segunda-feira, setembro 28, 2020

AS FACES DO DEMÔNIO (Byeonshin)



O filão de filmes de possessão demoníaca e exorcismos depois do fenômeno O EXORCISTA, de William Friedkin, foi enorme, principalmente nos anos 1970. Até o Mojica fez o seu (excelente) EXORCISMO NEGRO pegando carona na moda. Ultimamente, Hollywood ainda tem feito esse tipo de filme, mas a grande maioria tem se mostrado repetitiva e aborrecida. Além do mais, filmes de horror católicos estão começando a perder a homogeneidade.

Isso muda quando temos a oportunidade de ver um exemplar sul-coreano de filme de exorcismo com padre católico e uma óbvia influência do filme de Friedkin logo no prólogo. O fato de ser asiático ajuda a acentuar um ar exótico. Na sequência introdutória de AS FACES DO DEMÔNIO (2019), de Hong-seon Kim, o padre Joong-soo (Sung-Woo Bae) tenta expulsar o demônio de uma jovem usando todos os rituais aprendidos na Igreja Católica. Porém, o demônio é poderoso, o resultado é desastroso e a menina morre.

Corta para a chegada de uma família (pai, mãe, duas filhas adolescentes e um garotinho) em uma nova casa. Aos poucos, porém, eles começam a ser perturbados por um estranho vizinho. Mas o filme começa a ficar interessante mesmo quando o demônio passa a arquitetar confusões e perturbações na família ao saltar de um corpo para o outro. Seu primeiro ataque é quando ele aparece como o pai e entra no quarto dizendo coisas um tanto impróprias/assustadoras para a garota.

Esse salto do demônio em vários corpos e não apenas em um único hospedeiro faz lembrar POSSUÍDOS, de Gregory Hoblit, pouco lembrado filme de horror noventista estrelado por Denzel Washington. No filme sul-coreano essa mudança de corpos acontece apenas no seio familiar e com resultados muitas vezes surpreendentes, tanto do ponto de vista do plot e dos rumos que se tomam para cada personagem, quanto do grau de violência e gore.

Há uma cena lá pelo terço final que é absolutamente aterrorizante, envolvendo a agressão a uma personagem. E olha que esse terço final é a parte mais problemática, quando o filme precisa chegar a uma conclusão, que é a parte mais difícil de não se cair no lugar comum. Até então, as opções que Hong-seon Kim e sua equipe criativa dão ao filme trazem um frescor muito bom, mesmo quando os efeitos especiais são claramente de produção barata. Ainda assim, como não se surpreender com a sequência do ataque dos pássaros na avenida?

Outro aspecto bem positivo do filme está na interpretação do ator que faz o padre, especialmente quando ele retorna para ajudar sua família a se livrar do mal demoníaco. Sempre bom ver que o cinema sul-coreano continua nos brindando com boas surpresas de vez em quando. 

AS FACES DO DEMÔNIO fez bastante sucesso em seu país natal e talvez não alcance um sucesso ainda mais abrangente por conta da pandemia.

sexta-feira, setembro 25, 2020

14 CURTAS BRASILEIROS EXIBIDOS EM GRAMADO 2020



4 BILHÕES DE INFINITOS

O filme que abriu o singular Festival de Gramado desde 2020 louco foi este simpático conto sobre duas crianças que conversam sobre suas aspirações para o futuro enquanto a casa está com a energia cortada. Há algo de bonito no "sequestro do cinema" pelo menino, que valoriza a imagem projetada. Como os meninos são amadores, há aquele problema de às vezes não se entender tão perfeitamente os diálogos, mas o encanto das crianças compensa. Assim como a escolha do poético título. Direção: Marco Antônio Pereira.

RECEITA DE CARANGUEJO

Um conto de amadurecimento de uma jovem que mora com a mãe e a ida das duas a uma praia do litoral paulista para relaxar e comer caranguejo. Pequenos detalhes contam bastante, como as diferenças generacionais, o carinho na relação, o aprendizado na hora de aprender a preparar um caranguejo (no que há de perverso em botar os bichos na panela quente), e a naturalidade nas curtas e breves conversas entre mãe e filha. Direção: Issis Valenzuela.

INABITÁVEL

Muito interessante o trabalho desta dupla de cineastas pernambucanos. Depois do ótimo CARANGUEJO REI (2019), eles se superam e continuam no território do cinema fantástico em uma história envolvendo o desaparecimento de uma garota trans e um estranho objeto encontrado no quarto dela. O filme se destaca tanto na forma quanto na narrativa, prazerosa de acompanhar, e sempre intrigante. Falar mais a respeito pode estragar a apreciação de quem ainda não viu. Ainda estou pensando sobre o final, mas sua beleza que me pregou de surpresa. Direção: Matheus Farias e Enock Carvalho.

SUBSOLO

A animação de Otto Guerra já é conhecida dos brasileiros. O que diferencia neste curta é a trama, que, ao que parece, pertence mais à codiretora, Erica Maradona. É (talvez) uma espécie de crítica à cultura do emagrecimento nas academias e às frustrações que geralmente acontecem. A ideia é muito boa e o jeito como os personagens, especialmente dentro das academias, se comportam, é bem divertido. Direção: Erica Maradona e Otto Guerra.

