sábado, fevereiro 17, 2024

O BARÃO AVENTUREIRO (The Baron of Arizona)



Ainda estou me acostumando com o cinema de Samuel Fuller. Por enquanto, meu favorito ainda é seu filme de estreia, EU MATEI JESSE JAMES (1949), já que certos títulos dos anos 1960 que pude ver dele, como PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963) e O BEIJO AMARGO (1964), vi talvez sem estar preparado ou sem uma noção maior de sua poética, ou mesmo uma noção das circunstâncias e motivações pelas quais suas obras foram feitas. Das produções dos anos 1980 que pude ver, AGONIA E GLÓRIA (1980) e CÃO BRANCO (1982) também precisam de revisão. Esses e todos os filmes que pretendo conseguir do realizador estarão na minha peregrinação. Não são tantos assim. 

Seguimos agora com seu segundo filme na direção, O BARÃO AVENTUREIRO (1950), em que Fuller mais uma vez abraça as pessoas deploráveis, demonstrando um humanismo poucas vezes visto no cinema. Depois de nos fazer solidários de um covarde em seu longa-metragem de estreia, ele agora nos faz simpáticos a um forjador, um falsificador de ambições imensas, um homem praticamente despojado de sentimentos nobres. A história é muito interessante e é impressionante que seja hoje tão pouco conhecida: um homem, James Reavis, conseguir forjar antigos documentos de modo a possuir todo o território do Arizona, isso é incrível.

No filme, ele é vivido por Vincent Price. Diria que para o bem e para o mal, pois nem sempre Price consegue uma atuação muito convincente (adorei quando ele fez o terrível caçador de bruxas no filme de 1968, por exemplo, mas talvez seja um caso especial). Aqui nesta produção do chamado beco da pobreza de Hollywood, Fuller faz um western bem estranho, com toques às vezes pesados de melodrama, acentuados pela trilha sonora, mas com outros muito divertidos de suspense e aventura (nas cenas do protagonista na Espanha). Chegam a ser engraçadas as cenas em que ele repete uma fala para conquistar as mulheres que passam por sua vida num curto espaço de tempo. 

O fato de esse personagem, esse herói estranho passar vários anos num mosteiro para realizar seu intento é representativo de alguém que acredita no fruto de seu trabalho. Seu trabalho consiste em usar tintas especiais e forjar caligrafias nos livros guardados a sete chaves nesse mosteiro. Imagina só: passar todo esse tempo fingindo ser um sacerdote, enquanto a então menina cresce e se transforma numa mulher. Uma vez que ela se torna “legalmente” (a partir do que ele consegue forjar) baronesa, ele pede a moça em casamento, não importando a diferença de idade. Ele tinha certeza de que havia criado para si uma figura de um mito para aquela menina que crescera suja, brincando com porcos, antes de ele trazer essas fake news de que ela era herdeira de muitas terras.

O BARÃO AVENTUREIRO foi uma produção barata. Suas filmagens duraram apenas 15 dias, ainda que cinco a mais que EU MATEI JESSE JAMES. Apesar da pobreza de recursos, na ficha técnica, a obra conta com um dos mais respeitados diretores de fotografia da história de Hollywood, o chinês James Wong Howe, que fez questão de trabalhar com Fuller. Na época, Howe já havia trabalhado em obras de prestígio, como OS CARRASCOS TAMBÉM MORREM, de Fritz Lang, e UM PUNHADO DE BRAVOS, de Raoul Walsh.

Lendo textos sobre Fuller, diretor nascido no jornalismo, assim como Richard Brooks, vejo críticos falando de suas imperfeições, e de como elas fazem parte de sua grandeza como cineasta. E que falam também de seu senso de urgência narrativa. Confesso que, depois de O BARÃO AVENTUREIRO, fiquei ainda confuso e acredito que seus próximos filmes me farão compreender melhor suas obsessões, suas intenções, sua estética. Por isso, aguardem para breve meu texto sobre CAPACETE DE AÇO (1951).

