca com o gênero musical, inserindo canções dentro das sequências de ação de forma linda.

Mas já que falei de musical, não há como esquecer de LA LA LAND - CANTANDO ESTAÇÕES, de Damien Chazelle, uma tocante homenagem ao gênero, tanto o produzido nos Estados Unidos até os anos 1950, quanto às belíssimas realizações francesas dos anos 1960. Detalhe: precisei ver uma segunda vez para perceber a real beleza do filme e das canções.

Neste ano de 2017, a tensão esteve no ar. E pudemos lamber os dedos com ela em obras tão distintas quanto A CRIADA, de Chan-wook Park, e DETROIT EM REBELIÃO, de Kathryn Bigelow. O primeiro contém uma trama cheia de intrigas e que ainda traz a melhor cena de sexo do ano do cinema mainstream; o segundo é um estudo sobre o mal e o racismo nos Estados Unidos dos anos 1960. Toda a enorme sequência de tensão dentro do hotel é de deixar os nervos de qualquer um em frangalhos.

Bigelow, aliás, não foi a única diretora mulher a se destacar neste ano. Podemos até dizer, sem fazer muita pesquisa, que 2017 foi o ano em que mais tivemos filmes dirigidos por mulheres abrilhantando nosso circuito. Alguns dos melhores exemplos são COLO, de Teresa Villaverde, TONI ERDMANN, de Mare Aden, e JOVEM MULHER, de Léonor Serraille. São três filmes com uma sensibilidade muito apurada no trato com questões familiares e de busca de independência.

Falando em mulheres, dois filmes apresentaram retratos femininos admiráveis e que fogem à regra do que geralmente é visto: LADY MACBETH, de William Oldroyd; e JACKIE, de Pablo Larraín. Um suspense e um retrato de uma mulher real em registro de tensão.

Quanto aos personagens masculinos, podemos destacar Adam Driver (o grande ator de sua geração) em PATERSON, de Jim Jarmursch, no papel de um poeta motorista de ônibus com uma rotina de vida bem regrada; e um envelhecido Jean-Pierre Léaud como um monarca em seus últimos dias em A MORTE DE LUÍS XIV, de Albert Serra.

As histórias de amor tortas e que doem um bocado no coração também estiveram presentes. Podemos citar como exemplos FRANTZ, de François Ozon, e COLUMBUS, de Kogonada. E houve espaço também para histórias de dilaçeramento da alma, como é o caso de MANCHESTER À BEIRA-MAR, de Kenneth Lonergan. Já a devoção à fé pôde ser vista no admirável SILÊNCIO, de Martin Scorsese.

Top 5 Piores do Ano 

Como eu evitei muitas tranqueiras, segue apenas alguns que eu dei um voto de confiança e que não me retribuíram com nada além de desgosto, aqui, sem os nomes dos culpados:

1. A GRANDE MURALHA
2. ASSASSIN'S CREED
3. KINGSMAN - O CÍRCULO DOURADO
4. A TORRE NEGRA
5. O RASTRO

As séries e minisséries

Vi bem menos séries e minisséries do que no ano passado. Parece que isso é uma tendência e não me importo muito com isso, na verdade. 2017 foi o ano que eu mais desisti de séries que eu acompanhava. Chega uma hora que não dá mais. Os destaques:

1. TWIN PEAKS - O RETORNO (afinal, é série ou é filme? :))
2. THE MARVELOUS MRS. MAISIE - PRIMEIRA TEMPORADA
3. TOP OF THE LAKE - CHINA GIRL
4. MINDHUNTER - PRIMEIRA TEMPORADA
5. GIRLS - SEXTA TEMPORADA
6. BETTER CALL SAUL - TERCEIRA TEMPORADA
7. MOZART IN THE JUNGLE - TERCEIRA TEMPORADA
8. HOMELAND - SEXTA TEMPORADA
9. MR. ROBOT - TERCEIRA TEMPORADA
10. GAME OF THRONES - SÉTIMA TEMPORADA

Top 5 Musas do Ano

A seção mais polêmica do balanço anual segue meio tímida, mas ainda com muita vontade de exaltar o encantamento dos rostos (e corpos) femininos.

1. Gal Gadot - MULHER MARAVILHA + LIGA DA JUSTIÇA
2. Marion Cotillard - ALIADOS + ROCK'N ROLL - POR TRÁS DA FAMA + UM INSTANTE DE AMOR
3. Roxane Mesquida - APESAR DA NOITE

4. Kim Min-hee - A CRIADA + NA PRAIA À NOITE SOZINHA
5. Stacy Martin - O FORMIDÁVEL

Clássicos Revisitados (ou vistos pela primeira vez) na telona 

, de Federico Fellini
A BELA DA TARDE, de Luis Buñuel
CIDADE DOS SONHOS, de David Lynch
DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS, de Jacques Demy
EL TOPO, de Alejandro Jodorowsky
FITZCARRALDO, de Werner Herzog
HIROSHIMA MEU AMOR, de Alain Resnais
LAÇOS DE SANGUE, de Ida Lupino
NOSFERATU, O VAMPIRO DA NOITE, de Werner Herzog
O MUNDO É O CULPADO, de Ida Lupino
O MUNDO ODEIA-ME, de Ida Lupino
S. BERNARDO, de Leon Hirszman

Top 20 vistos (pela primeira vez) na telinha (em ordem alfabética) 

32 DE AGOSTO NA TERRA, de Denis Villeneuve
A GHOST STORY, de David Lowery
A UM PASSO DA LIBERDADE, de Jacques Becker
AS IRMÃS DE GION, de Kenji Mizoguchi
ARIELLA, de John Herbert
BEIJO NA BOCA, de Paulo Sérgio de Almeida
CERTAS MULHERES, de Kelly Reichardt
EU MATEI LÚCIO FLÁVIO, de Antônio Calmon
GERMAN CONCENTRATION CAMPS FACTUAL SURVEY/ MEMORY OF THE CAMPS, de Alfred Hitchcock e Sidney Bernstein
GRAVE, de Julia Docournau
HOMEM COMUM, de Carlos Nader
METROPOLITAN, de Whit Stillman
MUITO PRAZER, de David Neves
NÃO MATARÁS, de Ernst Lubitsch
O DESEJO, de Walter Hugo Khouri
OS DEMÔNIOS, de Ken Russell
QUEM AMA NÃO TEME, de Ida Lupino
THE DEVIL'S CANDY, de Sean Byrne
TODAS AS MULHERES DO MUNDO, de Domingos de Oliveira
TWIN PEAKS - THE MISSING PIECES, de David Lynch

Revisões na telinha 

A NOITE DOS MORTOS-VIVOS, de George A. Romero
BLADE RUNNER, O CAÇADOR DE ANDRÓIDES, de Ridley Scott
FILHOS E AMANTES, de Francisco Ramalho Jr.
IMPÉRIO DOS SONHOS, de David Lynch
O FANTASMA DO FUTURO, de Mamoru Oshii
O TURISTA ACIDENTAL, de Lawrence Kasdan
PARIS, TEXAS, de Wim Wenders
RELÍQUIA MACABRA / O FALCÃO MALTÊS, de John Huston
TRAINSPOTTING - SEM LIMITES, de Danny Boyle
TWIN PEAKS - OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER, de David Lynch

Feliz 2018! 

