domingo, outubro 31, 2021

SEIS FILMES VISTOS NA 45ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO



Como neste ano tive bem menos tempo para ver os filmes da Mostra e também para escrever sobre eles, o que me deixa um pouco triste, vou optar nesta postagem por textos curtinhos sobre eles. Ainda pretendo ver mais algumas coisas da programação nos próximas dias, mas é bom eu dar uma dinamizada neste espaço.

HIGIENE SOCIAL (Hygiène Sociale)

O único filme que havia visto de Denis Côté era ANTOLOGIA DA CIDADE FANTASMA (2019). Despreparado com o tipo de cinema que ele faz, não foi uma sessão das mais prazerosas. Em HIGIENE SOCIAL (2021), ele já entrega o jogo, o seu hermetismo, logo de cara. Você aceita e vê (com prazer ou não) se quiser. Na primeira cena, temos um longo diálogo entre um trapaceiro e sua irmã. Os dois conversam como se estivessem em um teatro, sempre distantes um do outro - eis um filme que respeita mesmo o distanciamento social. E é a partir dessa primeira conversa que vamos também conhecendo um pouco mais do protagonista. Depois da longa cena com câmera parada, sem direito a close-ups, outra virá, depois outra, com personagens diferentes, excetuando o protagonista. Gosto do uso do anacronismo, de como se fala de cinema, de internet e de notebook, enquanto as imagens parecem de séculos passados, graças principalmente aos figurinos das mulheres. Embora a experiência não seja fácil, de vez em quando nos pegamos impressionados com a sabedoria que sai da boca de alguns personagens, além da beleza plástica que é criada principalmente a partir da natureza.

LUZ NATURAL (Természetes Fény)

Ao que parece a Hungria ainda tem muito o que remoer de seu passado na Segunda Guerra, quando se aliou aos nazistas. E o cinema tem servido, eventualmente, para tratar desse tipo de relação. Em LUZ NATURAL (2021), o diretor Dénes Nagy, vindo principalmente de documentários, faz um filme seco, duro, lento e pesado sobre um grupo de soldados húngaros que tem o objetivo de espionar grupos partidários existentes em uma região rural da União Soviética ocupada. O protagonista tem um aspecto de quem está naquela guerra tentando ao máximo agir sem violência. Ele até simpatiza com aquele povo que mal tem o que comer. Há uma situação triste em que um rapaz tenta roubar as batatas de uma senhora e é humilhado pelo grupo de soldados. Destaque para a fotografia, com preferência pela penumbra, o que acentua o tom de tristeza e quase apatia. Prêmio de direção em Berlim-2021.

CAPITÃES DE ZAATARI (Captains of Za'atari)

É curioso como CAPITÃES DE ZAATARI (2021), de Ali El Arabi, é categorizado como documentário, mas tem toda uma estrutura de ficção. Principalmente no que há de mais importante: a trajetória dos dois rapazes, melhores amigos, que são refugiados sírios na Jordânia e sonham em se tornar jogadores profissionais de futebol. A oportunidade aparece na visita de um homem ao acampamento. Há participações de alguns craques do futebol mundial, ainda que de relance. A mensagem é positiva e traz um olhar para os refugiados e é interessante o contraste entre o espaço em que eles "moram" no acampamento e o vasto mundo que eles têm a oportunidade de conhecer, com o torneio internacional, no Egito.

LISTEN

Desses filmes que começam e terminam bem, do ponto de vista dramático. Quando vi a última imagem, já imaginei que aquele seria o momento ideal para acabar o filme, depois de me sentir quase tão dilacerado quanto a família da história. LISTEN (2020), de Ana Rocha de Sousa, tentou a indicação ao Oscar de filme internacional, mas não conseguiu pelo fato de a maior parte de seus diálogos ser em inglês. Conta a história de uma família portuguesa em Londres passando por dificuldades financeiras e recebendo visitas perigosas da assistência social. Adoro os dizeres do cartaz português, altamente dramático, e que tem tudo a ver com o espírito do filme: "quando não se tem nada e ainda nos levam tudo". Dizendo assim, até pode parecer excessivo nas emoções, mas é de certa maneira contido, o que não quer dizer que não possa levar às lágrimas. Os atores adultos estão ótimos, assim como a garotinha surda. Um dos pontos altos: a cena no tribunal. Se o filme fosse realizado em Hollywood seria um sucesso e tanto.

SANGUESSUGAS - UMA COMÉDIA MARXISTA SOBRE VAMPIROS (Blutsauger)

Logo de início chama a atenção a beleza das cores, mas também a discussão sobre algo que Marx disse em O Capital a respeito do capitalismo, de ser um vampiro. Em seguida, mas de maneira muito sutil, os personagens principais são apresentados: o russo que foge da União Soviética (a história se passa em 1928) e vai parar na Alemanha e se apaixona por uma vampira, que por sua vez tem um servo, que é apaixonado por ela e que não desconfia da chefe ser um sanguessuga. O problema é que SANGUESSUGAS - UMA COMÉDIA MARXISTA SOBRE VAMPIROS (2021), de Julian Radlmaier, se arrasta de tal maneira em sua narrativa que as duas horas de duração parecem quatro. E por mais que as imagens, de vez em quando chamem a atenção pela beleza plástica, isso não é suficiente. Assim como não são suficientes as discussões entre membros da burguesia alemã sobre coisas que já antecipam o pensamento nazista. Quanto ao amor, que é também um tema do filme, ele fica muito para trás.

O ATLAS DOS PÁSSAROS (Atlas Ptáku)

Belo conto moral que brinca com algumas frases um tanto óbvias da realidade, mas que às vezes precisam ser relembradas, como "a maior riqueza é a saúde etc.". Em O ATLAS DOS PÁSSAROS (2021), de Olmo Omerzu, um velho empresário tem um infarto e depois descobre que boa parte da fortuna de sua empresa está sendo saqueada por uma amante (ou ex-amante) e secretária. O filme poderia tratar do caso mais sensacionalista da trama, que é a curiosa relação da tal empregada com um outro homem, mas faz isso de maneira até discreta, e sem se estender muito no assunto. A questão da família (e do dinheiro) é que ganha mais foco pelo diretor neste seu quarto longa-metragem.

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sábado, outubro 30, 2021

ASSIM COMO NO CÉU (Du Som Er i Himlen)



Não sei se já contei esta história aqui, já que confidenciei tantas coisas neste espaço. Mas me pareceu justo, por ocasião do filme em questão, falar de algo que aconteceu em minha infância. 

Era uma tarde comum de brincadeira na rua com os outros meninos. Com a animação e a energia que as crianças têm, passei rapidamente perto de casa e minha mãe me chama: “Ailton, vem merendar!”. “Agora não, mãe!”, eu respondo. Poucos minutos depois, acontece um acidente e eu quebro o braço. Uma visão aterradora de ver o meu braço dependurado me fez gritar de horror. Enquanto um grupo de adultos me socorria e contava do ocorrido para minha mãe, eu passei por ela, chorando e disse: “desculpa, mãe”.

Naturalmente, na minha cabeça educada com o castigo divino e a infalibilidade dos pais (da mãe, apenas, no meu caso), aquilo certamente aconteceu por causa de pura desobediência. Deus estaria me castigando. Até hoje nem acho de todo errônea essa teoria, de tão enraizada que a educação religiosa fica em nossa mente.

Relembro esse incidente marcante pois vi algo semelhante no filme dinamarquês ASSIM COMO NO CÉU (2021), de Tea Lindeburg. Em determinado momento, a jovem protagonista Lise (Flora Hoffman Lindahl) acredita que o fato de sua mãe estar à beira da morte por causa de complicações do parto é inteiramente culpa sua. Afinal, ela perdera a presilha que sua mãe lhe dera. Um motivo mais do que justo para que ela (e a mãe, por tabela) fosse castigada pela ira divina.

