segunda-feira, junho 28, 2021

O HOMEM DE DUAS VIDAS (Get to Know Your Rabbit)



Aqui temos Brian De Palma insistindo mais uma vez na comédia. Pelo menos as anteriores me pareceram mais charmosas, talvez por terem um tempero godardiano. Em O HOMEM DE DUAS VIDAS (1972) não. Mas se o filme não me parece assim tão atraente, o que há para se entender da obra pelo viés do autorismo? Na verdade sempre há muita coisa e a gente acaba descobrindo, na maioria das vezes, através de livros e críticas. O livro Brian De Palma's Split Screen - A Life in Film, de Douglas Keesey, tem me ajudado muito nesse sentido. Uma obra preciosa para ajudar a decifrar o homem e o cineasta. E a descobrir também o que acontece nos bastidores e a entender o contexto em que tudo aconteceu.

O HOMEM DE DUAS VIDAS foi o primeiro filme de estúdio de De Palma, quando ele saiu de Nova York para Los Angeles. Na época, os executivos dos estúdios estavam querendo aproveitar o sucesso dos novos diretores, que seriam mais tarde chamados de "a Nova Hollywood". Até porque o velho modelo parecia estar fadado ao fracasso. Eles não haviam esquecido o desastre que foi a bilheteria da superprodução CLEÓPATRA, de Joseph L. Mankiewicz, por exemplo. Sangue novo, portanto, significava menos gastos nos orçamentos. Pelo menos por enquanto. Mais à frente, a história iria se repetir com novos protagonistas.

O livro que estou lendo não conta em que momento aconteceu, mas é fato que De Palma foi demitido. Ele não se conformava com as interferências dos produtores e acabou sendo desligado. Seu filme ganhou um novo final e foi remontado ao gosto dos "donos". E isso aconteceu por volta de 1970, seu filme ficaria na geladeira e um tanto esquecido por cerca de dois anos. O conflito entre a independência e Hollywood seria uma constante na carreira do cineasta.

A escolha de De Palma por parte da Warner se deu por causa do sucesso de QUEM ANDA CANTANDO NOSSAS MULHERES (1968) e havia uma intenção do estúdio em promover comédias feitas por esses diretores jovens e meio malucos. No mesmo ano da estreia de O HOMEM DE DUAS VIDAS, por exemplo, entrou em cartaz ESSA PEQUENA É UMA PARADA, de Peter Bogdanovich, remake do clássico LEVADA DA BRECA, de Howard Hawks.

O enredo de O HOMEM DE DUAS VIDAS é um tanto maluco. Na verdade, se percebe que não temos aqui um filme de trama. As coisas vão acontecendo meio que ao sabor do vento e há situações que vão sendo incluídas à medida que as ideias vão surgindo. Mas essa impressão já era comum no cinema nascido na segunda metade da década de 1960. Acontece que para uma comédia isso acaba deixando tudo mais nonsense.

Na "trama", um homem de negócios, Donald Beeman (Tom Smothers), decide deixar de lado sua vida profissional por acreditar que ali só encontrava vazio espiritual. Não se importou nem mesmo com a bomba que estava prestes a explodir no edifício. Aliás, é curioso esse simbolismo de explodir coisas do De Palma, já que isso acontece também em OLÁ, MAMÃE! (1970). O diretor usa o recurso do split-screen para dar um efeito de finalização de momento para o protagonista, enquanto ele sai do prédio.

Donald passa então a se dedicar a aprender a técnica de mágico sapateador, coisa que a princípio me pareceu bem estúpida de ver, mas que talvez seja algum tipo de tradição americana. Seu mestre nessa arte é o senhor Delasandro, vivido por Orson Welles. O fato de De Palma trazer Orson Welles para o papel de um mestre de mágicos não foi em vão, embora, para um filme como este, fica parecendo até falta de respeito com o mestre - se bem àquela altura Welles estava topando qualquer coisa para pagar as contas.

Aliás, é bem curioso um momento do filme, quando Welles/Delasandro pergunta a Donald se ele gostaria de ser o filho que ele nunca teve e Donald diz que não. Ou seja, há um forte simbolismo de que Welles não representava aquilo que De Palma gostaria de ser; ao contrário, era uma lição do que ele deveria evitar. Tanto que, mesmo com dificuldade, De Palma voltaria a trabalhar com Hollywood, se equilibrando entre o autorismo e as concessões.

Do ponto de vista sexual, algo comum em suas obras, a cena da castração sugerida por algo que corta um legume havia aparecido já em FESTA DE CASAMENTO (1969) e se repete em outra cena deste filme. E há também uma espécie de elogio à masturbação, que ocorre pelo menos em dois momentos: quando Delasandro avisa que o aprendiz de mágico não estava segurando seu coelho direito, e acontece quando o rapaz também encontra a bela jovem sem nome vivida por Katharine Ross. A moça fica tão entusiasmada com ele, tão feliz em estar com ele, que não acredita que aquelas mãos que tocam os coelhos estariam tocando nela. Seria quase uma fantasia por parte do cineasta se materializando.

Assim como parece ser uma fantasia o tal do incrível saco de fuga, um saco mágico que faria desaparecer quem entrasse nele. A questão da fuga aparece em todos os filmes anteriores do diretor. Principalmente a fuga do casamento, mas também do exército. Aqui há a fuga da burocracia, mas há também uma fuga no final que é mais romântica, para os braços da mulher amada. Porém, essa cena final foi imposta pelos produtores, não veio do diretor. De todo modo, não chega a ser um final ruim. Como o filme em si é problemático, não dá pra dizer que foi algo que veio para estragá-lo. Afinal, o estrago já estava feito.

+ DOIS CURTAS


THE CRITIC

Divertido curta de três minutos em que Mel Brooks narra uma animação de arte moderna e simbolista em uma suposta sala de cinema com pessoas reclamando dele e pedindo silêncio. Não sei onde THE CRITIC (1963), dirigido por Ernest Pintoff, chegou a passar. Provavelmente abrindo sessões de outros filmes da época. O legal é que as observações ou tentativas de compreensão de Mel parecem inteligentes, mesmo querendo destratar ou tirar um sarro de um tipo de arte que ainda se faz bastante hoje.

CATERINA

O filme mais recente de Dan Sallitt é este curta-metragem, CATERINA (2019). Como só vi dois longas dele, que possuem um tempo maior de respiro, até pela duração, senti falta de um maior aprofundamento na protagonista, Caterina (Agustina Muñoz), uma sul-americana que mora nos Estados Unidos e tem passado por situações em que se sente incompreendida ou mal tratada. O filme é formado por blocos de cena bem destacáveis, todos apresentando esse tipo de situação da personagem, algo que aparece, de certa maneira, nos longas O ATO INDIZÍVEL (2012) e FOURTEEN (2019). Mas aqui esse elemento, deliberadamente, se intensifica. São pequenos gestos, como uma atenção após uma transa, ser atendida com respeito em um estabelecimento comercial, uma conversa sobre exclusividade com um pretendente a namorado etc.

domingo, junho 27, 2021

A ÉPOCA DA INOCÊNCIA (The Age of Innocence)



Curioso como a gente às vezes fica confuso com o passar do tempo. Eu custo a acreditar que os anos 1990 já estejam tão distantes assim. Ao fazer as contas do tempo que vi no cinema A ÉPOCA DA INOCÊNCIA (1993), que estreou no Brasil no início de 1994, junto com os demais filmes da temporada do Oscar, fiquei impressionado ao ver que já faz 27 anos. Até ontem à noite eu só tinha flashes do filme em minha memória.

Martin Scorsese vinha de dois filmes de grande impacto e com uma violência brutal que virou marca de seu cinema, os maravilhosos OS BONS COMPANHEIROS (1990) e CABO DO MEDO (1991). A ÉPOCA DA INOCÊNCIA veio para quebrar o cinema de rua que ele vinha fazendo desde fins dos anos 1960, mas que tomou forma mesmo a partir de CAMINHOS PERIGOSOS (1973). Na época não foi um filme que me empolgou muito, é verdade. E hoje entendo que muito disso vem do fato de ser uma adaptação que pretende prestar tributo à obra de Edith Wharton, com muitos trechos do romance da autora sendo lidos por Joanne Woodward. E há uma trama envolvendo muitos personagens que talvez só se torne de fato compreensível com a leitura do romance.

