domingo, junho 27, 2021

A ÉPOCA DA INOCÊNCIA (The Age of Innocence)



Curioso como a gente às vezes fica confuso com o passar do tempo. Eu custo a acreditar que os anos 1990 já estejam tão distantes assim. Ao fazer as contas do tempo que vi no cinema A ÉPOCA DA INOCÊNCIA (1993), que estreou no Brasil no início de 1994, junto com os demais filmes da temporada do Oscar, fiquei impressionado ao ver que já faz 27 anos. Até ontem à noite eu só tinha flashes do filme em minha memória.

Martin Scorsese vinha de dois filmes de grande impacto e com uma violência brutal que virou marca de seu cinema, os maravilhosos OS BONS COMPANHEIROS (1990) e CABO DO MEDO (1991). A ÉPOCA DA INOCÊNCIA veio para quebrar o cinema de rua que ele vinha fazendo desde fins dos anos 1960, mas que tomou forma mesmo a partir de CAMINHOS PERIGOSOS (1973). Na época não foi um filme que me empolgou muito, é verdade. E hoje entendo que muito disso vem do fato de ser uma adaptação que pretende prestar tributo à obra de Edith Wharton, com muitos trechos do romance da autora sendo lidos por Joanne Woodward. E há uma trama envolvendo muitos personagens que talvez só se torne de fato compreensível com a leitura do romance.

Scorsese fez o que pôde para que a adaptação coubesse nas duas horas e vinte minutos. E imagino que o trabalho de edição junto com Thelma Schoonmaker, sua montadora desde TOURO INDOMÁVEL (1980), deve ter mesmo dado muito trabalho. Há um corte que muito me chamou a atenção: Newland Archer (Daniel Day-Lewis) está com Ellen Olenska (Michelle Pfeiffer) na casa da avó dela, quando diz, em tom abrupto: "precisamos nos encontrar". Logo em seguida, corta para o momento em que ele já está na casa de Ellen. Eis um exemplo perfeito de que cinema é feito para ser visto com atenção.

Naqueles meados dos anos 1990, eu não tinha me sentido tão preso à trama e ao drama dos personagens de Day-Lewis e Pffeifer, vivendo uma espécie de amor impossível freado por convenções sociais estúpidas. Desta vez, até mesmo o sentimento de indignação me atravessou, junto com a angústia do protagonista em ter um sentimento preso, a sua vontade presa, assim como também ter que se colocar em um casamento que para ele é quase uma prisão.

Scorsese faz algo próximo a um melodrama, mas do jeito dele, com aperto no peito no lugar de lágrimas. E com um realismo pendendo para o pessimismo, mas se permitindo, em alguns momentos, adentrar o território do sonho, do delírio. O que é aquela cena do Day-Lewis na janela imaginando ser abraçado pela mulher que ama? Aliás, há também um trabalho lindo de apresentação dos corpos dentro do formato scope, que é impressionante.

O autor declara que suas principais inspirações foram três filmes de Luchino Visconti, O LEOPARDO, SEDUÇÃO DA CARNE e O INOCENTE. Quem viu o documentário MINHA VIAGEM À ITÁLIA (1999) sabe o quanto ele se sente devedor do cinema italiano da era de ouro. Mas além de se inspirar nessas obras de Visconti, ele ainda incluiu um tipo de direção que muitos acharam inadequada para uma produção daquele tipo, com movimentos de câmera que rompem com um drama de época tradicional. Há uma cena que é a cara do Scorsese, da câmera adentrando o espaço de uma mansão onde está acontecendo uma festa. Acontece logo após a cena do teatro, que abre o filme.

Outra curiosidade interessante é o uso da música, que é bem intenso. No livro Conversas com Scorsese, de Richard Schickel, o diretor conta que enviou uma cópia do filme para Akira Kurosawa ver. O diretor japonês mandou um bilhete de volta dizendo que não gostava de filmes de romances. Mas mesmo assim viu o filme e fez uma reclamação: Scorsese estaria usando música demais. No entanto, acho a música de Elmer Bernstein tão bem casada com o estilo do filme que não vejo problema algum. No livro de entrevistas, Scorsese conta que o filme-chave para essa utilização de música em um drama de época foi TARDE DEMAIS, de William Wyler.