ASSIM COMO NO CÉU já impressiona a partir de seu prólogo, com a imagem de Lise tendo uma visão do céu. Um céu opressivamente vermelho e pingando sangue. Ela acorda em seu quarto com a luz do sol batendo na janela e ficamos sabendo que estamos em um vilarejo de fins do século XIX na Dinamarca e essa garota é a única da família que será agraciada com a chance de sair de casa para estudar. O pai se manifesta contra, mas a mãe, grávida e muito perto de parir, é completamente a favor do novo universo que sua filha descobriria ao sair daquele restrito mundo da fazenda.

ASSIM COMO NO CÉU tem sido comparado com frequência à obra-prima A PALAVRA, de Carl Th. Dreyer, e isso é compreensível, já que a diretora pegou emprestado alguns temas e atmosferas desse que é o maior filme sobre a fé já feito. Mas a chave aqui é outra, mais rebelde, mais irascível, mais cruel. A mãe da jovem tem uma gravidez muito difícil e as cenas da pobre mulher sofrendo para dar à luz são bem impactantes, quase saídas de um filme de horror.

Gosto demais do momento em que o grupo de jovens e crianças fica esperando o resultado do parto da mãe, durante a madrugada, e há um instante muito especial de uma suposta comunicação entre a protagonista e Deus. Grande momento de atmosfera noturna e misteriosa. Antes disso, enquanto o grupo se reúne para fazer uma oração para que Deus poupe a vida da mãe, Lise interrompe o ato no momento do “seja feita a Tua vontade”. Afinal, ela era contra a vontade de Deus, se isso significasse a partida da mãe.  

Tea Lindeburg opta por uma abordagem mais dura nessas questões de vida/morte e fé/descrença e faz uma forte crítica ao velho sistema patriarcal, à sociedade baseada na ignorância e na superstição e na maternidade como o maior prêmio que a mulher pode ter e querer na vida.

Do ponto de vista visual o filme também é admirável, seja nas cenas diurnas nos exteriores, com ênfase no amarela da luz do sol e das flores, seja nas cenas noturnas  e nas cenas interiores, quando Lise e sua prima também adolescente testemunham como fantasmas a situação de aflição na casa dos pais durante o dramático parto.

Com experiência na televisão de seu país, a estreia de Lindeburg nos cinemas é tão segura quanto poderosa. A premiação que ela recebeu como melhor diretora do Festival de San Sebastián me pareceu justa. A jovem Flora Ofelia Hofmann Lindahl também foi agraciada com o prêmio de melhor atriz.

+ DOIS FILMES

LUA AZUL (Crai Nou)

O grande vencedor do Festival de San Sebastian foi este LUA AZUL (2021), de Aline Grigore, sobre a busca de fuga de duas irmãs de uma família essencialmente dominada por figuras masculinas. A personagem principal é uma jovem de 22 anos que é estuprada enquanto está dormindo, durante uma festa. Sua irmã é alvo do primo, que quer impedi-la de namorar determinado sujeito. Um dos problemas do filme é que, além de bastante caótico no modo como conta sua história, não traz nenhum personagem simpático o suficiente para que tenhamos um pouco de solidariedade. O que acaba contando mesmo no final é a força do simbolismo da fuga como elemento de desespero para aquela situação. Não sei o quanto a diretora quis fazer isso uma espécie de alegoria de seu país ou uma crítica à sociedade machista. De uma forma ou de outra, tem seus méritos, principalmente nas atuações, mas falta força, até quando a intenção é trazer atordoamento.

IRMANDADE (Sestri)

O ponto de partida de IRMANDADE (2021), de Dina Duma, me fez lembrar um pouco FERRUGEM, de Aly Muritiba, pelo tema envolvendo as consequências de um vídeo de sexo performado por uma adolescente sendo viralizado em uma escola. Mas IRMANDADE tem um desenvolvimento bem distinto. Até porque há toda a questão envolvendo a amizade/cumplicidade das duas amigas, Maya e Jana. Gosto muito de como o filme vai se tornando cada vez mais sombrio. Até o tempo mais ensolarado vai se convertendo em chuva, o dia em noite, já perto do final. Muito representativo do estado de espírito das meninas, principalmente de Maya, que detém o ponto de vista da narrativa até o final. O modo como termina dá ao filme um tom de história curta e simples (no sentido de short story), muito eficiente no que propõe. A atriz que faz Maya, Antonia Belazelkoska, é ótima. Gostaria de vê-la em outros filmes.

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sábado, outubro 23, 2021

SR. BACHMANN E SEUS ALUNOS (Herr Bachmann und Seine Klasse)



Sou professor já faz alguns anos. Mas isso meio que aconteceu, não foi algo programado. Até porque minha timidez não me permitiria fazer tal programação. Fiz o curso de Letras por amor à literatura e pelo fato de estar fazendo um curso de inglês, mas as pessoas perguntavam: mas você vai ser professor? Eu dizia que não sabia, ou que estava fazendo o curso porque gostava de literatura. E de fato era tudo verdade. Lembro que quase saio correndo com medo da minha primeira experiência como professor em uma escola estadual do bairro. Mas confesso que, em parte, o que me assustou bastante foi também a imagem da miséria naquela sala de aula daquela escola.

O tempo foi passando, fui tendo oportunidades de dar aulas de inglês em cidades do interior, através do Núcleo de Línguas da UECE, e isso foi uma experiência muito enriquecedora, tanto para me acostumar e aprender na prática o ofício, quanto como uma experiência de amor. Por mais cansativo que seja, a experiência de ser professor é, na maioria das vezes, uma profissão em que o amor está presente.

Talvez em 1990, quando vi SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS três vezes no cinema, uma semente já tivesse sido plantada. Aos poucos fui vendo que outros filmes de professor me despertavam atenção e emoção, como MR. HOLLAND – ADORÁVEL PROFESSOR, O QUE TRAZ BOAS NOVAS, PRO DIA NASCER FELIZ. O que mais me comove nesses filmes é a intenção do realizador de penetrar na alma humana e descobrir suas fraquezas e suas fortalezas. 

SR. BACHMANN E SEUS ALUNOS (2021), de Maria Speth, estaria mais próximo de ENTRE OS MUROS DA ESCOLA, de Laurent Cantet, mas enquanto o filme de Cantet me deixou desnorteado com tanto barulho e confusão dos alunos (infelizmente rolou uma identificação com situações cotidianas também frequentes), o filme de Speth me pareceu transbordar de amor. A escola aparece como um espaço de puro acolhimento. 

Nota-se que a diretora ficou tão apaixonada pelo professor e pelos alunos e alunas que parecia não querer largar seus objetos de estudo, resultando em um filme com a duração de 3h37min. Além do mais, sendo um documentário e não uma ficção realista que parece documentário, como o filme de Cantet, a opção que Speth tem neste seu quinto longa-metragem (e segundo documentário) é operar a partir da observação.

Em SR. BACHMANN E SEUS ALUNOS, acompanhamos momentos muito especiais das aulas do professor Bachmann para um grupo de alunos vindos de variados países (Bulgária, Turquia, Itália, Rússia, Romênia, há até uma aluna filha de uma brasileira), muitos deles ainda em processo de aprender o alemão. Muitos alunos são carentes e têm um histórico de ter chegado na escola sem conseguir verbalizar nada e odiando, a princípio, aquele novo espaço, mas que, com o tempo, já não queriam mais ir embora. Há um caso comovente de uma garota cuja mãe está propensa a mudar de cidade e quando o professor (e o espectador) recebe a notícia, fica difícil não ficar triste.

Há uma curiosidade no que se refere aos métodos de ensino. O Sr. Bachmann não ensina apenas uma só disciplina. Em suas aulas se estuda matemática, inglês, educação artística e alemão; ele inclui a música como elemento de aproximação emocional com os adolescentes; há pausas para cochilo e há o curioso momento do almoço, em que alguns alunos o fazem em plena sala de aula, conversando com o Sr. Bachmann. Há um cuidado muito bonito com o respeito às diversas culturas, religiões, línguas, que são diversas. E ele mesmo tem uma psicologia toda especial no trato com a condução dos problemas que de vez em quando surgem entre os alunos.

É fácil se pegar sorrindo muitas vezes enquanto vemos o filme e é muito comum nos sentirmos enternecidos e também contagiados com a energia daqueles meninos e meninas. Como já experimentei várias vezes o carinho de uma sala de aula, ver o filme foi uma experiência especial. Dos meus filmes favoritos da 45a. Mostra.