+ DOIS FILMES

JAMAL

Quando o curta-metragem JAMAL (1981), de Ibrahim Shaddad, começou, fiquei me perguntando se aquele som era do camelo ou do carro de bois - ou seja lá que máquina é aquela que o pobre animal usa. Lembrei-me do som constante de VIDAS SECAS, de Nelson Pereira dos Santos. Mas ao que parece, em JAMAL, é o som do camelo mesmo e o filme busca trazer uma conscientização dos maus tratos sofridos pelos animais, apelando até mesmo para uma espécie de antropomorfização do camelo perto do final. E é triste pensar que é preciso esse tipo de coisa, de fazer comparação do homem como um escravo, rodando vendado uma roda o dia inteiro, para tornar esse sofrimento compreensível. O filme tem uma crueza muito própria de um país que devia ainda estar lutando muito para ter um nível de prosperidade minimamente digna.

A GRANDE TESTEMUNHA (Au Hasard Balthazar)

A revisão de A GRANDE TESTEMUNHA (1966), de Robert Breson, desta vez foi no cinema e em 35 mm. Havia visto pela primeira vez quase 18 anos atrás e desta vez muito me incomodou, além da questão envolvendo o burrinho sendo passado de mão e mão e sofrendo maus tratos e falta de respeito, algo relacionado à personagem de Anne Wiazemsky (A CHINESA). Ela é Marie, cujo nome provavelmente tem um simbolismo cristão, sendo Bresson um cineasta católico. Ela larga a família para viver uma relação abusiva com um jovem deliquente, muito provavelmente o personagem mais odioso do filme. Este é um dos trabalhos do Bresson que mais tive dificuldade de acompanhar e compreender o enredo, por causa da grande quantidade de personagens e das elipses, já que a intenção do cineasta é reduzir tudo ao essencial, não apenas as emoções e os diálogos, mas também o que é apresentado na tela. Então é uma marca do diretor certa obsessão pelas mãos, como muito bem podemos lembrar do maravilhoso UM CONDENADO À MORTE ESCAPOU (1956), uma obra muito mais otimista em sua conclusão. De A GRANDE TESTEMUNHA só podemos esperar o mais rápido possível fim do sofrimento daqueles personagens, seja Balthazar, Marie, o bêbado Arnold, ou os pais de Marie. Neste filme não há salvação neste plano de existência. Uma cena que muito me chamou a atenção desta vez: os campos e contracampos de Balthazar com os bichos aprisionados no circo.

terça-feira, fevereiro 13, 2024

O DIA QUE TE CONHECI



O cinema brasileiro está vivendo um momento excepcional. Já faz algum tempo que deixou de ser quase exclusividade de São Paulo e do Rio de Janeiro para surgir vivo e forte nos demais estados do país. Nos anos 2000, o cinema produzido em Pernambuco e Rio Grande do Sul se destacou, assim como o cinema produzido no Ceará. Eis que, principalmente a partir dos anos 2010, o cinema de Minas Gerais começou a se tornar um dos mais bonitos e criativos do Brasil. Parece que foi que saí do cinema encantado com filmes como ARÁBIA, de Affonso Uchôa e João Dumans, e NO CORAÇÃO DO MUNDO, de Gabriel Martins e Maurílio Martins. E há o principal cineasta desta nova onda do cinema mineiro, André Novais Oliveira.

O DIA QUE TE CONHECI (2023) é apenas o terceiro longa-metragem de Oliveira e ele parece ter chegado a um domínio de direção que beira o sublime. Lembrando que o primeiro curta do cineasta, FANTASMAS (2010), já me deixou muito empolgado. Empolgado e um tanto irritado, já que fiquei pensando: como não tive uma ideia dessas para fazer um filme com tão poucos recursos? Mas eu falei isso sem nunca ter pegado numa câmera profissional na vida. E FANTASMAS não foi uma sorte de principiante: foi talento, foi verve poética, como pudemos ver em seguida nos trabalhos posteriores, como o curta afetivo POUCO MAIS DE UM MÊS (2013), a declaração de amor aos pais com ELA VOLTA NA QUINTA (2014), a comédia QUINTAL (2015) e o aparentemente despojado TEMPORADA (2018).

Mesmo com uma carreira brilhante, ainda de poucos curtas e longas, arrisco dizer que O DIA QUE TE CONHECI é sua maior obra-prima até o momento. No novo filme, cada momento de seus 71 minutos é uma delícia, e os aplausos finais do público partiram do coração, de uma imensa gratidão, já que o cineasta não estava presente na sessão. Emocionado e feliz, eu via o sorriso de contentamento daquelas pessoas presentes na sessão especial do filme, na Mostra Retrospectativa do Cinema do Dragão.