ATORDOADO, EU PERMANEÇO ATENTO

Um soco no estômago este curta de estrutura simples sobre a história de um homem e de sua família que sofreram com a ditadura e que carregam até hoje as sequelas. Todo narrado pelo jornalista Dermi Azevedo com uma saúde bem frágil, agravada pelo Parkinson, o filme traz imagens dos tempos dos anos de chumbo, mas também são feitas observações diretas ao presente obscuro em que nos encontramos. Direção: Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos.

BLACKOUT 

Tenho um pouco de dificuldade em absorver os filmes de ficção científica com forte influência do ciberpunk produzidos no Brasil. No caso deste aqui, é interessante o posicionamento político rebelde e o visual futurista, mas não consegui adentrar sua trama, até porque boa parte do filme se passa basicamente na sala de interrogatório, que é quando a narrativa se torna menos interessante. Direção: Rossandra Leone.

WANDER VI

Um curta bem simples, mas bem cheio de carinho sobre a vida e os sonhos de um talentoso cantor nascido em Ceilândia e que almeja fama e reconhecimento nacional. Fiquei imaginando o sucesso dele no futuro e no quanto este curta se tornaria um documento importante sobre a pré-história de um grande artista. Ou pode ser apenas mais uma história de alguém que não conseguiu obter o sonho almejado. De uma forma ou de outra, o filme é gostoso de ver. Direção: Augusto Borges e Nathalya Brum.

EXTRATOS

Imagens de Helena Ignez filmadas pelo marido Rogerio Sganzerla e remontados pela filha Sinai. Não apenas imagens. A voz dela também. Falando coisas muito pertinentes até para o momento em que vivemos, sobre a perseguição aos artistas. E aí Sinai seleciona as imagens muito delicadamente e põe uma trilha sonora também belíssima. Parece um trabalho despojado, mas quando terminou deu vontade de ver de novo. Direção: Sinai Sganzerla.

DOMINIQUE

O filme nem tem tanta novidade assim (teria, talvez, se se apoiasse na história singular da família de Dominique, que têm outras duas irmãs também transexuais). Aqui há o retrato da personagem, de suas escolhas de vida até onde o destino permitiu (já que, como falou para a mãe, não tem culpa de ter nascido gay). De todo modo, como é um filme bem realizado e que usa muito bem o áudio da personagem ao longo de seus passeios pelo Pará, é mais do que bem-vindo, ainda mais em tempos de transfobia e ataques intensos aos grupos LGBTQ por parte da extrema direita. Direção: Tatiana Issa e Guto Barra.

JOÃOSINHO DA GOMÉA - O REI DO CANDOMBLÉ

Documentário experimental que usa áudio original de seu personagem, um homem respeitado por pessoas da religião de matriz africana, mas também bastante polêmico nos anos 1950. Há um ator/performer que interpreta uma versão do personagem, utilização de adereços, uma cena em uma feira de frutas etc. Talvez seja um filme que funcione mais para quem tem um pouco mais de intimidade com o personagem e com a umbanda, já que não tem nada de didático. Direção: Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra.

REMOINHO

Este curta é tão breve que talvez seja preciso rever para captar aquilo que não foi visto da primeira vez. Gosto da natureza melancólica do filme, que conta a história de uma mulher que deixa (muito provavelmente) o marido na cidade e volta para a cidade do interior onde mora sua mãe. As cenas da protagonista em contato com a natureza e em busca de paz são boas. Pena que são rápidas, não sendo possível entrar no espírito em tão rápido espaço de tempo. Direção: Tiago A. Neves.

VOCÊ TEM OLHOS TRISTES

Dos curtas exibidos em Gramado, este é um dos mais atraentes do ponto de vista narrativo. Além do mais, conta com a presença de dois gigantes do cinema brasileiro em participações especiais: Gilda Nomacce (incrível esta mulher!) e Jean-Claude Bernadet. Mas a história é sobre um rapaz que trabalha com aplicativo de entrega e sobre percalços em sua vida social, em especial quando vai visitar a família da namorada. Direção: Diogo Leite.

TRINCHEIRA

Trazer a imaginação da infância para a magia do cinema é algo que muitos cineastas americanos que tinham dinheiro puderam fazer. Ver isto se materializar em um curta feito com baixo orçamento e muita inventividade é admirável. E no começo eu até que não estava com muita boa vontade para o filme. Depois ele foi me ganhando com as imagens até chegar a seu final surpreendente. E o garoto sendo o único ator de verdade do filme é ótimo. Direção: Paulo Silver.

O BARCO E O RIO

Talvez o segundo melhor curta-metragem do festival, perdendo só para INABITÁVEL. Filmado no Amazonas, há um frescor e um diferencial no ambiente muito bem-vindo. É bem cuidado desde a primeira cena, tanto na iluminação de dentro do barco (meio fordiana) quanto nas interpretações mais naturalistas. A cena que mostra a mãe e a filha pela última vez é um desses momentos mágicos do cinema. Depois disso o filme não consegue chegar tão perto da beleza que conseguiu nesse momento em especial, mas termina de forma poética. Direção: Bernardo Ale Abinader.

quinta-feira, setembro 24, 2020

ME CHAMA QUE EU VOU



Ando com a cabeça um tanto confusa com a quantidade de coisas que tenho para dar conta nestes últimos dez dias de setembro, que ainda seguem pra mim com o mesmo tom do início do mês. Na dúvida entre o que fazer, quis dar uma uma respirada falando um pouco sobre um dos filmes vistos durante o 48º Festival de Gramado, que neste ano tão singular está com a programação sendo exibida no Canal Brasil. Se por um lado, é ótimo poder alcançar pessoas de todo o país que tenham o canal em seu pacote de assinatura, por outro, tivemos alguns problemas técnicos na exibição de alguns longas, especialmente no que se refere ao áudio, já que muitos desses filmes foram pensados para ser vistos no cinema. Foi principalmente o que aconteceu com o filme de Caetano Gotardo e Marco Dutra, TODOS OS MORTOS, talvez o mais prejudicado.

