quinta-feira, dezembro 31, 2020

TOP 20 2020 E O BALANÇO DO ANO




1. RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS (Céline Sciamma)
2. THE SOUVENIR (Joanna Hogg)
3. UM LINDO DIA NA VIZINHANÇA (Marielle Heller)
4. MALMKROG (Cristi Puiu)



5. FIRST COW (Kelly Reichardt)
6. NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE (Eliza Hittman)
7. O HOMEM INVISÍVEL (Leigh Whannell)
8. VITALINA VARELA (Pedro Costa)
 


9. DRAGGED ACROSS CONCRETE (S. Craig Zahler)
10. A PORTUGESA (Rita Azevedo Gomes)
11. VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI (Ken Loach)
12. MARTIN EDEN (Pietro Marcello)
  


13. O CASO RICHARD JEWELL (Clint Eastwood)
14. OS OLHOS DE CABUL (Zabou Breitman, Eléa Gobbé-Mévellec)
15. UNDINE (Christian Petzold)
16. A PASTORA E AS SETE CANÇÕES (Pushpendra Singh)
  




17. SERTÂNIA (Geraldo Sarno)
18. TOMMASO (Abel Ferrara)
19. QUE LE DIABLE NOUS EMPORTE (Jean-Claude Brisseau)
20. LET HIM GO (Thomas Bezucha)

Menções honrosas 

21. FOURTEEN (Dan Sallitt)
22. CASA (Letícia Simões)
23. OS MISERÁVEIS (Ladj Ly)
24. ATÉ O FIM (Glenda Nicácio, Ary Rosa)
25. ADORÁVEIS MULHERES (Greta Gerwig)
26. OS 8 MAGNÍFICOS (Domingos Oliveira)
27. NARCISO EM FÉRIAS (Ricardo Calil, Renato Terra)
28. TIGERTAIL (Alan Yang)
29. O SOM DO SILÊNCIO (Darius Marder)
30. A VASTIDÃO DA NOITE (Andrew Patterson)

O que dizer de 2020 que já não tenha sido dito por tantas e tantas pessoas? Sei que a percepção é individual, mas este é um ano que definitivamente vai ficar na memória de todos os seres viventes até, no mínimo, o dia de suas partidas deste plano. Até crianças muito jovens se lembrarão deste período sombrio de temor, morte, máscaras e álcool em gel. E pensar que o ano começou de maneira tão tranquila pra mim... Passei o réveillon em uma praia paradisíaca com um grupo de amigos muito legal e fiquei acreditando que aquilo seria uma amostra do que seria 2020. Ledo engano.

Custei a acreditar que o mundo ia parar, no início de março, quando a Europa já estava sentindo de maneira muito forte os impactos do Corona Vírus. E logo vimos notícias de filmes que foram adiados, grandes blockbusters que foram deixados para o ano que vem, e depois todas as salas de cinema fechando, e mesmo quando algumas retornaram, não foi a mesma coisa, já que a pandemia ainda não acabou, e muitos não se sentem seguros em entrar em uma sala de cinema. Eu cheguei a arriscar algumas vezes e até tive momentos muito bons na sala escura, durante essa fase. Especialmente durante a mostra de filmes do Kieslowski, no Cinema do Dragão.

No mais, não foi um ano perdido, como muitos andam dizendo por aí. E muito menos um ano que deva ser esquecido. Ao contrário, devemos sim lembrar dele, ver o quanto aprendemos durante os períodos de isolamento social e de maior aproximação com as artes, que foram não simplesmente válvulas de escape, mas a nossa compreensão de que podemos viver sem ir a um shopping, mas viver sem arte é muito difícil e ruim para a alma. Daí eu ter me apegado ainda mais aos livros, aos filmes, aos quadrinhos, aos discos. Foi também um ano de aproximação com pessoas novas do universo virtual, do Youtube e do Instagram, tanto no campo da política, quanto da astrologia, da literatura, dos quadrinhos, do cinema e da música.

E quanto aos filmes vistos, no começo da pandemia eu comecei a rever muita coisa. Por isso 2020 foi o ano em que eu mais revi grandes obras ou filmes que me despertaram saudade. Mas houve também descobertas. No último trimestre, houve um boom das mostras virtuais de cinema, destaque para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Foi minha primeira experiência com a Mostra. Para o bem e para o mal, foi nessa modalidade. Quem sabe eu vou na modalidade presencial quando o mundo voltar ao normal. Se é que vai voltar, se é que encontraremos cinemas ainda funcionando, já que há essa tendência de movimento para os streamings. Uma das bombas do ano foi aquela decisão louca da Warner, com seus títulos de 2021 sendo lançados simultaneamente no HBO Max. Vamos ver no que isso vai dar.

Mas falemos dos filmes do ano pra mim. Para este ano, tive que abrir mão da regra de considerar apenas os títulos vistos no cinema. Não faria sentido nessas circunstâncias. Olhando para a lista, logo dá para perceber algo que chama a atenção: a boa quantidade de filmes dirigidos por mulheres. Dos vinte do top 20, sete são dirigidos por mulheres. E sete baita filmes, já que tive de deixar muita coisa boa para trás na peneira. E sobre essa coisa que dizem de que o futuro é feminino, eu acredito. Acredito que este é um caminho sem volta e que vamos aprender muito com isso, além de aprender a valorizar grandes diretoras que geralmente são deixadas em segundo plano, por uma espécie de tendência, pelo machismo estrutural.

RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS, de Céline Sciamma, eu vi ainda na fase pré-pandemia, assim como UM LINDO DIA NA VIZINHANÇA, de Marielle Heller. Os pontos em comum desses dois filmes foi o quanto eles foram uma explosão de emoção para mim. No caso do filme da Heller, então, eu me peguei chorando como nunca havia chorado antes numa sala de cinema. Nada de lágrimas caindo suavemente pelos cantos, mas um choro quase convulsivo, muito próximo da realidade. E no caso de Sciamma, acho que o que me pegou foi tanto a história de amor, com a proibição da relação, quanto a forte ligação com a música que se estabelece.

Outras cinco realizadoras fizeram quatro obras de forte cunho feminista. THE SOUVENIR, de Joanna Hogg, é tão sofisticado quanto intenso na exposição do relacionamento tóxico vivido pela própria diretora em sua juventude, enquanto NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES SEMPRE, de Eliza Hittman, trata do universo de uma garota que sofre com violência doméstica e se vê numa situação de busca por um espaço para abortar. Enquanto isso, A PORTUGUESA, de Rita Azevedo Gomes, nos apresenta a uma mulher que tem uma atitude à frente de seu tempo em uma obra de um visual tão incrível que parece uma pintura renascentista. E temos a maravilhosa animação OS OLHOS DE CABUL, da dupla Zabou Breitman e Eléa Gobbé-Mévellec, que nos joga em uma das realidades mais cruéis do mundo, especialmente para as mulheres: o Afeganistão dominado pelos talibãs.

Quanto aos filmes mais masculinos, também tivemos títulos de destaque. Mas podemos começar, inclusive, pelo filme "masculino" dirigido por uma mulher. O que nos leva à pergunta: o que seria um filme masculino e um filme feminino? De todo modo, podemos pensar em termos de ying e yang. O fato é que Kelly Reichardt fez um grande filme sobre a amizade entre dois homens, e também um dos mais sutis filmes de assalto, FIRST COW.

No que se refere a amizades masculinas e também à violência, difícil sair indiferente ao final da sessão de DRAGGED ACROSS CONCRETE, de S. Craig Zahler. A associação com a masculinidade acaba vindo forte por conta da presença de Mel Gibson, mas trata-se de uma obra poderosa o suficiente para nos provocar angústia quase na mesma proporção que nos empolga. Podemos dizer algo parecido de LET HIM GO, de Thomas Bezucha, uma espécie de western passado na década de 1960, e com um dos mais belos casais da terceira idade de Hollywood. É também um filme de grande impacto e de violência psicológica poderosa.

Quanto ao filme mais cabeçudo do ano, pra mim, MALMKROG, de Cristi Puiu, trouxe tanto convite ao pensar que saí da sessão completamente desnorteado. Não apenas pela duração, mas porque quase não há trégua na quantidade de debates propostos, além de toda a sofisticação visual característica do cineasta romeno. E falando em sofisticação, o grande filme italiano do ano é, muito provavelmente, MARTIN EDEN, de Pietro Marcello, sobre a vontade de aprender atropelando a necessidade de amar.

No território do filme de horror, o grande representante foi um blockbuster prejudicado pela pandemia, O HOMEM INVISÍVEL, de Leigh Whannell. O diretor transforma a história clássica de H.G. Wells em uma trama sobre masculinidade tóxica. Bem a cara de nosso tempo. Mas é também uma obra impressionantemente poderosa na tensão e no medo. Talvez só Paul Verhoeven tenha conseguido algo parecido com esse tema, quando estava em Hollywood.

Outro título que tangencia, ainda que de maneira mais sutil, o território do cinema de horror é UNDINE, de Christian Petzold, a maior sensação desse novo cinema alemão. Ele, sendo também especialista em histórias de amor com toques de tragédia, tem mostrado cada vez mais ser um gigante entre os mais jovens realizadores.

Dos veteranos, também temos alguns títulos de peso. Clint Eastwood chega aos 90 anos com mais uma crônica de heroísmo americana, O CASO RICHARD JEWELL. Lindo filme que abriu bem o circuito nacional neste ano. Já Abel Ferrara chega a um momento de sua vida e carreira em que decide usar o cinema como divã, falando de seus demônios, de seus pecados. Dos três filmes novos do realizador, todos nessa linha, ainda que totalmente distintos na forma, o que eu mais gostei foi TOMMASO. Aliás, aproveito para deixar o meu muito obrigado a Ferrara. Ele foi o meu maior parceiro na primeira fase da pandemia, quando resolvi fazer uma peregrinação por sua obra.