Na trama de O DIA QUE TE CONHECI, Renato Novais (irmão do diretor) é um sujeito que trabalha na biblioteca de uma escola. Acontece que ele tem um problema em acordar cedo e isso vai acabar lhe trazendo uma notícia não muito feliz, como veremos a partir de sua primeira conversa com a personagem de Grace Passô, que faz uma secretária escolar. O diretor encanta com a graça dos diálogos logo no começo do filme (difícil não rir do diálogo entre o protagonista e o seu colega de habitação), mas também com as escolhas de câmera, com o uso econômico (e lindo) da música, com o amor que parece brotar de seu par de personagens que se reconhecem entre os poucos pretos de uma escola majoritariamente branca.

O DIA QUE TE CONHECI tem uma graça tão (aparentemente) simples que fica até difícil tecer palavras de exaltação, pois buscar tais palavras acaba se tornando complicado, levando em consideração que a resposta para a grandeza do filme está nas imagens e no som: as conversas dentro do carro (com a câmera localizada no banco traseiro), do lado de fora do bar (com um papo que envolve remédios de tarja preta), as situações no ônibus e num botequim (com a pausa para o pastel) ou a aproximação do casal na casa. Além do mais, a cena dos dois caminhando pela rua meio deserta de BH é de um encanto que remete aos grandes clássicos musicais da Velha Hollywood. Pelo menos, o espírito leve é semelhante. Talvez por isso a gente saia da sessão assim, como se sentisse tão leve e feliz quanto o Fred Astaire num filme como A RODA DA FORTUNA.

Em algumas críticas que li sobre o filme de Oliveira, percebi citações a Yasujiro Ozu e Abbas Kiarostami como possíveis influências ou conexões. E creio que têm fundamento. Há um cuidado com os silêncios (dentro e fora dos diálogos) que só grandes diretores que lidam com aspectos mais interiores de seus personagens sabem transformar em encanto. Mal posso esperar para rever o filme, quando entrar em cartaz em circuito.

+ DOIS FILMES

FOLHAS DE OUTONO (Kuolleet Lehdet)

Uma história de amor tão simples quanto deliciosa, contada com uma dramaturgia que tem um quê de Bresson, mas com humor embutido. Um homem e uma mulher solitários e da classe trabalhadora mais desfavorecida da Finlândia se encontram em momentos difíceis de suas vidas, mas nem tudo são flores para que fiquem juntos. A estrutura da trama de FOLHAS DE OUTONO (2023) lembra os velhos melodramas hollywoodianos, mas a forma é bem diferente. Gosto muito de como Aki Kaurismäki nos coloca num tempo situado entre o presente (a Guerra da Ucrânia), o passado (os velhos rádios) e o futuro (o calendário de 2024). Mas a preferência é pelo passado. Até porque é no passado que está a glória do cinema homenageado em cenas, cartazes e na própria sala de cinema da cidade. Um filme que traz ternura e amor num mundo em que imperam a dureza, a crueldade e a solidão.

AFIRE (Roter Himmel)

Uma alegria ter um filme novo do Christian Petzold nos cinemas. Trata-se de um realizador muito querido, ainda que dentro de um público ainda bem nichado. AFIRE (2023) segue sua uma tetralogia de filmes sobre os elementos da natureza, iniciada com EM TRÂNSITO (2018) e UNDINE (2020) e que incorpora algo de fantástico dentro de uma narrativa realista. Na trama, um jovem escritor (Thomas Schubert) vai para uma casa de veraneio com seu amigo (Langston Uibel), filho da dona da casa, e lá descobrem que já há uma pessoa instalada (Paula Beer). O personagem do escritor é um sujeito bem difícil de se gostar: é antipático, enjoado e se sente superior aos demais. Concentrado no próprio trabalho e no que as pessoas vão achar do seu texto, acaba não percebendo as coisas que acontecem a seu redor, como o fogo que começa a dominar a floresta. AFIRE é um filme que vai crescendo à medida que pensamos nele.

domingo, fevereiro 11, 2024

PAIXÃO (Passion)



Infelizmente começou a me dar preguiça de ver os filmes dos anos 2000 e 2010 de Brian De Palma. E essa preguiça pode estar atrapalhando um pouco a minha percepção desses trabalhos. Por outro lado, um filme de que eu não gostei quase nada quando vi no cinema, como DÁLIA NEGRA (2006), passei a gostar mais, a ver muito mais beleza nessa obra torta do realizador. Com PAIXÃO (2012), porém, aconteceu o contrário. Já é um filme da fase decadente do realizador (sonho com seu retorno triunfal à boa forma) e nem sequer foi lançado nos cinemas brasileiros. A recepção morna deste e de outros filmes do diretor do novo século acabou por fazer com que um dos maiores e mais inventivos cineastas da Nova Hollywood se tornasse um rejeitado, um marginal dentro da indústria.