Scorsese fez o que pôde para que a adaptação coubesse nas duas horas e vinte minutos. E imagino que o trabalho de edição junto com Thelma Schoonmaker, sua montadora desde TOURO INDOMÁVEL (1980), deve ter mesmo dado muito trabalho. Há um corte que muito me chamou a atenção: Newland Archer (Daniel Day-Lewis) está com Ellen Olenska (Michelle Pfeiffer) na casa da avó dela, quando diz, em tom abrupto: "precisamos nos encontrar". Logo em seguida, corta para o momento em que ele já está na casa de Ellen. Eis um exemplo perfeito de que cinema é feito para ser visto com atenção.

Naqueles meados dos anos 1990, eu não tinha me sentido tão preso à trama e ao drama dos personagens de Day-Lewis e Pffeifer, vivendo uma espécie de amor impossível freado por convenções sociais estúpidas. Desta vez, até mesmo o sentimento de indignação me atravessou, junto com a angústia do protagonista em ter um sentimento preso, a sua vontade presa, assim como também ter que se colocar em um casamento que para ele é quase uma prisão.

Scorsese faz algo próximo a um melodrama, mas do jeito dele, com aperto no peito no lugar de lágrimas. E com um realismo pendendo para o pessimismo, mas se permitindo, em alguns momentos, adentrar o território do sonho, do delírio. O que é aquela cena do Day-Lewis na janela imaginando ser abraçado pela mulher que ama? Aliás, há também um trabalho lindo de apresentação dos corpos dentro do formato scope, que é impressionante.

O autor declara que suas principais inspirações foram três filmes de Luchino Visconti, O LEOPARDO, SEDUÇÃO DA CARNE e O INOCENTE. Quem viu o documentário MINHA VIAGEM À ITÁLIA (1999) sabe o quanto ele se sente devedor do cinema italiano da era de ouro. Mas além de se inspirar nessas obras de Visconti, ele ainda incluiu um tipo de direção que muitos acharam inadequada para uma produção daquele tipo, com movimentos de câmera que rompem com um drama de época tradicional. Há uma cena que é a cara do Scorsese, da câmera adentrando o espaço de uma mansão onde está acontecendo uma festa. Acontece logo após a cena do teatro, que abre o filme.

Outra curiosidade interessante é o uso da música, que é bem intenso. No livro Conversas com Scorsese, de Richard Schickel, o diretor conta que enviou uma cópia do filme para Akira Kurosawa ver. O diretor japonês mandou um bilhete de volta dizendo que não gostava de filmes de romances. Mas mesmo assim viu o filme e fez uma reclamação: Scorsese estaria usando música demais. No entanto, acho a música de Elmer Bernstein tão bem casada com o estilo do filme que não vejo problema algum. No livro de entrevistas, Scorsese conta que o filme-chave para essa utilização de música em um drama de época foi TARDE DEMAIS, de William Wyler.

Na trama, Michelle Pffeifer é Ellen, uma mulher que retorna da Europa após o fim de um casamento frustrado com um conde polonês. Ao que parece, ela sofreu muito com todo esse processo e acreditava que Nova York seria o lugar ideal para reconstruir sua vida. Ela também tinha intenção de conseguir o divórcio. Ellen teve um interesse amoroso mútuo antes com Newland (Day-Lewis), mas agora ele estava noivo de May (Winona Ryder), sua prima e filha de uma família rica e muito influente daquela sociedade nova-iorquina dos anos 1870.

O que Ellen não sabia era o quanto aquela sociedade era hipócrita e cheia de regras, a ponto de colocá-la como uma pária ou mulher indigna, apenas pelo fato de ela ter se separado do marido. E nem adiantaria o divórcio para que ela ficasse livre. Aquela sociedade via o divórcio como algo ainda mais vergonhoso. Newland vê tudo isso com um ar de indignação que nos contagia. Ele é o olho do filme, o elo de ligação entre a autora do romance (e por sua vez Scorsese) e o espectador.

O grau de tensão que se cria com o desejo de Newland por Ellen (e vice-versa) é sentido em diversos momentos. Adoro um momento em que os dois estão conversando antes de May chegar e quando Ellen pede para que ele fique um pouco mais com ela. Tudo isso (esse mergulho paulatino no desejo proibido) vai se acumulando em um nível atormentador. Talvez em nenhum outro filme Scorsese tenha lidado com uma paixão tão perturbadora quanto aqui. Aliás, há um filme sim que eleva essa ideia de "amar é sofrer" a um status ainda mais intenso: o segmento "Lições de Vida", presente em CONTOS DE NOVA YORK (1989). Mas em A ÉPOCA DA INOCÊNCIA pode-se dizer que isso se manifesta de maneira mais contida. E é justamente por ser mais contida que a dor parece ser mais incômodo para os personagens e também para o espectador.

Scorsese, tão acostumado a fazer filmes sobre a máfia, fez algo semelhante,  apresentando-nos a uma sociedade cujas convenções sociais parecem ainda mais brutais do que as de uma comunidade mafiosa; uma sociedade que parece muito perfeita em suas maneiras, com gente de posses conversando em jantares requintados ou em torneios de arco e flecha, mas que parece uma seita saída de um filme de horror. Uma seita que sacrifica algo muito querido do protagonista. Sacrifica seu grande amor. 

Agradecimentos especiais à Paula, pela companhia durante a sessão.

+ UM CURTA E UM EPISÓDIO DE TELEVISÃO

"REFLEXOS, REFLEXOS" ("Mirror, Mirror")

Este episódio da primeira temporada de HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS (1985/1986), criada por Steven Spielberg, foi a primeira incursão de Martin Scorsese na televisão. Uma incursão não foi muito feliz, embora não deixe de ser interessante esta história sobre um escritor de terror (Sam Waterston) que passa a viver apavorado quando vê no reflexo de qualquer espelho a figura de um homem desfigurado prestes a matá-lo. O problema é que o fiapo de história de "Reflexos, Reflexos" (1986), de autoria do Spielberg, parece não saber para onde ir, e acaba terminando de maneira pouco satisfatória e inteligente. De todo modo, vale pela curiosidade.

LA PINCE À ONGLES

Premiado curta-metragem desse que talvez seja o mais celebrado roteirista da história do cinema. Jean-Claude Carrière fez muitas contribuições, mas sua parceria com Luis Buñuel certamenete é a mais lembrada. E vendo LA PINCE À ONGLES (1969), curta de 11 minutos do Carriére também diretor, é que percebemos que sua influência na fase francesa de Buñuel foi fundamental para trazer o surrealismo do diretor espanhol para outro patamar, para trazer situações ainda mais incríveis. Neste filme, casal chega a um quarto de hotel e aos poucos coisas começam a desaparecer.

sábado, junho 26, 2021

CRUELLA



Eu estou sentindo falta de escrever sobre filmes novos aqui no blog. É que os “antigos” estão me sendo mais atraentes, tanto para ver quanto para escrever. No entanto, creio que seja interessante escrever um pouco sobre este que pode ser visto como um acontecimento na história da Disney, o live action CRUELLA (2021), de Craig Gillespie. O diretor, de carreira um tanto irregular, veio do cinema independente, com A GAROTA IDEAL (2007) e fez sucesso popular com EU, TONYA (2017), que tem algo em comum com o novo filme: um espírito competitivo um tanto tóxico.

O filme começa como uma sessão da tarde Disney comum, ao nos apresentar a infância da protagonista, uma garota que fica órfã depois da morte da mãe e que sai desesperada pelo mundo, tornando-se amiga de dois trombadinhas, com quem cresce junto e se torna profissional no ramo. Mas sem nunca perder o interesse pela moda e pela alta costura, sendo esse o seu sonho de vida. Os amigos dão força a ela e a colocam no espaço que será o início de um novo momento.