O ano também foi marcado pelo retorno de um cineasta octagenário de grande importância para o Cinema Novo, mas cuja obra costumava ser pouco lembrada. Eis que o grande filme brasileiro do ano é dele, SERTÂNIA, de Geraldo Sarno, uma obra que respira diferente, tem textura diferente, que tanto remete ao passado, aos anos 1960, quanto tem um frescor admirável.

O quarto dos cinco diretores veteranos que estão na lista é Jean-Claude Brisseau. Só neste ano peguei para ver seu filme-testamento, QUE LE DIABLE NOUS EMPORTE. Continua me interessando muito no quanto mistura sexo com espiritualidade, desejo carnal com metafísica. E o quinto é Ken Loach, que apresentou um lindo tratado sobre a precarização do trabalho no mundo contemporâneo. A pessoa tem que ter um coração de pedra para não se emocionar com VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI.

Encerrando o top 20 com dois filmes dirigidos por homens, mas muito interessados na condição da mulher em seus respectivos países. De Portugal, Pedro Costa nos traz o sombrio VITALINA VARELA, uma obra tão sofisticada que merece ser vista várias vezes. Por sorte, tive a honra de vê-lo no cinema. E da Índia, Pushpendra Singh nos apresenta a uma personagem feminina admirável. Vi A PASTORA E AS SETE CANÇÕES na Mostra de São Paulo e já fico na torcida para que seja lançado nos cinemas.

Top 5 - Piores do ano

Quase não faço esta lista neste ano. Eu sempre encontro algo de positivo nos filmes. Não tenho muito essa relação de raiva com alguns deles. E creio que, neste ano em particular, essa impressão foi ainda maior. De todo modo, para não perder o costume, segue, abaixo. 

1. SÉRGIO, de Greg Barker
2. EMA, de Pablo Larraín
3. WASP NETWORK - REDE DE ESPIÕES, de Olivier Assayas
4. MANK, de David Fincher
5. POR QUE VOCÊ NÃO CHORA?, de Cibele Amaral

Top 5 - Musas do ano

Pode até ser a seção mais controversa da minha postagem de fim de ano, mas ainda assim me dá prazer lembrar de minha relação de breve paixão por algumas atrizes em certos filmes. Na lista deste ano, temos duas “tricampeãs”, Gal Gadot e Margot Robbie. As demais estão estreando na seção. E no caso de Catarina Wallenstein, o sex appeal que essa mulher exalou nos dois filmes que pude vê-la é algo de extraordinário.

Catarina Wallesntein (O ANIMAL AMARELO e O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS)
Jodie Turner-Smith (QUEEN & SLIM)
Ana de Armas (WASP NETWORK - REDE DE ESPIÕES e SERGIO)

Clássicos revisitados ou vistos pela primeira vez na telona em ordem alfabética


A CICATRIZ, de Krzysztof Kieslowski 
A DUPLA VIDA DE VÉRONIQUE, de Krzysztof Kieslowski
A FRATERNIDADE É VERMELHA, de Krzysztof Kieslowski
A IGUALDADE É BRANCA, de Krzysztof Kieslowski
A LIBERDADE É AZUL, de Krzysztof Kieslowski
APOCALYPSE NOW - FINAL CUT, de Francis Ford Coppola
NÃO AMARÁS, de Krzysztof Kieslowski
NÃO MATARÁS, de Krzysztof Kieslowski
O DESPREZO, de Jean-Luc Godard
SEM FIM, de Krzysztof Kieslowski
SORTE CEGA, de Krzysztof Kieslowski

Top 20 vistos pela primeira vez na telinha em ordem alfabética 

A BESTA HUMANA, de Jean Renoir
A CADELA, de Jean Renoir
A GARDÊNIA AZUL, de Fritz Lang 
A GRANDE JORNADA, de Raoul Walsh e Louis R. Loeffler
A MULHER INFAME, de Kenji Mizoguchi
A NOITE DO DESEJO, de Fauzi Mansur
CINEMANIA, de Angela Christlieb e Stephen Kijak
COMPASSO DE ESPERA, de Antunes Filho
DILLINGER ESTÁ MORTO, de Marco Ferreri
MALDIÇÃO, de Fritz Lang
MARIA, de Abel Ferrara
O PÃO NOSSO, de King Vidor
O SEGREDO DA PORTA FECHADA, de Fritz Lang
O TESTAMENTO DO DR. MABUSE, de Fritz Lang
OS CARRASCOS TAMBÉM MORREM, de Fritz Lang
QUANDO DESCERAM AS TREVAS, de Fritz Lang
SEDUÇÃO E VINGANÇA, de Abel Ferrara
SÓ A MULHER PECA, de Fritz Lang
SÓ UM BEIJO POR FAVOR, de Emmanuel Mouret
VIDA DE MENINA, de Helena Solberg

As revisões

No ano passado, foram apenas cinco filmes revistos. Quando eu falei lá em cima que o número de revisões foi enorme, eu não estava brincando. Especialmente em comparação com o que normalmente faço. Mas achei ótimo revisitar cada título. Até porque minha memória não é lá essas coisas.

A IMAGEM de Radley Metzger
A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER, de Philip Kaufman
A PRIMEIRA TRANSA DE JONATHAN, de Mel Damski
ADMIRADORA SECRETA, de David Greenwalt
AMANTES, de James Gray
AMOR MAIOR QUE A VIDA, de Keith Gordon
ANTES DO AMANHECER, de Richard Linklater
AS CANÇÕES, de Eduardo Coutinho
BEM-VINDO A NOVA YORK, de Abel Ferrara
BLACKOUT - SENTIU A MINHA FALTA?, de Abel Ferrara
CIDADÃO KANE, de Orson Welles
ERASERHEAD, de David Lynch
O REI DE NOVA YORK, de Abel Ferrara
ESPELHO DE CARNE, de Antonio Carlos da Fontoura
FAÇA A COISA CERTA, de Spike Lee
HALLOWEEN - A NOITE DO TERROR, de John Carpenter
INSTINTO SELVAGEM, de Paul Verhoeven
JOGADA DE RISCO, de Paul Thomas Anderson
KAIRO, de Kiyoshi Kurosawa
LAURA, de Otto Preminger
M - O VAMPIRO DE DUSSELDORF, de Fritz Lang
MENTIRAS, de Sun-Woo Jang
METRÓPOLIS, de Fritz Lang
MIAMI VICE, de Michael Mann
MISSISSIPI EM CHAMAS, de Alan Parker
NAUSICAÄ DO VALE DO VENTO, de Hayao Miyazaki
O ANJO EXTERMINADOR, de Luis Buñuel
O CONVITE AO PRAZER, de Walter Hugo Khouri
O ENIGMA DO PODER, de Abel Ferrrara
OLHOS DE SERPENTE, de Abel Ferrara
OS CHEFÕES, de Abel Ferrara
OS CORRUPTOS, de Fritz Lang
OS INVASORES DE CORPOS - A INVASÃO CONTINUA, de Abel Ferrara
PASOLINI, de Abel Ferrara
PRELÚDIO PARA MATAR, de Dario Argento
TROPAS ESTELARES, de Paul Verhoeven
TUDO SOBRE MINHA MÃE, de Pedro Almodóvar
UM LUGAR AO SOL, de George Stevens
VÍCIO FRENÉTICO, de Abel Ferrara
VÍTIMAS DE UMA PAIXÃO, de Harold Becker

As séries e minisséries - Top 5

1. NORMAL PEOPLE - PRIMEIRA TEMPORADA
2. FLEABAG - SEGUNDA TEMPORADA
3. A MALDIÇÃO DA MANSÃO BLY
4. EM DEFESA DE JACOB
5. LOCKE & KEY - PRIMEIRA TEMPORADA

Feliz Ano Novo!  

Desejo a todos um ano novo muito melhor do que este. O que não é difícil. Pode não adiantar muito esses votos, já que, do ponto de vista nacional, tivemos um ano pior do que o outro desde 2016. Mas sei que, individualmente, cada ano chega diferente para cada pessoa. Acho que um dos segredos de se levar uma boa vida é estar grato com o nosso presente, já que é o que temos. E geralmente temos, sim, coisas muito valiosas conosco. Até breve e muito obrigado!

terça-feira, dezembro 29, 2020

DESEJO HUMANO (Human Desire)



O que nós nos lembramos em Renoir são dos rostos de Gabin, Simon e Ledoux. O que nós nos lembramos em Lang são dos padrões geométricos de trens, trilhos e fatídicos ângulos de câmera.
(Andrew Sarris)


2020 está terminando e eu não consegui encerrar minha peregrinação pela obra de Fritz Lang. Dos 40 filmes do realizador disponíveis, consegui ver 33. Falta bem pouco pra acabar e pra eu tentar já escolher o próximo realizador ou realizadora para meu objeto de estudo. São tantas as lacunas e tão pouco o tempo disponível. Além da minha dificuldade de ver muitos filmes no mesmo dia. De todo modo, as madrugadas têm sido o período mais tranquilo para meu espírito, no que se refere a filmes. E acho uma delícia poder ver filmes antigos. E não nego que tenho uma queda pela Velha Hollywood.

DESEJO HUMANO (1954) foi o primeiro filme de Lang realizado já na nova janela adotada com mais frequência por Hollywood (1,85:1). Ele experimentaria a janela scope no filme seguinte, inclusive. E foi a segunda refilmagem de uma obra de Jean Renoir. Por mais que possamos dizer que é uma nova adaptação do romance de Émile Zola e não uma refilmagem, sabemos que Lang era um apreciador do trabalho do cineasta francês e fez aqui os ajustes que julgava  apropriados para um filme americano daquele período.