Antes de receber o ano que virá é sempre bom agradecer pelo ano que passou. Por mais que 2017 tenha sido difícil. Bem mais difícil do que foi o anterior e o anterior e o anterior etc.. Estar vivo para contar a história é sempre uma dádiva. Até porque dentro das dificuldades também temos histórias boas para contar. Há muito o que melhorar em minhas atitudes e na forma como eu me vejo e vejo o mundo, mas a gente está neste mundo para aprender, não é? Quero agradecer aos amigos presentes de alguma maneira, aos familiares que foram uma fortaleza em muitos momentos de fragilidade, a Deus que está sempre por perto. E ao motivo de eu escrever isso aqui, o cinema.

O cinema, em boa parte das vezes, foi o maior motivo de eu me sentir vivo e feliz. Com os filmes nos tornamos pessoas melhores, adentrando histórias múltiplas e personagens dos mais diversos, nos tornamos meio que filósofos da existência e da arte também. Peço desculpas aos amigos que precisaram de mim e eu não pude estar presente por egoísmo ou por cansaço ou por motivos de desenergização, que foi a tônica neste ano. Quem sabe no próximo ano tudo isso mude, de preferência para melhor, não é? O que não houve de viagens e de amores em 2017 pode ser compensado no ano que virá. E se não rolar nada disso, há sempre os filmes, os livros, os discos e os grandes amigos. Obrigado por tudo e até o próximo ano.

sábado, dezembro 30, 2017

MR. ROBOT - TEMPORADA 3 (Mr. Robot - Season 3)

A segunda temporada de MR. ROBOT foi tão confusa e cheia de perguntas que ficaram no ar (se é que dava pra fazer perguntas a certa altura) que o criador Sam Esmail e seus parceiros de crime só tinham mesmo que responder várias destas nesta terceira temporada (2017), que é bem mais acessível. Por mais que seja decepcionante se comparada à sensacional primeira temporada, esta terceira consegue diminuir um pouco da estranheza e dos planos muito distantes e focar na trama e em momentos de suspense.

Melhor exemplo não há do que no episódio 5 ("eps3.4_runtime-error.r00"), que tem um longo plano-sequência que nos deixa zonzos e maravilhados. No tal episódio, Elliot acorda desmemoriado, já que ele virou uma espécie de Dr. Jeckyl na comparação com O Médico e o Monstro. Agora, sua intenção é evitar que o estágio 2, que tudo indica que será a explosão do prédio da ECorp em Nova York, se concretize, segundo os supostos planos da Dark Army, que talvez tenham sido planejados pelo seu alter-ego do mal Mr. Robot. É um baita de um episódio, sem dúvida.

Depois desse, a temperatura esfria um pouco, mas novidades não faltam na temporada. Há um episódio dedicado exclusivamente a Tyrell. Finalmente ficamos sabendo todos os detalhes de seu desaparecimento. Assim, é um episódio que volta no tempo para os eventos que ficam num limbo entre a temporada 1 e a 2. Tyrell não é o mais simpático dos personagens, além de ser um assassino frio, mas neste episódio ele ganha um pouco mais de simpatia, até pelo sofrimento por que passa. Nisso vale destacar o excelente trabalho de Bobby Cannavale, no papel de um homem cruel que está pronto para limpar toda a sujeira que a Dark Army executa. Grande papel.

Já Grace Gummer, como a agente do FBI Dominique DiPierro, continua sendo uma ótima escolha e uma das melhores aquisições desde a temporada passada. Seus melhores momentos são nos episódios finais: o primeiro deles em uma cena íntima com Darlene (Carly Chaikin); e o segundo no episódio em que ela descobre o traidor no FBI, a pessoa que estava trabalhando com a Dark Army. O episódio é tenso e é um dos poucos momentos em que nos importamos com os personagens, coisa que estava sendo um problema até então, dado o distanciamento com a que a série parece tratar seus personagens e seu próprio enredo. Talvez por sua intenção em parecer ousado na forma.

Mas o que importa é que a série termina de maneira bem satisfatória e com um espaço para novos horizontes e possibilidades para os personagens principais, Elliot (Rami Malek), Angela (Portia Doubleday), Darlene e agora também uma amarga agente Dom. Christian Slater como o Mr. Robot continua apenas ok, mas como ele é um personagem necessário para a série, não dá para descartar de jeito nenhum. Coisa que pode muito bem ser feita com Tyrell. Os chineses da Dark Army também já encheram o saco e poderiam ser deixados de lado por novos antagonistas.

Aliás, ainda acho uma pena que a série tenha abdicado de seu lado transgressor e anticapitalista. Estava bom demais para ser verdade. Mas é o preço de uma revolução e da maturidade que ela traz quando muitas pessoas são prejudicadas com os atos.

sexta-feira, dezembro 29, 2017

RODA GIGANTE (Wonder Wheel)

A década de 2010 não começou muito promissora para Woody Allen. Seu filme daquele ano, VOCÊ VAI CONHECER O HOMEM DOS SEUS SONHOS (2010), é uma de suas obras mais apagadas e esquecíveis. Mas eis que ao menos dois títulos costumam ser lembrados como dois dos melhores de sua fase recente, MEIA-NOITE EM PARIS (2011) e BLUE JASMINE (2013), embora seja digno de nota seu filme mais romântico em muitos anos, um dos poucos que seguem uma linha mais alto astral, fugindo do amargo da vida: MAGIA AO LUAR (2014).

Mas é com BLUE JASMINE que o novo filme, RODA GIGANTE (2017), dialoga melhor dentro do corpo de sua obra, tanto pelo teor amargo quanto pelo texto, que valoriza suas protagonistas. Trata-se de um filme que namora o teatro não apenas na dramaturgia, mas também nas próprias citações (Eugene O'Neill, Shakespeare, Tchekov, a tragédia grega etc.).

Porém, por mais que o texto esteja em um dos primeiros planos, há a fotografia deslumbrante de Vittorio Storaro, que explora lindamente a luz. A luz do parque de diversões que ilumina o quarto de Ginny (Kate Winslet), a luz do sol que traz um tom alaranjado para a Coney Island dos anos 1950, e até mesmo as luzes mais diáfanas, como as luzes da noite, como em uma cena em que Ginny está com o amante (Justin Timberlake) à luz das estrelas e da lua e em certo momento a luz diminui. São pequenos detalhes que valem ser percebidos em apreciações seguintes do filme.

Quanto à Kate Winslet, ela está fantástica. É uma de suas melhores atuações e só não deve ser lembrada nas premiações por ocasião da atual caça às bruxas, que não está sendo um bom negócio para Woody Allen e quem quer que esteja envolvido com ele. De todo modo, independente de premiações, o que conta mesmo é o impacto de seu desempenho como uma garçonete infeliz no casamento que encontra na figura de um rapaz mais jovem que ela, um salva-vidas, a razão para voltar a ter esperança no futuro.

Acontece que o rapaz, Mickey, não entra na relação com tanto ímpeto quanto ela. Para ele, trata-se mais de uma relação que é curtida sem necessariamente ter um comprometimento. As coisas ficam ainda mais turvas para Mickey quando ele passa a ficar interessado na enteada de Ginny, a jovem Carolina (Juno Temple), que vai para Coney Island fugida dos mafiosos. Ela havia casado, para desgosto do pai (Jim Belushi), com um mafioso perigoso. Mickey, por sua vez, considera a história de vida de Carolina muito interessante. Ela viveu a vida intensamente, mesmo sendo tão jovem, segundo ele. Sua visão é de alguém que vê a vida como uma peça, ou como algo próximo de uma encenação. Pena o filme não aprofundar mais essas questões, mas no começo, em diálogo com Ginny, ele fala sobre a questão do destino em oposição aos atos e escolhas de cada pessoa.