O que torna CRUELLA diferente de todos os demais filmes da Disney derivados das animações é que finalmente a companhia avança duas casas. Deixa os anos 1950 e chega aos mais rebeldes anos 70, com uma trama que se passa nesse período, com direito a muitas canções famosas na trilha sonora. Há The Doors (adoro quando toca "Five to One"!), Queen, Blondie, The Clash, Ike and Tina Turner e a canção que gera a melhor cena com música: "I wanna be your dog", dos Stooges, numa versão de John McCrea, ator do filme que faz uma homenagem a David Bowie em seu visual. Inclusive, quem puder ver o filme em uma sala de cinema com um sistema de som muito bom, vai ser muito beneficiado pela alegria que é ouvir boa música na telona.

E como se trata de um filme sobre o universo da moda, é natural que os figurinos e a direção de arte sejam também um ponto forte, além de outro motivo para ver na telona. Também se percebe uma forte influência de CORINGA, de Todd Phillips, na origem da anti-heroína. Bem mais, por exemplo, do que de MALÉVOLA, para citar outro filme de origem da Disney. A presença de Emma Thompson como a Baronesa, a antagonista de Estella/Cruella, é também outro acerto. Afinal, temos agora duas ótimas atrizes fazendo personagens que trocam farpas (e outros atos bem violentos) com muita elegância.

O filme cresce muito já a partir do momento em que Emma Stone aparece. Ela é uma atriz que vai muito além da beleza e dos grandes e expressivos olhos. É uma estrela que costuma elevar os filmes. Até já tinha me esquecido do Oscar que ela ganhou por LA LA LAND - CANTANDO ESTAÇÕES, mas isso é mais culpa da premiação do que de sua força como atriz que ainda tem um longo e belo caminho pela frente. No caso de CRUELLA, como se trata de um tipo de obra mais de entretenimento, o estilo de interpretação é um pouco mais over, inclusive por ela ser uma mulher em processo de vilania, mas isso é mais um ganho para a obra, que brinca com a risada da personagem. Mesmo assim, Emma Stone nunca deixa escapar a humanidade da personagem. 

Quanto ao namoro com a contracultura, mencionado lá nos primeiros parágrafos, é possível que CRUELLA seja apenas uma exceção na história da companhia do Mickey, mas o sucesso do filme pode muito bem ser um indicativo de que as coisas podem sim mudar. E olha que estamos em um momento em que o rock está em declínio de popularidade. Se o filme fosse lançado 20 anos atrás é bem possível que o sucesso fosse ainda maior. Por outro lado, foi necessário todo esse tempo para que uma obra como essa visse a luz do dia, com essa tendência mais recente de tentar entender ou se solidarizar com personagens vilanescos. Na versão live action de 101 DÁLMATAS, de 1996, por exemplo, com Glenn Close como a Cruella, o tom foi muito mais genérico.

+ DOIS FILMES

BLACK BEAR

Eis um filme que me deixou desnorteado. E nem é por adotar, a partir do segundo "capítulo", um novo caminho, mas pela impressão de serem dois filmes em um, sendo que o primeiro é um drama tenso e muito bem resolvido, inclusive como introdução ao que poderia ser um filme de horror, enquanto o segundo, por ser uma variação do primeiro e se passar num set de filmagens, traz um tipo de autoconsciência que muda nossa maneira de ver BLACK BEAR (2020), de Lawrence Michael Levine. Para o bem e para o mal, já que passamos também a prestar atenção nas interpretações (principalmente de Aubrey Plaza, mas Christopher Abbott também está muito bem), bem como nas tomadas, nas escolhas de filmar - com carrinho ou câmera na mão etc. No mais, gosto do mistério que fica no ar em determinados momentos, assim como do mistério do próprio significado e das motivações do filme em si.

CENSOR

Estreia em longa-metragem de uma nova diretora em um filme de terror bem interessante, que tanto faz uma crítica ácida à censura (muito comum e bem repressora na Inglaterra dos anos 1980), quanto uma homenagem aos nasty movies, os filmes de terror meio malditos que faziam sucesso principalmente nas locadoras. Na trama de CENSOR (2021), de Prano Bailey-Bond, uma censora que acredita que está fazendo um grande bem para o país com seu emprego sofre com o desaparecimento da irmã há muitos anos. O ponto de mutação em sua vida acontece no dia que assiste a um dos filmes que chegam para ela verificar. Gosto mais do início, mais intrigante, do que do desenvolvimento e do final, mas mesmo aí é interessante a brincadeira com o formato de tela e depois com a sanidade da protagonista a partir de efeitos da era analógica. Certamente, é uma diretora a se prestar atenção.

domingo, junho 20, 2021

CÉLINE



Enquanto via CÉLINE (1992), de Jean-Claude Brisseau, fiquei pensando no quanto são fascinantes os trabalhos desses cineastas mais independentes, que não lidam com orçamentos grandes ou com um elenco de grandes estrelas, e que, no entanto, conseguem chegar a uma excelência dentro de suas limitações orçamentárias. Porém, lendo uma entrevista do diretor para o site IndieWire, vi que isso não era necessariamente uma opção do diretor, que ele gostaria sim de fazer filmes "maiores", que ele já havia tentado fazer um sobre a guerra na Indochina e um outro passado na Idade Média, mas que não deu certo.

De todo modo, o que importa é que o legado de Brisseau, seus filmes "pequenos", é um legado a ser celebrado, visto e revisto com muito prazer, saboreando tanto as imagens e sons quanto o que ele nos ensina a partir do vasto conhecimento de vida e de estudos que ele teve. E é importante destacar que Brisseau já foi um professor comprometido de alunos problemáticos da classe trabalhadora. Esse elemento de acolhimento e amor se apresenta de maneira muito forte em CÉLINE, mas pode ser visto também em outros de seus filmes, como os mais recentes A GAROTA DE LUGAR NENHUM (2012) e QUE LE DIABLE NOUS EMPORTE (2018).

Em CÉLINE, María Luisa García (ou Lisa Hérédia, como é creditada em alguns filmes, tanto do Brisseau quanto de Éric Rohmer) é Geneviève, uma enfermeira dedicada que dá atenção a uma jovem que está chorando na chuva. Ela imediatamente tenta ajudá-la, leva-a até a casa dela, um lugar grande e espaçoso, descobre que a garota, de nome Céline (Isabelle Pasco), está atravessando um período de depressão severa, ocasionada, principalmente, pela descoberta de que não é filha biológica de seu pai. A jovem de 22 anos tenta o suicídio por pílulas e afogamento, mas é salva por Geneviève, que se torna, formalmente, a cuidadora da jovem.

O primeiro ato nos apresenta então essa dedicação e amor de uma mentora que já passou por situação similar à daquela garota em sua juventude, de não ver razão para viver e de sentir muito as dores da alma. Ela ensina o que aprendeu à jovem, a partir de uma rotina de trabalho, yoga e dieta. Isso faz com que, de alguma maneira, Céline passe a entrar em contato com o desconhecido, o mundo sutil, e a também se surpreender perpetrando alguns milagres de maneira não deliberada. Ou seja, o que antes parecia ser um filme mais realista e amoroso sobre mentor e aprendiz ganha outros contornos a partir de uma visão mais mística da vida.

Uma das coisas mais belas de CÉLINE é o trabalho de luz do fotógrafo Romain Winding, que já havia trabalhado com Brisseau em seus dois filmes anteriores, DE BARULHO E DE FÚRIA (1988) e BODA BRANCA (1989). Além das cenas exteriores que são de um grau de elevação espiritual que muito combina com a temática do filme, há uma cena em especial que eu destacaria: o momento em que Céline, enquanto dorme, tem seu corpo descoberto pelo que seria seu namorado. A luz forte que é jogada para o corpo nu de Céline é um dos momentos mais plasticamente belos do filme.

O trabalho de iluminação de interiores é também especial para que as cenas mais místicas ganhem contornos mais misteriosos, como as aparições da morte ou a cena da levitação, vista com pouca luz. Há quem veja uma natureza ambígua dessas aparições: no caso do namorado, seria um sonho?, no caso da salvação de Geneviève seria um genuíno espírito a visitando? Talvez a resposta seja "sim" para as ambas as perguntas, mas o fato de não entrarmos em contato de fato com esse mundo desconhecido pode nos trazer de volta para o ceticismo.