Para começar, Lang acreditava que seria um absurdo o público americano aceitar que o herói da história fosse um psicopata sexual, como em A BESTA HUMANA, de Renoir. Porém, isso é também trair bastante o texto original de Zola. Inclusive, Lang suspeitava que o filme seria apedrejado na França. Por sorte, DESEJO HUMANO foi bem recebido lá, mesmo com essas modificações. Na verdade, havia também o Código Hays, que podia proibir uma adaptação mais fiel do clássico naturalista.

O problema é que essas modificações tornaram o protagonista, aqui vivido por Glenn Ford, muito menos interessante e muito menos complexo do que no romance e no filme de Renoir. Acaba sendo um personagem de pouca força. Aliás, o triângulo amoroso me pareceu fraco. É possível que eu tivesse uma outra impressão se não tivesse visto A BESTA HUMANA em um espaço de tempo tão curto, algo que também ocorreu quando vi A CADELA e a refilmagem ALMAS PERVERSAS (1945). Mas desta vez senti um impacto maior nos resultados geralmente pungentes dos dramas languianos. Assim, DESEJO HUMANO acaba por destacar o Lang mais afeito à técnica, que é também uma de suas forças.

A dupla do maravilhoso OS CORRUPTOS (1953), Glenn Ford e Gloria Grahame, está de volta. Quase que Grahame não entra. Ela foi uma segunda opção, depois de problemas para conseguir o papel para Rita Hayworth, que não conseguiu por Rita estar em processo de divórcio e não poder sair dos Estados Unidos e correr o risco perder a guarda da filha (as filmagens aconteceram no Canadá). Além do mais, Grahame esteve excelente no filme anterior. No entanto, eis sempre o problema quando faço as comparações: a atriz americana me parece muito madura para o papel, além de não ter o mesmo grau de mistério que Simone Simon trazia para o filme de Renoir.

Na trama, Glenn Ford é um ex-combatente de guerra que recupera seu trabalho de piloto de trens. Já Grahame é uma mulher casada com um homem mais velho (Broderick Crawford) e que ajuda o marido a cometer um assassinato em um dos vagões. Ela foi forçada a ajudar o sujeito, mas depois ela resolve se distanciar dele, negar-lhe sexo, o que faz com que o marido se transforme em um bêbado triste zanzando pela cidade.

O filme de Lang também traz algo que é bastante típico do cineasta, que é uma generosidade com seus personagens. Ele sempre foi adepto do não mostrar cenas de violência e também de não punir seus personagens no final. Assim, a mudança de tom no final dos dois filmes, em comparação, é gritante. Lang prefere um caminho mais feliz e romântico, ao passo que Zola/Renoir trazem uma tragédia e uma carnificina de grandes proporções.

+ TRÊS FILMES

VERÃO DE 85 (Été 85)

Dos cineastas contemporâneos, François Ozon talvez seja o que mais exalta a força e o prazer que a narrativa clássica traz para o espectador ou leitor. Em VERÃO DE 85 (2020), temos um filme que tanto remete ao CONTO DE VERÃO, de Eric Rohmer, logo de início, quanto aos filmes de jovens americanos dos anos 1980, mas talvez mais ainda aos clássicos da Velha Hollywood, com a informação de que um dos personagens está morto e a partir de então vamos acompanhando o destino dessa história de amor que vai se encaminhando para algo no mínimo triste. Gosto da intervenção da garota inglesa, inclusive no que ela fala sobre a projeção da paixão. No mais, visual excelente, um mix de sentimentos às vezes contraditórios e várias cenas marcantes.

O ATO INDIZÍVEL (The Unspeakable Act)

Em FOURTEEN (2019), descobri um diretor que carrega elementos de Bresson, Rohmer e Cassavetes, mas que trazia algo de novo, de fresco, também. Mas, mais do que isso, um filme de um poder imenso. Saí da sessão profundamente emocionado. O estilo de Dan Sallitt já se mostrava bastante formado em O ATO INDIZÍVEL (2012), com uma de suas atrizes constantes, Tallie Medel. O curioso deste trabalho aqui está no próprio enredo, que trata de uma relação de amor (romântico) entre dois irmãos, principalmente por parte da moça, já que o rapaz anda querendo mudar de vida (até arranjou uma namorada, o que deixou a irmã um tanto triste). Gosto muito das cenas dos dois conversando, das cenas de análise, e até das pequenas transições, com a garota atravessando a rua de bicicleta. Novamente sem trilha sonora e com tomadas curtas, o filme vai construindo o seu caminho. Quero ver mais Sallitt!

VIL, MÁ

Embora seja o menos potente dentre os longas de Gustavo Vinagre, VIL, MÁ (2020) faz com que seu autorismo se torne mais evidente e mais interessante. Se nos primeiros filmes havia uma contaminação entre ficção e documentário, aqui ele lida com este aspecto da fantasia e da realidade nas personas de Edivina/Wilma, 74 anos, que escrevia contos de sadomasoquismo para revistas especializadas e teve várias experiências no meio, até para servir de combustível para seu trabalho. E é interessante como o filme começa focando nas fantasias que os escravos sexuais enviavam para ela. Alguns dos textos, achei excitantes, mas há coisa muito barra pesada, de dar mal estar. Gosto de como o diretor põe a figura de "Wanda" como uma leitora que fica lá no canto da sala, quase como uma escrava da protagonista. Em alguns momentos o filme perde o fôlego, mas continua acentuando uma carreira muito interessante do diretor.

domingo, dezembro 27, 2020

OS OLHOS DE CABUL (Les Hirondelles de Kaboul)



Neste ano de 2020 regido pelo Sol, o lado mais podre da espécie humana está cada vez mais visível. E se é um ano em que o racismo é um tema quente, também o é a misoginia, a violência contra a mulher. E se em países como o Brasil essa violência se apresenta tão explícita, é de se imaginar que a situação seja ainda mais alarmante em países regidos por teocracias, como é o caso do Afeganistão, um lugar assombrado pelo horror dos talibãs.

Para retratar o sentimento de extrema violência com a mulher, nada melhor do que diretoras mulheres. Em OS OLHOS DE CABUL (2019), a cineasta Zabou Breitman, especialista em filmes e séries de temática feminista, se junta a Eléa Gobbé-Mévellec, especialista em animação, para construir uma das mais pungentes obras sobre o assunto já vistas. A animação em 2D é tão realista e a narrativa é tão envolvente que, com o passar dos minutos, logo esquecemos que estamos vendo uma animação. É como se aqueles personagens tivessem se materializado em algo muito próximo do real.

Uma das cenas mais tristes de OS OLHOS DE CABUL é uma que mostra a diferença entre o passado de Cabul, uma cidade com alegria, vitalidade, pessoas indo ao cinema e andando alegremente pelas ruas, e a Cabul do presente, em ruínas, com as pessoas enfurnadas em suas casas e umas poucas transitando pelas ruas, entre elas mulheres usando burcas. Além disso, a primeira cena do filme (ou uma das primeiras) é de um apedrejamento, o que já nos coloca dentro de um universo extremamente brutal e ignorante, em que as regras impostas pelo regime fazem questão de punir da pior forma possível a mulher.

Por isso, não deixa de simbolizar uma luz em meio às trevas a presença e a vontade de viver de Zunaira, uma jovem mulher casada com Mohsen. Eles são jovens e ainda ousam sonhar naquele mundo onde apedrejamentos se tornaram uma rotina. Zunaira tem um segredo para ganhar vitalidade enquanto fica em casa: ela desenha, faz arte.

Há outro casal importante para a história: Atiq e Mussarat. Ele trabalha para os talibãs, levando prisioneiros e prisioneiras para os apedrejamentos. Sua esposa está muito doente, prestes a morrer. Sabendo do destino dela, ele quer que pelo menos ela sofra menos, sinta menos dor durante o dia. Alguns de seus colegas o aconselham a abandoná-la ou sacrificá-la. E isso já acentua a visão que aquela sociedade tem da mulher é de um objeto que pode ser descartado sem a menor importância.

Um dos méritos do filme é estabelecer esses pontos de vista masculinos e femininos ao longo da narrativa, assim como também um pouco da rotina e dos costumes religiosos. Mas é também um mérito o roteiro perfeitamente amarrado em que as vidas desses personagens vão se enredando em uma teia de tragédias e de dores, ainda que a esperança esteja ali, pequena, mas existente.

Gostaria de ter escrito sobre este filme no calor do momento, assim que saí impactado da sessão, há algumas semanas, mas o tempo e as circunstâncias foram atrapalhando. Agora que estou fazendo a lista de melhores do ano e sei que este foi um dos meus favoritos, senti necessidade de voltar a ele e de enaltecer sua importância e sua beleza triste.

+ TRÊS FILMES

SOUL

Uma espécie de cruzamento de DIVERTIDA MENTE (2015) com VIVA - A VIDA É UMA FESTA (2017). Alia o aspecto mais cerebral do primeiro, brincando com situações extra-físicas, com o sentimentalismo do segundo, ao procurar lidar com a beleza das coisas simples da vida, além de também ter um protagonista apaixonado por música. SOUL (2020), de Pete Docter e Kent Powers, cresce a partir da cena da troca de corpos, mas já havia ficado bem fascinante nas cenas de desespero do protagonista quando se vê na fila para chegar ao outro lado. Há um quê de A FELICIDADE NÃO SE COMPRA, e por isso funciona bem como filme de Natal deste 2020. Agora, é impressão minha ou é a primeira animação da Pixar com um protagonista negro?

MEMÓRIA DE HELENA

Interessante ver este filme alguns meses depois de ter assistido VIDA DE MENINA, de Helena Solberg, e ver o quanto os polos masculino e feminino se apresentam de maneira explícita se formos comparar. MEMÓRIA DE HELENA (1969), primeiro longa de David Neves, é uma adaptação bem livre dos diários de Helena, tomando a liberdade de trazê-la para os anos 1960 e para o uso de registros em super 8 em complemento ao diário de sua vida. O espírito da época da contracultura e inspirado na Nouvelle Vague francesa está presente principalmente nos cortes abruptos, na montagem que alterna tempos de maneira criativa. Até os créditos, Neves faz questão de tirar. É um efeito semelhante ao que Truffaut fez em FAHRENHEIT 451, mas acredito que Godard havia usado antes. E há Adriana Prieto no papel da amiga de Helena. Prieto que se tornou uma lenda do nosso cinema. E há uma participação de Humberto Mauro, numa cena curtinha. Sem falar no roteiro de Paulo Emílio Salles Gomes! Que luxo!