+ DOIS FILMES

LIDANDO COM A MORTE (Dood in de Bijlmer)

O tema acaba sendo o trunfo deste documentário feito sem nenhuma novidade formal. O verbo "lidar" ou "deal" em inglês de LIDANDO COM A MORTE (2021), de Paul Sin Nam Rigter, tem muito a ver com questões financeiras, já que o filme se inicia a partir da proposta da empresária Anita, holandesa branca, de fazer um grande centro funerário capaz de abrigar e prestar serviços a pessoas de diferentes nacionalidades e culturas, assimilando os costumes das pessoas de diferentes países para que os clientes saiam satisfeitos. Ao mesmo tempo, Anita lida com a transição da vida para a morte de seu pai, dando ao genitor o que ele deseja em seu velório. Há uma outra cena que achei muito interessante, que é a que apresenta um paralelo entre a morte de um holandês e a morte de uma pessoa de Gana, o tipo de serviço e de comportamento durante as cerimônias. Sendo que o pessoal de Gana chora e grita muito durante a despedida, mas dança e festeja durante o enterro. É algo a se pensar sobre os modos distintos como se lida com o luto, com a partida. O filme vai perdendo muito de sua força quando Anita passa a se tornar mais ausente das reuniões e das cenas. Também falta um final mais digno ao filme. Ainda assim, diria que é um documentário que vai despertar a curiosidade de quem tem esse interesse por diversidade cultural e por cerimônias de partidas. Como diz em certo momento Anita, "a morte é incrível".

PEDREGULHOS (Koozhangal)

Logo no início de PEDREGULHOS (2021), de P.S. Vinotraj, chama a atenção a brutalidade do homem, um sujeito rude, agressivo e, por algum motivo, está com muita raiva da esposa, a mãe de seu filho pequeno. O menino representa um outro aspecto dessa situação: ele é a tentativa de querer a união e a paz de sua família. Ele sofre agressão física do pai com frequência - e principalmente em um longo trajeto pelo deserto - e seu tipo de reação para se vingar do pai é bem sutil, como jogar fora uma caixa de fósforos dele ou aceitar uma carona de moto e deixar o pai andando sozinho. O filme não nos priva em nenhum momento da situação de miséria daquele povo, desde a cena da família que caça roedores para assar e se alimentar (uma cena até um tanto cruel, se de fato envolveu maus tratos dos animais) até a cena do grupo de mulheres pegando água barrenta de uma fonte por ser a única água disponível. É também um filme que desmonta a ideia de que o indiano é um povo pacífico, religioso e não agressivo e há até momentos que o diretor parece se divertir com isso, como na cena da briga no ônibus. No mais, belas imagens e uma tomada do alto lindamente impressionante.

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domingo, outubro 17, 2021

PEGANDO A ESTRADA (Jaddeh Khaki)



Quando PEGANDO A ESTRADA (2021) começa, até pode-se imaginar se tratar de algo próximo do documental, como acontece nos filmes de Jafar Panahi, mas logo vemos que Panah Panahi prefere seguir o próprio caminho, por mais que as influências do pai e de Kiarostami sejam difíceis de escapar, inclusive por ele ter visto de perto os dois diretores trabalhando quando criança e ter feito a montagem do filme mais recente do pai. A direção de fotografia é de Amin Jafari, o mesmo de 3 FACES, o que acentua também algumas semelhanças.

Assim que o filme começa, vamos ficando intrigados com o objetivo da viagem daquela família, o mistério em torno do que o filho mais velho fará. E por que todos estão tão emotivos. Só o garotinho, o irmão mais novo, é que, desconhecendo o que de fato está acontecendo, enxerga tudo como um passeio de diversão. No carro, estão presentes o pai (com a perna engessada), a mãe, o filho maior (dirigindo), o filho menor (inquieto) e um cachorrinho doente.

O filho mais velho está se preparando psicologicamente para um momento novo de sua vida e isso não está sendo fácil para a família. Nem para ele. Adoro o tom amoroso como esse filme explicita o povo iraniano. E fico encantado como, com tão poucos recursos e com um governo castrador, vários diretores conseguem fazer milagres com a câmera e, com suas sensibilidades, ganhar o mundo. O próprio Panah, em sua primeira experiência na direção, traz momentos lindíssimos, tanto plasticamente, quanto no trato com as emoções.

Há uma carga de tensão no filme desde o início. Não apenas porque a família, apesar de se amar, parece não estar na mesma sintonia, mas principalmente por causa dos perigos de eles serem descobertos pelo governo iraniano. Logo no começo, eles precisam se livrar do celular para não serem rastreados. Aos poucos, PEGANDO A ESTRADA vai nos entregando mais informações. Ficamos sabendo que o filho mais velho está tentando sair do país, cruzando, com a ajuda de contrabandistas, a fronteira com a Turquia. Por mais que sair do país signifique ter mais liberdade na vida, deixar a família é o que mais dói.

Gosto muito de uma cena em que esse filho mais velho conversa com o pai à beira de um riacho. O pai diz que ele pode ficar tranquilo para chorar na frente dele, se quiser, mas que é melhor não chorar muito na frente da mãe. Há outra cena linda, que é a conversa desse mesmo rapaz com sua mãe, quando ela o pergunta qual seu filme favorito. Ele: 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO. Em seguida, diz o porquê. Acaba deixando a mãe ainda mais emotiva. Há também cenas belíssimas com canções pop iranianas de artistas que, por causa da “revolução”, já saíram do país. Essas canções, ora trazem um tom de alegria, ora de acentuação da melancolia.

Panah Panahi fez uma estreia e tanto e é muito bom ver que o cinema iraniano está seguindo firme, apesar de tantos percalços.

+ DOIS FILMES

UM FORTE CLARÃO (Destello Bravío)

Um filme que não funcionou comigo, pelo menos numa primeira visão. Revendo trechos, percebi que a compreensão se faz melhor. Mas o que deixa tudo confuso em UM FORTE CLARÃO (2021) é a grande quantidade de personagens e o quanto seus dramas parecem soltos e às vezes largados. De repente, começamos a ver outros ou mesmo imagens mais contemplativas e belas da cidadezinha onde se passa a história. Em uma reunião de mulheres de meia idade, ficamos sabendo que naquela cidade não há mais jovens. Todos (ou quase) foram embora, inclusive parindo e criando seus filhos fora de lá também. Então, é como se fosse um espaço fadado a se transformar em um grande cemitério. Mas, no meio disso, há também espaço para uma mulher que resolve largar o marido para ter sua liberdade. Aliás, isso talvez seja o que mais nos apega a algo mais terreno do filme, que, vez ou outra, traz tons surrealistas. Já li em algum lugar que o filme seria classificado como ficção científica, o que, para a falta de recursos de uma produção como essa, é aceitável. Outro destaque do filme é a maneira extravagante como a diretora resolve filmar certas cenas. Lembro daquela em que a câmera se posiciona para uma mesa com quatro mulheres, mas só vemos as duas da ponta, uma delas de costas e a outra está coberta pelo corpo da amiga. Ou seja, sendo um primeiro longa da diretora e ela tendo total liberdade para inventar, nada mais justo. Direção: Ainhoa Rodríguez.

NO TÁXI DE JACK

A tarefa de ver filmes fora do lugar comum é bastante desafiadora. Aqui, no caso, há o desafio de encarar o estranho senso de humor português, há o personagem com pinta de Elvis da terceira idade sempre contando de sua temporada como taxista em Nova York, e há um tipo de andamento que também é diferente do usual, mas que talvez seja reconhecido por quem já acompanha o trabalho de Susana Nobre. Trata-se de seu décimo filme, se contarmos curtas e documentários, mas é seu segundo longa de ficção, depois de TEMPO COMUM (2018). NO TÁXI DO JACK (2021) tem um leve tom saudosista e melancólico. O protagonista está de volta a seu país natal, procurando emprego, conversando com o amigo cego e cadeirante e lidando com seus problemas de saúde. É possível fazer um paralelo com EU, DANIEL BLAKE, de Ken Loach, mas Nobre prefere um registro bem menos ligado ao melodrama, com um visual mais sujo e herdeiro do documentário. Aliás, o filme começou a ser realizado a partir do contato da cineasta com o ator, Joaquim Calçada, em sua busca por emprego.