Muito da força do filme também está na trilha musical de Georges Delerue, que Brisseau reciclou de um trabalho que o músico fez para um programa de televisão. A trilha comparece principalmente em momentos da rotina das personagens, mas ajuda a trazer um pouco da metafísica para essas situações do mundo terreno. Adoro as cenas em que Céline está meditando debaixo de uma árvore e o vento sopra forte nas folhas, acentuando tanto a beleza da natureza quanto uma intervenção de cunho espiritual. Há outra cena magnífica, quando a câmera deixa a imagem de Geneviève na cama e se dirige à janela de seu quarto.

Ao ver essas árvores e essa paisagem bonita se apresentando como uma celebração da existência, lembrei-me dos poemas de Alberto Caeiro, um dos melhores heterônimos de Fernando Pessoa, que dizia que já havia metafísica o bastante na natureza. Por outro lado, Brisseau não é adepto do materialismo; ele se mostra genuinamente interessado nos aspectos do desconhecido, das outras dimensões.

CÉLINE é um dos filmes mais místicos do realizador, se não o mais, levando em consideração que, aqui, os prazeres carnais são apenas sutilmente explorados como um elemento de equilíbrio. O mundo sutil é que é o espaço de atração maior para a jovem Céline, que depois de vencer a depressão passa a entrar em contato com esse mundo. O fato de ela sofrer dores físicas e espirituais ao voltar ao nosso mundo mais denso só acentua esse contraste. E nos traz um tipo de consciência do mundo terreno e do que há por trás dele que poucos cinemas promovem.

Agradecimentos especiais à Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES

L'ANGE ET LA FEMME - LE CINÉMA DE JEAN-CLAUDE BRISSEAU

Documentário de menos de uma hora que trata do processo de realização dos filmes de Brisseau, L'ANGE ET LA FEMME - LE CINÉMA DE JEAN-CLAUDE BRISSEAU (2008), de Olivier L. Brunet, inclui depoimentos dele, mas principalmente de seu fotógrafo, Romain Winding, e de como a luz é um aspecto decisivo em seus filmes. A cena da luz sobre o corpo nu da personagem Céline no filme homônimo, por exemplo, é comentada e apresentada como belo modelo. Há também a presença de algumas atrizes que trabalharam com o diretor, como Lisa Heredia, Raphaële Godin e Sylvie Vartan. E há uma história interessante sobre a escalação de Sylvie para o papel em ANJO NEGRO (1994). Enfim, doc um pouco quadrado, muito provavelmente feito como extra para algum DVD.

QUANDO A MULHER ERRA (Stazione Termini)

Curioso como os títulos já entregam o grau de machismo de uma sociedade em determinada época. O título brasileiro, QUANDO A MULHER ERRA (1953), já põe toda uma carga de culpa na mulher (Jennifer Jones), como se a personagem já não carregasse todo o peso da culpa, além do sentimento de não saber o que fazer naquele momento: ficar com o italiano por quem está apaixonada (Montgomery Clift) ou voltar para o marido e a filha e não causar dano à família. Nos Estados Unidos, uma sociedade ainda bem acusadora no que se refere a crises em casamentos. o título também não pega leve com a mulher: "Indiscretion of an American Wife". O filme de Vittorio De Sica tem uma excelente ambientação, totalmente em uma estação ferroviária, enquanto uma atormentada mulher tenta saber o que fazer da sua vida.

sexta-feira, junho 18, 2021

OLÁ, MAMÃE! (Hi, Mom!)



Em OLÁ, MAMÃE (1970), Brian De Palma segue apostando nas comédias com forte influência de Jean-Luc Godard, com um senso de humor bem particular e um espírito bastante anárquico. Ainda que suas comédias não me façam rir - as vejo como uma tentativa do diretor de encontrar o seu caminho -, compreendo o sarcasmo e sua vontade de lidar com temas quentes daquele momento, como a Guerra do Vietnã e a luta dos negros por igualdade, que rende o melhor e mais antológico momento do filme, a performance "Be black, baby".

Se OLÁ, MAMÃE é uma espécie de continuação de QUEM ANDA CANTANDO NOSSAS MULHERES (1968), com a volta do personagem Jon, vivido por Robert De Niro, trata-se também de uma prévia de TAXI DRIVER, de Martin Scorsese. Há, inclusive, uma fala de De Niro/Jon que muito lembra o "you talkin' to me?” do clássico filme de 1976. Foi De Palma quem apresentou formalmente De Niro a Scorsese em uma festa de natal em 1972.

Na trama de OLÁ, MAMÃE!, de volta do Vietnã, Jon aluga um apartamento em um lugar em que é possível assistir de sua janela a vida de diversas pessoas, como em JANELA INDISCRETA, de Alfred Hitchcock. A referência ao clássico hitchcockiano é bem óbvia e explícita e antecipa o que viria em breve na filmografia de De Palma, principalmente a partir de IRMÃS DIABÓLICAS (1972). É olhando para essas janelas, e seguindo seu instinto voyeurístico que Jon decide comprar um equipamento novo para filmar as pessoas. O reencontro do personagem com Allen Garfield, o produtor de filmes pornôs de QUEM ANDA CANTANDO NOSSAS MULHERES acaba rendendo algumas cenas divertidas. É com esse produtor que ele consegue fundos para fazer o seu primeiro filme.

A ideia de Jon é não apenas filmar uma de suas vizinhas da janela, mas também conquistá-la e filmar a transa dos dois, usando um timer acoplado à câmera. Assim, ele chega ao apartamento de Judy (Jennifer Salt) dizendo estar lá por um encontro feito por computador. Não demora para que a moça resolva sair com ele, afinal, ela estava sozinha e carente e ele fazia o papel de um rapaz de bem. Os dois vão ao cinema e conversam bastante após a sessão. Ela diz que se identificou com a personagem do filme, e lembra do fato de ter sido enganada e humilhada pelo rapaz que tirou sua virgindade. Engraçado como algumas falas do filme se tornariam imagens em filmes futuros. Robert De Niro, em seguida, fala de quando flagrou sua namorada com outro, o que faz lembrar uma cena de DUBLÊ DE CORPO (1984).

A dependência da câmera - já que Jon não pode (ou não quer) transar com a moça no primeiro encontro sem que a câmera estivesse funcionando - ajuda a trazer um elemento constante na obra do diretor, que é a insegurança, o medo da rejeição, o sentimento de impotência e muitas vezes de castração. É curioso como De Palma deixa tanto de si e de seus traumas e conflitos em suas obras, que podem se passar para muitos como exercícios de estilo.

Um momento que pode simbolizar uma "brochada" é a cena em que Jon vai mostrar o resultado de suas filmagens ao produtor. É quando ele vê que a câmera que estava mirando no apartamento de Judy passou a mirar um ou dois andares abaixo. Depois dessa situação embaraçosa, Jon fica bastante triste e resolve mudar os rumos de sua vida, trocando a câmera por uma televisão. O que não deixa também de ser simbólica a troca de um elemento mais fálico e masculino por um mais passivo, sem falar que a televisão ainda tinha naquela época uma posição de inferioridade em relação ao cinema.

É a partir daí que o filme dá uma guinada e fica mais interessante, pois se iniciam as sequências que envolvem a performance "Be black, baby", uma ação de um grupo de ativistas negros. Essa performance é uma influência do tempo em que De Palma foi estudante de teatro na Universidade de Columbia, bem como das inovadoras performances em teatros de Nova York que usavam o público também como participantes da ação e não apenas como espectadores.

A intenção da trupe do "Be black, baby" é fazer com que as pessoas que participam do espetáculo, todos burgueses brancos, sintam na pele o que é ser negro nos Estados Unidos. E a experiência acaba sendo muito mais realista do que eles imaginavam. Jon faria o papel do policial que aborda os homens e mulheres brancos pintados de preto e os trataria de maneira humilhante, como geralmente fazem com os negros. Toda essa sequência, filmada em preto e branco granulado e câmera na mão, ganha bastante força, realismo e incômodo. Há também uma aparente improvisação por parte dos atores. Vale destacar que De Palma contratou ativistas reais do movimento negro para papéis-chave.