BEIJO 2348/72

Delícia de filme, hein. Nunca vi Fernanda Torres tão engraçada. Um gênio essa mulher. E Chiquinho Brandão é ótimo também. Muito divertido e talentoso. Pena que morreu no ano seguinte, tão precocemente. Em BEIJO 2348/72 (1990), de Walter Rogério, temos a história de um processo que corre na justiça da demissão de um funcionário por ter, supostamente, beijado uma colega de trabalho e ter trazido toda uma discussão sobre o quão indecente ou impróprio é o beijo etc. Mas o melhor está mesmo nas pequenas coisas, nas cenas de Chiquinho com Fernanda e também com Maitê Proença, que faz a mulher mais desejada da fábrica. A narrativa se encaminha por trajetos que eu jamais imaginaria, mas achei uma pena que a conclusão não tenha sido tão boa. Ainda assim, é uma pequena joia de nosso cinema e com um elenco de apoio de luxo.

sábado, dezembro 26, 2020

UNDINE



Hoje podemos dizer que, dos realizadores alemães da geração surgida na virada do milênio, Christian Petzold é o mais brilhante. Se há outro que o supere, não está recebendo o crédito devido. Felizmente o cineasta tem mantido uma regularidade em tempo e em qualidade de seus trabalhos, que contêm uma assinatura muito clara, mesmo quando a temática, o tempo narrativo e até o gênero se diversifica. Seu novo trabalho, por exemplo, flerta com o cinema fantástico (fantasia, horror) para contar uma história de amor.

Depois da trilogia do amor em tempos repressivos, formada por BARBARA (2012), PHOENIX (2014) e EM TRÂNSITO (2018), Petzold inicia uma nova com UNDINE (2020), que promete ser o primeiro de uma nova trilogia, baseada em mitos. O mito presente aqui é o da ondina, uma elemental associada à água, surgida na mitologia germânica. Na lenda, essas criaturas femininas procuram o amor dos homens da terra. Porém, quando ele as trai, elas têm a tarefa de matá-los.

O primeiro diálogo do filme, em um café, já traz essa situação de maneira bastante direta com o rompimento de uma relação e a posterior ameaça de Undine. Isso acaba trazendo uma carga de estranheza que nos chama logo a atenção. Paula Beer, atriz que esteve no filme anterior do cineasta, é a personagem-título, uma jovem mulher que trabalha em um museu urbano, fazendo visitas guiadas contando a história da cidade de Berlim.

O curioso é que Petzold consegue estabelecer uma relação entre a capital alemã, em momento pós-unificação, e a criatura mitológica. Podemos fazer uma conexão entre essa cidade destruída, dividida e novamente unificada e reerguida com a própria personagem, que, depois da traição, encontra novamente um novo amor e segue em frente fortalecida, esquecendo a missão de matar o ex.

O novo amor aparece na figura do amável Christoph (Franz Rogowski, protagonista do filme anterior do diretor), um mergulhador que fica absolutamente encantado com Undine. A magia desse amor romântico tem como instante-chave a quebra, por acidente, do aquário do café. Estações de trem, como ambientes tipicamente românticos de filmes clássicos, aparecem com frequência ao longo da relação do casal. Assim como também se destacam as cenas de intimidade entre os dois no quarto, embora não seja exatamente um filme que explore tanto a sensualidade, já que o intuito maior aqui é fazer uma obra de natureza mais espiritual, etérea.

A impressão que fica é de que UNDINE é um desses filmes que deve se beneficiar ainda mais de revisões. Embora Petzold seja adepto do classicismo, sua sofisticação na condução narrativa faz toda a diferença.   

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão. 

+ TRÊS FILMES

FREAKY - NO CORPO DE UM ASSASSINO (Freaky)

Se o bem-sucedido A MORTE TE DÁ PARABÉNS (2017) e sua sequência de 2019 já tinham um tom cômico acentuado, a opção por ter a comédia à frente do horror neste novo filme de Christopher Landon, foi um acerto e tanto. Em tempos de poucas boas comédias, é bom ver uma que consegue arrancar gargalhadas em quantidade muito maior do que arranca sustos. E o curioso é que a trama de FREAKY - NO CORPO DE UM ASSASSINO (2020) é um tanto boba (a jovem protagonista e um assassino serial trocam de corpos) mas funciona muito bem. E Vince Vaughan, que já tem um bom histórico na comédia, está ótimo no papel. Na verdade, o filme funciona melhor quando os corpos estão trocados e diversas situações são desenvolvidas. Há até uma situação dramática interessante (que lembra uma de A MORTE TE DÁ PARABÉNS). Talvez tenha faltado um epílogo perfeito, mas, como o filme não tem tantas ambições e nunca se leva a sério, está tudo bem.

AMIZADE MALDITA (Z)

O que chama a atenção neste AMIZADE MALDITA (2019), de Brandon Christensen, é que ele começa tratando de uma premissa já muitas vezes explorada nos filmes de horror, que é a questão do amigo imaginário de uma criança, mas segue por caminhos diferentes do convencional. Não deixa de ser um risco e tanto, mas as escolhas que o filme faz são inteligentes, corajosas, inusitadas, em especial quando se inicia a conclusão da história. Há pouca apelação para o jump scare, os efeitos especiais são discretos e há uma ênfase na construção da atmosfera e há de fato momentos aterrorizantes. Isso com um orçamento explicitamente baratíssimo, quase sempre dentro de interiores.

O SOM DO SILÊNCIO (Sound of Metal)

Creio que hoje estou com um sentimento mais afinado para um filme como esse, que lida com o mal estar presente no processo acelerado de perda da audição de um jovem músico, um baterista em uma dupla de rock. Um dos méritos de O SOM DO SILÊNCIO, de Darius Marder, é contar a história sem a necessidade de ser um enredo de superação ou algo do tipo. É mais na linha shit happens e a gente tenta consertar, mas nem tudo que parece ser uma salvação pode ser uma ótima saída. Muito bom o uso de efeitos sonoros para nos colocar no lugar do protagonista. Exemplo perfeito é o da mesa de jantar com os surdos, que fazem barulho na mesa com os gestos e batidas na madeira, enquanto ele se sente completamente sozinho. Há cenas bem dolorosas, mas muito sutis, de dor represada. Cenas com Paul Raci e com Olivia Cooke. E o que é aquela última cena? Um filme-pedrada.

sexta-feira, dezembro 25, 2020

CINCO LONGAS BRASILEIROS VISTOS NO 14º FOR RAINBOW



Ainda pretendo escrever um pouco mais sobre alguns filmes (ou temas específicos) desta ótima edição do For Rainbow. Muitos títulos ficaram grudados em minha memória afetiva e trouxeram um bocado de reflexão sobre a vida, sobre o indivíduo e sobre sua por vezes difícil relação em sociedade. Em breve farei um texto para o site da Aceccine. Avisarei por aqui quando estiver pronto. Enquanto isso, vamos de textos curtos sobre os longas brasileiros vistos no festival, já que hoje o tempo está curto.

AS CORES DO DIVINO

Um documentário de estilo tradicional, mas que conquista nossa simpatia pela presença de vários personagens fortes e alguns depoimentos emocionantes. Este é AS CORES DO DIVINO (2020). Gosto especialmente do depoimento da jovem que se descobre lésbica e precisa enfrentar não apenas a igreja, mas também a família. E o modo como ela conta é também muito bem narrado. Para este tipo de documentário de depoimentos o acaso exerce uma importância bem maior. Victor Costa Lopes é um diretor que começou com ficção, no ótimo filme coletivo O ANIMAL SONHADO (2015). Sua migração para o documentário foi feliz e certamente a temática é em si atraente: a relação entre pessoas LGBTQ com a religião, que é geralmente um espaço de pouco acolhimento para essas pessoas.

LIMIAR

Acho sempre admirável esse tipo de trabalho que demanda anos para ficar pronto. No caso deste belo documentário, a diretora Coraci Ruiz tem registros do nascimento de sua filha e de sua transição, durante a adolescência, para o gênero masculino. Como vemos LIMIAR (2020) pelo ponto de vista da diretora, sentimos um bocado seu desconforto com algumas mudanças que se aproximam, mas há também um apoio muito bonito ao filho, que deve ter passado, diariamente, por fases muito difíceis, até porque a adolescência não é um momento fácil da vida. Acho o filme bem melancólico, talvez por conta da trilha sonora. Também há citações a momentos recentes da política brasileira, o que contribui pra esse sentimento.

PRAZER EM CONHECER

Um filme que parece ter um tom assumidamente educativo. Embora haja algumas cenas de intimidade e sensualidade entre pessoas gays em PRAZER EM CONHECER (2020), o foco principal da diretora Susanna Lira é falar com seriedade da importância de se cuidar, de evitar o contágio com o HIV com novos métodos e conscientização. Em alguns momentos parece um documentário, apresentando o nome dos personagens, como o médico LGBT que trata com atenção seus pacientes e conversa sobre diversão com seu personal trainer. Esse misto de programa educativo com filme transgressivo resulta em um objeto estranho bem interessante.

ADVENTO DE MARIA

Embora seja um filme que possa causar estranhamento do ponto de vista dramatúrgico, o estranhamento é bem-vindo, funciona como um diferencial em uma obra que flerta com o kitsch várias vezes. Temos em ADVENTO DE MARIA (2020), de Vinícius Machado, uma história de um(a) adolescente que está passando por um processo de mudança, de compreensão de sua identidade de gênero. É também um filme sobre amizade e também sobre preconceito religioso, já que a amiga do(a) protagonista é do candomblé e a narrativa apresenta essa série de tabus e de situações envolvendo diferenças de crenças e de compreensão da alma. O título do filme faz uma relação direta com o catolicismo, mas representa também o surgimento de uma nova vida.