Mas felizmente o documentário sobre a vida e a obra de Sidney Magal, ME CHAMA QUE EU VOU (2020), de Joana Mariani, não sofreu tanto assim e pôde ser visto com muito prazer na telinha. Ainda assim, terei muito prazer em rever no cinema, já que a força da música na telona é imensamente superior. De todo modo, me arrepiei em muitos momentos com este filme que carrega muito da essência do próprio Magal, esse homem que tem a intensidade e a paixão como palavras-chaves em sua personalidade.

Quando criança, eu costumava me balançar na rede com imensa alegria, junto com minha irmã, enquanto escutávamos na vitrola o disco de estreia do cantor, que leva apenas o seu nome, de 1977. Meu pai tinha por hábito comprar discos de vários cantores de música popular. Tanto da velha guarda (Nelson Gonçalves, Núbia Lafayette) quanto dos mais recentes (por recente, refiro-me à década de 1970, como Benito Di Paula e o próprio Magal). Então, creio que ele, por tabela, exerceu certa influência em meus gostos musicais.

O primeiro álbum de Sidney Magal é o que tem sua canção mais querida, "Meu sangue ferve por você", mas também traz "Amante latino" e a polêmica "Se te agarro com outro te mato". Outro grande hit desta primeira fase, "Sandra Rosa Madalena, a Cigana", só apareceria no disco seguinte, Magal (1978). Esse eu não tinha em casa, mas a canção também é dessas que dominaram o inconsciente coletivo e já no começo tem aquele arranjo que traz uma cozinha animadora seguida de metais inspirados. Naquela época havia um cuidado com os arranjos impressionante.

No entanto, o sucesso de Magal foi minguando depois desse início e o documentário de Joana Mariani aborda tanto esse sucesso meteórico quanto o começo de um período longo de fracassos nas vendas e na popularidade do cantor, embora ele nunca tenha deixado de ser reconhecido. Mas como Sidney Magal, ou Magalhães, como gosta de ser diferenciado quando não encarna o artista, não é apenas o artista, mas também o homem apaixonado, muitas de suas histórias pessoais emocionam.

Há o caso do encontro com sua futura esposa e do quanto ele teve a certeza de que aquela moça tão mais jovem do que ele seria a mãe de seus filhos. Magal conta tudo isso com muita emoção. Chora ao lembrar de momentos especialmente felizes de sua vida, como quando teve uma de suas canções aceitas para a abertura da telenovela RAINHA DA SUCATA, já do começo dos anos 1990, quando ele estava no ostracismo, mas que conseguiu surfar na onda da lambada com "Me chama que eu vou". E há a relação afetiva muito forte com a família que também ajuda a tornar a figura do personagem ainda mais querida em nossos corações e a torcer pelo seu sucesso.

As imagens de arquivo de diversos programas de televisão, tanto de apresentações quanto de entrevistas, são outro acerto do documentário. Não gostei tanto assim das cenas com Magal cantando ao piano, mas acredito que são bonitas e válidas mesmo assim. Até ajudam a enriquecer o documentário, já que ele costuma dedicar as canções geralmente à sua esposa.

Não sei quando o filme será lançado comercialmente, se ganhará as telas de cinema. Mas caso ganhem, já vou querer rever no cinema, com certeza. Imagina ouvir suas canções em som dolby?! Hein!?

sexta-feira, setembro 18, 2020

MALDIÇÃO (House by the River)



Não está sendo fácil este mês de setembro. Cansaço bateu na mesma proporção que o trabalho aumentou consideravelmente. Por isso ando com pouco tempo e energia para escrever para o blog, assim como não estou conseguindo administrar meu tempo para dar conta das pendências e por isso fico com complexo de culpa até para parar um tempinho e vir aqui escrever umas linhas. Até porque às vezes não se trata apenas de escrever o que penso e pronto. Geralmente gosto de ler a respeito, para anexar também informação junto às minhas impressões.

Ao menos com relação aos filmes do Fritz Lang, que fazem parte ainda de um projeto meu de ver a filmografia completa do diretor, eu pretendo guardar sempre um tempinho para escrever a respeito. E o mais recente dos trabalhos que vi de Lang é um dos melhores, MALDIÇÃO (1950), um suspense que lembra os melhores clássicos de Alfred Hitchcock.

Aliás, é bom lembrar que o trabalho anterior de Lang, O SEGREDO DA PORTA FECHADA (1947), também guarda algumas semelhanças com os filmes do mestre do suspense. É curioso acompanhar a sua obra do diretor austríaco e ver uma espécie de jogo de cores (ou de tons de cinza) que vai se formando aos poucos. Por exemplo, como o filme de 47 é talvez o mais barroco dos trabalhos do diretor, esse traço estético persiste, ainda que em menor intensidade, em MALDIÇÃO.