Depois dessa poderosa sequência, o filme perde a força, fica difícil retornar para a história anterior de Jon, mas ainda assim De Palma faz algo interessante: seu personagem, agora casado, entediado e emasculado, resolve jogar tudo pra cima da maneira mais destrutiva possível. Por mais que não goste tanto do modo como essas cenas finais são desenvolvidas, é difícil não ficar impressionado com o quanto elas trazem de importante para ajudar a elucidar o autor De Palma e, muito provavelmente também, o homem De Palma.

+ DOIS FILMES

BRUTALIDADE (Brute Force)

Gosto de como Jules Dassin faz um filme simbólico daquele momento de caça aos comunistas e também faz uma analogia amarga sobre a vida (ou o tipo de vida na sociedade desigual e hostil?) como uma prisão praticamente impossível de escapar. BRUTALIDADE (1947) me frustrou como prison break movie, pois é muito mais um retrato do sofrimento psicológico daqueles homens e do quanto a vida lá fora, por mais que fosse tão cheia de defeitos, parece um sonho impossível ou uma realidade distante - os pequenos flashbacks dos homens, colegas de cela, em geral sempre ligados a uma mulher em específico, ajudam a compor esse ar da liberdade como utopia. Burt Lancaster tem grande presença de cena e dá para entender o porquê de ter se tornado uma das estrelas da época, mesmo nesse período mais sombrio (mas também brilhante) que foi a Hollywood dos anos 1940.

BANQUETE COUTINHO

Para quem parecia estar de má vontade para dar entrevista, logo no início do filme, até que Eduardo Coutinho se permitiu falar muito de si, tentando explicar sua necessidade de fazer cinema, a importância que a entrevista passou a ter em seu processo criativo, o vício no tabaco, e fala, muito por cima, do quanto sua vida é complicada e de como ele precisa do cinema para encontrar motivos para acordar. Mas muito da força deste BANQUETE COUTINHO (2019) está mais nas imagens de filmes feitos pelo Coutinho desde os anos 1960, passando muito pouco pela fase Globo Repórter, e enfatizando CABRA MARCADO PARA MORRER (1984) e os filmes pós SANTO FORTE (1999). Quanto às questões do diretor Josafá Veloso, de que Coutinho estaria filmando o mesmo filme, mas ao mesmo tempo um filme diferente, isso é repetido, mas não aprofundado. Talvez ele quisesse que as imagens dos filmes de Coutinho respondessem sozinhas a sua tese.

sábado, junho 12, 2021

O RAPAZ QUE PARTIA CORAÇÕES / CORAÇÕES EM ALTA (The Heartbreak Kid)



No início da minha cinefilia, quando a revista SET era a minha principal fonte de aprendizado, lembro de uma resenha sobre ISHTAR (1987), último filme de Elaine May, que teria sido um desastre de bilheteria e, ao que parece, de crítica também. Ainda assim, o crítico deu ao filme três estrelas, como sendo uma obra torta, mas que merece a atenção do espectador. Eu, até hoje, nunca o vi. Assim como nunca vi nenhum outro trabalho de direção de May. Hoje acho que foi o machismo de nosso mundo que fez com que a filmografia ainda que curta da diretora (e atriz) fosse desvalorizada.

Na época da estreia de ANTES SÓ DO QUE MAL CASADO, dos irmãos Farrelly, por exemplo, apenas se comentava o fato de se tratar de um remake, ou uma reimaginação de O RAPAZ QUE PARTIA CORAÇÕES (1972), de May. Ou seja, não li em lugar algum um enaltecimento da obra de May. Passaram-se anos e eu não tive sequer curiosidade de ver o filme, até um dia desses, quando no Letterboxd, alguém escreveu a respeito e eu vi o cartaz, que destaca a presença de Cybill Shepherd, ela que talvez tenha sido a mais deslumbrante atriz de Hollywood na década de 1970.

Ou seja, muito provavelmente a minha chegada (finalmente) ao filme de May se deu em parte a um fato talvez machista (o encanto por Shepherd no auge da beleza e juventude), mas também aos elogios que li sobre a obra, segundo filme da diretora depois do sucesso discreto de O CAÇADOR DE DOTES (1971). De todo modo, antes tarde do que nunca pude apreciar O RAPAZ QUE PARTIA CORAÇÕES e entender alguns dos motivos de os Farrellys terem se interessado em refilmá-lo à sua maneira, exagerando os aspectos cômicos.

Na história, Charles Grodin é Lenny, um sujeito simples de Nova York que sai à noite à cata de uma namorada e a encontra em Lila (Jeannie Berlin). Acontece tudo muito rápido, não vemos um desenvolvimento no namoro dos dois, a não ser uma tentativa de sexo antes do casamento (ela prefere esperar) e em seguida o casamento na tradição judaica. Logo eles embarcam para uma viagem de carro para a Flórida a fim de passar a lua de mel. Mas é no carro que Lenny começa a ficar incomodado com o jeito de Lila, além de também ficar um tanto desapontado com o sexo. Mas o pior de tudo é quando ela sempre o lembra de que eles estarão juntos por mais 50 anos de vida. Para ele isso mais parece uma maldição.

Tudo muda quando Lenny conhece em Miami a loira Kelly (Shepherd), que flerta com ele de maneira descompromissada, mais como se quisesse se divertir. Ele fica totalmente encantado por aquela moça - o que é totalmente compreensível - e aproveita a insolação de Lila para passar o dia com Kelly, avisando para ela de sua condição de recém-casado. Havia, portanto, dois obstáculos: além de seu casamento, Lenny tinha que passar pelo pai de Kelly, um senhor bem pouco simpático e que já não gostou de Lenny desde a primeira vez que o viu.

Antológica a cena em que Lenny decide falar com o pai de Kelly, colocando, assim, as cartas na mesa, palavras escolhidas pelo próprio. A cena é engraçada pois Kelly, ao testemunhar aquilo, no início parece um pouco entediada, mas depois passa a achar tudo muito divertido. Porém, com todos os defeitos de Lenny, uma coisa não lhe falta: determinação. Mas um tipo de determinação que acaba por acentuar ainda mais sua superficilidade, principalmente no terceiro ato, que se passa na cidade de Kelly, no gélido estado do Minnesota. Nesse terceiro ato, há também uma cena muito sensual dos dois, que não chega a ter uma nudez gráfica, mas é tão deliciosamente libidinosa que chega a ser até mais interesante do que a cena da piscina de A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA, o filme de Peter Bogdanovich que apresentou Cybill Shepherd para o mundo.

O RAPAZ QUE PARTIA CORAÇÕES é também muito rico em sua crítica ao American way of life e à valorização da determinação a qualquer preço, não importando que para isso se aja de maneira bem pouco honesta. Em comparação com o filme dos Farrelly, trata-se de uma comédia muito mais nervosa. Mas, por mais que haja todo aquele desconforto de ele enganar a esposa no começo, é possível acreditar que é por uma "boa causa", que aquela lua de mel seria uma ironia do destino,  que poderia ser vista como um sinal. Muito do trunfo de May e do roteirista Neil Simon foi, em vez de fazer uma comédia romântica rasa e esquecível, construir um conto agridoce sobre ser bem sucedido na sociedade americana.

+ DOIS CURTAS

LE CANAPÉ ROUGE

É sempre um prazer ver um Éric Rohmer, mesmo que em um curta-metragem de 20 minutos. A essência do cineasta está presente de maneira condensada em um conto sobre arte, desejo e (in)segurança. Na trama de LE CANAPÉ ROUGE (2005), duas amigas se reencontram na rua depois de um longo tempo sem se ver e uma delas convida a outra para visitar a sua casa e ver o seu ateliê. Fiquei pensando como os ricos franceses parecem tão mais sofisticados em sua forma de verem a vida e a arte, mesmo quando parecem estar enganando o outro ou a si mesmos - em comparação com a nossa burguesia brasileira, essencialmente brega. De todo modo, o filme tem muito mais a dizer do que a princípio eu captei.