MÃES DO DERICK

Uma das coisas que mais me chamou a atenção em MÃES DO DERICK (2020), de Denise Kelm, foi uma cena em que uma das personagens asperge sangue menstrual de uma lunação específica no signo tal em plantas. A relação da tradição feminina ligada a bruxaria e a rezadeiras também comparece neste filme sobre uma família composta por quatro mães e um garoto vivendo em uma área rural do Paraná. É um tipo de cinema que absorve home movies para a construção de um tipo de documentário mais moderno, mas começa a ganhar o espectador a partir de uma cena inesperada de música, com as personagens cantando raps sobre empoderamento feminino, resistência etc. Muito bom. 

quinta-feira, dezembro 24, 2020

TOMMASO



Como ainda não terminei de ver os filmes de Fritz Lang, posso dizer que Abel Ferrara foi o meu grande companheiro durante os dias de pandemia. Foi muito feliz da minha parte escolhê-lo para aprofundar o conhecimento sobre sua obra. Tinha muitas lacunas e a revisão de praticamente todos os seus filmes foi essencial para ir compreendendo sua poética. Dentre os longas, ficou faltando eu ver alguns poucos documentários feitos nos anos 2000 e 2010 e dois filmes de ficção para a televisão produzidos nos anos 1980.

Graças à sua inquietação, só neste ano tivemos dois novos filmes dele, o dream-like SIBÉRIA (2020), exibido em Berlim, e o documentário SPORTIN' LIFE (2020), exibido em Veneza. Os dois fizeram parte da programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Aliás, foi ótimo poder, pela primeira vez, acompanhar a Mostra, ainda que nesse modelo "novo". Os dois filmes mostraram o quanto Ferrara está disposto a se despir ainda mais em seus novos filmes, a fazer uma espécie de terapia através da arte, a confrontar seus demônios interiores.

O mesmo pode ser dito de TOMMASO (2019), que antecipa muito SIBÉRIA, já que mostra um diretor de cinema, vivido por Willem Dafoe, parceiro de Ferrara desde GO GO TALES (2007), trabalhando no projeto sobre um homem chamado Clint que vai parar em um lugar deserto e gelado para conhecer mais de si mesmo, talvez na mesma proporção que foge do mundo. Porém, se SIBÉRIA me pareceu um filme de difícil penetração, TOMMASO é muito mais acessível, além de ser ainda mais um retrato das dificuldades vividas pelo cineasta.

Chega a ser divertido ver as óbvias relações autobiográficas que o filme faz com a vida do realizador , seu passado de uso pesado de álcool e drogas, sua batalha para permanecer sóbrio, suas ligações com o catolicismo e com outras religiões. Mas há especialmente um interesse em tratar de um desejo reprimido em um casamento com uma mulher mais jovem (Cristina Chiriac, a bela esposa de Ferrara).

O que ele faria de maneira muito mais intensa em SIBÉRIA aqui se mostra de forma mais discreta e pontual, que são as cenas com chaves de sonho, que surgem de vez em quando ao longo da narrativa. Aliás, fica a dúvida em algumas cenas sobre se é sonho, delírio ou realidade. Em determinado momento, ele vê a filhinha pequena (Anna Ferrara, filha de Ferrara) ser atropelada para, logo em seguida, ver que aquilo não passava de um delírio, provavelmente fruto do medo da perda. O mesmo pode valer para uma possível perda da esposa, a suposta traição, que ao final fica a dúvida se teria de fato acontecido ou seria fruto de paranoia e insegurança.

Ele tem consciência que casou com uma mulher bem mais jovem e fala sobre isso quando desabafa com amigos do AA ou com outras pessoas de sua convivência, como a professora de italiano, por exemplo, ou mesmo uma aluna de teatro de quem ele se aproxima e beija no carro. O desejo e a sexualidade do personagem aparecem tanto nas cenas oníricas (como a da moça nua oferecendo café) quanto na própria beleza e sensualidade natural das jovens alunas do grupo de teatro.

TOMMASO foi o primeiro filme de ficção de Ferrara desde PASOLINI (2014), também feito em parceria com Dafoe, e é que continha uma carga de catolicismo ainda mais forte. O curioso da cena de Dafoe na cruz em TOMMASO é que o ator já esteve na cruz em sua representação de Jesus em A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO, de Martin Scorsese. Pareceu ser uma feliz coincidência. Se é que existem coincidências.

Gosto muito de como as cenas mais realistas funcionam bem. Destaque para a cena com o paquistanês bêbado. Tommaso desce para calar a boca do sujeito, que está incomodando sua filha e esposa, gritando na rua. Ele estaria disposto a dar um soco no sujeito, mas consegue dialogar com o homem, e parece se sentir bem com isso. É uma cena bonita. Assim como são bonitas, algumas ligeiramente dolorosas, as cenas de intimidade com a esposa, seja fazendo o almoço, seja reclamando que a mulher não se lembrou dele na hora da refeição. As cenas de sexo frustrado também se destacam nesses momentos de intimidade.

É a tal coisa: não adianta sentir saudade do Ferrara louco e genial da década de 1990, talvez o seu auge criativo. Afinal, o novo Ferrara, sóbrio e disposto a conhecer a si mesmo, cavando fundo nos problemas e no quanto errou no passado, é também bem-vindo. Que bom que ele tem encontrado apoio para a realização de seus filmes na Europa. Ainda assim, ao que parece, seu próximo filme, ZEROS AND ONES, ainda sem data de lançamento, terá produção americana, embora seja com locação na Itália, seu novo lar.

Agradecimentos à Paula, que viu o filme comigo em esquema de distanciamento social. 

+ TRÊS FILMES

A VOZ SUPREMA DO BLUES (Ma Rainey's Black Bottom)

A semelhança deste filme com UM LIMITE ENTRE NÓS, de Denzel Washington vem de suas origens teatrais, mas também do fato de Washington estar como produtor e Viola Davis ser uma das protagonistas, a personagem-título. Sua Ma Rainey é impressionante em sua busca de dignidade durante um processo de gravação. Mas quem rouba mesmo o filme para si é Chadwick Boseman, que deixou sua melhor performance para o final e nos deixou também na dúvida sobre o quão alto ele chegaria se continuasse vivo por mais algumas décadas. Em A VOZ SUPREMA DO BLUES (2020), de George C. Wolfe, ele interpreta um trompetista cheio de paixão e que ambiciona ter sua própria banda, galgar sucesso na música, por mais que lhe atormente o passado. Dizem que é um filme que cresce à medida que pensamos nele, e eu não duvido. Há um trabalho admirável de atuação, principalmente. Sem falar no quanto é simbólico e bem-vindo nesse novo momento do black power na arte e no comportamento.

MOSQUITO

O cinema português anda com um vigor impressionante. Aqui temos um drama de guerra passado em Moçambique em que o protagonista se perde de seu pelotão e faz uma verdadeira viagem ao inferno em território desconhecido. MOSQUITO (2020), de João Nuno Pinto, é crítico ao orgulho colonialista dos portugueses e ao próprio absurdo da guerra. Isso se mostra tanto nas cenas de Zacarias (João Nunes Monteiro) em postos de oficiais portugueses quanto nos demais encontros que o herói tem ao longo de sua jornada. Gosto do final, tanto pelo impacto quanto pelo gesto simbólico.

PALM SPRINGS

Variação muito bacana e bonita de FEITIÇO DO TEMPO. Aliás, depois de ver tantas variações do filme, fico pensando se a obra supostamente original também não seria uma variação de outra. Enfim, o que há como diferencial em PALM SPRINGS (2019), de Max Barbakow, principalmente, é ter um segundo protagonista para compartilhar o viver o mesmo dia forever and ever, no que há de céu e no que há de inferno. Gostei da atriz (Cristin Milioti), de olhos expressivos e grandes, e sem fazer esforço para sensualizar. Ainda assim, cria uma química muito legal com o personagem do Andy Samberg. Há uma cena com o J.K. Simmons que é ao mesmo tempo engraçada e comovente. Porém, como é uma obra bem dinâmica, o aspecto sentimental fica um pouco mais de lado em prol do bom humor.

quarta-feira, dezembro 23, 2020

DOMICÍLIO INCERTO



Quem entrou em contato com os curtas de Davi Mello, em especial os dois anteriores, A BORDO (2015) e AS VIAJANTES (2019), sabe que está diante de um cineasta no mínimo muito talentoso. Não sei se o meu gosto pelo cinema fantástico contribui para eu ter gostado tanto desses filmes, mas para qualquer gênero que se disponha a fazer é bom que haja talento.

Com a pandemia, Davi Mello, de São Paulo, trocou cartas com a amiga Deborah Perrotta, em Turim, Itália. Mas não cartas usuais. Aliás, as cartas usuais, elas já têm uma aproximação com a arte em si. Lembro de minha professora de Literatura Portuguesa falando que a melhor coisa do período barroco em Portugal foram cinco cartas de amor de uma freira.

O que Davi Mello e Deborah Perrotta fazem em DOMICÍLIO INCERTO é arte com as palavras, mas também com as imagens. Aproveitando o ócio, a angústia e os tantos pensamentos que vieram à mente nos primeiros meses da pandemia, os dois trocaram vídeo-cartas. Ou cartas-vídeo. E adotaram um estilo de fluxo de consciência muito parecido com o de uma das autoras citadas, Virginia Woolf, mas também o de filme-ensaio de linha mais experimental como os de Agnès Varda.