No sentido de que se trata também de um filme sobre amor e desamor, RODA GIGANTE também dialoga com o título anterior de Allen, CAFÉ SOCIETY (2016). Ambos são contos de época sobre pessoas que se apaixonam, mas que percebem que seus objetos de desejo não estão tão à disposição quanto elas gostariam. A cena do relógio em RODA GIGANTE é uma das mais dolorosas. Nada nos prepara, porém, para o desfecho: sutil e ao mesmo tempo carregado de força cinematográfica e teatral.

quarta-feira, dezembro 27, 2017

O MUNDO ODEIA-ME (The Hitch-Hiker)



Em um ano em que pudemos conferir, por olhos masculinos, a ascensão do mal na sociedade no evento audiovisual TWIN PEAKS - O RETORNO, de David Lynch e Mark Frost, que expõe atos terríveis praticados por homens principalmente às mulheres, numa visão triste e pessimista da crescente violência que bateu à nossa porta, é no mínimo curioso, no calor deste 2017 (ano em que tantas questões de cunho social surgiram), poder (re)ver e pensar um filme de Ida Lupino, a mais importante diretora de cinema da velha Hollywood, num trabalho que trata justamente da violência masculina.

Lupino, atriz que esteve em alta no auge do film noir em trabalhos como SEU ÚLTIMO REFÚGIO (1941), de Raoul Walsh, e CINZAS QUE QUEIMAM (1951), de Nicholas Ray, construiu uma sólida carreira como diretora em mais de 40 títulos, entre longas-metragens e episódios para séries de televisão. O filme aqui em discussão é THE HITCH-HIKER, que no Brasil recebeu o desagradável título O MUNDO ODEIA-ME (1953).

Depois de quatro filmes protagonizados por mulheres, Lupino corroteiriza e dirige seu primeiro trabalho com protagonistas homens. Quase não há mulheres em cena em O MUNDO ODEIA-ME. O que vemos é principalmente um estudo tenso em torno de três homens, com direito a muitos close-ups e aproximações de câmera dos rostos masculinos. A primeira aproximação do rosto do criminoso pela câmera é inesquecível: depois de revelada a arma na mão em rápidas sequências de campo e contracampo dentro do carro, a câmera se move até o personagem, que sai da escuridão para a luz, no belo trabalho de direção de fotografia de Nicholas Musuruca (o mesmo de FUGA AO PASSADO e SANGUE DE PANTERA).

O MUNDO ODEIA-ME é baseado no caso real de um serial killer, William Cook, que matou seis pessoas que lhe deram carona nos Estados Unidos e no México em 1950. Depois de capturado, Cook foi condenado à morte pela justiça americana e enviado à câmara de gás, três meses antes do lançamento do filme de Lupino.

O nome do psicopata é mudado no filme, assim como seu destino final. Na versão cinematográfica, o criminoso se chama Emmett Myers (William Talman) e possui uma característica física curiosa: devido a uma pálpebra que não fecha, ele permanece com um dos olhos sempre aberto, elemento muito bem utilizado em uma tensa cena de tentativa de fuga.

Na trama, dois amigos, Roy Collins (Edmond O’Brien) e Gilbert Bowen (Frank Lovejoy), viajam para pescar em uma cidade litorânea distante de seus lares, dando a entender que aquela viagem seria uma espécie de fuga do ambiente doméstico. No caminho, perto da fronteira do México, resolvem dar carona a um sujeito que parecia estar com o carro sem gasolina. Logo descobrem, porém, que o homem não é nada amistoso e apresenta uma arma apontada para eles no banco de trás do carro. Os dois homens ajudarão o psicopata a chegar a seu destino, mas ambos não sabem se sairão vivos dessa jornada.

Um dos aspectos mais admiráveis de O MUNDO ODEIA-ME é a narrativa dinâmica, que em apenas 70 minutos de filme é capaz de mexer com os nervos do espectador, trazendo um clima de tensão que não envelheceu nada com o passar dos anos. Bastam sete minutos iniciais para que a situação (o assassino se revelando de imediato no banco de trás do carro e o aprisionamento dos dois homens àquele sujeito) já se estabeleça.

O modo como Myers, o psicopata, é apresentado, do ponto de vista físico, o aproxima de um monstro, em certo sentido, ainda que um pouco disso se dê através de uma deformidade genética: o fato de Myers não conseguir fechar um dos olhos. Myers é resquício da visão dos psicopatas apresentados no cinema nas décadas de 1940, mais masculinos, diferente de um Norman Bates e seu apego com a mãe (ainda que morta), vagamente efeminado e com certa fragilidade física, passando a impressão de ser inofensivo, em PSICOSE (1960), de Alfred Hitchcock.

Myers é um homem que faz questão de mostrar sua masculinidade, sua crueldade e sua total falta de respeito às leis e às instituições, embora encare a busca dos homens por outras mulheres como fraqueza. Possui fascinação pela própria arma, sempre apontada para os dois reféns, noite e dia, e quase sempre olhando para ela, como fascinado pelo próprio pênis (ou por outro pênis que carrega). Aprecia jogos de sadismo, como o do tiro ao alvo com o rifle e uma latinha, e diverte-se com a crescente perda de controle psicológico das duas vítimas.

Lupino também faz um estudo da amizade dos dois homens, embora não tão terno quanto os bromances dos filmes de Howard Hawks, cineasta contemporâneo da diretora. A amizade masculina de Collins e Bowen contrasta com a preferência de viver longe da sociedade de Myers, de sua maneira de ver a vida como algo a ser roubado, pois presente nenhum jamais lhe foi dado. Eis, aliás, um dos motivos da criação do título brasileiro, que parece querer mostrar um pouco de solidariedade ao vilão, uma tarefa até difícil de alimentar, levando em consideração personagem tão execrável. Que o digam Collins e Bowen, que passaram dias ao lado de uma pessoa que pode ser vista como uma das mais terríveis manifestações do mal.

Texto publicado originalmente no site da Mostra Ida Lupino - Subversão e Resiliência. 

terça-feira, dezembro 26, 2017

O REI DO SHOW (The Greatest Showman)

A cota de filmes musicais bem que poderia ser maior, levando em consideração o sucesso de LA LA LAND - CANTANDO ESTAÇÕES. E eis que aparece um filme que está se autopromovendo com os nomes de dois músicos que compuseram as letras do filme de Damien Chazelle. Mas acontece que Benj Pasek and Justin Paul não fizeram as belas canções do filme de Chazelle, apenas as letras. E isso faz alguma diferença, pois as canções de O REI DO SHOW (2017), por mais que sejam grudentas, não são nada especiais. Ainda assim, não dá para negar a bela produção do filme do estreante Michael Gracey.

Também não incomoda tanto a história simples. Em geral, as histórias de musicais são simples mesmo. O que importa é o modo como essa história é contada a partir de um bom conjunto de canções que deveriam emocionar. Mas, por mais que as mentes por trás de O REI DO SHOW tenham preferido um tipo de sonoridade que se aproxima da música pop contemporânea, eles acabaram se inspirando no que de pior há nessa música pop. Ou seja, o que vemos é aquele tipo de música que se costuma ser vista em programas de calouros, desses que valorizam mais a extensão vocal do que qualquer outra coisa.