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sexta-feira, outubro 15, 2021

COISAS VERDADEIRAS (True Things)



Filmes que tratam de relacionamentos tóxicos ou abusivos -, de homens sacanas, mais especificamente - tivemos dois excelentes nos últimos anos: a pedrada UM AMOR IMPOSSÍVEL, de Catherine Corsini, e o sofisticadíssimo THE SOUVENIR, de Joanna Hogg. Os dois dirigidos por cineastas mulheres. O último, inclusive, baseado em experiências reais da diretora. Coincidentemente (ou não) com o mesmo ator deste COISAS VERDADEIRAS (2021), Tom Burke.

Ao que parece, a escolha de casting também se aplica a Ruth Wilson, se lembrarmos de seu papel na série THE AFFAIR. Aqui ela é uma mulher que se vê apaixonada por um sujeito pouco confiável (uma das poucas coisas que ela sabe dele é que o homem passou um tempo preso), mas que a ganhou com os primeiros atos ousados, que de alguma maneira, provavelmente, já faziam parte do imaginário dela.

Um dos maiores méritos do filme da diretora Harry Wootliff é nos deixar interessados na trama do início ao fim. Ou seja, não é desses filmes que requerem tanta energia do espectador do ponto de vista narrativo. Talvez até haja algo de vulgar no filme. Em alguns momentos ele lembra uma daquelas obras estilo “Supercine”, com uma expectativa de que vá subir para um suspense típico dos anos 1980. Acaba enganando, felizmente, e enfatizando as questões psicológicas de Kate, a protagonista vivida por Wilson.

Há uma curiosidade no enredo, que não havia prestado atenção até ler uma crítica do Papo de Cinema, que é o fato de que Blond, o personagem de Burke, nunca aparece enquanto ela está com alguém do convívio de Kate. Ou seja, ele pode ser uma construção de sua imaginação. Nem mesmo um nome de verdade ele parece ter. E esse detalhe acabou tornando o filme ainda mais interessante para mim, na jornada de Kate em busca da própria libertação, após um tempo psicologicamente longo de sofrimento e abuso, de se sentir maltratada e desprezada.

O filme é uma adaptação do romance True Things about Me, de Deborah Kay Davies, e foi exibido nos festivais de Veneza e Toronto.

+ DOIS FILMES

A TAÇA PARTIDA (La Taza Rota)

Filmes sobre discussões e separações matrimoniais quase sempre trazem momentos de tensão. E esses momentos seguem presentes por boa parte da metragem deste drama chileno, que começa com a chegada de Rodrigo, um homem inconformado com a separação, que chega para ver o filho e encontra resistência da mãe da criança. Afinal, ele estaria agindo contra o combinado. Depois de muita discussão, ele consegue entrar na casa e a partir daí somos convidados a testemunhar, com certa desconfiança, suas ações e suas intenções. Gosto de como A TAÇA PARTIDA (2021) utiliza um tipo de close-up diferente, alterando a janela de aspecto, para enfatizar os rostos dos personagens. Funciona como um substituto do zoom ou de um corte mais habitual de um plano médio para um primeiro plano. Direção: Esteban Cabezas.

ARMUGAN

A jornada dos dois homens, o Armugan do título, que não consegue andar, e seu amigo ou servo Anchel, que o carrega nas costas pelos pirineus aragoneses, é quase tão dura para o espectador quanto é para essas duas pessoas. E também para aqueles a quem eles prestam seus serviços espirituais. De certa forma, poderíamos ver isto como um problema para ARMUGAN (2021), mas há tanta beleza nas imagens em preto e branco, e também tanta coragem em tratar a vida como uma imensa cruz que se carrega sem se poder reclamar e a morte como uma libertação, que é quase inevitável não se sentir um tanto triste diante de ambiente tão carregado. Direção: Jo Sol.

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sábado, outubro 09, 2021

MÁ SORTE NO SEXO OU PORNÔ ACIDENTAL (Babardeala cu Bucluc sau Porno Balamuc)



Foi uma escolha corajosa, a do júri do Festival de Berlim deste ano, dar o Urso de Ouro para MÁ SORTE OU PORNÔ ACIDENTAL (2021), do romeno Radu Jude. Principalmente pelo filme começar com uma sequência de imagens de sexo explícito, as imagens que serão o estopim para a trama que se desenrolará em seguida. Porém, o que mais interessa para o filme e para as discussões que surgem é de outra ordem que vai muito além de um vazamento de imagens íntimas. Ou seja, não é uma versão romena de SEX TAPE – PERDIDO NA NUVEM, a comédia americana estrelada por Cameron Diaz e Jason Segel.

As primeiras cenas com a protagonista Emi (Katia Pascariu) andando pelas ruas de Bucareste funcionam como um documentário sobre a sociedade da Romênia durante a pandemia, em momento pós primeiro lockdown. Logo vemos situações muito comuns às do Brasil, como as pessoas com a máscara no queixo, ou máscara frouxa, ou máscara com o nariz descoberto. Como a pandemia pegou muito mais forte no Brasil isso parece um pouco mais incômodo de ver para os brasileiros com um pouco mais de responsabilidade. Há também cenas representativas da falta de educação dos motoristas e a relação conflituosa com os pedestres.

Utilizar o registro da comédia ajuda a diminuir um pouco o sentimento de mal estar no que se refere a perceber não apenas a hipocrisia daquela sociedade do filme. Ainda há o ódio a judeus e a ciganos, que eu imaginava ter ficado para trás desde o fim da Segunda Guerra, e agora há os negacionistas do vírus (há, inclusive, alguém que diz que o vírus é uma gripezinha, vejam só!), e a extrema direita e toda essa turma. No meio disso tudo, há a trama de um vídeo de sexo caseiro que mostra uma professora de ensino médio com seu marido que vaza na internet e causa escândalo entre os pais dos alunos.

O filme é dividido em três atos e mais um prólogo e um desfecho. Gosto muito do terceiro ato, que é o que mais traz à tona a maldade, a ignorância e a hipocrisia numa verdadeira caça às bruxas à professora, e também o que mais traz discussões sobre a educação. Mas o segundo ato, composto de pequenos vídeos e textos, como uma enciclopédia caótica, é também muito interessante e cheio de imagens e frases que provocam reflexão, além de dialogarem também com a atual invasão de vídeos amadores nas redes sociais. Essa pluralidade de informações nos ajuda a entender, de modo irônico, a sociedade romena, e é também um convite à revisão do filme, quem sabe na telona, em breve.

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+ DOIS CURTAS

THE BANDIT’S WAGER

Curta presente no box Essencial John Ford, THE BANDIT’S WAGER (1916) mostra Ford como ator coadjuvante de um trabalho do irmão mais velho Francis. Acredito que a curiosidade é mais de poder ver o trabalho do irmão e de também imaginá-lo como uma possível influência para o cineasta que John (aqui ainda chamado Jack) se tornaria. A partir do ano seguinte, John Ford dirigiria seu primeiro curta. Aqui temos uma história bem simples, em que um suposto bandido mascarado pede um beijo a uma moça. Depois, devido à falta de gasolina no carro do irmão, a moça vai parar na casa do tal bandido, que é onde se passa a maior parte da ação, com a câmera na maioria das vezes parada, explorando mais a mise-en-scene, e de vez em quando closes dos dois protagonistas. É um filme leve e razoavelmente divertido.