Aliás, bastou eu pensar em Varda, nas semelhanças com o cinema dela, que Davi Mello logo a cita em determinado momento, ao falar de batatas. E assim como se fala de batatas, se fala da infância, de livros, do olhar a janela do outro e flagrar uma intimidade, da transitoriedade da vida e dos fantasmas que vivem nos filmes, da relação de estranheza com o próprio rosto, de se perguntar como nosso mundo será quando passar essa pandemia. Enfim, é um misto de filosofia e poesia. Essa liberdade do fluxo livre de pensamentos só não se torna uma bagunça pelo cuidado e carinho com que percebemos como esse projeto é tratado.

Como sou um amante tanto de palavras quanto de imagens achei uma delícia ver este média-metragem de pouco mais de 40 minutos, que até poderia ser um longa se os realizadores resolvessem continuar a brincadeira por mais tempo. Mas o que há de bonito no média é essa espécie de rebeldia com o modelo comercial estabelecido: ao mesmo tempo que necessita de um tempo maior para ser visto (como um longa), é com frequência pouco visto pelo grande público, menos do que os curtas até. E por isso, com frequência, muitos deles se tornam pequenas joias escondidas.

+ TRÊS CURTAS

À BEIRA DO CAMINHO MAINHA SOPROU A GENTE

Curtindo demais essa leva de curtas que lidam com afetos, com proximidades com o cotidiano e com a intimidade, embora também tratem de algo tão relevante quanto a compreensão e aceitação por parte dos pais (no caso, da mãe) de relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. As duas personagens/diretoras de À BEIRA DO CAMINHO MAINHA SOPROU A GENTE (2020), Bruna Barros e Bruna Castro, falam com poesia da relação que têm entre si, dos pequenos gestos, da fragilidade (o filme começa com uma delas dizendo o quão fácil é pra ela chorar). É filme de feridas abertas, mas é também de celebração da vida.

SE ALGO ACONTECER... TE AMO (If Anything Happens I Love You)

Bom a Netflix trazer esses curtas como alternativas diferentes para o público do canal. Este aqui tem um apelo emocional bastante forte, que remete a alguns curtas da Pixar, mas com um conteúdo talvez mais adulto. A história de SE ALGO ACONTECER... TE AMO (2020), de Michael Govier e Will McCormack, sem diálogos, e apostando na força das imagens, conta a história de um casamento abalado pela falta que faz a filha de um casal. A conclusão e o motivo do título do filme é o que pega mais forte o espectador. Ainda assim, esperava me emocionar mais. Talvez tenha visto com a mente muito inquieta.

NIMIC

Tenho um respeito grande Yorgos Lanthimos desde que ele me fez sentir medo no cinema com O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO (2017). Além do mais, os outros filmes dele que vi são no mínimo interessantes com sua estranheza bela. Contar a história de um curta como NIMIC (2019), mesmo que o comecinho dela, é praticamente um spoiler. Se bem que, no caso deste filme, contar um pouco que seja pode até não ser exatamente o que acontece. Temos um homem casado e com filhos (Matt Dillon) e temos uma mímica. O uso de lentes olho de peixe como em A FAVORITA (2018) contribui com o estranhamento, assim como o som do violoncelo surgindo de maneira solene traz uma carga de gravidade às situações domésticas.

segunda-feira, dezembro 21, 2020

A BESTA HUMANA (La Bête Humaine)



Uma das coisas que eu tenho que agradecer muito a Fritz Lang é ter me aproximado mais de Jean Renoir, ainda que indiretamente. Graças às suas duas refilmagens de obras do cineasta francês em Hollywood, levando o trágico para o noir, eu fui me interessando e apreciando ainda mais as obras do diretor francês. Claro que já amava os clássicos A GRANDE ILUSÃO (1937) e A REGRA DO JOGO (1939), e havia gostado de sua versão de MADAME BOVARY (1934), visto na minha peregrinação pelas adaptações da obra-prima de Gustave Flaubert. Mas as coisas mudaram quando vi recentemente A CADELA (1931). Comecei a perceber que estava também diante de um diretor bastante interessado na condição degradante do ser humano, nas sombras.

E esse interesse pelas sombras está muito explícito em A BESTA HUMANA (1938), adaptação do romance de Émile Zola, na qual Renoir parece estabelecer as bases para o que viria a ser o filme noir, estilo adotado pelos cineastas da velha Hollywood na década de 1940. Esse filme antecipa o subgênero em aspectos fundamentais, como as já citadas sombras, os personagens com senso de moral duvidosa, crimes brutais e uma femme fatale capaz de convencer o amante a matar o marido.

Mas tem muito mais, já que o personagem de Jean Gabin é um sujeito que tem eventualmente surtos psicóticos que o tornam extremamente perigoso. Em visita que faz a seus familiares, ele encontra uma jovem por quem tem afeição e, depois de uns beijos, ele começa a estrangulá-la. Esse lado bestial vem e vai e a garota só é salva quando o homem escuta o apito do trem, que o acorda do transe.

O trem é o amor que faz bem a Jacques Lantier, o personagem de Gabin. Ele trabalha dentro da locomotiva, trabalho duro de usar carvão e também controlar o destino daquele transporte. Também é nesse trabalho que ele se sente bem, sentindo o vento bater no rosto quando o trem cruza cidades e túneis em alta velocidade.

Na luta por conter esse demônio interior, Lantier encontra alguma paz. Até que ele é picado pelo mosquito da paixão. A paixão na forma de uma mulher perigosa, ainda que também frágil e perturbada. Séverine, vivida por uma Simone Simon anterior a SANGUE DE PANTERA, é uma mulher que carrega lembranças pesadas da infância e tem uma relação bastante confusa com os homens. Ela parece ser livre ao se envolver com outros dois homens estando casada com Roubaud (Fernand Ledoux), funcionário da ferrovia. O marido tem uma crise de ciúme tão grande que resolve traçar um plano para matar o sujeito com quem ela se deitou, um homem bem mais velho e antigo patrão de sua mãe, talvez até seu próprio pai. E a leva junto para efetuar o crime.

A fim de evitar que Lantier, que a viu no corredor no momento seguinte ao assassinato, conte para a polícia sobre os dois, ela resolve se aproximar do homem, que aos poucos vai se apaixonando por aquela mulher de aspecto felino e um jeito delicado e sensual.

A BESTA HUMANA traz sequências de tirar o fôlego. Não exatamente pelo suspense em si, mas principalmente pelo sentimento intoxicante dos personagens. De Lantier, de Séverine, de Roubaud. O final do filme, ainda que deixe essa energia densa no ar, não deixa de ser uma espécie de alívio, frente às situações desesperadoras e trágicas da vida desses personagens.

Eis um filme que quanto mais eu penso mais eu gosto dele. Mal posso esperar para ver a versão de Fritz Lang.

+ TRÊS FILMES

O SONHO NÃO ACABOU

Um filme que já começa errado a partir do cartaz, que mostra Lauro Corona e Lucélia Santos, sendo que seus personagens são tão apagados que só mesmo a beleza do casal para vender o filme que mostra um grupo de jovens com pouca unidade que vive na Brasília da época do pós-punk. Há pouca coisa que funciona, muito pouca mesmo. E Miguel Falabella tem o hábito de pegar personagens detestáveis. O SONHO NÃO ACABOU (1982), estreia na direção de longa de ficção de Sérgio Rezende, é um desperdício de talentos. Felizmente, ele conseguiu fazer trabalhos bem melhores e com atores famosos ao longo das décadas. Não sei se foi por sorte ou se por ter influência no meio. Ao menos a preocupação social e política já se mostra presente.

O ROUBO DO SÉCULO (El Robo del Siglo)

O meu retorno ao cinemas depois de meses sem telona foi com este O ROUBO DO SÉCULO (2020), de Ariel Winograd, filme de assalto leve, mas baseado em uma história real ocorrida na Argentina, em 2006. Embora o roubo tenha mesmo sido espetacular e os atores principais tenham algum carisma, o filme tem um gosto um pouco requentado de outros tantos filmes do subgênero que já vimos. Eu, particularmente, fico sonolento com esses filmes que tratam o roubo de maneira muito leve e como algo fruto da inteligência de uma ou mais pessoas, que também precisam de outras para que a empreitada seja bem-sucedida. Prefiro os filmes de assalto mais tensos, violentos e dramáticos. Por isso, em determinado momento, eu acordei e me interessei, pois entra uma situação passional que traz uma reviravolta para a trama. De todo modo, é um filme por vezes divertido.

NÃO MATARÁS (Krótki Film o Zabijaniu)

Está longe de ser um filme que nos deixe feliz este NÃO MATARÁS (1988), de Krzysztof Kieslowski. A própria escolha por uma fotografia escura, muitas vezes deixando parte da tela sem que vejamos absolutamente nada, pode ser vista como uma técnica para nos engolfar nesta obra povoada por pessoas vivendo uma espécie de inferno na Terra. No caso, tanto o sujeito que comete o homicídio quanto o jovem advogado que tenta livrá-lo da pena de morte. Está muito longe daqueles dramas de pena de morte que Hollywood faz e deixa a gente chorando, como OS ÚLTIMOS PASSOS DE UM HOMEM ou À ESPERA DE UM MILAGRE. Aqui é muito mais seco, mais áspero, mais real, mais desagradável. Um baita filme.

sábado, dezembro 19, 2020

FIRST COW



Pode ser o início de uma nova era. E não me refiro, necessariamente, ao advento do Corona Vírus e suas consequências, mas à tendência atual do aumento do número de filmes dirigidos por mulheres. A presença feminina também tem aumentado em outras áreas, tanto culturais quanto na política e na ciência, mas vamos nos ater ao cinema. E começar lembrando que o filme em cartaz nas salas com maior interesse dos espectadores atualmente é também dirigido por uma mulher, MULHER-MARAVILHA 1984.