LINDA, UMA HISTÓRIA HORRÍVEL

Recentemente reli, com muita emoção, o conto de Caio Fernando Abreu, que tem significados tanto naquilo que é dito quanto naquilo que não é dito. Por isso uma adaptação para o cinema desse conto seria uma ousadia imensa. Muito do conto consiste na conversa entre mãe e filho, sobre como está a vida, sobre memórias, sobre saudade latente e dor indizível. Nesse sentido, fiquei muito surpreso com o resultado do curta LINDA, UMA HISTÓRIA HORRÍVEL (2013), de Bruno Gularte Barreto, que tem um respiro muito bonito na conversa entre os dois personagens enquanto tomam café e fumam cigarro. É econômico na direção de arte nas cenas mais importantes, e utiliza música boa na cena final. Fiquei surpreso ao ver o nome do meu amigo Milton do Prado nos créditos como montador. 

quinta-feira, junho 10, 2021

FESTA DE CASAMENTO (The Wedding Party)



Antes de MURDER À LA MOD (1968) e QUEM ANDA CANTANDO NOSSAS MULHERES (1968), Brian De Palma já havia dirigido, junto com Wilford Leach, seu professor de teatro, e Cynthia Munroe, sua amiga, a comédia FESTA DE CASAMENTO (1969), que, apesar desta data de lançamento, já havia sido finalizado anos antes. No IMDB consta que foi rodado em 1963, mas no livro Brian De Palma's Split-Screen, consta que o filme foi rodado entre o inverno de 1964 e o verão de 1965. Acredito que o livro seja mais preciso. De todo modo, foi um filme que ficou engavetado por não conseguir nenhum distribuidor. Só foi lançado depois do sucesso de QUEM ANDA CANTANDO NOSSAS MULHERES e por isso o cartaz já apresenta os nomes em destaque de Robert De Niro e Jill Clayburgh. 

FESTA DE CASAMENTO já mostra o talento do cineasta em um tema que seria posteriormente abordado, o medo. Se no filme sobre os amigos de 1968, há o medo de entrar no exército, aqui temos o medo do noivo, Charlie (Charles Pfluger), de se casar. Ao passar uns dias na ilha onde fica a rica mansão de sua noiva, pouco antes da data do casamento, o sentimento de insegurança sobre o casamento passa a persegui-lo. Seus dois amigos, vividos por De Niro e William Finley, no começo, colocam em sua mente a semente da dúvida sobre se o casamento seria a coisa certa a fazer. Aos poucos, ele mesmo vai começando a achar que entraria numa espécie de prisão à medida que vai conhecendo a família da noiva Josephine (Clayburgh).

Há homenagem ao cinema mudo, semelhante a um filme de Mack Sennett , nas primeiras imagens, o que chega a ser impressionante para um primeiro filme feito com poucos recursos. Sem falar que De Palma e seus dois codiretores lidam com um elenco bem grande, o que não deve ter sido fácil. Quanto à vontade de mostrar capacidade de direção, nào se trata apenas de usar a técnica de fast e slow motion, mas há também freeze-frame, jump cuts (homenagem aos filmes de Godard), intertítulos, diálogos improvisados, digressões narrativas e piadas mais estranhas do que exatamente engraçadas. Se bem que a cena da avó da noiva tentando barrar Charlie de ficar no quarto com Josephine é bem divertida.

Mas o filme é irregular, sendo a primeira meia hora muito divertida, depois vai ganhando uma barriga lá pelo meio e vai se recuperando perto do final. No terceiro ato, gosto da cena de Charlie bêbado, tentando se aproximar da cunhada. E, posteriormente, dessa mesma cunhada se mostrando interessada em Charlie, mas não querendo que as pessoas notem. "Feche a porta", ela diz, ao entrarem no quarto dela. Ele prefere deixar a porta aberta, talvez para sabotar o casamento, talvez por ter dúvida sobre a ideia de ficar com a cunhada.

A ideia do filme nasceu quando De Palma, Munroe e outros três amigos queriam fazer um projeto coletivo semelhante a O AMOR AOS VINTE ANOS, cujo curta mais famoso hoje é o dirigido por François Truffaut. Porém, quando De Palma viu o roteiro de Munroe, percebeu que era muito bom (melhor que o dele) e que seria melhor usá-lo como base para um longa. Um longa que demorou a ser visto pela plateia, mas que acabou fazendo história por apresentar as estreias do diretor, de De Niro (que aparece como “Denero” nos créditos) e Clayburgh. 

+ DOIS FILMES

A MANSÃO MACABRA (Burnt Offerings)

Com esse retorno do interesse por filmes de casa assombrada por ocasião do terceiro INVOCAÇÃO DO MAL, este A MANSÃO MACABRA (1976), de Dan Curtis, foi citado como um dos melhores e mais interessantes exemplares do subgênero. E isso, naturalmente, despertou minha curiosidade. De fato é um filme que, mesmo usando alguns elementos bem familiares, tem uma cara própria. Temos mais uma vez uma família à procura de uma casa, mas desta vez para passar o verão, alugar durante um período de três meses. Há algumas condições que os donos impõem, sendo que uma delas é cuidar da idosa de 85 anos que fica o tempo todo no quarto do andar de cima. A esposa (Karen Black) é a mais interessada na casa e o marido (Oliver Reed) se sente compelido a satisfazê-la. Seguem o casal, o filho pequeno e a tia (Bette Davis, que na época já estava bastante à vontade no gênero). O diferencial do filme está na casa como elemento de prisão e de deterioração da família, a partir de estranhos incidentes. Não é um filme de sustos, mas de construção de atmosfera. E nisso é muito bem-sucedido. Filme presente no box Obras-Primas do Terror 6.

ARMY OF THE DEAD - INVASÃO EM LAS VEGAS (Army of the Dead)

Zack Snyder volta ao filão que marcou sua estreia na direção de cinema, o filme de zumbi, com MADRUGADA DOS MORTOS (2004). E, diferente de LIGA DA JUSTIÇA DE ZACK SNYDER (2021), que foi um trabalho feito com mais cuidado e carinho, este ARMY OF THE DEAD - INVASÃO EM LAS VEGAS (2021) parece ser um tanto mais desleixado. Mas isso não chega a prejudicar, até combina com a estética do filme (a fotografia do próprio Snyder não é lá essas coisas também). O que acaba importando mesmo é a jornada dos heróis, em um trabalho que é pouco nobre, assaltar um cassino unindo uma equipe qualificada, em uma Las Vegas infestada por zumbis. E por zumbis, é bom lembrar que temos aqui também aqueles rapidinhos do primeiro filme do Snyder. Na verdade, os zumbis agora são inteligentes e têm sentimentos. Nem todo o grupo é formado por pessoas carismáticas, mas se destacam o líder (Dave Bautista), a filha dele (Ella Purnell) e Lilly (Nora Arnezeder). Há espaço no meio da ação para discutir relacionamentos e isso não chega a ser ruim, pois tira seus personagens da extrema superficialidade. No mais, temos Snyder mais uma vez usando boas canções pop na trilha.

quarta-feira, junho 09, 2021

INVOCAÇÃO DO MAL 3 - A ORDEM DO DEMÔNIO (The Conjuring - The Devil Made Me Do It)



Impressionante a falta que um grande diretor faz quando ele entrega a outro menos talentoso aquilo que talvez seja o seu maior projeto. A elegância e a condução de James Wan nos dois primeiros filmes da franquia INVOCAÇÃO DO MAL são substituídas aqui pela falta de habilidade de Michael Chaves, o mesmo do fraco A MALDIÇÃO DA CHORONA (2019), título que, mesmo não sendo tão ruim quanto A FREIRA, outro subproduto dos filmes estrelados por Ed e Lorraine, é mais esquecível e por isso mesmo mais digno de nosso desprezo. Como tive a oportunidade de rever os dois filmes poucos dias antes, essa diferença se torna ainda mais gritante. (Ver breves textos sobre as revisões abaixo.)