A MÁQUINA INFERNAL

Eis um filme que, até pelo formato curto (meia hora de duração), pode permitir revisões mais rápidas e fáceis para ser melhor compreendido. Vendo A MÁQUINA INFERNAL (2021), de Francis Vogner dos Reis, lembrei de ARÁBIA, de Uchôa e Dumans, pela discussão em tom de rebeldia e tristeza em torno da escravidão imposta pelo trabalho desumano. Lembrei, por um momento de CRASH – ESTRANHOS PRAZERES, de David Cronenberg: há um personagem que tem uma mão mecânica e uma cena curiosa. O filme se inicia como um desses dramas sobre a classe operária paulista, mas logo o tom de estranheza vai crescendo e a opção pelo gênero terror ganha contornos maiores. Já faz algum tempo que é ao horror que tem se recorrido para tratar de maneira poética das injustiças e dos absurdos do mundo real.

sexta-feira, outubro 08, 2021

UM TIRO NA NOITE (Blow Out)



“When I’m making a film, nothing else matters to me. The outside world no longer exists. I have only one obsession: to realize the project that is in my head. I no longer pay any attention to my wife or my children and sometimes I’ve lost everything because of it.”
(Brian De Palma)


É interessante ver esse depoimento do De Palma, mesmo sabendo que isso deve ser a realidade de outros tantos realizadores. A obsessão pelo trabalho a tal ponto que a vida familiar acaba prejudicada. No caso de UM TIRO NA NOITE (1981), Jack, o personagem de John Travolta, fica tão obcecado pelo caso do acidente/assassinato do governador, que ele vive deixando para depois o próprio trabalho. No caso, é bem compreensível. Afinal, há uma questão tão mais urgente no ar, uma gravação que pode ser uma prova do assassinato, mas também acaba o deixando cego para a possibilidade de que a própria garota por quem ele está interessado (Nancy Allen) corre sério perigo.

UM TIRO NA NOITE é a quarta e última parceria de Brian De Palma com Nancy Allen (o casamento dos dois acabaria logo após) e também a quarta (mais não última) parceria com o maestro Pino Donaggio, sempre fazendo um trabalho maravilhoso, unindo uma trilha de suspense com algo mais romântico. O filme sempre ficou em meu pódio (ou pelo menos no top 3) dentre os trabalhos do diretor (isso poderá mudar, talvez, com essa peregrinação). A experiência de tê-lo visto, mesmo na televisão, na adolescência, já foi bem marcante. Depois em 2004, em DVD, isso se ampliou. E agora vejo em BluRay, em alta definição, uma perfeição!

O filme parece uma fusão de BLOW-UP – DEPOIS DAQUELE BEIJO, de Michelangelo Antonioni, com A CONVERSAÇÃO, de Francis Ford Coppola. Aqui o cineasta, talvez incomodado com a recepção crítica não muito acolhedora a seu VESTIDA PARA MATAR (1980), resolve fazer uma obra mais séria, por assim dizer. Na trama, John Travolta é um sonoplasta de filmes B de terror que grava sons da natureza à noite quando testemunha um acidente automobilístico e salva uma garota de dentro do carro, que cai em um riacho.

Posso estar errado, mas percebo neste filme um uso mais discreto de seu virtuosismo com a movimentação da câmera, mas há sobreposições e aproximações que lembram os gialli. Dos gialli também há a beleza atrelada à tragédia, à violência. A cena dos fogos de artifício dificilmente sai de nossa lembrança.

Uma coisa que é sempre bom considerar quando podemos nos dar ao luxo de ver toda a filmografia de Brian De Palma é perceber que toda ela está conectada. Não se trata simplesmente de dividir em dois, três ou quatro períodos; ou dividir entre filmes maneiristas e não maneiristas; ou entre comédias ou suspense. No caso de UM TIRO NA NOITE, por exemplo, podemos buscar uma referência lá no começo da carreira, em QUEM ANDA CANTANDO NOSSAS MULHERES (1968).

Nesse filme, o personagem de Gerrit Graham é um sujeito obcecado por teorias de conspiração sobre o assassinato de John F. Kennedy e desenha sua linha de raciocínio no corpo nu de uma mulher. Em UM TIRO NA NOITE, quando Jack põe Sally para encontrar o reportar, colocando escuta nela, mesmo sem saber que ela vai se encontrar na verdade com um assassino serial (John Lithgow), ele está colocando um alvo na moça.

UM TIRO NA NOITE também lida com os duplos malignos habituais dos filmes do diretor. No caso, eles seriam o fotógrafo (Dennis Franz) e o homem que atirou no pneu com o rifle (Lithgow). Os três estavam no mesmo lugar no momento do tiro. Jack, no entanto, se apresenta diferente dos dois pela inocência e por querer a verdade. Divulgar o que realmente aconteceu é o mais importante. E ver Jack fazendo cinema, ao unir fotografia com som, é mágico e fascinante.

Quanto às relações já habituais com os filmes de Alfred Hitchcock, temos pelo menos dois momentos que aproximam UM TIRO NA NOITE com UM CORPO QUE CAI. Tanto Jack quanto Scottie (James Stewart) salvam uma mulher das águas e a acolhem na cama, carinhosamente. Além do mais, ambos se sentem traídos quando descobrem que a mesma mulher agiu de maneira pouco nobre sem que eles soubessem. No caso de Sally, ela havia sido paga para estar com o governador e depois gerar um escândalo, como já havia feito com outros homens da alta sociedade. Assim, há um tipo de moralismo incômodo em ambos os heróis.

E há também algo de estranho com a falta de interesse em sexo por parte de Jack. Diferente do fotógrafo, que tenta forçar sexo com Nancy, ou do assassino que fica extasiado em estrangular as mulheres, o herói da história parece um sujeito que está sempre se reprimindo. Douglas Keesey, o autor do livro Brian De Palma’s Split-Screen, até vê na cena em que Jack usa o picador de gelo para matar o estrangulador, como se ele estivesse matando a si mesmo, ou o seu lado maligno. Poderia ser também uma forma de autopunição por não ter conseguido chegar a tempo de salvar Sally. E o que seriam os fogos de artifício dentro dessa representação sexual meio freudiana? Talvez uma espécie de gozo. Mas não seria estranho um gozo depois do que aconteceu? O autor do livro vê isso como uma resposta ao que Hitchcock fez em LADRÃO DE CASACA, na cena dos fogos de artifício no momento do abraço entre Cary Grant e Grace Kelly.

Infelizmente UM TIRO NA NOITE não foi bem de bilheteria. Custou 18 milhões de dólares e faturou apenas 8 milhões. Além do mais, a maior parte da crítica não foi favorável ao filme. Dos críticos mais famosos, quem elogiou e enalteceu foi Pauline Kael. Mesmo assim, foi mais uma decepção para De Palma, que já havia sido incompreendido em VESTIDA PARA MATAR e quis fazer uma obra bem mais sóbria. Muito provavelmente, a resposta a tudo isso seria o banho de sangue e violência em SCARFACE (1983), mas ainda não sei o quanto isso foi uma resposta voluntária ou não.

+ DOIS FILMES

HUNTED

A princípio podemos ver HUNTED (2020) como um filme-irmão de SOZINHA, de John Hyams, mas o que o filme de Hyams tem de riqueza visual e narrativa, mesmo lidando com uma trama simples, este exemplar belga perde bastante na comparação, por mais que o começo seja bem tenso, com a protagonista sendo capturada por dois maníacos para ser usada como vítima em vídeos doentios que eles geram. A simplicidade também está na geografia, com a história basicamente toda se passando no meio de uma floresta. Vejo como problemático o vilão da história não ser suficientemente assustador ou odioso. Ainda asim, é um filme eficiente e que entretém em uma duração relativamente curta. O curioso é que o diretor Vincent Paronnaud é o parceiro de Marjanie Satrapi em PERSÉPOLIS (2007) e FRANGO COM AMEIXAS (2011).