Além do mais, a cafonice dá o tom em O REI DO SHOW, que conta uma história até bastante curiosa, que é a da trajetória de P.T. Barnum, vivido por Hugh Jackman. Ele foi um sujeito que veio de família muito pobre, mas que era apaixonado por uma menina rica de sua cidade. Ele cresce, consegue se estabelecer financeiramente e leva a garota (Michelle Williams) consigo, para desgosto do pai da moça.

A ideia de construir um circo com pessoas singulares, que eram vistas como aberrações por boa parte da população da cidade, veio quando ele viu um anão atravessando a rua. O curioso é que hoje em dia tratar desse tema é até um pouco tabu, já que vender essas pessoas pelos seus "defeitos" ou singularidades não é tido com bons olhos, como pudemos ver em filmes que mostram a exploração perversa de tipos físicos, como VÊNUS NEGRA e HOMEM-ELEFANTE.

Até os animais, que hoje não são mais utilizados em circos, são praticamente escondidos do filme. São assuntos delicados, mas que são abordados até de maneira esperta, como mostrar essas pessoas como sendo especiais, no melhor sentido da palavra, além de dignas de aplausos, mesmo não sendo muito bem-vistas pelo crítico de teatro que teima em alfinetar o espetáculo de Barnum. Há algumas subtramas até que boas, como a da paixão do ator de teatro vivido por Zac Efron (que deveria se concentrar apenas em comédias mesmo) pela trapezista (Zendaya), mas a mais importante das subtramas mesmo é a que envolve a mulher que é considerada a melhor cantora da Europa, Jenny Lynd, vivida por uma deslubrante Rebecca Ferguson.

A atriz, aliás, está tão atraente e cheia de brilho que nem precisa se esforçar muito para parecer mais interessante do que a esposa de Barnum - o que aconteceu com Michelle Williams, que vive estampando agora um sorriso sem graça? Ela sempre foi assim ou foi piorando? Acontece que o filme também estraga o perigo do adultério, de Barnum ter um caso com essa mulher bela. Há um pouco (muito pouco) de tensão no ar, mas o filme prefere brincar com clichês manjados. As canções, em vez de ajudar, entrecortando as cenas dramáticas, acabam por estragar ainda mais.

De todo modo, O REI DO SHOW deve conseguir chamar a atenção de boa parte do público, além de ter conseguido uma vaga fácil no Globo de Ouro, devido ao aspecto musical. O filme ganhou indicações nas categorias de melhor filme (comédia ou musical), melhor ator (comédia ou musical) para Hugh Jackman e melhor canção para "This is me".

sexta-feira, dezembro 22, 2017

LUCKY

Pode até não parecer, mas a trajetória de Harry Dean Stanton perpassou da metade da história do cinema americano. Atuando desde os anos 1950, no cinema e na televisão, o ator hoje é lembrado principalmente por aquele que é o papel de sua vida, o do solitário e atormentado Travis Henderson, de PARIS, TEXAS, de Wim Wenders, um dos filmes mais belos já feitos. Muitos (eu, inclusive) tiveram a oportunidade de rever por ocasião da morte do ator, em setembro deste ano, como uma homenagem.

LUCKY (2017), de John Carroll Lynch, é uma espécie de filme-testamento do ator. O personagem, um senhor de 90 anos que é veterano da Segunda Guerra Mundial, foi totalmente inspirado em Dean Stanton. Afinal, assim como o personagem, o ator nunca casou, nunca teve filhos (não que ele saiba), começou a fumar desde muito cedo, e também serviu, como cozinheiro, durante a Segunda Guerra Mundial.

Logo, Stanton acaba por interpretar a si mesmo em LUCKY, este filme que parece tão pequeno em suas pretensões, mas que alcança uma dimensão poética impressionante. Na trama, Lucky é um homem velho que vive em uma cidade do interior que mais parece uma cidade fantasma e que descobre, depois de um desmaio, que seu corpo está começando a dar sinais de que pode chegar ao fim. Vemos muitos espaços vazios, desertos, além de bares e restaurantes. Alguns desses lugares se repetem ao longo da narrativa, como que para acentuar a rotina de vida pouco excitante de Lucky.

Essa carência de poucas emoções, ou mesmo de pouca energia para desperdiçar, talvez seja um dos segredos da longevidade de Lucky, junto com o apego à sua vida simples e aos pequenos prazeres que sua vida lhe proporciona. E haja simplicidade em sua vida: as únicas coisas que Lucky abastece no mercadinho são cigarros e caixas de leite. O café é tomado na lanchonete, espaço em que ele é tratado como uma espécie de alguém da família naquela cidade onde todo mundo se conhece.

Importante, gostoso e enriquecedor ter no filme a participação especial do amigo David Lynch, interpretando alguém muito parecido com o Gordon de TWIN PEAKS. Lynch e Stanton trabalharam juntos em diversos filmes. Na nova temporada da série, inclusive, ele aparece em cinco episódios, também em um papel semibiográfico, falando sobre o hábito de fumar desde cedo. Lynch, como um diretor que valoriza muito a figura do homem velho, trata com muito carinho aquele homem que carrega quase um século nas costas.

Algumas cenas são de uma beleza ímpar: a cena do aniversário do garotinho mexicano, em que Lucky canta uma canção em espanhol; a cena da conversa com um colega aposentado das forças armadas que contará uma história fascinante sobre uma garotinha japonesa; a cena em que David Lynch fala sobre o amor incondicional por seu bicho de estimação desaparecido; e há também espaço para o mistério em algumas cenas, ainda que bastante ligadas ao realismo que o filme parece promover.

Não falta espaço para filosofar sobre a finitude, sobre aceitar a realidade como ela é, tanto em discussões dos próprios personagens quanto nas entrelinhas e no quanto o filme fica com o espectador após a sessão. Trabalhos como este justificam a ida ao cinema. Até porque o resultado está mais para uma paz de espírito do que para uma lamentação relativa ao fim de uma jornada.

segunda-feira, dezembro 18, 2017

STAR WARS - OS ÚLTIMOS JEDI (Star Wars: Episode VIII - The Last Jedi)

Por mais que haja uma tendência de a criação mais célebre de George Lucas se repetir em muitos aspectos e em diversas sequências - que o diga STAR WARS - O DESPERTAR DA FORÇA (2015), dirigido por J.J. Abrams, que é quase um remake de GUERRA NAS ESTRELAS (1977) -, é muito bom poder ver o novo caminho proposto por Rian Johnson no novo STAR WARS - OS ÚLTIMOS JEDI (2017), que finalmente se desprende do velho e abraça o novo.

O filme anterior desta fase Disney da Lucas Film. já acenava para um desapegar do passado. E em OS ÚLTIMOS JEDI há uma cena em especial que ilustra bastante isso: o espírito de Yoda aparece para Luke Skywalker (Mark Hamill) e faz uma fogueira com os velhos pergaminhos sagrados Jedi. Mas claro que nem toda nostalgia pôde ficar de fora. Até porque é ela que alimenta boa parte desse universo idolatrado por uma legião de fãs ao redor do mundo.

Mas é preciso alimentar também os novos personagens. Felizmente é isso que é feito em OS ÚLTIMOS JEDI, principalmente. Rey (Daisy Ridley), Kylo Ren (Adam Driver), Finn (John Boyega), Poe (Oscar Isaac), entre outros, são personagens que ganham contornos maiores e mais interessantes que os membros da velha guarda neste novo filme. Aliás, uma das coisas que se destaca aqui é o modo como Johnson resolve também promover uma espécie de renúncia à velha dramaturgia que funcionava como uma desculpa para interpretações canastronas.