A trama se passa em fins do século XIX em uma área rural e tem um ar de melodrama gótico que apresenta uma espécie de releitura da história de Caim e Abel. Sendo Caim, o romancista Stephen Byrne, que, depois de assediar sexualmente a empregada da casa e matá-la estrangulada, ele ainda convence o irmão John (Byrne) (Lee Bowman) a ocultar o cadáver. Como eles moram em frente a um rio, a ideia que surge é colocar o corpo com um peso debaixo do rio. É a partir daí que a trama se desenrola, de maneira tão tensa e cheia de suspense quanto FESTIM DIABÓLICO, por exemplo, para citar um título de temática semelhante e feito dois anos antes.

Depois que a jovem mulher é tida como desaparecida, o terrível novelista usa a polêmica que surgiu em torno de seu nome para desenvolver uma história parecida com a que aconteceu de verdade, para capitalizar em cima do sensacionalismo. E deu certo: seu novo livro se tornou um best-seller. De certa forma, isso me fez lembrar de INSTINTO SELVAGEM, de Paul Verhoeven, que também tem uma romancista de histórias de crime que é acusada de um assassinato. No filme de Lang, porém, quando o corpo surge, é o irmão o principal suspeito do crime, o irmão que no início queria contar tudo para a polícia e que, desde a noite do crime, não conseguiu mais paz de espírito. Enquanto isso, Stephen se comporta cada vez mais como um sociopata.

Realizado na Republic, MALDIÇÃO é uma produção mais modesta de Lang. Ainda assim, ele capricha no visual o máximo que pode dentro de um orçamento mais limitado. A pouca luminosidade, especialmente nas cenas dentro da casa, é um elemento que auxilia bastante na construção visual e atmosférica desde o início. Quanto ao suspense, a cena da ocultação do cadáver lembra algo que Lang já havia feito antes em cena tensa de UM RETRATO DE MULHER (1944). Desta vez, sai o cenário urbano e entra um cenário rural e pantanoso.

Há, mais uma vez, uma bela utilização do som e do silêncio por parte de Lang, um mestre nesse quesito, desde os momentos iniciais, passados na casa em frente ao rio. Outro aspecto recorrente são as cenas econômicas de tribunal, algo que o cineasta foi aprimorando desde seus primeiros filmes nos Estados Unidos, até chegar ao básico e minimalista.

terça-feira, setembro 15, 2020

NARCISO EM FÉRIAS

"Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido."

Essa é uma das falas de Caetano Veloso ao descrever o seu primeiro momento no cárcere, quando foi colocado, sem a menor explicação, em uma solitária escura. Só de pensar nisso, de ter essa sensação de deslocamento da realidade, só de pensar nisso já é aterrador.

NARCISO EM FÉRIAS (2020) foi o retorno da dupla de cineastas Ricardo Calil e Renato Terra ao mundo da música popular brasileira depois do ótimo UMA NOITE EM 67 (2010). Aqui a opção de entrecortar o depoimento de Caetano Veloso com imagens de arquivo e depoimentos de outros entrevistados foi totalmente deixada de lado quando se percebeu que o filme ficaria muito mais poderoso apenas com uma montagem das cenas da entrevista feita ao cantor e compositor baiano.

Há quem diga que não é fazer cinema apresentar única e exclusivamente a entrevista de uma pessoa à frente de uma câmera, mas isso é bobagem. E parece que esquecem da grandeza de Eduardo Coutinho, mestre nesse uso. Em NARCISO EM FÉRIAS, os diretores optaram por esconder sempre que possível suas vozes. E há uns três enquadramentos básicos: o close-up, um plano que mostra o corpo inteiro do cantor e um plano mais distante, que acentua a parede ao fundo.

Tudo que ele conta já está em um capítulo do seu livro Verdade Tropical, um capítulo justamente intitulado "Narciso em Férias", e que se tornará um livro à parte, já em pré-venda. O termo foi tomado de empréstimo de um livro do romancista americano F. Scott Fitzgerald, e que também se refere ao fato de que, durante todo o período em que esteve preso, Caetano não se olhou no espelho.

Histórias narradas oralmente são a base da construção de nossa civilização e é bom ver que esse tipo de recurso ainda segue sendo incrivelmente poderoso, especialmente quando encontramos alguém que consegue nos colocar dentro da ação. Há um momento, em especial, da fala de Caetano, que me fez sentir em seu lugar, que é quando ele comenta sobre seu retorno para Salvador, para a casa de seus pais. O detalhismo da situação tem uma carga dramática assombrosa.

NARCISO EM FÉRIAS é cheio de momentos de bastante emoção, especialmente em seu terço final. O próprio Caetano Veloso parece ter se surpreendido com o próprio choro e pede para que os diretores parem a filmagem em determinado momento. E não é um momento em que ele fala de seu sofrimento, mas de quando ele comenta do sentimento de gratidão que ele tem por um sargento que ficou com pena de sua situação, de ele ser o único que não podia receber a visita da esposa, e que o ajudou. E ele lamenta não ter procurado saber o nome desse homem. Sem dúvida um dos momentos mais bonitos e tocantes do documentário e que, muito provavelmente, perderia um bocado da força sem a voz e sem o olhar do cantor .