PAIXÃO nem sequer teve dinheiro norte-americano. É uma produção franco-alemã que conta com elenco e equipe internacionais. A canadense Rachel McAdams só foi convidada por causa da sueca Noomi Rapace, que a indicou a De Palma, depois que as duas trabalharam juntas em SHERLOCK HOLMES – O JOGO DAS SOMBRAS, de Guy Ritchie. Na época que vi o filme pela primeira vez, em 2014 (texto AQUI), estava um tanto revoltado pelo descaso que o mercado havia dado a De Palma e tendi a elogiar mais o trabalho, destacando sua semelhança com thrillers europeus e seu aspecto “enganador”. Embora eu não tenha citado o giallo como uma influência, a cena do assassinato de Christine (McAdams) me faz lembrar bastante esse tão querido subgênero.

E é a tal coisa. Um grande autor acaba fazendo a diferença, mesmo em obras menores ou irregulares com esta. Desta vez, achei que o filme demora muito a mostrar sua faceta criminal e isso me deixou um pouco impaciente, mais do que na primeira vez que o vi. Com isso, demora a ter aquela cara mais depalmiana dos anos 1980, mas quando mostra lembra muito VESTIDA PARA MATAR (1980). Inclusive nas cenas de elevador. 

Talvez PAIXÃO seja um dos filmes que mais ofereça munição para a velha acusação a misoginia por parte do cineasta pelo modo como pinta suas protagonistas. Rachel McAdams fica insuportável como vilã, hein, mas não falo isso como um problema e mesmo Noomi Rapace não é sempre uma vítima. O que vemos é um mundo em que a inveja, a crueldade e o puxar o tapete da outra é comum. A trama se passa em boa parte do tempo num escritório em Berlim de uma agência multinacional de publicidade. 

McAdams é Christine, uma executiva, e Rapace é Isabelle, sua assistente. Isabelle cria uma propaganda criativa e Christine rouba sua ideia e toma para si, garantindo uma promoção e uma mudança para o escritório em Nova York. Só que Isabelle arranja uma forma de chamar para si a atenção dos chefões, fazendo com que Christine perca sua chance de ascensão. Christine procura se vingar e usa um vídeo dela com Dirk (Paul Anderson) fazendo sexo como chantagem. Isabelle precisa recuar e deixar Christine brilhar novamente. Até que acontece aquela cena do assassinato, mostrada em split-screen com imagens de um balé que Isabelle estaria assistindo num teatro.

Com isso, os últimos vinte minutos ajudam a nos lembrar do bom e velho De Palma. Também gosto muito da última e tenebrosa imagem imediatamente anterior ao "The End". Infelizmente, isso acaba aconteceu muito tarde dentro de um filme de andamento problemático e irregular e personagens pouco atraentes – não gosto nem de Isabelle nem de Christine.

No entanto, quem conhece a poética do realizador vai encontrar inúmeras referências, desde o fato de Christine ter contado de uma irmã gêmea morta, como em IRMÃS DIABÓLICAS (1972), FEMME FATALE (2002) e DÁLIA NEGRA; passando pelos split-screens presentes em praticamente todos os seus trabalhos; a rivalidade entre irmãos (ou associados, como simbolismo de irmãos); o uso de um vídeo como evidência de um crime, como em TERAPIA DE DOIDOS (1979), UM TIRO NA NOITE (1981) e MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996); o aparecimento de um personagem ameaçador por trás, como em SÍNDROME DE CAIM (1992) e FEMME FATALE etc.

Além do mais, gosto da ideia da máscara. A máscara é o rosto de Christine e é usada em jogos sexuais por ela. Essa mesma máscara é usada pela assassina ao adentrar sua casa e cortar sua garganta com uma faca. Então, toda a questão do narcisismo de Christine faz com que ela tenha sido, simbolicamente, assassinada por si mesma. Antes disso, ela parece se acariciar no banheiro e depois admira seu corpo no espelho. É uma das personagens mais representativas do mundo de selfies que De Palma criou até o momento. No mais, ao contrário do que alguns cartazes dão a entender, não se trata de um filme que explora as cenas de beijos entre mulheres como busca de satisfação de algum tipo de voyeurismo hétero. Essas cenas, na verdade, são bem rápidas e muito pouco exploradoras ou excitantes, no bom sentido do termo. 