Recentemente, o crítico Chico Fireman comentou no podcast Cinema na Varanda que acreditava que, pela primeira vez na história, a lista dos indicados a melhor direção no Oscar pode conter de três a quatro mulheres entre os cinco candidatos. Isso se deve ao enorme sucesso de crítica de filmes como o ganhador do Leão de Ouro NOMADLAND, de Chloé Zhao, a sensação do cinema indie NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE, de Eliza Hittman, e o nosso filme em questão, FIRST COW (2019), de Kelly Reichardt, que foi eleito melhor filme do ano pelo New York Critics Circle e pela revista Time, e apareceu em posições muito boas em votações de veículos como Sight & Sound, The Guardian, The Wrap, Hollywood Reporter, Los Angeles Times e Indiewire.

O caso de Kelly Reichardt é muito curioso, já que seus filmes nunca chegaram ao nosso circuito de cinema. No máximo, passaram em mostras internacionais. O que é algo muito estranho, levando em consideração o alto nível de seus trabalhos, e considerando os que eu tive a oportunidade de ver, como WENDY E LUCY (2008) e CERTAS MULHERES (2016), dois filmaços. Em FIRST COW, a diretora vai além do registro de pontos de vista de personagens femininas e conta uma história de amizade entre dois homens.

FIRST COW também já foi descrito como o filme de assalto mais sutil já feito, o que também diz muito do filme, assim como o modo como critica a agressividade masculina ao mostrar dois homens interessados em culinária, em decoração da casa e em trazer sofisticação para um mundo grosseiro de formação da civilização. A história se passa em Oregon, durante a corrida ao ouro nos anos 1820.

Assim como WENDY E LUCY, aqui também vemos uma discussão muito interessante sobre capitalismo. A começar pela pergunta: quão correto (ou errado) é roubar um pouco de um rico proprietário para sobreviver e/ou galgar uma posição mais confortável na vida e na sociedade? Isso, claro, lembrando que o fruto das grandes riquezas geralmente vem de roubo, assassinato e estupro.

O curioso de FIRST COW é que o primeiro encontro entre os dois homens, vividos por John Magaro e Orion Lee, é que um deles se encontra completamente nu. Cookie (Magaro) dá, então, vestimenta, comida e abrigo a King-Lu (Lee), que dizia estar com muita fome. Dentro daquele cenário de poucas opções de alimentação, Cookie fazia milagres. Ele era o cozinheiro de um grupo de homens em um negócio de peles de animais. Depois dessa amigável ajuda, os dois se reencontram, começam a morar juntos e têm a brilhante ideia de "pegar emprestado" o leite da primeira e única vaca da região para iniciar seu empreendimento.

O andamento lento do filme é cativante, ainda mais por que ele consegue trazer empolgação e também tensão, já que a empreitada dos dois homens é um tanto perigosa. E há também uma ternura que muito sutilmente vai aparecendo da amizade entre eles que é também algo muito poderoso. Assim como o cuidado com a imagem, que aqui adota a janela 1,33:1. Reihardt constrói sua direção de arte basicamente com a beleza da natureza.

FIRST COW é baseado no romance The Half Life, de Jonathan Raymond, amigo e colaborador da diretora em filmes como ANTIGA ALEGRIA (2006), WENDY E LUCY, O ATALHO (2010) e MOVIMENTOS NOTURNOS (2013).

Agradecimentos à Paula pela companhia à distância durante a apreciação do filme.

+ TRÊS FILMES

SOU SUA MULHER (I'm Your Woman)

Bom ver Rachel Brosnahan brilhando em um papel dramático depois da glória conquistada na comédia com a série THE MARVELOUS MRS. MAISEL. SOU SUA MULHER (2020), de Julia Hart, tem um gosto de Supercine, mas é um thriller bem eficiente e que vai ficando melhor em sua segunda metade. Na trama, Brosnahan é a esposa de um gângster que recebe do marido um bebê e depois precisa fugir de casa por causa de encrencas desconhecidas do sujeito. Há uma boa reconstituição de época (anos 70), uma boa perseguição e uma conclusão redondinha. Os dois atores de apoio são muito bons e ajudam muito a trazer humanidade e calor para o filme.

MULHER OCEANO

O trabalho de composição visual é o que há de mais bonito neste primeiro filme de Djin Sganzerla como diretora. Em MULHER OCEANO (2020), ela exerce dois papéis: o da escritora de livros de ficção e o da personagem do tal livro. A melhor parte do filme se passa no Japão. O visual do país (e não apenas a tecnologia e a arquitetura moderna, mas também a natureza) contribui muito para a beleza das imagens. E há também o sentimento de solitude da personagem, que resolve ficar distante da família e do marido para pensar em seu trabalho literário e também em sua vida, tudo no seu devido tempo. Não gosto tanto quando o filme volta para o Rio e mostra a história da personagem criada. É como se fosse outro filme, com outro visual e outro ritmo. Ainda assim, gostei bastante desse caminho diferente traçado por Djin, diferente do caminho da mãe e do pai.

AOS OLHOS DE ERNESTO

Belo filme sobre a solidão e a velhice, com excelente momento do uruguaio Jorge Bolani, no papel-título. Ele é um senhor que enxerga muito mal, que mora sozinho em um apartamento e que começa a fazer amizade com uma jovem talvez pouco confiável (Gabriela Poester). Ambos sentem a solidão de maneira forte, ainda que de forma muito distinta. E a melancolia de AOS OLHOS DE ERNESTO (2019) é um sentimento recorrente, ainda que haja espaço vez ou outra para um discreto humor. Temos Júlio Andrade no filme, mas infelizmente em um papel pequeno. A sorte é que Bolani é tão bom que leva o filme praticamente sozinho muito bem. Interessante ver Ana Luiza Azevedo (e Jorge Furtado, como corroteirista) saindo do universo juvenil de ANTES QUE O MUNDO ACABE (2009) e ingressando nos dilemas da terceira idade.

quinta-feira, dezembro 17, 2020

23 CURTAS PRESENTES NO 14º FOR RAINBOW



Neste ano, muitos festivais tiveram que se adaptar e adotar o formato digital para não passar em branco. O For Rainbow, o Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual, aconteceu em transmissão para quem quiser ver no YouTube. Faltou aquele calor humano típico do festival, mas é o que tem pra hoje. Tive a oportunidade e a honra este ano de fazer parte do júri da crítica, junto com dois colegas da Aceccine. Vamos aos comentários rápidos sobre os curtas da edição deste ano, então.

FOTOS PRIVADAS

Interessante filme sobre o efeito que uma terceira pessoa pode fazer ao entrar na vida de duas pessoas que têm um relacionamento íntimo mais prolongado. O trabalho de direção privilegia tanto os corpos, nas cenas de intimidade, quanto percepções individuais, como a cena em que um deles fotografa o corpo nu do outro. E há também a DR bem construída e uma cena final agridoce e bonita. Direção: Marcelo Grabowsky. RJ, 2020.

HOJE EU NÃO FICO NO VESTIÁRIO

Há coisas que mal são pensadas e refletidas, pelo menos por mim. Uma delas é o fato de o futebol ser um espaço essencialmente heteronormativo e com muita homofobia (as pessoas estão acostumadas a ver o tipo de xingamento que aparece nos estádios). Raramente se vê um jogador de futebol assumidamente gay. Por outro lado, há uma tendência de achar que as jogadoras de futebol podem ser lésbicas. Neste documentário que pega emprestado o nome do filme de Daniel Ribeiro temos, de maneira bem simples, uma breve discussão sobre esse assunto, entre homens e mulheres gays e apreciadores e profissionais do futebol, para em seguida ver a história breve da formação de um time de futebol só com pessoas gays. Direção: Nicole Lopes. PR, 2019.

OS ÚLTIMOS ROMÂNTICOS DO MUNDO

Um filme cujo maior mérito está nas brincadeiras formais do que na trama, que é bem simples, ainda que com uma reviravolta interessante. Na história, o mundo vai acabar com a chegada de uma enorme nuvem cor-de-rosa. Bem legal a utilização de um estilo que remete aos anos 1980, às sessões exibidas na Globo com dublagem, às fitas VHS envelhecidas pelo tempo. Destaque para a divertida cena com "Total Eclipse of the Heart". Também podemos destacar as discussões sobre o destino dos gays no pós-vida, uma amostra de que a culpa cristã ainda não está totalmente dissolvida. Direção: Henrique Arruda. MT, 2020.

DE VEZ EM QUANDO EU ARDO

É muito bom quando a gente fica empolgado com um filme a ponto de ficar curioso com os outros trabalhos do realizador. No caso, este é o terceiro filme de Carlos Segundo, sendo que o segundo foi um longa-metragem chamado FENDAS (2019), que gostaria de conhecer. A força deste curta está no clima, na montagem, no mistério que se estabelece tanto no trabalho da fotógrafa/artista vivida por Rubia Bernasci quanto no que surge a partir da chegada de uma modelo (Carla Luz). Até as cenas que se passam na residência, com um cuidado especial com o que mostrar e o que esconder, se revestem de uma importância metafísica. RN, 2020.

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Um trabalho de composição de luz e de imagem que parece simular um gozo. Jesuíta Barbosa mais uma vez se mostrando amigo dos filmes LGBTQ neste curta bem curtinho mesmo, mas que impressiona visualmente. Às vezes lembra um pouco a linguagem publicitária, em outras um trabalho experimental herdeiro da videoarte. Na montagem, há a valorização do corpo masculino de uma maneira bem sensual, mas também há uma combinação com outras imagens a fim de trazer ressignificações. Direção: Diego Martins. SP, 2020.

ITINERÂNCIAS DE GÊNERO

Interessante ver um filme que trata de um processo de "retorno às origens" de pessoas trans. O personagem mais importante do filme é Antônio Neto, que não voltou ao gênero masculino por causa de nenhuma religião. Segundo ele, foi um processo de sua psique, ele já não se sentia tão bem como uma mulher. Há outros personagens interessantes, mas Neto é o protagonista e o mais interessante (chegou a escrever um livro sobre sua vida, chamado Mel e Fel), mais eloquente e mais carismático. Há, portanto, essa irregularidade entre um personagem muito bom e outros mostrados rapidamente. Direção: Alexandre Veras. CE, 2019.