Outro acerto de Calil e Terra foi o fato de trazerem canções para o documentário. Já começa com uma canção de Orlando Silva, "Súplica", canção cuja importância veremos ao longo do filme. Em 1968 e 1969, tocava bastante nas rádios "Hey Jude", dos Beatles, e que trazia um grande sentimento de esperança para Caetano sempre que a ouvia. Outras duas canções do próprio Caetano, compostas após a experiência do cárcere, também são citadas com emoção: "Irene" e "Terra".

Por trazer esse recorte da vida de um entre vários artistas que foram presos e exilados em um momento em que a extrema direita se apresenta como uma ameaça cada vez maior para o Brasil e para o mundo, e ainda enfatizar a importância e a beleza do trabalho de um de nossos mais brilhantes artistas, só por isso NARCISO EM FÉRIAS já se faz essencial.

sábado, setembro 12, 2020

TUDO SOBRE MINHA MÃE (Todo sobre Mi Madre)

Havia interrompido a leitura de Conversas com Almodóvar, de Frederic Strauss, livro de entrevistas com o maior cineasta espanhol vivo, com a revisão de CARNE TRÊMULA (1997), um dos filmes de que mais gosto de Pedro Almodóvar. Achava que a minha memória de TUDO SOBRE MINHA MÃE (1999) ainda estava relativamente fresca, o que não era verdade, mas geralmente prefiro demorar a rever certos filmes e por isso parei a leitura do livro, que abarca desde seus primeiros filmes até VOLVER (2006). Não sei se o autor continuou a fazer entrevistas regularmente com Almodóvar que possam ser incluídas em uma nova edição futura. De todo modo, trata-se de uma leitura deliciosa e está sendo muito bom retomá-lo.

Foi lendo a parte de TUDO SOBRE MINHA MÃE que soube, admirado, que este foi o primeiro filme de Almodóvar a concorrer em Cannes. Isso é muito curioso, já que o diretor já era prestigiadíssimo há bastante tempo. No festival, Almodóvar ganhou direção e um prêmio do júri ecumênico. E ficou insatisfeito com a Palma de Ouro ser concedida a ROSETTA, dos irmãos Dardenne. Almodóvar preferiria muito mais UMA HISTÓRIA REAL, de David Lynch, o que eu concordo totalmente.

As outras participações de Almodóvar em Cannes foram com VOLVER (prêmios de melhor atriz para Penélope Cruz e de roteiro); A PELE QUE HABITO (2011), com prêmios menores: prêmio da juventude e prêmio técnico de direção de fotografia para José Luis Alcaine; DOR E GLÓRIA (2019), com prêmio de ator para Antonio Banderas e prêmio técnico de música para Alberto Iglesias. JULIETA (2016) passou por Cannes mas não ganhou nenhum prêmio. Uma pena. Eu sou um dos entusiastas do filme.

Depois de cerca de vinte anos que vi no cinema TUDO SOBRE MINHA MÃE (não sei se foi em 1999 ou em 2000), voltei ao filme para tentar captar algo que não havia captado na época, já que esse não é um dos filmes que mais eu amo do diretor, mas que é um dos mais festejados, mais premiados e um dos mais queridos por muita gente. Continua não sendo tão impactante como outras obras, mas é sempre um prazer entrar em contato com o cinema de Almodóvar.

O curioso do título é que parece trazer um caráter muito pessoal e muito autobiográfico, mas não é o caso. Quem quiser se aproximar mais do passado de Almodóvar e de sua relação com a mãe é preciso que veja DOR E GLÓRIA, esse sim o mais pessoal de seus filmes. Mas é sim um filme sobre maternidade. Sobre maternidade e sobre a solidariedade entre as mulheres. Almodóvar acredita que haja muito mais solidariedade e ajuda mútua entre mulheres do que entre homens. O que é verdade e acaba por desconstruir a ideia distorcida de que entre as mulheres existe a rivalidade e não o oposto.

As mulheres de TUDO SOBRE MINHA MÃE são fascinantes. Todas elas. A começar por Manuela (Cecilia Roth), a mulher que retorna a Barcelona totalmente arrasada, depois de ter perdido o filho adolescente, atropelado. As poucas cenas de Manuela com Esteban, o filho, são carregadas de amor e por isso o impacto da cena do atropelamento é grande. Quando Manuela retorna a Barcelona é com o objetivo de contar ao pai do filho, uma transexual chamada Lola, que eles tiveram um filho juntos e que agora ele estava morto.

Não encontra de imediato Lola, mas faz amizade com outras mulheres: uma transexual que se vira no mundo da prostituição chamada Agrado (Antonia San Juan), uma atriz de teatro chamada Huma (Marisa Paredes) e sua namorada Nina (Candela Peña) e uma religiosa chamada Rosa (Penélope Cruz). Esse é o grupo que se forma e é muito prazeroso vê-las juntas, ver a dinâmica do relacionamento que se articula a partir da vontade de ajudar a outra, a partir da dor. Todas elas são mulheres sofridas por situações diversas, seja pelo abandono, seja pela partida da pessoa amada, seja pela doença.