INVOCAÇÃO DO MAL 3 - A ORDEM DO DEMÔNIO (2021) até que começa bem. O prólogo faz uma homenagem explícita a O EXORCISTA (repararam na descida do padre da viatura policial e a tomada da fachada da casa?) e também é o momento de mais intensidade do filme, até pela boa participação da criança possuída pela entidade maligna. Depois, o caso vira mais uma curiosidade. Ao que parece foi a primeira vez na história dos tribunais nos EUA em que um homem afirmou ter matado outro por ter sido possuído por uma força demoníaca.

É pena que o filme vá se tornando cada vez mais problemático à medida que se aproxima da conclusão. E os clichês, tão brilhantemente usados por Wan, aqui não têm a menor graça. Ao contrário, só aumentam a sensação de que estamos vendo um exemplar ordinário do gênero.

O que há de bom é a presença sempre bem-vinda de Patrick Wilson e Vera Farmiga como Ed e Lorraine Warren, o casal célebre por investigar situações sobrenaturais. Aqui, o fato de Ed estar mais fragilizado por causa de um problema cardíaco acaba gerando alguns momentos interessantes. Percebe-se que havia o esqueleto de uma ideia boa por trás, mas que o risco que Wan conseguiu superar nos dois primeiros filmes por causa de seu talento vira algo de sentir vergonha, muito por causa do espírito carola neste terceiro. Hoje em dia fazer terror cristão é uma tarefa bem mais difícil do que fazer terror pagão.

Enquanto isso, James Wan tem um novo filme de horror que talvez também vire uma franquia, MALIGNANT, já finalizado e previsto para estrear ainda neste 2021, ano tão pesado, especialmente para nós brasileiros, que ir ao cinema ver um filme sobre possessão demoníaca é algo feito para relaxar do atual momento político, social e sanitário.

+ DOIS FILMES REVISTOS

INVOCAÇÃO DO MAL (The Conjuring)

Com a proximidade da estreia do terceiro filme da franquia, resolvi rever os dois primeiros. E, para a minha surpresa, este primeiro filme (2013) segue sendo muito poderoso. Fiquei arrepiado em muitas sequências. James Wan tem um domínio da gramática do horror clássico que é impressionante. E não deixa de ser também arriscado fazer um filme cristão à moda antiga, com cenas de exorcismo intensas que poderiam muito bem estragar o filme, e ele faz isso com muita seriedade e eficiência. E por mais que eu não tenha ficado totalmente satisfeito com a conclusão (rápida demais, talvez), todo o desenvolvimento até chegar lá é aterrorizante. Como o terror é um gênero que lida com a vida normal como uma dádiva, entrar em contato com uma vida atormentada por forças diabólicas só faz com que essa vida normal seja ainda mais valorizada. No mais, ótimos desempenhos de Patrick Wilson e Vera Farmiga e também dos atores que vivem a família que mora na casa assombrada. Sem falar em todo o cuidado com direção de arte, movimentos de câmera, som, música etc. Uma joia clássica cristã feita em tempos de horror pagão.

INVOCAÇÃO DO MAL 2 (The Conjuring 2)

Que bom poder rever este segundo filme da franquia e ver que ele se equipara ao primeiro em qualidade. Ou quase. Por mais que o primeiro talvez cause mais arrepios, este lida com a mitologia da Igreja Católica e da demonologia de maneira ainda mais ousada. Na época que o vi no cinema, talvez tivesse feito comparação com a minissérie britânica THE ENFIELD HAUNTING, que é de fato excelente e tem mais tempo de explorar o drama da família Hodgson. O filme, no entanto, visto à parte e certamente menos fiel aos fatos, tem uma força absurda do ponto de vista dramatúrgico. Principalmente ao dominar o tempo certo em seu clímax - o clímax muito rápido é um problema do primeiro. E há aqui a figura assustadora da freira, que é um elemento sacro levado para o ambiente demoníaco. Outro acerto é o carinho que se demonstra pela garotinha Janet (Madison Wolfe) em algumas cenas bem ternas. E há aquela ótima cena do Patrick Wilson cantando Elvis, que já virou um clássico.

sábado, junho 05, 2021

OS MIL OLHOS DO DR. MABUSE (Die 1000 Augen des Dr. Mabuse)



Era 13 de maio de 2020, quando iniciei minha peregrinação pela obra de Fritz Lang com a revisão de M - O VAMPIRO DE DUSSELDORF (1931), comecei por uma obra já do cinema falado para ir me preparando para o cinema mudo, com vários títulos com metragem bem longa. Elaborei uma tabelinha, de modo que, para cada três falados, eu via um mudo para ir me animando até o fim da jornada (me considero uma pessoa muito apegada às palavras). Felizmente, adorei certos filmes mudos também, como DR. MABUSE, O JOGADOR (1922), que está hoje no meu top 5 dos meus favoritos do realizador.

Eis que termino esta peregrinação justamente com OS MIL OLHOS DO DR. MABUSE (1960), terceiro e último filme de seu retorno à Alemanha do pós-guerra após um brilhante período de cerca de 20 anos em Hollywood. Curiosamente, seus três últimos filmes tentam reciclar ou aproveitar muitas dos temas de sua fase germânica. Mas tudo de uma maneira ao mesmo tempo nova e velha, com um anacronismo estranho e talvez por isso tenham sido abraçados com carinho pelos novos críticos franceses.

Depois do sucesso popular dos filmes indianos - O TIGRE DA ÍNDIA (1959) e O SEPULCRO INDIANO (1959) -, o produtor Artur Brauner propôs a Lang refilmar OS NIBELUNGOS (1924), mas o diretor achou isso um absurdo. Depois, Brauner propôs um remake de A MORTE CANSADA (1921), também rejeitado pelo realizador. Ou seja, parece que Brauner acreditava que o cineasta austríaco não conseguia mais ter uma ideia nova. Foi com a sugestão de refilmar O TESTAMENTO DO DR. MABUSE (1933) que Lang teve a ideia de trazer de volta o seu personagem mais famoso, o gênio do mal de mil faces. Em vez de uma refilmagem, porém, ele preferiu uma nova história, no mundo contemporâneo e com a questão da bomba atômica no ar. Era o novo temor e o que movia os principais filmes de espionagem de então.

E novamente foi um sucesso. Tanto que acabou gerando vários outros filmes mais populares com o personagem Dr. Mabuse, dirigido por outros cineastas e muitos deles estrelados pelo mesmo Wolfgang Preiss de OS MIL OLHOS DO DR. MABUSE no papel do gênio do mal. Aliás, é interessante o fato de Lang esconder até o final a identidade do novo Dr. Mabuse. Ele não queria estragar a surpresa. É diferente, de O TESTAMENTO, quando já sabíamos desde o começo quem era o Dr. Kramm.

No caso de OS MIL OLHOS, na verdade, há um roteiro tão intrincado que eu acredito que rever o filme seja ideal para ter uma melhor compreensão. E até para gostar mais dele também. A história é um mosaico de incidentes que se interconectam. A trama começa com o assassinato de um homem numa avenida. Ele é atingido por um dardo de metal que fura seu cérebro, enquanto o sinal está fechado.

O personagem mais próximo de um protagonista no filme é o milionário americano Henry B. Travers (Peter van Eyck), que está passando uns dias no hotel Luxor. Logo em seguida, somos apresentados a Marion (Dawn Adams), uma mulher que estaria prestes a pular do alto de uma sacada. Travers convence a jovem a mudar de ideia e ela fica em seu apartamento por um tempo. Travers se apaixona por Marion. Acontecem em seguida também atentados a um delegado de polícia e a participação de um sujeito cego que supostamente teria a habilidade de prever o futuro, um personagem tipicamente languiano.

É curioso como o filme é um resumo de muita coisa que Lang realizou desde o começo de sua carreira. A economia de música por exemplo, remete aos filmes dos anos 1930, mas há muito de Hollywood. É como se ele trouxesse o noir americano (com direito a uma femme fatale) para o thriller de espionagem europeu. Achei a trama confusa pra caramba, mas o ideal é relaxar e se deixar levar pela história meio onírica. Achei curioso o corte brusco na última cena, estranhamente sem som.

