domingo, fevereiro 04, 2024

POBRES CRIATURAS (Poor Things)



“I’ve adventured and found nothing but sugar and violence.”
(Bella Baxter)


Quando soube que POBRES CRIATURAS (2023) havia ganhado o Leão de Ouro em Veneza já fiquei feliz, sem nem mesmo ter visto o filme. Isso se deu principalmente por eu ter me tornado um entusiasta do diretor Yorgos Lanthimos a partir do assustador O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO (2017). Até então, o único filme do realizador que eu havia visto era O LAGOSTA (2015), que eu nem sabia se tinha ou não gostado, mas certamente sabia que não dava para ficar indiferente. Eu diria que o novo filme é muito mais divertido e menos angustiante que suas obras anteriores, algo que já havia começado com A FAVORITA (2019), seu primeiro trabalho a chegar ao mainstream, e sua primeira parceria com Emma Stone.

Sua reinvenção de Frankenstein, de Mary Shelley (na verdade, uma adaptação de outro livro), é sublime, inventiva e de uma riqueza visual que nos encanta do início ao fim. Emma Stone, muito provavelmente no papel de sua vida, entra de cabeça (e sem ter medo de cenas de sexo e nudez) como a criatura renascida por um cientista louco (Willem Dafoe) com o cérebro de um bebê mas mantendo o corpo e as necessidades de adulta.

O diretor bebe na fonte do expressionismo alemão, do barroco de Josef Von Sternberg e até de Tod Browning (MONSTROS é explicitamente homenageado no final) para construir uma obra com uma assinatura visual muito própria. Em alguns momentos, a fotografia em preto e branco e a direção de arte na casa do médico me fizeram lembrar daquele lendário episódio 8 de TWIN PEAKS – O RETORNO, de David Lynch. Refiro-me especialmente nas cenas em que Godwin (Dafoe) arrota uma bolha naquele cenário todo peculiar.

Ainda sobre a fotografia, li numa curiosidade do IMDB que Robbie Ryan, o DF, se inspirou no DRÁCULA DE BRAM STOKER, de Francis Ford Coppola, mas também em NARCISO NEGRO, de Michael Powell e Emeric Pressburger, em E LA NAVE VA, de Federico Fellini, e em vários filmes de Roy Andersson – como só vi desse diretor o excelente UM POMBO POUSOU NUM GALHO REFLETINDO SOBRE A EXISTÊNCIA, achei fácil compreender a conexão. Acabei me lembrando também de outra obra mais recente, mas não do ponto de vista do visual, mas do abuso cometido por um cientista louco, A PELE QUE HABITO, de Pedro Almodóvar.

Mas não esperemos nada tão pesado assim, embora se divertir ou se chocar com o filme seja algo que dependa muito mais do espectador, do receptor. A trajetória de Bella Baxter a torna uma das personagens mais fascinantes das últimas décadas e o filme traz uma série de reflexões sobre a sociedade: o jogo de interesses, a instituição do casamento nascida da insegurança, o aprisionamento da mulher. E é impressionante como, no meio de uma temporada de premiações como esta temos uma obra tão ousada, na nudez, no sexo e no gore (sem falar na clientela excêntrica do bordel de Paris), disputando tantas categorias. Mas também pudera: o trabalho de direção de arte, de fotografia, de figurino, do texto, das interpretações, é uma coisa fabulosa.

Da fase grega do autor, seu filme mais famoso é DENTE CANINO (2009), um drama muito estranho sobre uma família que vive aprisionada, cercada, impossibilitada de ver o mundo lá fora pelo patriarca. Assim também é Bella Baxter por God (Deus), o nome carinhoso que Bella usa para sua figura paterna. Segundo o cientista, é importante que ela esteja num ambiente controlado. Afinal, ela é seu experimento científico mais valioso, seu maior sucesso. Godwin foi, ele mesmo, objeto de experiências brutais pelo próprio pai, e aos poucos vamos sabendo um pouco do que o pai fez a ele “pelo bem da ciência”. Em POBRES CRIATURAS, o cientista se confunde com o monstro e Dafoe aparece com uma maquiagem pesada que lembra algumas encarnações do monstro de Frankenstein no cinema, enquanto Bella, sua criação, por assim dizer, é perfeita e graciosa.

A primeira parte do filme é apresentada em preto e branco. As cores explodem na tela de maneira extraordinariamente belas no momento em que Bella sai para sua jornada de autoconhecimento com o personagem de Mark Ruffalo, um homem que a promete bom sexo e muito prazer. O personagem de Ruffalo é representativo da insegurança masculina. Ele, que diz que as pessoas vivem cheias de tabus, é o primeiro a julgar Bella quando ela experimenta outro momento de sua vida, dessa vez sozinha, num bordel em Paris.

Uma das coisas mais bonitas de POBRES CRIATURAS, além do visual de deixar o queixo caído, claro, é que a jornada de Bella nos traz tanto a alegria de viver, não apenas pelo sexo, mas também pelas descobertas entusiasmadas por cada lugar que passa, e também pelo interesse por discussões filosóficas em determinado momento de sua existência. Esse prazer e essa curiosidade pela vida, esse experimentar o sexo, e isso também inclui a leitura como porta de entrada para o conhecimento, tudo isso é contagiante e torna a experiência do filme algo singular.

+ DOIS FILMES

VIDAS PASSADAS (Past Lives)

A estreia de Celine Song é um sucesso. Querido dos fãs de filmes românticos, de filmes indies e até da temporada de premiações (indicado ao Oscar), VIDAS PASSADAS (2023) tem um carinho tocante por seus personagens. No terceiro ato, os três do triângulo amoroso sofrem com a situação apresentada e as escolhas de enquadramento nos instantes em que o casal de coreanos conversa no bar são, se não geniais, representativas daquele momento sublime para os dois. Meu único problema talvez esteja na pouca força das cenas dos dois quando crianças como elo. Mas talvez essas cenas não importem tanto. Importa mais é a nova conexão. Gosto muito do final, que tempos atrás e em filmes mais mainstream, seria completamente diferente, mas as duas imagens finais preferem deixar um gosto agridoce.

OS REJEITADOS (The Holdovers)

Por mais que não seja exatamente um fã de Alexander Payne, acredito que com OS REJEITADOS (2023) eu tenha compreendido um pouco melhor o seu trabalho, sua associação com um tipo de sentimento que era comum na Nova Hollywood, especialmente quando se estendeu para a década de 1970, mais cercado de melancolia. A cena que mostra PEQUENO GRANDE HOMEM, uma comédia triste de Arthur Penn, não é à toa. Assim como não estão à toa a desilusão de seus heróis e a abordagem mais de personagem do que de enredo. Para mim, no entanto, continuo sentindo dificuldade em me envolver sentimentalmente com seus filmes, mesmo quando tratam de temas tão queridos, como é o caso deste aqui, que mostra um professor e sua relação de aproximação com um de seus alunos. Além do mais, as canções que tocam vez ou outra não têm nenhum efeito sobre mim. Basta lembrar da emoção imediata e intensa de quando vi CADA UM VIVE COMO QUER, de Bob Rafelson, e a canção que toca no início me tocou imensamente. A comparação pode ser injusta, mas a fiz por ser um clássico da Nova Hollywood, justamente o ciclo festejado e explicitamente homenageado por Payne.

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