+ DOIS FILMES

MENINAS MALVADAS (Mean Girls)

É interessante quando você chega numa idade em que até o cinema grita que você não é mais da mesma geração que o público que está ali assistindo ao filme. Falo "até o cinema" pois o cinema, diferente da música, é um meio mais longevo no acolhimento de múltiplas gerações. Mesmo assim, da metade para o meio desta versão musical de MENINAS MALVADAS (2024), de Samantha Jayne e Arturo Perez Jr., me diverti, especialmente quando as situações tornam a própria heroína uma vilã e isso gera um ruído interessante. Nada que não tenha sido mostrado na comédia de 2004, mas é interessante perceber o quanto as novas gerações se veem espelhadas nesses novos personagens, agora muito mais fascinados pela fama, uma vez que vivemos na era do Instagram, da valorização do plástico, da imagem, e de como esse plástico também pode ser descartado facilmente. Angourie Rice está muito bem como a garota ingênua que é cooptada pelas patricinhas da escola e que acaba virando uma espécie de espiã para dois colegas mais marginalizados. Não tenho muita paciência para as canções, mas em alguns momentos as cenas são criativas o bastante para agradar. Detalhe: ao meu lado havia duas meninas que cantavam todas as canções. Nem sabia que a peça da Broadway era tão popular assim.

OLHOS ASSASSINOS (Eyes of a Stranger)

É muito gratificante quando a gente para pra assistir a um filme achando que vai apenas se divertir e então dá de cara com uma obra incrível, como é o caso deste OLHOS ASSASSINOS (1981), de Ken Wiederhorn, rodado antes da febre dos slashers, quando havia lançamento de pelo menos dois por mês nos cinemas, durante o ano de 1981 (a Warner acabou segurando o filme por muito tempo). A trama já entrega a identidade do assassino rapidamente, e essa característica não seria a única coisa hitchcockiana do filme, que traz algumas cenas que homenageiam JANELA INDISCRETA, inclusive com um vilão que lembra o robusto Raymond Burr (que eu vi recentemente no excelente O CAMINHO DA TENTAÇÃO). O fato de ter sido pensado inicialmente para ser uma espécie de fllme policial dá a OLHOS ASSASSINOS um ar mais realista e desde a primeira cena nos importamos com seus personagens, mesmo aqueles que não conhecemos muito. Aliás, eu diria que todas as cenas são boas. A primeira ameaça pelo telefone a uma mulher, o ataque, a cena da praia, a invasão ao apartamento do assassino. A apresentação das personagens femininas é ótima, e que coisa incrível que é a inversão de papéis com Lauren Tewes ligando para o vilão e aumentando exponencialmente a sensação de perigo, mas também de coragem. Jennifer Jason Leigh está bem jovenzinha e seu papel é ótimo, como uma jovem que ficou surda, muda e cega depois de ter passado por um sequestro na infância. Há um grande momento dela com o vilão. Trata-se, definitivamente, de um filme que merece ser mais conhecido e louvado. A Versátil acabou chamando minha atenção para ele ao destacá-lo no livro Slashers - Pérolas da Coleção. Filme visto no box Slashers X, que conta com cerca de 40 minutos de material extra a respeito, inclusive depoimento do diretor, também conhecido pelo filme de zumbis ONDAS DO PAVOR (1977).

segunda-feira, fevereiro 05, 2024

OS ASSASSINOS SÓ MATAM AOS SÁBADOS (La Morte Risale a Ieri Sera)



O giallo é um subgênero que depende um pouco do gosto adquirido para ser apreciado em sua totalidade. Não é um giallo, mas acredito que o exemplo vá servir. Certa vez, emprestei, todo entusiasmado, para um amigo do trabalho, SUSPIRIA, o incrível terror de Dario Argento, achando que ele ia ter a mesma impressão de maravilhamento que eu tive quando vi o filme pela primeira vez, e o comentário que ele fez no dia seguinte foi: “Ailton, mas que filme ruim!”. Ou seja, os filmes de gênero italianos dos anos 1970 ainda são obras muito diferentes e cujo estranhamento causa às vezes até um pouco de repúdio por parte do espectador pouco interessado em novas formas narrativas e estéticas.