+ DOIS FILMES

O TERROR DA SERRA ELÉTRICA (Mil Gritos Tiene la Noche)

De vez em quando a gente se pega tendo que avaliar um filme por critérios bem distintos do que se poderia avaliar, no caso, um suspense americano tradicional, por exemplo, ou um filme policial sangrento. Neste O TERROR DA SERRA ELÉTRICA (1982), de Juan Piquer Simón, slasher com influência forte dos gialli, produzido na Espanha e com a história se passando em uma high school americana, temos uma sensação de estranhamento que já se apresenta desde o começo, quando uma mãe flagra seu pequeno filho brincando com um quebra-cabeças de uma mulher nua. Ela briga com a criança, que se revolta e mata e esquarteja a mãe a machadas. A história principal se passa 40 anos após o incidente do prólogo, na escola, e logo surgem novas vítimas de um assassino misterioso, que tem por hábito usar uma motosserra. É filme para se divertir com o clima, com a exploração da nudez e do exagero nos jorros de sangue e com uma trama de investigação que não importa tanto assim. O modo como o filme termina, inclusive, é mais uma prova de que o diretor pareceu não levar tão a sério assim o seu trabalho. Com certeza vale a espiada, até por ter se tornado um clássico exploitation. Filme presente no box Slashers III.

ESCOLA DA BESTA SAGRADA (Seiju Gakuen)

Eis um filme que deve ter conquistado muitos espectadores curiosos na época que foi lançado no Japão. Como estamos falando de um país não-católico, não houve problemas em fazer um nunsploitation àquela altura, com um pouco mais de liberdade para usar a nudez no cinema que só naquela década havia sido conqusitada. Junto com a nudez, que hoje em dia não deve ser motivo de muito entusiasmo, há algo que ainda incomoda, que são as cenas de tortura dentro do convento. É justamente por isso, por esse tipo de ousadia, que ESCOLA DA BESTA SAGRADA (1974), de Norifumi Suzuki, é lembrado dentro do gênero. Na trama, a heroína, depois de uma noite de sexo com um homem, se apresenta para entrar em um convento. Com o tempo vamos sabendo que ela está ali por um motivo muito particular. Filme presente no box Cinema Exploitation 2.

quinta-feira, junho 03, 2021

MARE OF EASTTOWN



Kate Winslet é uma atriz que já mostrou sua grandeza no cinema, em obras como FOGO SAGRADO!, de Jane Campion; FOI APENAS UM SONHO, de Sam Mendes; e RODA GIGANTE, de Woody Allen (para citar apenas três). Mas talvez a televisão - e não o cinema - tenha sido o veículo que melhor captou toda sua força dramatúrgica, e, coincidência ou não, levando o nome de sua personagem no título. Foi ocaso de MILDRED PIERCE, dez anos atrás; e é o caso agora de MARE OF EASTTOWN (2021), minissérie criada e roteirizada por Brad Ingelsby e cujos sete episódios foram todos dirigidos por Craig Zobel, conhecido por títulos como OBEDIÊNCIA (2012) e A CAÇADA (2020).

Nesta nova minissérie, Kate é Mare Sheehan, uma detetive de polícia cheia de feridas abertas. A maior delas é o suicídio do filho, também vítima do vício nas drogas e de tendências suicidas que talvez tenham sido herdadas do pai de Mare. Mas há ainda a separação com o marido, a guarda do neto que talvez lhe seja tirada e, no campo profissional, ela é vista como inapta por não ter conseguido resolver o caso do desaparecimento de uma jovem um ano atrás.

Uma das características de Easttown, cidade pequena no estado da Pensilvânia, é que é um lugar onde todo mundo conhece todo mundo. Meio como Twin Peaks. Ou seja, espaço ótimo para essas séries dramáticas sobre crimes. E aqui há também um outro crime que já acontece no final do primeiro episódio, de uma jovem mãe solo que é encontrada morta pela manhã, próximo ao rio.

A interação de Mare com a família e com os colegas de trabalho são quase sempre com um certo atrito, seja por ela guardar alguma mágoa com a mãe (Jean Smart), seja porque ela tenha que manter um estilo durona por força do ofício. Assim, raramente Mare usa maquiagem (ou pelo menos uma maquiagem mais evidente) e está quase sempre com umas roupas mais “masculinas”. Aliás, é interessante que a própria Kate Winslet reclamou de tentativas do criador da série de esconder suas "imperfeições", tanto nas marcas do tempo no rosto em imagens de divulgação, quanto sua barriga na cena de sexo com Guy Pearce, ator, que esteve também em MILDRED PIERCE. "Don't you dare!", ela disse.

Esse abraçar a maturidade por parte dela tem feito bem demais para a atriz e, ainda que ela continue lindíssima, cada vez mais é pela sua força dramática que agora ela tem sido enaltecida. Já no citado RODA GIGANTE esse elemento da maturidade se provava forte e interessante para a construção de suas personagens.

MARE OF EASTTOWN, por ser uma série mais sobre os dramas de várias famílias de uma cidade pequena, acaba ganhando peso quando as cenas de suspense e de violência enchem a tela. Nesse sentido, o episódio "Illusions", o quinto, é o mais poderoso. No referido episódio, Mare e o detetive Colin Zabel (Evan Peters) acabam indo parar na casa dos sequestradores de garotas. E haja tensão e nervos de aço para chegar até o amargo final. Trata-se de um episódio tão intenso que tudo que vem depois é um tanto inferior. Mas tudo bem, já que a série tem essa preocupação maior em nos convidar a acompanhar Mare, que cada vez mais sente o peso do mundo em seus ombros.

O fato de ela ser uma personagem que é capaz de plantar uma evidência falsa para lutar pelo que ama até ajuda a torná-la mais humana e menos esse espírito da justiça e da verdade que transparece com força no último episódio, quando finalmente se descobre quem matou a moça do primeiro episódio.

No mais, gostei muito de Evan Peters, como o policial parceiro (e meio que apaixonado por ela); Angourie Rice, como a filha atenciosa e que disfarça suas fragilidades; Jean Smart, como a mãe um tanto atrapalhada; e Julianne Nicholson, como a irmã de Mare, que só no final sabemos se tratar de fato da segunda personagem mais importante da minissérie. Sem falar em todos os personagens secundários ao redor, que evidenciam uma América doente, pobre, viciada e cheia de inseguranças.

+ DUAS SÉRIES/MINISSÉRIES

FALCÃO E O SOLDADO INVERNAL (The Falcon and the Winter Soldier)

Depois da inventividade de WANDAVISION, a Marvel cai vários pontos com este trabalho mal desenvolvido sobre dois personagens queridos do Universo Marvel. Há falhas nas cenas de ação, na direção, no uso do sentimentalismo, na música, nos diálogos e até nos destinos de certos personagens (alguém achou legal o que fizeram com a Sharon Carter?). Pra não dizer que não gostei de nada, gostei da discussão sobre racismo que a série traz e também a questão da culpa do personagem de Bucky. Melhor sorte na próxima. Se continuar desse jeito, não sei se verei todas as séries como pretendia.

INVENCÍVEL - PRIMEIRA TEMPORADA (Invincible - Season One)

Já tinha lido elogios a respeito dos quadrinhos de Robert Kirkman (o mesmo criador de The Walking Dead), mas meu primeiro contato com os personagens foi nesta excelente série em animação e desde já uma das melhores do ano. INVENCÍVEL (2021) pega referências de outros tantos super-heróis para a construção de seu universo. O próprio protagonista seria uma espécie de Superboy, o filho do Superman, já que seu pai, o Omni-Man, é um alienígena que mora na Terra há duas décadas e possui poderes imensos. Ainda há outros supers nesse universo também. Mas o que nos ganha é que há também um grau de humanismo nos personagens que aproxima com o estilo Marvel (o Mark tem problemas de adolescente que lembram o Peter Parker). E há também um belo desenvolvimento desses personagens, de modo que nos importemos com eles. E quem mergulhar de cabeça na série achando que é algo inocente, vai ficar em choque logo no final do primeiro episódio. As classificações 16 e 18 anos para os episódios se justificam. Felizmente a segunda temporada já foi aprovada pela Amazon. Ah, e minha personagem favorita é a Eve.