Em OS ÚLTIMOS JEDI podemos finalmente nos encantar com ao menos uma a interpretação fantástica: a de Adam Driver, como o vilão complexo Kylo Ren, filho da Princesa Leia (Carrie Fisher) com Han Solo (Harrison Ford). Ele é um rapaz que teve contato com a força, mas, assim como aconteceu com Darth Vader, por algum motivo ele preferiu abraçar o lado sombrio. Detalhes de como isso aconteceu podem ser vistos no filme.

Mas o grande barato desse novo personagem é que ele não é tão preto no branco assim. As cenas de Rey dialogando numa conexão espiritual com Kylo, enquanto está recebendo treinamento com Luke, chegam a ser impressionantes no modo como lidam com a questão do desejo. Em certo momento, Rey se incomoda com Kylo estar sem camisa. Aquilo a estava atrapalhando, mexendo com seus instintos mais primitivos. E o desejo mais uma vez aparece como um ingrediente perigoso. É uma história que havia sido contada antes na tragédia de Anakin Skywalker, nos episódios I-III.

Por mais que OS ÚLTIMOS JEDI comece com uma longa sequência de batalha no céu (às vezes um pouco confusa) entre os rebeldes e a República, são certos detalhes que tornam o filme algo que vai se tornar lembrado com carinho por boa parte do público, já que não há aqui uma narrativa tão prazerosa como a de O DESPERTAR DA FORÇA. Rian Johnson parece ter maior dificuldade em juntar as peças e o filme cansa em determinados momentos de sua duração.

Assim, além do perigosíssimo caso de amor (não explicitado) entre Rey e Kylo, há algo que chama muito a atenção no novo filme: a direção de arte fantástica, que flerta com David Lynch, ao criar um lugar todo em vermelho como lar do líder da República, o monstruoso Snoke (Andy Serkis). Até Laura Dern dá o ar de sua graça no elenco, falando em Lynch. O fato é que esse vermelho, que funcionará como pano de fundo para uma batalha linda de ver, passa sensações de perigo e de excitação bastante envolventes.

Até mesmo as cenas da batalha no deserto são pinceladas com vermelho, como nas cenas em que veículos pequenos pilotados pelos rebeldes tocam no chão com frequência, enquanto se aproximam das grandes armas da República. Há várias sequências que trazem bastante empolgação e surpresa ao longo da narrativa, principalmente no terceiro ato. Mas é melhor não citá-las e deixar que o próprio espectador as desfrute. Só o fato de Rian Johnson entregar algo bem diferente do que se esperaria já é um mérito para sua contribuição.

No mais, não esqueçamos do grande trunfo de STAR WARS - OS ÚLTIMOS JEDI: Adam Driver, que está vivendo um momento muito especial em sua carreira. Só neste ano ele pôde ser visto em quatro filmes importantes na tela grande: SILÊNCIO, de Martin Scorsese; PATERSON, de Jim Jarmursch; LOGAN LUCKY - ROUBO EM FAMÍLIA, de Steven Soderbergh; e este novo STAR WARS. Além disso, Driver encerrou muito bem sua participação na ótima série GIRLS, de Lena Dunham. Não é pouco.

quinta-feira, dezembro 14, 2017

OITO DOCUMENTÁRIOS

Acho que já deu pra perceber que eu perdi o controle dos filmes vistos x filmes comentados no blog. Já me disseram para relaxar, falar apenas sobre os títulos que me inspiram e tal, mas eu não me conformo quando vejo aquela listona gigante, que ainda está menor do que realmente é, por causa da perda de arquivos em uma virose cibernética. Enfim, falemos de alguns documentários vistos este ano e que poderiam ter tido mais espaço se o corpo aguentasse e o tempo permitisse.

DANADO DE BOM

Delícia de documentário que fala da história de um homem importante na história da música brasileira, mas que é praticamente esquecido. João Silva é um compositor de várias canções conhecidas. Eu mesmo nem sabia dele. João ficou famoso como um grande parceiro de Luiz Gonzaga na fase tardia do Rei do Baião e posteriormente fez músicas para muitos cantores e cantoras do Brasil. "Danado de bom" e "Pagode russo" devem ser as suas mais famosas. Alguns momentos são uma viagem, outros despertam um bocado na gente a tal nordestinidade. Mas o que mais encanta mesmo em DANADO DE BOM (2016), de Deby Brennand, é a graça de João Silva, sua esperteza e suas histórias pessoais, o modo como ele não se importa em falar sobre suas falhas, por exemplo.

GERMAN CONCENTRATION CAMPS FACTUAL SURVEY

Provavelmente o documentário GERMAN CONCENTRATION CAMPS FACTUAL SURVEY (2014) não seria tão comentado se não fosse a assinatura de Alfred Hitchcock como um dos diretores - o outro se chama Sidney Bernstein. Diziam que Hitchcock havia dirigido apenas dois filmes de horror, PSICOSE (1960) e OS PÁSSAROS (1963). Podemos dizer agora que são três, com este documentário lançado em versão estendida com imagens terríveis dos campos de concentração, de cadáveres espalhados, um horror inacreditável, de gente sendo resgatada à beira da morte por inanição e outras doenças. A maldade humana não tem limites. E é bom que as pessoas vejam isso, ainda mais nesses tempos de volta de neonazismo por parte de alguns idiotas por aí. O filme pode não ter a poesia de NOITE E NEBLINA, de Alain Resnais, mas creio que é porque é para ser duro e cru mesmo.

UM FILME DE CINEMA

É um filme meio torto, meio sem saber direito que caminho seguir. Aquela história de colocar o elenco de CINEMA PARADISO parece um enxerto. Vale mais pelas palavras dos vários cineastas sobre teorias e visões particulares do cinema, mesmo que nem sempre excitantes. Mas é muito bom ouvir o Julio Bressane, por exemplo. Bem interessante, principalmente para quem estuda cinema, ter a oportunidade de ver UM FILME DE CINEMA (2017), o mais novo trabalho de Walter Carvalho. Claro que com tanta gente boa envolvida a gente esperava algo melhor. Acaba sendo mais uma obra com pretensões que não se cumprem.

JERRY BEFORE SEINFELD

Certamente só vai interessar aos fãs de Jerry Selfeld. O que é o meu caso. Algumas piadas funcionam melhor, algumas são velhas conhecidas. A melhor parte é mesmo as cenas do Jerry fazendo stand-up comedy mesmo. A parte de contar a história da vida dele acabou ficando bem superficial. E talvez ele não quisesse contar mesmo muitos detalhes. JERRY BEFORE SEINFELD (2017), de Michael Bonfiglio, é uma produção original da Netflix. Mesmo não sendo tão bom, os fãs de Seinfeld, o homem e a série, agradecem.

EXODUS - DE ONDE EU VIM NÃO EXISTE MAIS (Exodus Where I Come from Is Disappearing)

Difícil se envolver com qualquer um dos sete personagens escolhidos, o que pra mim já é um grande problema deste filme que pretende ser poético e grandioso (na produção, sem dúvida é), mas que acaba incomodando, inclusive com a narração do Wagner Moura (mesmo sendo econômica e espaçada). Acho que o personagem mais interessante é o palestino. Daria um bom filme se fosse só a história dele. EXODUS - DE ONDE EU VIM NÃO EXISTE MAIS (2017), de Hank Levine, é uma obra que se perde em sua vontade de ser grandioso. Melhor mesmo é ver o novo trabalho de Aki Kaurismäki, O OUTRO LADO DA ESPERANÇA, que conta uma história parecida com a de um dos personagens deste documentário.