DNA (ADN)

Mesmo sem saber nada a respeito dos bastidores e das motivações que levaram Maïwenn a interpretar a si mesma em busca de suas origens, dentro de uma estrutura familiar complexa, a impressão que fica é que este talvez seja o seu filme mais pessoal como diretora. DNA (2020) começa fascinante, primeiramente ao mostrar o apego da família ao velho patriarca, que vive em uma casa de repouso e já não compreende muita coisa e mal fala. O fascínio vem com sua morte, os efeitos que ela traz na família e os preparativos para o enterro, mostrados de maneira lenta, destacando a falta de sintonia da família até na hora de escolher um caixão que será cremado. Em seguida, o foco do filme vai cada vez mais para a personagem de Maïwenn, com Fanny Ardant no papel da mãe pouco amada, Louis Garrel como o irmão divertido e Marine Vacth como a irmã com quem a protagonista não se dá muito bem. Há ainda a figura do pai pouco presente. Se não fosse o final apressado e que tira muito do impacto poético que poderia ter, DNA seria um dos melhores filmes franceses dos últimos anos.

terça-feira, outubro 05, 2021

CENAS DE UM CASAMENTO (Scener ur ett Äktenskap)



Ontem, vendo o segundo episódio do remake americano de CENAS DE UM CASAMENTO (1973), percebi que já faz algumas semanas que assisti à minissérie original de Ingmar Bergman e que precisava escrever um pouco a respeito, antes que a lembrança da experiência, um misto de dor espiritual e prazer estético, começasse a ir para o arquivo morto do cérebro. Ver o remake me ajudou um pouco a não só fazer comparações com a obra-prima televisiva do diretor sueco, mas também a começar a me lembrar de algumas cenas marcantes.

Lendo o texto do livro O Planeta Bergman, de Carlos Armando, soube que o cineasta fez a obra dedicada a Liv Ullmann, o grande amor de sua vida, como uma forma de voltar a vida em comum com a atriz. Desconhecia essa informação e achei muito bonito, me fez lembrar a tentativa de Domingos Oliveira de recuperar o namoro com Leila Diniz quando a convidou para fazer TODAS AS MULHERES DO MUNDO.

Armando destaca o momento em que Johan (Erland Josephsson) fala para Marianne (Ullmann): “eu me permito imaginar que você me ama à sua maneira... Creio simplesmente que nós nos amamos. De uma maneira terrestre e imperfeita.” E agora me pego pensando no termo “terrestre” que ele usa. Afinal, Bergman usou muito de sua obra para falar de questões metafísicas, como a existência de Deus, a morte etc. E aqui se permite abordar exclusivamente a crise de um casamento. Que, aliás, também era seu forte, essa coisa de falar sobre relacionamentos, seja um casamento ou um conflito familiar. E de maneira tão dolorosa que falar “meter o dedo na ferida” passa a ser um eufemismo perto do que ele faz.

CENAS DE UM CASAMENTO, pelo menos na Suécia, foi o trabalho mais popular de Bergman. Chegou às televisões do país e fez muito sucesso. Tanto que até dizem que incentivou muitos casais a se divorciarem. Há uma pesquisa que fala sobre isso, mas não sei dizer o quanto pode ser apenas uma coincidência. Mas o fato é que ali na década de 1970 uma nova sociedade estava se formando. E viver em um casamento apenas aturando o cônjuge deixou de ser uma obrigação.

Preferi ver a versão em minissérie do que a versão lançada nos cinemas no ano seguinte. E creio que fiz a melhor opção. Afinal, quanto mais Bergman melhor. A minissérie se divide em sete episódios. Em “Inocência e Pânico”, nos vemos um tanto atordoados com tantos diálogos, mas também com aquela tentativa de transparecer um casamento perfeito para uma equipe de televisão e em seguida para um casal de amigos, e que já suspeitamos ser só uma fachada. No segundo, “A Arte de Varrer para Debaixo do Tapete”, já sentimos as angústias: Marianne parece não estar muito disposta ao sexo, mas isso não é o único problema no relacionamento. O terceiro, chamado “Paula”, é um dos mais intensos, e que trata da revelação de uma amante de Johan. E nem é esse apenas o problema. Ficamos com um misto de incômodo e solidariedade com o modo como Marianne procura contornar ou aceitar (ou não) aquela nova situação.

Os demais capítulos se chamam “O Vale das Lágrimas”, “Os Analfabetos” e “No Meio da Noite”. A opção de Bergman por preferir usar créditos em áudio do que escritos dão um tom interessante e estranho à experiência. O curioso é que, como se trata de uma obra de um diretor que costuma privilegiar bastante a beleza plástica, por mais que seja um trabalho muito mais despido de imagens de extrema beleza – a minha lembrança imediata era de A FONTE DA DONZELA (1960), que havia visto poucos dias antes -, a experiência de ver uma grande D.R. chega a ser menos dolorosa, já que há também todo um cuidado visual para que possamos compensar a dor com o prazer dos olhos (Sven Nykvist é o diretor de fotografia).

Como sabemos que Bergman passou por diversos casamentos e relacionamentos íntimos ao longo de sua longa jornada de vida, que se confundia muito com seu trabalho incessante, é possível perceber que CENAS DE UM CASAMENTO foi inspirada em sua atribulada vida conjugal. Mas uma coisa que percebemos também é que é fácil tomar o partido de Marianne e ver na minissérie algo de feminista. É fácil amar Marianne e odiar, por vezes, Johan. Não pela traição em si, mas por seu comportamento.

Quanto ao remake americano, estou vendo mais como um belo trabalho dos atores, mas deixemos para falar depois que acabar de vê-la.

Agradecimentos a Paula pela companhia durante as sessões da minissérie de Bergman.

+ DOIS FILMES

O MENINO QUE MATOU MEUS PAIS

Filme vendido junto com A MENINA QUE MATOU OS PAIS, também dirigido por Mauricio Eça, este O MENINO QUE MATOU MEUS PAIS (2021) conta a história a partir do depoimento de Suzane von Richthofen no tribunal, de modo a diminuir sua culpa e colocar quase tudo nas costas do namorado Daniel. E é até fácil ver Daniel como um rapaz de péssima índole, mas, por outro lado, como o filme tem uma construção muito simplista, a visão do sujeito sem muitos tons de cinza prejudica a apreciação. Definitivamente está longe de ser um bom filme, mas acho que os criadores entraram numa situação complicada ao ter que contar duas histórias claramente fantasiosas dos fatos. Difícil comprar Carla Diaz como a menina inocente e o discurso anti-maconha é constrangedor. O momento final, mais aguardado, do assassinato, é pouco impactante, por mais que apele para efeitos de câmera. Além do mais, senti falta do que acontece logo após o assassinato dos pais de Suzane.

A MENINA QUE MATOU OS PAIS

Nem sei dizer se esta versão (contada por Daniel e com a imagem de uma Suzane mais diabólica) é mesmo pior que a outra, mas atravessar toda a sua metragem já vendo a história antes, apenas sob um novo olhar, ninguém merece. A MENINA QUE MATOU OS PAIS (2021) até convence um pouco mais, mas talvez seja por causa da longa tradição das femme fatales no cinema. E também porque já se convencionou tratar Suzane von Richthofen como a mente principal do assassinato dos próprios pais, principalmente por quem não sabe detalhes do ocorrido ou não leu mais a respeito do caso (como eu). A ousadia maior deste está na violência quase gráfica, já que a cena do crime é mostrada pelo ponto de vista de quem o executou com as próprias mãos.

domingo, outubro 03, 2021

UMA GAROTA SOLITÁRIA (La Fille Seule)



O advento dos streamings, de alguns anos para cá, tem começado a trazer benefícios para o público mais exigente. Resgates de filmes pouco conhecidos ou de alguns que sequer chegaram a ser exibidos comercialmente no Brasil podem ser vistos na MUBI, por exemplo. Vejamos o caso do cineasta Benoît Jacquot, que me pareceu sempre interessante desde os primeiros filmes que vi dele, ADEUS, MINHA RAINHA (2012), O DIÁRIO DE UMA CAMAREIRA (2015) e O ÚLTIMO AMOR DE CASANOVA (2019).

Mas acontece que Jacquot já tem uma carreira de 48 créditos, entre produções para a televisão e para o cinema, sendo que seus primeiros trabalhos foram nos anos 1970. Ou seja, estamos diante de um cineasta que já era interessante desde o começo ou que só foi se tornando um grande artesão com a maturidade? Isso seria o caso de ver os filmes para só então descobrir. Esse tipo de situação pode acontecer com inúmeros outros diretores que só descobrimos a partir de suas realizações mais recentes.

