Por esses dias, eu me desfiz de minha coleção de revistas SET. Eu tinha uma relação muito grande de amor por essa revista, que foi a minha principal referência de crítica cinematográfica nos meus primeiros anos de cinefilia. As primeiras 51 edições, as que têm um logotipo diferente das que se seguiriam, trazem, com exceção do primeiro número, uma seção maravilhosa chamada Filmoteca. Nela, críticos, cinéfilos, escritores, cineastas e artistas das mais diversas áreas são convidados para escrever sobre o seu filme favorito, ou sobre aquele que quisesse homenagear em um texto bem pessoal.
Talvez o texto que mais tenha me marcado tenha sido o de Guilherme Letsz, sobre O ANJO EXTERMINADOR (1962), de Luis Buñuel. No texto, Letsz fala sobre a dificuldade de encontrar companhia para ir ver filmes "de diretores complicados" como esse, sobre a chuva que cai ao sair de casa, sobre como a chuva é "tempo propício para sonhar", sobre chegar adiantado ao cinema, sobre procurar um cartão-postal de um filme brasileiro para enviar a uma amiga que mora em Paris, sobre as pessoas desconhecidas mas de rosto conhecido que costuma ver na Cinemateca, sobre o fato de estarem sozinhos, mas ao mesmo tempo juntos para uma espécie de celebração a uma obra de destaque para a história do cinema. Enfim, o ideal é ler o texto.
Recentemente, durante a quarentena, O ANJO EXTERMINADOR voltou a ser um filme bastante discutido por causa da situação em que os personagens se encontram. Na trama, um grupo de burgueses se encontra em uma mansão para um jantar após um espetáculo teatral. Tudo transcorre como planejado. Depois da refeição há até alguém que se propõe a tocar uma música ao piano no salão, mas o curioso disso tudo é que os criados, tanto os que trabalham na cozinha quanto os que cuidam da limpeza da casa, vão embora, saem meio que desesperados daquele lugar, por algum motivo que nem eles sabem. Dos empregados, apenas o mordomo fica presente. E, por algum motivo, aquelas pessoas não conseguem deixar aquele lugar (o salão da casa), por mais que queiram.
Buñuel brinca tanto com o surrealismo (a sua praia) quanto a fazer críticas aos valores burgueses (sua diversão), já que essas pessoas vão cada vez mais entrando em estado de decadência, à medida que falta comida, água, o calor bate, não há como trocar de roupa, pessoas morrem e os corpos ficam entrando em estado de putrefação, brigas acontecem com frequência. Enquanto isso, do lado de fora, as pessoas ficam sem saber o que está acontecendo e também não conseguem entrar, por causa dessa força misteriosa. Passam-se dias, semanas, perde-se a conta dos dias, na verdade.
No livro Meu Último Suspiro, sua autobiografia, Buñuel conta que se arrepende de ter feito O ANJO EXTERMINADOR no México e não em Paris ou em Londres, cidades em que o luxo poderia ser muito melhor destacado, tanto na produção quanto na própria imagem das pessoas. Buñuel conta que até escolheu atores cujo físico não evocasse tanto assim o México, mas padeceu com a precariedade das toalhas de mesa e outros elementos que poderiam ser mais sofisticados.
Buñuel conta em seu livro algo que eu já havia percebido em pelo menos três de suas obras. A questão da impossibilidade. Em ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO (1977), o protagonista não consegue se aproximar para fazer sexo com a mulher amada - ela sempre o rejeita. Acontece algo muito parecido com o casal de A IDADE DO OURO (1930). Em O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA (1972), os personagens querem jantar e não conseguem; em ENSAIO DE UM CRIME (1955), um homem tenta matar e não consegue. Esses são os exemplos que o próprio diretor destaca, mas que imagina haver outros em sua filmografia. Por esses e outros motivos, Luis Buñuel estará sempre na minha lista de cineastas mais queridos.
Clique no LINK para ler o citado texto da revista SET. (Só não consegui colocar em modo vertical. Então, quem quiser ler, terá que salvar a imagem em seu computador. :/ )
+ TRÊS FILMES
INFERNINHO
Acho mais simpático e belo plasticamente do que exatamente bom, no sentido de me ganhar, me agradar. Ou seja, vejo muitas qualidades no filme, mas eu gostaria mesmo era de me envolver. Talvez o corpo cansado tenha prejudicado, não sei.. Detalhe: quase não via o filme em sua pré-estreia. Todos os ingressos para as duas salas estavam esgotados quando cheguei. Depois de procurar por ingresso sobrando, uma moça que eu não conhecia e percebeu a minha aflição (não é pra tanto, na verdade), conseguiu um para mim. O bom disso tudo foi ver o For Rainbow mais forte do que nunca, nessa era Bolsonaro. A resistência vai crescer ainda mais. Quanto mais se bate, mais há motivo para a luta. Direção: Guto Parente e Pedro Diógenes. Ano: 2018.
O BANQUETE
Gosto muito da primeira metade do filme e do modo como os personagens são apresentados e o humor ácido vai se mostrando mais forte. Pena que depois a diretora não saiba construir a tensão necessária. Ainda assim, é um belo trabalho, que merece a atenção e que é visto com boas risadas pelo público. Fora o elenco marcante e muito bom. Direção: Daniela Thomas. Ano: 2018.
O BARCO
É um filme que ainda estou tentando processar e entender, mas gosto muito de seu mistério, de como o mar e o som e as falas são apresentados. A sensação de extensão do tempo ainda permanece uma forte marca do cinema de Petrus Cariry, assim como a intenção de seguir a sua marca autoral, sem fazer concessões. O tom de fábula lembra romances do realismo mágico. Por mais que ter visto na tela gigante do São Luiz tenha sido uma experiência muito boa para aumentar a força das imagens, acredito que o filme se beneficiaria de uma sala menor, como a do Dragão, que traria uma maior facilidade de imersão. No Cine Ceará o povo fica num entra e sai que me incomoda. Ano: 2018.
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