A GENTE

Muito boa essa busca de transformar o conteúdo documental em um drama tenso. É assim que vemos A GENTE (2013), trabalho de Aly Muritiba que demorou a entrar em nosso circuito depois de ter sido exibido em Brasília. Quem reclama da própria profissão é bom dar uma olhada neste filme. Ser agente penitenciário é um inferno na Terra, hein.. E olha que essa penitenciária aí de Curitiba deve ser melhor do que muitas outras espalhadas pelo Brasil. As cenas exteriores da prisão também ajudam a pensar nisso, já que o protagonista é um obreiro de uma igreja evangélica e, do jeito que é mostrada sua rotina, suas horas de lazer parecem tão incômodas e opressoras quanto as horas de trabalho.

A CIDADE É UMA SÓ?

Não sei se um dia eu vou entrar em sintonia com o cinema do Adirley Queirós. De todo modo, achei mais interessante este do que BRANCO SAI, PRETO FICA (2014). A cena do candidato pobre passando pelo comício da Dilma compensa um monte de passagens pouco envolventes. De todo modo, vale demais a pena poder ver A CIDADE É UMA SÓ? (2011), principalmente no cinema, que foi o meu caso. Visto com mais distanciamento, o filme cresce na memória e até dá vontade de rever com mais carinho.

CÂMARA DE ESPELHOS

Na primeira vez que CÂMARA DE ESPELHOS (2016), de Dea Ferraz, passou em Fortaleza eu não dei muita bola. Que besteira que eu fiz. A exibição com debate deve ter sido bem interessante. Mas o filme sozinho já se basta sem precisar fazer muita coisa além de colocar vários homens em um sofá numa sala para falar sobre diversos assuntos relacionados à mulher. É machismo a dar com pau, coisas absurdas que até alguns homens vão se sentir incomodados. Pode não ter sido tão feliz na montagem, mas de algum jeito a diretora tinha que coletar o seu material.

segunda-feira, dezembro 11, 2017

THE MARVELOUS MRS. MAISEL - PRIMEIRA TEMPORADA (The Marvelous Mrs. Maisel - Season One)

E uma das melhores séries do ano surgiu, como quem não quer nada, em dezembro. Trata-se de THE MARVELOUS MRS. MAISEL (2017), de Amy Sherman-Palladino, conhecida por GIRLMORE GIRLS (2000-2007). Depois de dez anos de seu maior sucesso, a criadora, roteirista e diretora está de volta com uma comédia de época, que nos leva a um colorido e belo 1958, em um registro que lembra as screwball comedies, que fizeram a alegria na Hollywood dos anos 1930-50.

O registro de época pode ser comparado ao de outra série celebrada, MAD MEN, mas a intenção aqui parece ser um pouco menos pretensiosa. Mas só um pouco mesmo, já que as pessoas tendem a diminuir as comédias em detrimento dos dramas. E THE MARVELOUS MRS. MAISEL é um misto dos dois, pois opta pela duração de cerca de quase uma hora por episódio, normalmente uma duração de séries dramáticas.

Mas, deixando de lado essa bobagem de tentar separar a comédia do drama, quando eles parecem às vezes inseparáveis da obra de Sherman-Palladino, o que temos aqui é uma dessas séries tão boas que a gente lamenta quando está perto de acabar. Não queremos nos desgrudar da protagonista, Miriam 'Midge' Maisel, vivida brilhantemente por Rachel Brosnahan. É, certamente, o papel da vida da jovem atriz.

A série conta a história fictícia de uma dona de casa de família rica e judia que tem o prazer de ajudar o marido em sua vontade de ser um astro da comédia. O problema é que o sujeito, Joel (Michael Zegen), não tem a menor graça como comediante. Quando uma vez ele se vê diante do horror de não ser bem-recepcionado pela audiência, de não conseguir arrancar nenhum riso da plateia, ele volta para casa tão desanimado que faz algo impensável: largar a esposa devotada e carinhosa.

Midge, atribulada com a situação, já que ainda por cima o marido estava tendo um caso com a secretária, resolve sair de casa e se embriagar. É quando ela vai parar em um dos bares onde os comediantes costumam se apresentar. E dá um show de cair o queixo de muita gente, além de fazer e dizer coisas que a polícia local considerou indecentes. Resultado: ela vai parar no xadrez.

Esse é mais ou menos o resumão do piloto de THE MARVELOUS MRS. MAISEL. Um piloto que já nos conquista de imediato. Naquele momento em diante sabemos que aquela é uma série especial. E sabe o que mais? A série de Sherman-Palladino nem precisava melhorar. Mas melhora. Inclusive com uma season finale que traz um misto de sentimentos conflitantes, envolvendo ainda a questão marital de Midge e sua relação cada vez mais envolvente com o mundo da comédia, que mais parece alguma coisa muito proibida, e por isso mesmo muito excitante. Aliá, esse talvez seja o grande segredo de a série encantar tanto.

Midge, a personagem de Rachel Brosnahan, não chegou a existir, mas contracena com alguns personagens reais da época, como Lenny Bruce, controverso comediante que chegou a ser retratado por Dustin Hoffman no filme LENNY, de Bob Fosse. Mesmo assim, é como se estivéssemos acompanhando uma biografia, por mais que o colorido e as falas deliciosamente rápidas e um tanto teatrais fujam do que se espera de algo realista.

No mais, chamam atenção também a direção de arte, o figurino e a fotografia admiráveis, além também da personagem de Alex Berstein, que faz a agente de Midge, a mulher que a vê como um sucesso em potencial e que faz de tudo para que aquela dona de casa rica se torne uma comediante de grande sucesso. Alguns dos momentos mais engraçados da série vêm dela, e do modo como as pessoas enxergam o seu jeito meio másculo de se vestir e se comportar. Também vale destacar a beleza da performance de Tony Shahoub, como o pai de Midge.

Podemos dizer, portanto, que THE MARVELOUS MRS. MAISEL pode ser encarado como um belo presente de Natal para os fãs de séries bem pensadas e bem escritas. E a série já chegou chegando, com indicações aos Golden Globes nas categorias de melhor série de comédia e de melhor atriz de comédia para Rachel Brosnahan. Que maravilha!

sábado, dezembro 09, 2017

EXTRAORDINÁRIO (Wonder)

Quando Stephen Chbosky ficou famoso com seu emocionante retrato de jovens com sentimento de inadequação, AS VANTAGENS DE SER INVISÍVEL (2012), causou surpresa com o fato de ele ser ao mesmo tempo o autor do romance e o roteirista e diretor. Revelou-se, então, um novo e sensível talento. EXTRAORDINÁRIO (2017) chega para confirmar que Chbosky sabe também pegar a obra de outra pessoa, no caso o romance homônimo de R.J. Palacio, e transformar em um filme que transborda amor.

EXTRAORDINÁRIO é capaz de deixar o espectador com vontade de abraçar os amigos, os familiares. É um tipo de cinema que pode ser visto como ultrapassado, mas que na verdade é um tipo de cinema arriscado, já que para perder a mão em um melodrama é muito fácil. Como o diretor já havia se mostrado um artista extremamente sensível no trato com as pessoas que se sentem excluídas ou diferentes, não foi tão difícil assim a tarefa de contar a história de um garotinho que nasceu com o rosto deformado e que encara pela primeira vez uma escola.