O fato de termos duas mulheres que foram engravidadas pela mesma pessoa e essa pessoa é uma transexual foi baseada em fatos, em situações vistas por Almodóvar naquele final de século. Ele soube mesmo de uma transexual que, mesmo usando biquíni, reclamava da minissaia da mulher, um machismo absurdo herdado da cultura patriarcal.

Porém, TUDO SOBRE MINHA MÃE ainda não é daqueles filmes devastadores de Almodóvar. Pelo menos não para mim. Não como CARNE TRÊMULA ou como FALE COM ELA (2002), por exemplo. Mas é de uma beleza plástica imensa. A fotografia do brasileiro Affonso Beato é estupenda, assim como a trilha sonora de Alberto Iglesias. Talvez, fora a direção e as atuações, esses dois aspectos sejam os mais importantes para a construção de um melodrama nos moldes sirkianos, como talvez tenha sido essa a intenção de Almodóvar. E talvez esse excesso de cuidado com os aspectos técnicos tenha prejudicado um pouco o tratamento com a dor das personagens. Ainda assim, há um cuidado para que elementos cômicos sejam vez por outra introduzidos de modo que diminuam a aura pesada, como no momento em que as mulheres dizem que há tempos não fazem sexo oral em um homem.

Pela entrevista contida no livro, ao que parece Almodóvar tinha de fato um interesse em não ser tão sentimental. Fala que não gosta dos filmes sentimentais de Hollywood, diz gostar de um melodrama como ONDAS DO DESTINO, de Lars von Trier, por exemplo. Que é um filme que preciso rever, aliás. E, além de A MALVADA, de Joseph L. Mankiewicz, obviamente, há outro que é referência também para TUDO SOBRE MINHA MÃE e que ainda não vi, que é NOITE DE ESTREIA, de John Cassavetes.

Assim é a vida de cinéfilo: sempre tendo lacunas a preencher, filmes a rever, além de interesses ligados também à literatura e outras artes, que com frequência tangenciam o cinema. Não que eu esteja reclamando. Trata-se de um prazer e um dos maiores motivos de se estar vivo neste mundo.

Agradecimentos à Paula, que muito gentilmente viu este filme comigo em nova sessão simultânea à distância.

sexta-feira, setembro 11, 2020

O SEGREDO DA PORTA FECHADA (Secret Beyond the Door...)

É interessante este encaminhar de Fritz Lang pelo caráter de sonho que o cinema pode tão bem materializar (se é que esse é um verbo que combina com o sonhar). Ainda considero a sua melhor empreitada neste sentido o maravilhoso (e pouco citado) QUANDO DESCERAM AS TREVAS (1944), mas todos os trabalhos seguintes a esse têm esse tom de sonho e/ou pesadelo que os torna no mínimo muito atraentes.

O SEGREDO DA PORTA FECHADA (1947) lembra alguns títulos da década de 1940, como três de Alfred Hitchcock (REBECCA, A MULHER INESQUECÍVEL; SUSPEITA e QUANDO FALA O CORAÇÃO, este último por causa das explicações psicanalíticas explícitas). REBECCA, aliás, foi o filme que inspirou Lang a fazer O SEGREDO DA PORTA FECHADA, que também traz elementos que lembram A SÉTIMA VÍTIMA, de Mark Robson, e A MULHER DESEJADA, de Jean Renoir (confesso que não vi esse último, mas já me antecipo em incluí-lo aqui, tendo em vista as associações que alguns críticos costumam fazer.)

E o curioso é que o filme sofreu muitos cortes por parte da Universal, que resultou em uma edição muito diferente da desejada pelo diretor. No entanto, há quem diga que isso acabou por tornar o filme ainda mais delirante, por "acentuar mais sua qualidade onírica". Quem falou isso foi o crítico Adrian Martin em seu texto para o livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer.

Aliás, achei bem curioso o fato de O SEGREDO DA PORTA FECHADA estar entre os cinco filmes do cineasta escolhidos para integrar o livro, já que os outros têm um caráter muito mais canônico, são são muito mais populares:DR. MABUSE, O JOGADOR (1922), METRÓPOLIS (1927), M - O VAMPIRO DE DUSSELDORF (1931) e OS CORRUPTOS (1953). Ou seja, ponto para o livro, que parece optar de vez em quando por obras menos óbvias do cinema universal.

Um dos aspectos mais curiosos deste filme é uma utilização generosa da voice-over. Inclusive, sem ela, acredito que a motivação dos personagens, especialmente de Celia, a protagonista, vivida por Joan Bennett, seria difícil de entender. A princípio, eu achei que esse excesso de vozes dos pensamentos da personagem seria resultado de alguma adaptação de um romance, mas não é o caso aqui. Foi uma vontade de experimentar do próprio Lang, de trazer o pensamento para o cinema, coisa que com o tempo foi ficando um pouco estranha e muito mais do território da literatura. Lang tinha planos, inclusive, de utilizar uma outra atriz para falar os pensamentos da personagem, mas Bennett ficou chateada com isso e implorou para que ela mesma fizesse.

Na trama, Bennett (trabalhando com Lang pela quarta e última vez) é uma jovem mulher rica que conhece um homem no México por quem logo se interessa e se apaixona. O homem, Mark, vivido por Michael Redgrave, é arquiteto e editor de uma revista. Inclusive, isso é a única coisa que ela sabe dele, e mesmo assim aceita se casar com ele lá mesmo, em uma igreja pequena no México, onde passam a lua de mel. É lá também que ela começa a sofrer com as inconstâncias dele.