DESYRRÊ

Mais um exemplar de documentário que apresenta um perfil de uma personagem interessante, no caso, Desyrrê, transexual que dá duro na vida, trabalhando em um restaurante e fazendo curso técnico de radiografia, além de ter que lutar diariamente para conseguir o respeito das pessoas, até por morar em uma cidade pequena como Triunfo, interior de Pernambuco. Há uma simplicidade bonita no doc que combina com a personagem retratada. Direção: Coletivo Documentando. PE, 2020.

ELA QUE MORA NO ANDAR DE CIMA

Um filme que se destaca muito mais por seus aspectos formais, por mais que tenha o brilho de Marcélia Cartaxo no elenco. É que o cuidado com a fotografia, a direção de arte e o figurino salta aos olhos de imediato. A opção por um amor platônico de uma mulher por outra acaba tornando o filme sutil nos gestos, nas intenções e nos desejos reprimidos. Ótima a inclusão de "Coração de papel", clássico da Jovem Guarda na voz de Sérgio Reis. Direção: Amarildo Martins. PR, 2020.

A VAPOR

O fato de termos um protagonista tão desconfortável quanto o espectador comum o coloca em uma posição de fácil identificação. O personagem de João Fontenele chega a esse lugar secreto onde homens se preparam para relaxar, paquerar, transar, assistir a shows de transformistas cantando, ou só ficar olhando para o céu. A inquietação do personagem dá um tom de filme de gênero ao filme, à medida que o som e recursos emprestados do cinema de horror vão se juntando à narrativa, ainda que de maneira discreta. Detalhe para a transição um pouco mais demorada em tela escura entre uma cena e outra, acentuando o clima de mistério. Direção: Sávio Fernandes. CE, 2020.

HOMENS INVISÍVEIS

Documentário muito interessante sobre o tratamento duro que homens trans recebem no sistema prisional. É cada história impressionante. São pessoas que tiveram sua dignidade destruída na prisão (um deles chegou a dizer que passou um ano com a mesma cueca). Há problemas que sequer imaginava, como a visita necessária a ginecologistas e o quanto isso também é um tratamento diferenciado por parte dos profissionais, segundo eles disseram. Outros problemas já se imaginam, como a privação do tratamento hormonal. Muito bons os personagens entrevistados, sendo que alguns deles preferiram não mostram o rosto. Direção: Luís Carlos Alencar. RJ, 2020.

LETÍCIA, MONTE BONITO, 04

Um filme que encanta pela simplicidade e pelo modo sutil com que as duas meninas se aproximam lentamente durante uma tarde/noite de verão bem quente no sul do país. Destaque para Maria Galant, jovem atriz que vem despontando como uma das mais talentosas de sua geração. O romantismo do filme também tem uma ligação com a época em que se passa, algo em torno do início dos anos 2000, com CDs e DVDs em alta, discman, tevês de tamanho menor, série da Xena etc. Outro ponto positivo é o cuidado com fotografia e as cores do quarto, o lugar onde se passa a maior parte da ação. Direção: Julia Regis. RS, 2020.

CLOVITO 2069

Embora lá pelo meio eu tenha achado que o filme perde um pouco o foco (quando começa a falar sobre quadros de temática indígena de Clovito), o personagem em si é uma figura e tanto. Quem mora em Mato Grosso certamente conhece muito bem esse artista plástico tão singular e que teve a coragem de tatuar o rosto todo de preto. Acabou virando uma marca registrada, ainda que tenha sido um problema quando ele viajava. Senti falta de um estudo maior da obra, mas deu pra ter um gostinho da pessoa, da figura diferente e ao mesmo tempo bastante humilde de Clovito Hugueney. Direção: João Manteufel. RJ, 2020.

INABITÁVEIS

Interessante que as cenas de dança (contemporânea) entre os bailarinos me pareceram bastante naturais, por mais que a homoafetividade masculina esteja em pauta. Vemos aqui um filme que se interessa tanto pela arte, quanto pela política (no sentido amplo do termo, pois a herança da escravidão é claramente debatida), quanto pela religião (de linha africana), aparecendo um pouco em chave de fantasia. Em alguns momentos o filme se aproxima do sonho, como na cena das mãos douradas se aproximando de um dos personagens como criaturas da floresta. E há a dança final, com um cuidado de luz e sombra caprichado. Direção: Anderson Bardot. ES, 2020.

O QUE PODE UM CORPO?

Filme bastante tocante sobre um rapaz que teve complicações no nascimento, complicações que ele carrega consigo até o resto da vida. É menos um filme sobre a sexualidade do corpo e mais sobre o enfrentamento das dificuldades provenientes desse corpo nascido diferente. Há também a comunicação artística de Victor, o entrevistado, sua relação forte com a arte, a partir de sua sensibilidade própria. Mas acabei me comovendo mesmo com o monólogo final dele. Direção: Victor Di Marco e Márcio Picoli. RS, 2020.

BALIZANDO 2 DE JULHO

A pluralidade de documentários, especialmente os de curta-metragem, nos ensina muita coisa. Coisas que a gente desconhece. Como não sou de Salvador, desconhecia esse desfile cívico que acontece em 2 de julho, Dia da Independência da Bahia, e o quanto o grupo LGBT foi conquistando espaço nas balizas, que é uma espécie de coreografia com banda. A alegria do grupo que participa está estampado em seus rostos e só por isso esse evento já é válido. No curta, há depoimentos interessantes, inclusive de Jean Wyllis e também de um doutorando que estuda as balizas e as fanfarras do 2 de julho pela perspectiva dos grupos LGBT. Direção: Fabíola Aquino e Marcio Lima. BA, 2019.

BATOM VERMELHO SANGUE

Filme que nos apresenta ao cotidiano duro de quatro mulheres que moram em uma casa humilde e cada uma delas luta para sobreviver à sua maneira no mundo perverso em que vivemos. Lá pelo meio vemos que a protagonista é Ashley, que trabalha em um bar de garçonete. É um filme duro, com uma melancolia que se apresenta já na cena do karaokê mas que se intensifica lá pelo final. Boas atuações, bom desenvolvimento do enredo. Direção: R.B. Lima. PB, 2019.

BHOREAL

Ainda veremos muitos filmes ambientados no contexto da Covid-19. Este aqui nos apresenta ao artista plástico Lorenzzo di Padilla que se traveste de drag queen nas noites de São Paulo para entregar quentinhas para moradores de rua. Mas esse nem é o aspecto mais importante do filme. O mais importante é o depoimento que ele dá enquanto se maquia, sobre suas lembranças de uma grande amiga de infância. É onde o filme se reveste de uma delicadeza muito bonita. Direção: Bernardo de Assis. RJ, 2020.

IAURAETE

Interessante misto de filme experimental com cinema de horror e estudo sobre mitologias amazônicas associadas a figuras LGBT. Aqui temos uma espécie de mulher-onça ou mulher-jaguar que também se confunde com uma criatura da mata ou um demônio. Isso acaba também trazendo uma espécie de ar maldito para essa figura que não se sabe se é homem ou mulher, como ela mesma diz. Uso interessante do som, da música tradicional e do mistério associado ao medo. Direção: Xan Marçall. PA, 2020.

O MISTÉRIO DA CARNE

A primeira coisa que chama atenção neste filme é a expressividade das jovens atrizes. O desejo da protagonista começa a se apresentar de estranhas formas, trazendo uma relação direta com o sangue. Embora no final fique uma sensação de que algo está faltando, talvez seja apenas uma sensação, já que todas as cenas são boas e curiosas, seja a do grupo de jovens se acariciando durante a aula de religião, seja a cena da piscina, seja a brilhante coreografia que emula Jesus e os apóstolos. O filme já conta com alguns prêmios internacionais e participações em festivais importantes, como Sundance, Biarritz e Brasília. Direção: Rafaela Camelo. RN, 2018.

PARA VERÔNICA

A simplicidade deste filme é um de seus principais trunfos. Ao nos apresentar a um senhor idoso que se veste de mulher quando recebe um pacote em sua casa. O filme cresce muito nos momentos desse senhor com a mulher que cuida dele. E se encerra de maneira poética e delicada, nos fazendo pensar no quanto as convenções sociais servem/serviram de prisão para tantas pessoas. Direção: Fran Lipinski. SP, 2019.

PERIFERICU

Ainda que seja um filme relativamente solar, o tom de melancolia frente às dificuldades de vida das duas personagens LGBT acaba sendo enfatizado, por mais que haja sim um senso de humor bem ácido nas cenas com a família. Os momentos mais fortes do filme estão na expressão artística como forma de desabafo, principalmente o poema endereçado a Deus, no final. Direção: Nay Mendl, Rosa Caldeira, Vita Pereira, Stheffany Fernanda. PR, 2019.

QUEBRAMAR

Uma das coisas mais bonitas neste filme de Cris Lyra é a espontaneidade com que um registro que a princípio é documental e se transforma em algo muito próximo do ficcional. Sabemos que isso não é novidade e que há uma série de filmes que utilizam esse tipo de recurso, mas para fazer funcionar e fluir bem é mais difícil. Aqui o carinho com que as personagens têm uma pena outra é passado do lado de cá da tela, especialmente na cena dos fogos de ano novo. SP, 2019.

VÓ, A SENHORA É LÉSBICA?

A pergunta que dá título ao filme poderia indicar que se trata de uma obra sobre uma pessoa gay na terceira idade. De certa forma é, mas é muito mais sobre a neta dessa avó, que também vem se descobrindo interessada em moças, pelo menos em uma moça em especial da escola. Bem montado o paralelismo perto do final. Direção: Larissa Lima e Bruna Fonseca. RJ, 2018.