A estrutura do romance está bastante presente no modo como o filme apresenta carinhosamente os personagens e os aprofunda. Isso é tanto encantador quanto revelador. No começo, quando pensamos que é o filme é só sobre Auggie (Jacob Trembley), o garotinho, até podemos pensar que o filme é muito quadrado, mas a apresentação do ponto de vista da irmã do Auggie já mostra que há mais camadas, há mais a oferecer.

Claro que o sofrer de Auggie é diferente, ninguém quer estar na pele dele, mas ao mesmo tempo é muito bom a gente chegar até o final e ver o seu sentimento de gratidão, depois de ter passado por uma trajetória muito difícil numa escola que o recebeu principalmente com bullyings, mas depois com as amizades e as conquistas.

Podemos dizer, então, que EXTRAORDINÁRIO é um filme sobre conquistas. A cena final de Auggie, seu agradecimento, por mais que aquilo ali fuja de algo realista - na verdade, a melhor descrição é mesmo a de Mark Cousins, autor de História do Cinema, chamando o cinema hollywoodiano tradicional de "realismo romântico fechado", e não cinema clássico, como alguns preferem. Nesse realismo romântico fechado, há enfeites de maneira que tudo pareça mais bonito, para poder chegar a um fim, no caso, mostrar uma espécie de lição.

E isso não é nenhum demérito. Há quem esteja, inclusive, lembrando de clássicos como A FELICIDADE NÃO SE COMPRA, de Frank Capra, e O SOL É PARA TODOS, de Robert Mulligan, em resenhas. De todo modo, sempre bom lembrar que uma das referências plasticamente mais associadas a EXTRAORDINÁRIO é MARCAS DO DESTINO, de Peter Bogdanovich, que trata de um adolescente que tem um rosto deformado, inclusive muito parecido com o rosto de Auggie.

Uma coisa que EXTRAORDINÁRIO nos faz lembrar é o quanto as amizades nos deixam mais fortes, o quanto estar sozinho ainda é muito difícil, principalmente para quem é jovem, para quem é criança ou adolescente. Você se sente mais forte quando você sabe que tem um amigo (ou amigos). E o filme trabalha de maneira muito pungente essa questão da amizade. Ou o quanto é doloroso se sentir traído por um amigo ou uma amiga.

O cinema, assim como a arte como um todo, é um instrumento que nos ajuda a nos tornamos pessoas melhores. Então, um filme como EXTRAORDINÁRIO talvez seja um dos exemplos mais explícitos desse tipo de obra que nos coloca no lugar do outro, traz o necessário sentimento de empatia, de compreensão do outro. E vale lembrar também que, antes de mais nada que estamos diante de um filme sobre vitórias. Não só a vitória do Auggie, mas também a vitória da mãe dele (Julia Roberts), da irmã (Izabela Vidovic), da amiga da irmã, e do quanto tudo isso é comovente e enriquecedor para a alma. Há uma cena em especial quando Auggie descobre que tem amigos. Não apenas um amigo ou dois, mas um grupo de amigos. Tratar essa história com tal sensibilidade é uma tarefa louvável.

segunda-feira, dezembro 04, 2017

HISTÓRIAS DE AMOR QUE NÃO PERTENCEM A ESTE MUNDO (Amori Che Non Sanno Stare al Mondo)

Falar com saudade do glorioso cinema italiano de outrora já virou lugar comum sempre que se fala sobre novos exemplares vindos do país da bota. Então, pulemos este clichê e passemos direto ao filme de Francesca Comencini, o sentimental, divertido e comovente HISTÓRIAS DE AMOR QUE NÃO PERTENCEM A ESTE MUNDO (2017), que tem ganhado pouca repercussão, mesmo no circuito alternativo.

Isso é algo que não deveria acontecer, levando em consideração tanta coisa boa que a filha de Luigi Comencini nos presenteia neste seu novo filme. Francesca até já tem uma filmografia relativamente extensa, iniciada nos anos 1980, mas esta comédia romântica estrelada por Lucia Mascino é sua primeira produção a estrear em nosso circuito. Antes tarde do que nunca. Mesmo utilizando do velho expediente de colocar a palavra “amor” como um atrativo para o público.

De todo modo, há amor no título original também e o amor é o grande tema do filme. Acompanhamos a trajetória da professora Claudia (Lucia Mascino), uma mulher que não se conforma com a perda e o distanciamento do grande amor de sua vida, o também professor Flavio (Thomas Trabacchi). Ambos foram apaixonados por um bom período de tempo, mas a insistência de Claudia para ter um filho com Flavio e sua insegurança acabaram por complicar o relacionamento.

O filme é narrado pelo ponto de vista de Claudia e vemos algumas cenas em flashback que flagram alguns dos melhores e dos mais difíceis momentos da relação do casal. O filme não se frustra em mostrar a paixão desesperada da mulher, em detrimento da calma e tranquilidade de Flavio. Para ele, a separação não foi nenhum fim do mundo. Pareceu algo indiferente.

Porém, é interessante notar o quanto o mesmo homem se sente inseguro perto de outra mulher, uma moça bem mais jovem que ele, sua aluna. A bela e jovem garota, por sua vez, se sente segura, enquanto ele procura ser um ás na cama, o que normalmente acontece com homens depois dos 40, que se tornam menos egoístas e mais interessados em dar mais prazer à parceira, ainda que isso possa trazer também uma sensação de poder e contentamento. É até uma pena que o filme se detenha pouco nessa relação de Flavio com a jovem Nina (Valentina Bellè).

O que não quer dizer que não achemos também adorável e engraçada a desesperada protagonista Claudia, em sua insistência em ter esperança de que o homem que ama ainda voltará para ela. Sentimos um pouco de sua dor nessa dificuldade de virar a página. Só em conseguir isso já podemos louvar o trabalho de Francesca Comencini, que ainda conta com aspectos técnicos belíssimos. A fotografia e a direção de arte valorizam tanto os interiores quanto as lindas paisagens, e a trilha sonora e as canções são belas o suficiente para enternecer o espectador.

O diálogo final de Claudia com Flavio está entre os mais belos e agridoces do cinema recente. Mas é preciso passar pela confusão inicial da narrativa e, posteriormente, pelo apego com os personagens para entender aquele momento pelo caminho do coração. Até porque muitas pessoas poderão se identificar com um ou outro personagem ou com determinado momento de sua vida.

domingo, dezembro 03, 2017

BOM COMPORTAMENTO (Good Time)

Uma das mais gratas surpresas deste ano a entrar em cartaz em nosso circuito foi BOM COMPORTAMENTO (2017), dos irmãos Benny e Josh Safidie. Trata-se do trabalho da dupla que melhor chamou a atenção do público e também da crítica, até por ter saído um pouco mais do gueto dos filmes exibidos em circuito muito limitado. Ajudou também ter como protagonista o ótimo Robert Pattinson, que cada vez mais vem trilhando um caminho de bom gosto criativo e de valorização de sua imagem.

BOM COMPORTAMENTO possui algo que é difícil de encontrar em produções contemporâneas, uma vitalidade e uma energia envolventes. Certamente não é um filme que agradará a todo mundo, inclusive todo o público que circula o circuito de arte, por ser muito quente (nas cores e na temática) e muito barulhento. Assim, é uma produção que trafega em um perigoso caminho, o que é muito bom. Correr riscos é algo que todo grande cinema deveria buscar.

A primeira imagem do filme já chama a atenção, um close-up do rosto de um dos diretores, Benny Safdie, que interpreta Nick, o irmão com problemas mentais que está sofrendo em uma espécie de terapia. Para resgatá-lo daquele suplício chega o irmão que se considera a única pessoa no mundo que realmente se importa com Nick. Pattinson é Connie, um sujeito que está querendo conseguir um dinheiro e vai buscar de uma maneira não muito inteligente, assaltando um banco ao lado do irmão, que pensa lento e acaba funcionando como um peso na hora da perseguição.