Recentemente, ao pegar um dos boxes da Versátil dedicados ao giallo a fim de ver A MORTE CAMINHA À MEIA-NOITE, de Luciano Ercoli, fui checar os extras do disco 2 e havia um comentário de apresentação sobre o outro filme desse disco, OS ASSASSINOS SÓ MATAM AOS SÁBADOS (1970), o único dos quatro títulos que não havia visto do box. E o comentário do rapaz foi tão instigante que nem pensei duas vezes e dei play. As primeiras imagens com a câmera fazendo uma viagem num bonde, enquanto os créditos são apresentados na tela ao som de uma canção triste, já me ganharam. E eu sabia que estava diante de uma obra diferente do subgênero. Dizem que o filme, de certa forma, antecipa HARDCORE – NO SUBMUNDO DO SEXO, de Paul Schrader, que até hoje eu me devo ver.

Talvez por ser do mesmo ano de O PÁSSARO DAS PLUMAS DE CRISTAL, do Argento, ele não tenha surfado nas influências como tantos títulos a partir de 1971. É um poliziottesco com uma carga dramática muito forte, se diferenciando muito dos gialli autoconscientes e às vezes leves. OS ASSASSINOS SÓ MATAM AOS SÁBADOS nos apresenta ao caso de uma moça de 25 anos que é sequestrada e o pai está desesperado à sua procura, pedindo urgência na atuação da polícia. Como a moça tem a mentalidade de uma criança e é bem alta (cerca de 1,80 m), isso talvez seja um elemento que facilite o trabalho dos tiras.

O americano Frank Wolff está ótimo como o detetive de polícia responsável por investigar o crime, assumindo as rédeas do caso com muita vontade, enquanto o italiano Raff Valone é o pai desesperado. Gabriele Tinti é o assistente do policial meio cético, mas que atua com muito afinco no trabalho. O filme se destaca dos demais dramas criminais de investigação, pois a conclusão é uma pedrada. Quando a gente pensa que o filme vai ser concluído com uma tradicional explicação do que aconteceu com a garota, alguns flashbacks reveladores são apresentados de maneira psicologicamente intensa. Não sei se o filme bebeu da fonte do cinema policial americano da época, que estava numa fase bem melancólica, ou se apenas é um exemplo do espírito de seu tempo.

Fiquei curioso para conferir o trabalho seguinte de Duccio Tessari no subgênero, UMA BORBOLETA COM AS ASAS ENSANGUENTADAS (1971), até para ver se ele foi mais influenciado pelas fórmulas do giallo. Lembrando que Tessari tem mais experiência como diretor de alguns westerns spaghetti, como UMA PISTOLA PARA RINGO (1965) e RINGO NÃO DISCUTE....MATA (1965).

Filme visto no box Giallo Vol. 6.   

+ DOIS FILMES

UMA LAGARTIXA NUM CORPO DE MULHER (Una Lucertola con la Pelle di Donna)

Com o sucesso, inclusive internacional, dos gialli, Lucio Fulci entra de vez no filão com este cultuado UMA LAGARTIXA NUM CORPO DE MULHER (1971). O filme é confuso, mas as imagens oníricas e lisérgicas são tão recompensadoras que cada minuto vale a pena. Aquela cena de Florinda Bolkan sendo perseguida pelo homem com a faca, ao som da música vibrante de Ennio Morricone, é linda demais! E o cineasta ainda aproveita para homenagear o Hitchcock de UM CORPO QUE CAI e OS PÁSSAROS. Incrível. Na trama, Bolkan é uma mulher que se vê ao mesmo tempo incomodada e fascinada com a vizinha, que vive dando festas regadas a ácido em seu apartamento, enquanto ela leva uma vida pacata - sem falar que está sendo traída pelo marido (Jean Sorel). O whudunit não é algo que me interessa tanto nos filmes, mas gostei bastante da conclusão deste. O que mais importa nos melhores trabalhos de Fulci é sua criatividade em criar imagens únicas de tal modo que elas ficam guardadas em nossa memória, mesmo que naquele cantinho reservado às lembranças dos sonhos. Filme presente no box Giallo Vol. 2.