Eis que tive a chance de ver, então, UMA GAROTA SOLITÁRIA (1995), um trabalho mais ousado formalmente do que os seus últimos trabalhos, que têm a vantagem de ter mais dinheiro na produção, mas que não necessariamente parecem tão inventivos quanto este filme estrelado pela belíssima Virginie Ledoyen. A primeira vez que vi Virginie foi em A PRAIA, estrelado por Leonardo DiCaprio, mas ela é só uma moça bonita que aparece e depois esquecemos. Aliás, o próprio filme, eu nem lembro mais. Depois, em 8 MULHERES, de François Ozon, ela aparece no meio de atrizes de tão alto gabarito que acaba sendo facilmente eclipsada.

Mas eis que ela aparece em dois excelentes filmes de Emmanuel Mouret, SÓ UM BEIJO POR FAVOR e UM NOVO DUETO, em papéis de destaque e muito fáceis de causar paixão nos espectadores. Porém, nenhum desses filmes a mostrou de maneira tão intensa quanto UMA GAROTA SOLITÁRIA, em que a câmera a segue em praticamente 100% da metragem.

No filme, ela é uma jovem que está prestes a entrar no seu primeiro expediente em um hotel quatro estrelas. Ela acabou de descobrir que está grávida e marca um encontro com o namorado desempregado em um bar para contar as boas novas. O rapaz não recebe a notícia com muita alegria; ela, no entanto, planeja ter a criança, com ou sem a participação dele. Ficam de se encontrar pouco depois para conversarem melhor, no mesmo local, já que ela precisa se apresentar ao novo trabalho imediatamente. A câmera a segue atravessando a rua até o hotel, sem cortes. Eu diria que, com um pouco de criatividade, é possível sentir o cheiro da noite e da ambientação das ruas.

UMA GAROTA SOLITÁRIA é um filme que antecipou em algumas décadas debates dos dias atuais, como a questão do assédio às mulheres no ambiente de trabalho e a hoje chamada cultura do estupro. Isso é visto com incômodos detalhes, ao longo dos minutos que vemos a protagonista em seu trabalho. Há também a conversa com a chefe, que vê o fato de ela ser muito bonita um possível empecilho para o trabalho.

Um dos destaques do filme, do ponto de vista formal, é que ele se passa, quase que completamente, em tempo real. Isso passa um senso de urgência e de estresse que contagia a obra. Temos aqui um filme que tem um frescor que não veríamos em obras posteriores do cineasta e que chega a remeter aos filmes do Godard dos anos 1960. Eis filme que se vê com muito prazer.

P.S.: A MUBI está com um outro filme dos anos 1990 estrelado por Virginie Ledoyen: LATE AUGUST, EARLY SEPTEMBER, um dos poucos trabalhos de Olivier Assayas até então inéditos no Brasil. A ver em breve.

+ DOIS FILMES

SUK SUK - UM AMOR EM SEGREDO (Suk Suk)

Como são raros os filmes de temática LGBT com personagens mais maduros presentes em nosso circuito exibidor (o último de que me lembro é O AMOR É ESTRANHO, de Ira Sachs), SUK SUK – UM AMOR EM SEGREDO (2019), de Ray Yeung, é muito bem-vindo. O fato de a sociedade de Hong Kong ser mais conservadora do que a brasileira faz com que seja ainda mais frequente pais de família esconderem suas orientações sexuais e só aproveitarem um pouco mais quando já estão mais velhos. Não me envolvi tanto com o romance dos protagonistas, mas fiquei tocado com o quanto eles sofrem com esse segredo, especialmente o que tem um filho bem religioso.

ANA. SEM TÍTULO

Um filme que tem uma ousadia e um papel importante como resistência (racial, de gênero) neste momento de ensaios de retorno de uma extrema direita e que também brinca com a opção por um documentário falso, que busca a verdade por meio da ficção. Os depoimentos de várias senhoras em alguns países da América Latina são sim, creio eu, inserções documentais na narrativa, mas ainda assim ANA. SEM TÍTULO (2020), de Lúcia Murat, é uma obra que pode enganar a muitos espectadores, que se pegam intrigados e possivelmente interessados na história de busca por uma mulher chamada Ana, artista plástica e militante de esquerda. Gosto do discurso final, embora acredite que poderia ter ficado melhor se fosse materializado.

sábado, outubro 02, 2021

VENENO PARA AS FADAS (Veneno para las Hadas)



O impacto de ter visto o meu primeiro filme mexicano de horror foi grande. O ESPELHO DA BRUXA, de Chano Urueta, lançado antes do nosso À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA, me pegou de surpresa, com tanta criatividade e beleza visual. E se percebe que há uma pluralidade de estilos muito rica também nessa cinematografia, como pude perceber vendo outros títulos do box Obras-Primas do Terror – Horror Mexicano, que, aliás, já ganhou um segundo volume, já disponível em pré-venda.

VENENO PARAS AS FADAS (1986) foi o segundo filme que vi de Carlos Enrique Taboada e o mais impressionante em muitos aspectos. Já havia gostado bastante de ATÉ O VENTO TEM MEDO (1968), mas este outro é bem mais interessante. No aspecto formal, o protagonismo das duas crianças é levado ao ponto de a câmera não mostrar os rostos dos adultos, a não ser em circunstâncias em que eles se apresentam como pessoas de causar medo ou susto.

Há uma excelente caracterização das duas meninas e a história se passa nos anos 1960. Flavia (Elsa María Gutiérrez), a morena novata na escola, que não tem uma educação religiosa em casa, começa uma amizade com Verónica (Ana Patricia Rojo), a garotinha loira que escuta, encantada, da empregada doméstica, histórias de bruxas e outras figuras fantásticas e logo quer passar a imagem para a colega de que ela mesma é uma bruxa. “Bruxas podem fazer tudo”, é o que ela escuta impressionada, e isso passa a ser um desejo de tudo dominar, sem se importar que tenha que cometer maldades, afinal, bruxas se dão ao luxo de fazer atos maléficos.

O filme é também um conto sobre a maldade presente na infância e até sobre a relação que se estabelece entre o agressor e o agredido. VENENO PARA AS FADAS, segundo vi em algumas críticas, é o último filme do realizador e também o seu mais potente trabalho, quando ele substitui o tema sobrenatural por um horror psicológico muito rico, unindo a fantasia com o terror de maneira brilhante. Um dos diretores mais entusiastas do cinema de Taboada é também um mexicano, Guillermo Del Toro, que já fez dois trabalhos com o horror e a infância andando de mãos dadas, A ESPINHA DO DIABO e O LABIRINTO DO FAUNO.

Um dos momentos em que o filme de Taboada ganha contornos mais dramáticos é quando Flavia pergunta a Verónica se ela pode ajudá-la, através da magia, a se livrar de suas exaustivas e chatas aulas de piano. Os momentos de tensão se intensificam quando Verónica viaja com a famíia de Flavia para uma casa de campo e a pequena bruxinha tem a ideia de criar um veneno para as fadas a partir de elementos clássicos da bruxaria, que ela ouvira nos contos de fadas.

Nos extras do DVD há depoimentos das duas meninas, agora adultas. Ana Patricia Rojo se tornou uma famosa atriz de telenovelas em seu país, mas afirma que seu melhor trabalho ainda é VENENO PARA AS FADAS. Já Elsa María Gutiérrez se desligou totalmente da vida de atriz.

+ DOIS CURTAS

TODOS OS ROSTOS QUE AMO SE PARECEM

A princípio pode parecer um filme-irmão de DOMICÍLIO INCERTO (2020), da mesma dupla de diretores, Davi Mello e Deborah Perrotta.  Também traz um tipo de solidão que pode remeter ao cenário da pandemia. Mas TODOS OS ROSTOS QUE AMO SE PARECE (2021) é mais experiemental, um pouco mais difícil de assimilar. Tanto que vi duas vezes para tentar apreender um pouco mais. Não sei se adiantou para a compreensão, mas adianta bastante para perceber a beleza do desenho de produção, da fixação em janelas e portas e naquilo que elas apresentam dentro delas, e também em outros objetos da casa, como um quadro cuidadosamente arrumado. Gosto da citação da mãe de Sandra, a personagem de Deborah Perrotta, sobre a importância de ter o que gostamos em casa. Há uma curiosa cena de sonho, mas o sonho parece um filme antigo (em 16 mm, em VHS?), depois seguido pelo último, belo e intrigante quadro do filme. Ainda não sei o que vi, mas creio ter gostado.