Eles estão passam a morar na casa dele em Lavender Falls. Só lá ela descobre que ele já foi casado (agora é viúvo) e tem um filho adolescente. Mais coisas vão se revelando do personagem, como sua obsessão por quartos que serviram de cenário para assassinatos famosos. Tanto que ele reconstitui essas cenas em vários quartos de sua casa. E isso foi algo que ela só foi descobrir em uma festa em que ele mostrou com todo o entusiasmo a sua mansão/museu de horrores.

Aos poucos o filme vai diminuindo o tom de melodrama e ganhando mais suspense e tensão, aproximando-se do horror em determinado momento, quando a protagonista se vê ameaçada de morte pelo próprio marido. A fotografia barroca de Stanley Cortez, que sabe lidar muito bem com as sombras, e a música de Miklós Rózsa ajudam a construir esse cenário de pesadelo.

A paquera com a psicanálise freudiana era moda nos anos 1940 e Lang surfa na onda com este filme. Pena que a conclusão não seja muito satisfatória. O próprio diretor, em entrevista a Peter Bogdanovich, disse que achava ridícula a "cura" do personagem de Redgrave no final. Tão rapidamente ele deixa de ser um psicopata prestes a estrangular a esposa com o cachecol para logo ser "curado" por ela, bastando algumas palavras mágicas para que fosse embora seu trauma de infância etc.

Ainda assim, é um filme com imagens e momentos fascinantes que ficam guardados em algum canto da memória, como lembranças escondidas no subconsciente, dado seu aspecto tão etéreo, tão pouco material.

segunda-feira, setembro 07, 2020

SÓ UM BEIJO POR FAVOR (Un Baiser S'il Vous Plaît)

O ruim de ter um monte de coisas pendentes para fazer é que a qualidade dos textos deste espaço acaba ficando prejudicada. Mas não queria deixar que a memória de um filme como SÓ UM BEIJO POR FAVOR (2007), de Emmanuel Mouret, se perca. Na verdade, já há vários outros filmes em atraso para comentar aqui no blog, mas nada posso fazer se o dever me chama, a não ser tentar equilibrar a diversão com o dever. E, falando em responsabilidade e prazer, é curioso como esta excelente comédia de Mouret trata disso com tanta propriedade e com tanta delicadeza.

Meu contato anterior com o cinema desse cineasta foi em duas vezes em que dois de seus filmes foram selecionados para integrar o Festival Varilux de Cinema Francês. A primeira com FAÇA-ME FELIZ! (2009) e a segunda com A ARTE DE AMAR (2011). Ambos os filmes são muito divertidos, mas, se o primeiro segue uma linha próxima da comédia mais física de Jerry Lewis, Charles Chaplin e Buster Keaton, aproximando-se também das comédias malucas de Howard Hawks; o segundo lembra mais diretores que lidam com os relacionamentos, como Woody Allen e Éric Rohmer.

Nesse sentido, SÓ UM BEIJO POR FAVOR se aproxima mais de A ARTE DE AMAR e mostra que o cinema francês está muito mais em sintonia com as comédias românticas clássicas hollywoodianas do que o cinema produzido nos Estados Unidos e no Reino Unido, em que o subgênero tem demonstrado queda e quase desaparecimento com o passar dos anos. Inclusive, SÓ UM BEIJO POR FAVOR também me fez lembrar uma das minhas comédias românticas favoritas, HARRY E SALLY - FEITOS UM PARA O OUTRO, de Rob Reiner, já que trata dessa questão envolvendo sexo entre amigos, aproximação afetiva entre amigos.

Aqui a pergunta não é: será que é possível haver amizade entre um homem e uma mulher (heteros)?. Aqui a pergunta é: um beijo de uma amiga (junto com sexo, no caso), a fim de satisfazer uma carência afetiva, pode ter consequências, no sentido de surgir uma paixão e por conseguinte afetar um casamento? E por mais que alguém possa achar a premissa um tanto boba, pode imediatamente mudar de ideia ao ver o modo como Mouret lida com a situação. É simplesmente um barato vê-lo contando à amiga de sua necessidade de afeição e de como ele não conseguiu obter um beijo de uma garota de programa. E principalmente o momento em que os dois vão para a cama pela primeira vez.

Há também um prazer muito especial na condução narrativa, já que essa história é contada por um outro casal de personagens, o casal que dá início ao filme. No começo, um homem dá carona a uma mulher e os dois sentem uma atração pelo outro. Porém, ela acredita que um simples beijo na boca na despedida, por mais que eles nunca mais se vejam no futuro, pode sim ter consequências, e por isso ela passa a lhe contar uma história. E assim começa a história principal, narrada em tons de As Mil e Uma Noites, tanto no que se refere ao encanto do narrativa, quanto ao encanto que vai crescendo entre os dois ao longo da noite.

Além do mais, o filme traz uma valorização do beijo até o final. Basta ver o beijo final, que é caprichado. Porém, até chegar lá, haja neurose, haja dúvida por parte do casal da história narrada. Eles gostam tanto da primeira experiência que tiveram, que não conseguem parar de pensar e querer mais. O casal é vivido pelo próprio Mouret e pela bela Virginie Ledoyen, uma jovem que pode ser vista em A PRAIA, aquele filme estrelado por Leonardo Di Caprio e dirigido por Danny Boyle. Ela também está no elenco da comédia musical 8 MULHERES, de François Ozon.