Na trama, Michelle Pffeifer é Ellen, uma mulher que retorna da Europa após o fim de um casamento frustrado com um conde polonês. Ao que parece, ela sofreu muito com todo esse processo e acreditava que Nova York seria o lugar ideal para reconstruir sua vida. Ela também tinha intenção de conseguir o divórcio. Ellen teve um interesse amoroso mútuo antes com Newland (Day-Lewis), mas agora ele estava noivo de May (Winona Ryder), sua prima e filha de uma família rica e muito influente daquela sociedade nova-iorquina dos anos 1870.

O que Ellen não sabia era o quanto aquela sociedade era hipócrita e cheia de regras, a ponto de colocá-la como uma pária ou mulher indigna, apenas pelo fato de ela ter se separado do marido. E nem adiantaria o divórcio para que ela ficasse livre. Aquela sociedade via o divórcio como algo ainda mais vergonhoso. Newland vê tudo isso com um ar de indignação que nos contagia. Ele é o olho do filme, o elo de ligação entre a autora do romance (e por sua vez Scorsese) e o espectador.

O grau de tensão que se cria com o desejo de Newland por Ellen (e vice-versa) é sentido em diversos momentos. Adoro um momento em que os dois estão conversando antes de May chegar e quando Ellen pede para que ele fique um pouco mais com ela. Tudo isso (esse mergulho paulatino no desejo proibido) vai se acumulando em um nível atormentador. Talvez em nenhum outro filme Scorsese tenha lidado com uma paixão tão perturbadora quanto aqui. Aliás, há um filme sim que eleva essa ideia de "amar é sofrer" a um status ainda mais intenso: o segmento "Lições de Vida", presente em CONTOS DE NOVA YORK (1989). Mas em A ÉPOCA DA INOCÊNCIA pode-se dizer que isso se manifesta de maneira mais contida. E é justamente por ser mais contida que a dor parece ser mais incômodo para os personagens e também para o espectador.

Scorsese, tão acostumado a fazer filmes sobre a máfia, fez algo semelhante,  apresentando-nos a uma sociedade cujas convenções sociais parecem ainda mais brutais do que as de uma comunidade mafiosa; uma sociedade que parece muito perfeita em suas maneiras, com gente de posses conversando em jantares requintados ou em torneios de arco e flecha, mas que parece uma seita saída de um filme de horror. Uma seita que sacrifica algo muito querido do protagonista. Sacrifica seu grande amor. 

Agradecimentos especiais à Paula, pela companhia durante a sessão.

+ UM CURTA E UM EPISÓDIO DE TELEVISÃO

"REFLEXOS, REFLEXOS" ("Mirror, Mirror")

Este episódio da primeira temporada de HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS (1985/1986), criada por Steven Spielberg, foi a primeira incursão de Martin Scorsese na televisão. Uma incursão não foi muito feliz, embora não deixe de ser interessante esta história sobre um escritor de terror (Sam Waterston) que passa a viver apavorado quando vê no reflexo de qualquer espelho a figura de um homem desfigurado prestes a matá-lo. O problema é que o fiapo de história de "Reflexos, Reflexos" (1986), de autoria do Spielberg, parece não saber para onde ir, e acaba terminando de maneira pouco satisfatória e inteligente. De todo modo, vale pela curiosidade.

LA PINCE À ONGLES

Premiado curta-metragem desse que talvez seja o mais celebrado roteirista da história do cinema. Jean-Claude Carrière fez muitas contribuições, mas sua parceria com Luis Buñuel certamenete é a mais lembrada. E vendo LA PINCE À ONGLES (1969), curta de 11 minutos do Carriére também diretor, é que percebemos que sua influência na fase francesa de Buñuel foi fundamental para trazer o surrealismo do diretor espanhol para outro patamar, para trazer situações ainda mais incríveis. Neste filme, casal chega a um quarto de hotel e aos poucos coisas começam a desaparecer.

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