A MORTE CAMINHA À MEIA-NOITE (La Morte Accarezza a Mezzanotte)

Incentivado pela interessante discussão (praticamente uma aula) no podcast Detour (de Filipe Furtado e Guilherme Martins), peguei para ver este A MORTE CAMINHA À MEIA-NOITE (1972), primeiro trabalho que assisto de Luciano Ercoli e seu terceiro giallo. O que achei mais interessante foi que o ponto de partida deste filme é, de certa maneira, parecido com o de UMA LAGARTIXA NUM CORPO DE MULHER, de Lucio Fulci, do mesmo ano. Se em Lagartixa, o sonho da protagonista é o pontapé para o mistério, neste é a visão que a heroína tem de um assassinato por ocasião de uma experiência com LSD. É muito interessante a cena da visão, aliás, com uma espécie de janela que se abre para ela, causando um efeito psicodélico que combina com o tom do filme e daquele momento. E o fato de o assassino usar uma arma bem original acaba trazendo uma novidade ao subgênero. Outro aspecto muito interessante é o cuidado do diretor com a sincronização com a dublagem (acho isso raro). Também gosto (embora ache curioso) o tom leve da trilha sonora em cenas que supostamente deveriam ser mais pesadas, ou encaradas como pesadas. Ajuda a pensar o filme como uma obra bem autoconsciente. O final, com o vilão explicando todo o mistério, fica parecendo meio Scooby-Doo, e não sei se curto muito, mas não dá para negar que é divertido. Para terminar de acompanhar o podcast, agora quero rever TENEBRE, do Argento. Filme visto no box Giallo Vol. 6.

domingo, fevereiro 04, 2024

POBRES CRIATURAS (Poor Things)



“I’ve adventured and found nothing but sugar and violence.”
(Bella Baxter)


Quando soube que POBRES CRIATURAS (2023) havia ganhado o Leão de Ouro em Veneza já fiquei feliz, sem nem mesmo ter visto o filme. Isso se deu principalmente por eu ter me tornado um entusiasta do diretor Yorgos Lanthimos a partir do assustador O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO (2017). Até então, o único filme do realizador que eu havia visto era O LAGOSTA (2015), que eu nem sabia se tinha ou não gostado, mas certamente sabia que não dava para ficar indiferente. Eu diria que o novo filme é muito mais divertido e menos angustiante que suas obras anteriores, algo que já havia começado com A FAVORITA (2019), seu primeiro trabalho a chegar ao mainstream, e sua primeira parceria com Emma Stone.

Sua reinvenção de Frankenstein, de Mary Shelley (na verdade, uma adaptação de outro livro), é sublime, inventiva e de uma riqueza visual que nos encanta do início ao fim. Emma Stone, muito provavelmente no papel de sua vida, entra de cabeça (e sem ter medo de cenas de sexo e nudez) como a criatura renascida por um cientista louco (Willem Dafoe) com o cérebro de um bebê mas mantendo o corpo e as necessidades de adulta.

O diretor bebe na fonte do expressionismo alemão, do barroco de Josef Von Sternberg e até de Tod Browning (MONSTROS é explicitamente homenageado no final) para construir uma obra com uma assinatura visual muito própria. Em alguns momentos, a fotografia em preto e branco e a direção de arte na casa do médico me fizeram lembrar daquele lendário episódio 8 de TWIN PEAKS – O RETORNO, de David Lynch. Refiro-me especialmente nas cenas em que Godwin (Dafoe) arrota uma bolha naquele cenário todo peculiar.

Ainda sobre a fotografia, li numa curiosidade do IMDB que Robbie Ryan, o DF, se inspirou no DRÁCULA DE BRAM STOKER, de Francis Ford Coppola, mas também em NARCISO NEGRO, de Michael Powell e Emeric Pressburger, em E LA NAVE VA, de Federico Fellini, e em vários filmes de Roy Andersson – como só vi desse diretor o excelente UM POMBO POUSOU NUM GALHO REFLETINDO SOBRE A EXISTÊNCIA, achei fácil compreender a conexão. Acabei me lembrando também de outra obra mais recente, mas não do ponto de vista do visual, mas do abuso cometido por um cientista louco, A PELE QUE HABITO, de Pedro Almodóvar.

Mas não esperemos nada tão pesado assim, embora se divertir ou se chocar com o filme seja algo que dependa muito mais do espectador, do receptor. A trajetória de Bella Baxter a torna uma das personagens mais fascinantes das últimas décadas e o filme traz uma série de reflexões sobre a sociedade: o jogo de interesses, a instituição do casamento nascida da insegurança, o aprisionamento da mulher. E é impressionante como, no meio de uma temporada de premiações como esta temos uma obra tão ousada, na nudez, no sexo e no gore (sem falar na clientela excêntrica do bordel de Paris), disputando tantas categorias. Mas também pudera: o trabalho de direção de arte, de fotografia, de figurino, do texto, das interpretações, é uma coisa fabulosa.