Depois da cena do banco e da perseguição, que aliás acontecem logo no comecinho do filme, BOM COMPORTAMENTO é como uma montanha russa de emoções em que qualquer coisa pode acontecer. Esse sentimento de distanciamento de uma expectativa que possa ser criada pelo espectador só mostra o quanto os irmãos Safidie parecem estar brincando o tempo todo com a trama, como se fossem jazzistas improvisando.

"Improviso" é uma das palavras-chave do filme, já que tudo que Connie faz naquela noite maluca de tentativa de fuga da polícia e de resgate do irmão que é preso na perseguição pós-assalto, tudo que ele faz é improvisado, pensado de última hora. Como se o próprio roteiro não tivesse sido pensado com um final em mente, como se os personagens tivessem ganhado vida e encontrassem outros personagens vivos pelo caminho. Tal é a vivacidade do filme, que conta com uma fotografia nervosa e em tons bem quentes de Sean Price Williams e uma trilha sonora de sintetizadores bastante presente. Um baita filme de ação e suspense, mas com um elemento humano admirável e por vezes tocante, que dá voz a um grupo e a uma geografia marginalizados de Nova York.

sexta-feira, dezembro 01, 2017

OS PARÇAS

Ultimamente vivemos um momento em que os sucessos de bilheteria em geral são bem recebidos tanto pelo público quanto pela crítica. Até pouco tempo atrás havia um abismo entre a preferência da audiência e a dos críticos. Esse tipo de abismo talvez retorne com OS PARÇAS (2017), que tem cara de ser um sucesso popular, herdeiro da tradição das antigas chanchadas, mas levando para São Paulo o humor cearense que conquistou a muitos com CINE HOLLIÚDY (2013), mas que perdeu um bocado da graça em O SHAOLIN DO SERTÃO (2016).

Coincidência ou não, Halder Gomes não destacou sua obra pregressa nas propagandas de sua nova comédia - temendo associações? - preferindo apostar na popularidade das imagens de Tom Cavalcante, Tirullipa e Whindersson Nunes, ou seja, um comediante já considerado veterano e dois da nova geração. Em se tratando dos dois novos, é bom dizer, nem se trata de um novo humor. É o mesmo humor um tanto rasteiro utilizado em shows de comédia para turista ver, mas que continua sendo eficaz e relaxante - embora talvez incômodo para certas audiências.

Aliás, em alguns momentos, é possível se sentir em um desses shows da comédia cearense, como na cena da piada sobre o menino cearense (de cabeça chata) e o menino paulista (de cabeça comprida). Nem é uma piada nova, inclusive, mas funciona bem naquele momento em que o filme já havia conquistado o espectador com seu humor próximo do ingênuo, mesmo falando de um grupo de picaretas.

Na trama, devido a uma confusão com o gerente de uma loja de eletrodomésticos, o vendedor Toinho (Tom Cavalcante) acaba correndo junto com um monte de gente, numa confusão que junta polícia, vendedores de rua, um rumor de que o rapa estaria chegando para tomar o material dos ambulantes, e, no meio disso tudo, os parceiros vigaristas Ray Van (Whindersson Nunes) e Pilôra (Tirullipa) se juntam a Romeu (Bruno de Luca) para trabalharem em uma firma de casamento fajuta, que teria como primeiro cliente a filha de um poderoso e perigoso mafioso local (Taumaturgo Ferreira). A filha é vivida pela bela Paloma Bernardi.

Um dos méritos de OS PARÇAS é saber conquistar o espectador que não tem preconceito com um tipo de humor mais vulgar a entrar na brincadeira. Ou seja, até mesmo as referências que o filme traz são extremamente populares, qualquer pessoa nascida no Brasil conhece, como é o caso de Fábio Jr. e É o Tchan, os artistas que supostamente estarão presentes no casamento do ano, como é assim considerado nos tabloides. Como se trata de uma comédia de confusões, há espaço para tudo, levando em consideração que os rapazes não têm grana para bancar um casamento chique e vão ter que improvisar.

E improvisar talvez seja um dos verbos que mais combinam com OS PARÇAS, já que o filme em si não parece ter sido bem pensado. Está mais para um encontro de amigos que topou fazer parte de um projeto descontraído e descompromissado, ainda que em alguns momentos seja possível lembrar de comédias americanas como A ÚLTIMA FESTA DE SOLTEIRO, como é o caso da cena do talco.

Também não é nenhuma novidade juntar quatro caras atrapalhados, sendo que um deles é o que se aproxima de um galã. Já se fazia isso em Os Trapalhões. Mas o bom é que a química do grupo funciona. Nenhum deles separado talvez rendesse um bom filme (o próprio Tom Cavalcante não teve um grande sucesso solo na televisão, como tiveram seus conterrâneos Renato Aragão e Chico Anysio), mas juntos conseguem fazer do novo trabalho de Halder uma diversão que pode até trazer de volta um público que esteve afastado do cinema brasileiro pelo mesmo motivo que deve afastar outro tipo de audiência: o preconceito.

segunda-feira, novembro 27, 2017

NÃO DEVORE MEU CORAÇÃO

O novo filme de Felipe Bragança parece ser cheio de boas intenções. Gosto de como ele divide por capítulos a sua narrativa, com letras grandes e de destaque e títulos chamativos. A trilha sonora meio anos 80, com uso de sintetizadores, também contribui para algo elegante e retrô (está na moda, não é?). Mas tudo isso parece algo que funcionaria melhor com uma melhor condução na direção. A carreira de Bragança como cineasta até agora não emplacou, pelo menos não dentro de um circuito mais amplo. Mas é compreensível que ele queira um tom diferente, e nisso está a sua principal qualidade.

Seu NÃO DEVORE MEU CORAÇÃO (2017) é uma obra irregular, que aproveita o talento e experiência de dramaturgia de Cauã Raymond, que manda muito bem nas cenas com a família (com o irmão menor e com a mãe), mas seu estilo de atuar acaba ficando um pouco contrastado com o trabalho menos naturalista de interpretação dos atores jovens e pouco experientes. O resultado é uma obra torta do ponto de vista da atuação, e que não chega a passar o sentimento que parece querer passar, seja o amor imenso do pequeno Joca (Eduardo Macedo) pela indiazinha paraguaia da fronteira (Adeli Gonzales), seja a relação de Fernando, o personagem de Cauã, com o ambiente hostil que o cerca.

Este ambiente hostil traz como cenário principal uma guerra entre gangues de motoqueiros: de um lado um grupo de brasileiros do Mato Grosso do Sul com pinta de fascistas; do outro, um grupo de paraguaios-guaranis que têm visto todos os dias corpos dos seus serem desovados no rio Apa, o rio que separa o estado brasileiro do país. Bragança parece querer dar à trama um ar de fábula, a exemplo do que havia feito com A ALEGRIA (2010), ainda mais estranho e menos palatável.

Essa história de amor e ódio tem os seus momentos. Há algo de ACOSSADO no momento em que o garotinho, inebriado pelo amor que sente pela jovem índia, conta algo sobre o irmão. Essa é uma das melhores cenas do filme. Mas é uma pena que ela pareça deslocada em uma obra que parece optar pelo distanciamento das emoções. Ou trazê-las através da estranheza, quem sabe.