Com beleza, carisma e delicadeza, a atriz é ótima como a mulher que teme pela dor da separação do marido. Sim, ela é casada e ama o marido, mas está apaixonada pelo melhor amigo. O ideal, então, para que o marido não sofra é que ele se apaixone por outra mulher. E aí surge então uma trama um tanto maquiavélica (mas com a melhor das intenções) para que isso ocorra. Essa questão ética é um elemento que lembra bastante Rohmer e seu cinema católico.

Perguntado ao site Alt Film Guide sobre suas inspirações, Emmanuel Mouret disse que seu filme é inspirado principalmente em sua própria vida e que a semelhança com as obras de certos diretores famosos seria acidental. Outra coisa que é citada na entrevista e que vale a pena destacar é o uso da música clássica. Há muito Schubert e Tchaikovski e isso imprime ainda mais beleza ao filme e aos sentimentos dos personagens. Traz também uma espécie de atemporalidade, embora vejamos aspectos que remetem à primeira década do novo milênio, como o uso dos celulares. Por isso, preciso conferir mais filmes de Mouret. Já são dez longas lançados e um está prestes a estrear ainda neste ano.

Agradecimentos à Paula, que aceitou ver o filme comigo, mesmo que à distância, e bater um papo após a sessão.

sábado, setembro 05, 2020

A VINGANÇA DE KRIEMHILDE (Die Nibelungen - Kriemhilds Rache)

Eita, que este mês de setembro começou mostrando que o sol em Virgem não está pra brincadeira e que o tempo agora parece ser de aumento de trabalho e atividades profissionais. Por isso que acabei passando uns dias sem atualizar o blog. Acredito que quando eu conseguir me livrar de todas as pendências, é possível que eu volte com mais regularidade. Além do mais, considero este espaço como um espaço de trabalho também, embora não seja remunerado. Uma pena que não seja, aliás. Fica aqui a dica para eventuais patrocinadores.

Falemos então de mais um filme de Fritz Lang, da peregrinação que me "obriguei", com muito prazer, a fazer nessas semanas e que ainda demorará um pouquinho para acabar. Finalizei o grande épico de cerca de cinco horas de duração que o cineasta austríaco realizou na Alemanha. Depois da primeira parte, OS NIBELUNGOS - A MORTE DE SIEGFRIED (1924), meses depois estreou nos cinemas europeus a continuação, A VINGANÇA DE KRIEMHILDE (1924), que tem um aspecto bem menos fantasioso, já que o herói super-poderoso havia morrido no final do primeiro filme e a valquíria casada com o rei também não mais aparece, dando espaço a personagens mais humanos e frágeis.

O meu temor de que a personagem Kriemihilde (Margarete Schön) não daria conta de ser tão boa a ponto de dar força à este filme de vingança foi justificado. Tanto que acredito que o filme cresce com a entrada em cena de Átila, o famoso rei dos hunos, como o novo pretendente da princesa. Ela só aceita ser esposa do rei bárbaro pois há uma promessa de que esse homem realizaria todos os seus desejos, e ela já pensava demais em se vingar do assassino de Siegfried, Hagen Tronje.

O que, aliás, é uma bobagem, já que Hagen não é o único assassino. Todo o plano arquitetado foi feito por ordem e aceitação do rei e da rainha, que queriam se livrar do herói supostamente invencível. E por isso Hagen era blindado. Havia também uma espécie de camaradagem, de trato, entre o rei e seu guarda-costas e conselheiro que tornava Hagen quase inalcançável. E o filme mostra também certos valores que até um bárbaro como Átila tinha, já que, uma vez que ele convida alguém, ele seria incapaz de lhe fazer mal, o que muito irrita Kriemhilde.

Vale destacar que Átila é um personagem cuja personificação é tomada de bastante preconceito, já que ele é visto como uma criatura disforme e que se mexe como um orangotango, ainda mais que os demais hunos também vistos como bárbaros, principalmente se comparados com os nibelungos (alemães), todos brancos, limpinhos, de cabelo lambido e um ar até feminino - enquanto Kriemhilde exala um espírito masculino nesta fase vingadora.

Há nesta continuação uso constante de simbolismos (era comum nesta fase silenciosa do diretor e até mesmo no início da fase sonora nos Estados Unidos) e também inspiração em outras artes. O melhor exemplo talvez seja a cena que mostra um grupo de meninos nus com grinaldas em seus cabelos próximos a uma pequena árvore e Átila com sua armadura preta, inspirada em uma gravura de Max Klinger, pintor e escultor simbolista alemão.

A melhor sequência do filme é a final, na qual Kriemhilde, cansada de tentar encontrar pessoas para executar Hagen, pede para que os hunos incendeiem o espaço onde os nibelungos estão instalados. As cenas no interior da fortaleza, do incêndio, lembram uma das cenas finais de A MORTE CANSADA (1921).

Li no livro Fritz Lang, de Otte Eisner, que o trabalho de construção visual feito pelo cineasta em OS NIBELUNGOS influenciou bastante dois épicos históricos de Sergei M. Eisenstein, ALEKSANDR NEVSKY e IVAN, O TERRÍVEL.