Da fase grega do autor, seu filme mais famoso é DENTE CANINO (2009), um drama muito estranho sobre uma família que vive aprisionada, cercada, impossibilitada de ver o mundo lá fora pelo patriarca. Assim também é Bella Baxter por God (Deus), o nome carinhoso que Bella usa para sua figura paterna. Segundo o cientista, é importante que ela esteja num ambiente controlado. Afinal, ela é seu experimento científico mais valioso, seu maior sucesso. Godwin foi, ele mesmo, objeto de experiências brutais pelo próprio pai, e aos poucos vamos sabendo um pouco do que o pai fez a ele “pelo bem da ciência”. Em POBRES CRIATURAS, o cientista se confunde com o monstro e Dafoe aparece com uma maquiagem pesada que lembra algumas encarnações do monstro de Frankenstein no cinema, enquanto Bella, sua criação, por assim dizer, é perfeita e graciosa.

A primeira parte do filme é apresentada em preto e branco. As cores explodem na tela de maneira extraordinariamente belas no momento em que Bella sai para sua jornada de autoconhecimento com o personagem de Mark Ruffalo, um homem que a promete bom sexo e muito prazer. O personagem de Ruffalo é representativo da insegurança masculina. Ele, que diz que as pessoas vivem cheias de tabus, é o primeiro a julgar Bella quando ela experimenta outro momento de sua vida, dessa vez sozinha, num bordel em Paris.

Uma das coisas mais bonitas de POBRES CRIATURAS, além do visual de deixar o queixo caído, claro, é que a jornada de Bella nos traz tanto a alegria de viver, não apenas pelo sexo, mas também pelas descobertas entusiasmadas por cada lugar que passa, e também pelo interesse por discussões filosóficas em determinado momento de sua existência. Esse prazer e essa curiosidade pela vida, esse experimentar o sexo, e isso também inclui a leitura como porta de entrada para o conhecimento, tudo isso é contagiante e torna a experiência do filme algo singular.

+ DOIS FILMES

VIDAS PASSADAS (Past Lives)

A estreia de Celine Song é um sucesso. Querido dos fãs de filmes românticos, de filmes indies e até da temporada de premiações (indicado ao Oscar), VIDAS PASSADAS (2023) tem um carinho tocante por seus personagens. No terceiro ato, os três do triângulo amoroso sofrem com a situação apresentada e as escolhas de enquadramento nos instantes em que o casal de coreanos conversa no bar são, se não geniais, representativas daquele momento sublime para os dois. Meu único problema talvez esteja na pouca força das cenas dos dois quando crianças como elo. Mas talvez essas cenas não importem tanto. Importa mais é a nova conexão. Gosto muito do final, que tempos atrás e em filmes mais mainstream, seria completamente diferente, mas as duas imagens finais preferem deixar um gosto agridoce.

OS REJEITADOS (The Holdovers)

Por mais que não seja exatamente um fã de Alexander Payne, acredito que com OS REJEITADOS (2023) eu tenha compreendido um pouco melhor o seu trabalho, sua associação com um tipo de sentimento que era comum na Nova Hollywood, especialmente quando se estendeu para a década de 1970, mais cercado de melancolia. A cena que mostra PEQUENO GRANDE HOMEM, uma comédia triste de Arthur Penn, não é à toa. Assim como não estão à toa a desilusão de seus heróis e a abordagem mais de personagem do que de enredo. Para mim, no entanto, continuo sentindo dificuldade em me envolver sentimentalmente com seus filmes, mesmo quando tratam de temas tão queridos, como é o caso deste aqui, que mostra um professor e sua relação de aproximação com um de seus alunos. Além do mais, as canções que tocam vez ou outra não têm nenhum efeito sobre mim. Basta lembrar da emoção imediata e intensa de quando vi CADA UM VIVE COMO QUER, de Bob Rafelson, e a canção que toca no início me tocou imensamente. A comparação pode ser injusta, mas a fiz por ser um clássico da Nova Hollywood, justamente o ciclo festejado e explicitamente homenageado por Payne.