UN ROBE D'ÉTÉ

Antes de estrear seu primeiro longa de ficção, François Ozon já tinha no currículo vários curtas. Este é um deles e é bem saboroso. E há alguns elos de contato entre UN ROB D’ÉTÉ (1996) com um de seus mais recentes filmes, VERÃO DE 85 (2020), embora me pareça mais próximo, de seus primeiros trabalhos, no que se refere à saudável força sensual. Na pequena trama que dura 15 minutos apenas, um rapaz gay vai tomar banho nu numa praia e é abordado por uma moça. Dá pra notar tanto a vontade de Ozon de materializar uma fantasia quanto o talento em contar uma história com poucos diálogos e muitos olhares. Além do mais, ele antecipou Tarantino ao incluir na trilha a canção "Bang bang", que aqui aparece em sua versão francesa.

sexta-feira, outubro 01, 2021

NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS (Stagecoach)



Grandes filmes costumam nos colocar como pessoas mais humildes. E é preciso que tenhamos mesmo mais humildade, principalmente quando lidamos com cineastas de tão alto gabarito como John Ford. Confesso que sempre fui de preferir Howard Hawks a John Ford, mas estou começando a perceber que o que estava me faltando era rever os filmes do “diretor dos diretores” e ir percebendo melhor seus detalhes, sua força visual e também a riqueza da construção de seus personagens. 

Além do mais, acho importante não apenas ver e rever os filmes, mas também ler a respeito, ver e ouvir o que estudiosos têm a dizer sobre eles, de modo que aprendamos mais e mais. Isso tem me ajudado bastante a perceber melhor a grandeza de Ford e a importância e a beleza de um filme como NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS (1939), visto por mim em diferentes mídias ao longo dos anos: VHS, DVD e agora em BluRay. E cada vez ficando melhor. Não pelo melhor tratamento da imagem, da tecnologia etc., mas pela percepção mesmo.

À medida que vamos revendo, detalhes importantes de fotografia e de composição, que remetem a F.W. Murnau, vão se tornando mais nítidos; e cenas noturnas, por exemplo, são de uma beleza impressionante. Destaco duas cenas de John Wayne com Claire Trevor, as duas acontecendo à noite: aquela em que ele fala com ela sobre casamento; e uma perto do final, com os dois andando lentamente pela rua da cidade-destino. Sobre a composição, inclusive, é muito enriquecedor ver os extras que vêm no box Ford Essencial, tanto as sábias palavras de Peter Bogdanovich, quanto a aula de Tag Gallagher.

Muito bom ver Ford, que costuma ter a fama de sujeito de direita, se mostrando bastante progressista, ao apresentar personagens marginalizados e humilhados. Sobre isso, tomo emprestadas as palavras de André Bazin, retirado de um de seus ensaios mais famosos:

NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS, de John Ford, nos mostra que uma prostituta pode ser mais respeitável do que os beatos que a expulsaram da cidade e do que a mulher de um oficial; que um jogador debochado pode saber morrer com dignidade de aristocrata, que um médico bêbado pode praticar sua profissão com competência e abnegação; um fora da lei perseguido, por algum ajuste de contas passado e provavelmente futuro, dar provas de lealdade, de generosidade, de coragem e de delicadeza, enquanto um banqueiro considerável e considerado foge com o cofre.” (O Que É o Cinema?, p. 265)

Aliás, ainda destacaria o momento em que a prostituta aparece com o bebê nos braços, cercado pelos homens da carruagem. Fica parecendo uma imagem da Virgem Maria iluminada pelo nascimento de Jesus, tal o grau de sacralidade que Ford traz. Aliás, não à toa o próprio diretor enfatizaria esse tema mais católico em O CÉU MANDOU ALGUÉM (1948), também estrelado por John Wayne. No filme de 1939, me pareceu algo até bastante transgressor, por mais que a imagem seja sutil.

Mesmo assim, o olhar de Ford é bastante gentil para com todos os seus personagens. Não há exatamente um julgamento. Todos eles são resultados de causalidades, de situações que os fizeram agir daquele jeito. O que não quer dizer que Ford não possa fazer suas críticas bem claras, principalmente ao banqueiro, mas também um pouco às “senhoras de bem”.

Para quem vê hoje pode se incomodar um pouco com a quantidade de clichês próprias do western, mas a maior parte ali era Ford reinventando. Por isso, é preciso contextualizá-lo para entender sua importância imensa na história não só do gênero, mas do cinema em si.

Aliás, na época da produção de NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS, Hollywood não queria mais fazer westerns, por causa principalmente de duas grandes produções que resultaram em fracassos imensos de bilheteria, A GRANDE JORNADA, de Raoul Walsh, e CIMARRON, de Wesley Ruggles. Os westerns que eram feitos eram produções de baixo orçamento e muito longe do prestígio das produções A ou mesmo B.

“Mas isso é um western! Ninguém mais faz westerns!”, gritou o produtor Walter Wanger, da United Artists, aquele que toparia bancar o projeto. Ford havia recebido alguns nãos de um par de estúdios, e foi Fore quem insistiu em trazer John Wayne, que há anos esperava ser chamado para uma produção do amigo. Valeu a pena esperar, pois foi neste filme que ele alcançou seu estrelato. Porém, vale lembrar que o primeiro nome nos créditos é de Claire Trevor, não de Wayne, ainda um ator de filmes pequenos, enquanto ela já era uma estrela da Fox.

NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS é um marco em muitos sentidos. Foi o western que definiu o gênero que resistiu por muitas décadas em Hollywood. Foi o filme de estreia de John Wayne como um grande astro. Foi o primeiro Ford no Monument Valley (ele faria outra série de filmes nessa locação que fica na fronteira entre os estados de Utah e Arizona). Estabeleceu um estilo visual que influenciou CIDADÃO KANE (as imagens dos tetos se destacam). E traça um panorama muito interessante da sociedade americana, uma sociedade dividida, marcada pela hipocrisia. Enfim, há tanto a se contar e a se falar sobre o filme e ainda não me sinto suficientemente íntimo da poética do diretor para falar de maneira mais apropriada. Quem sabe em breve. 

+ DOIS FILMES

SUA ÚNICA SAÍDA (Pursued)

Este belo western de Raoul Walsh (diretor sempre brilhante, pelo que pude ver de seu trabalho até hoje) tem um quê de O Morro dos Ventos Uivantes, já que temos aqui dois irmãos (um deles adotivo) que se apaixonam perdidamente em um cenário sombrio. A trama de SUA ÚNICA SAÍDA (1947) acontece em um longo flashback, em que o personagem de Robert Mitchum, acuado, tenta lembrar o que aconteceu com ele desde a infância, quando foi adotado por uma mulher que tinha dois filhos, um menino e uma menina. Gosto de como o filme tem uma preferência por cenas noturnas, acentuando seu espírito noir/gótico e aproveitando tanto as tintas melodramáticas quanto as de suspense. O mistério em torno dos motivos de o protagonista ser tão perseguido só aparece lá pelo final do filme. Teresa Wright está muito bem como a "irmã" apaixonada, mas que também, a certa altura, fica consumida pelo ódio.

A ÚLTIMA FLORESTA

Esse negócio de criar expectativa é prejudicial. Gosto muito de EX-PAJÉ (2018). Considero um dos melhores filmes do ano de sua exibição. Em A ÚLTIMA FLORESTA (2021), Luiz Bolognesi aposta mais no deslumbramento visual e na mitologia dos povos yanomamis para construir um tipo de documentário que vai muito além do documentário, como já é característico de seu trabalho. Gosto de como ele transgride as regras em momentos de intimidade dos personagens, inclusive com usos interessantes de close-ups. Por outro lado, o filme parece que ficou a dever um fio de história. No mais, fiquei feliz de ver que a sessão tinha mais público do que o habitual no Cinema do Dragão. Sinal de que esse tipo de filme, ligado às causas indígenas, está cada vez mais sendo objeto de interesse por um público que vai além da cinefilia.