terça-feira, janeiro 30, 2018

ME CHAME PELO SEU NOME (Call Me by Your Name)

Um dos filmes mais sedutores da temporada, ME CHAME PELO SEU NOME (2017), de Luca Guadagnino, já começa mostrando que o caminho que traçará não será o da culpa católica. Os créditos iniciais, trazendo uma sucessão de imagens de estátuas gregas enfatizando a beleza dos corpos, dá indícios de que o que estaremos perto de ver seria algo de natureza pagã, melhor dizendo, pré-cristão, ou seja, longe da culpa.

E bastam as primeiras imagens para que sejamos arremessados para aquele maravilhoso oásis situado no norte da Itália, no início dos anos 1980. O tempo e o lugar são importantes para tirar um pouco o espectador contemporâneo de seus vícios eletrônicos e nos encantar com uma viagem sensorial tão intensa que é como se estivéssemos lá. Talvez esta seja, aliás, a melhor qualidade do filme de Guadagnino, embora mais motivos haveriam de surgir.

O filme é todo narrado do ponto de vista do jovem Elio (Timothée Chalamet, excelente), que está passando o verão com a família naquele lugar. O pai, um professor universitário, aguarda a chegada de um novo assistente, o americano Oliver (Armie Hammer). Desde a primeira vez que Elio vê Oliver já se instala ali um sentimento de atração, embora nem sempre as imagens sejam óbvias para captar. Nem mesmo o sentimento estava claro para o rapaz de 17 anos ainda.

O curioso da estadia de Oliver naquele lugar paradisíaco é que há bem poucos momentos em que o vemos trabalhando com o pai de Elio. Ele mais parece estar ali para passar férias e desfrutar dos prazeres de um café da manhã ao ar livre, de passeios de bicicleta e banhos de piscina ou de rio. Pequenos detalhes, como ele comendo um ovo cozido no café da manhã ou jogando vôlei, são importantes para que se instale o sentimento de prazer constante.

Em certo momento, Oliver pergunta a Elio o que ele faz naquela cidade. O garoto comenta das festas.O clima da festa também é outro exemplar de felicidade, ainda que não seja uma felicidade plena, já que os dois rapazes ainda estarão se divertindo com as moças locais. Ainda assim, como não sentir prazer na cena de sexo de Elio com a jovem Marzia (Esther Garrell)?

Mas a história de amor dos dois rapazes só estava começando. Não apenas uma história de amor, mas uma história de descoberta, não apenas do ainda adolescente Elio, mas também de Oliver, homem feito, que esconde suas inseguranças muito bem. E o filme trata de mostrar a abordagem lenta dos dois, ou melhor, do jovem Elio, de maneira sabiamente lenta, saboreando os primeiros beijos comedidamente, para, só então, chegar a um momento de intimidade completa - até uma memorável cena de masturbação do adolescente deixa de ser uma atividade secreta.

Talvez um dos momentos em que o filme perde um pouco a força seja na sequência de cenas da viagem, quando dá impressão de que a narrativa vai acabar mas ganha um bônus. Para os personagens, porém, aquela viagem representaria uma festa que não parece ter fim, como se eles estivessem o tempo todo negando que o retorno de Oliver para sua casa seria iminente. Tudo isso seria um preparatório para um final dos mais belos dos filmes românticos recentes.

ME CHAME PELO SEU NOME foi indicado ao Oscar nas categorias de filme, ator (Timothée Chalamet), roteiro adaptado (do grande James Ivory) e melhor canção original ("The Mystery of Love", de Surfjan Stevens).

sábado, janeiro 27, 2018

LIGADOS PELO AMOR (Stuck in Love)

Em certo momento de LIGADOS PELO AMOR (2012), o personagem de Greg Kinnear, um escritor famoso, confidencia para sua ex-esposa, vivida por Jennifer Connelly, que ele não é um bom escritor, ele é mesmo um bom revisor, ele está sempre pensando no que poderia reescrever em sua vida para que ela pudesse dar certo. É uma das falas mais dolorosas do filme, que trata de uma situação bastante sensível nos relacionamentos: a do sujeito que espera pela mulher voltar depois da traição.

Mas o filme não é apenas sobre a história de Bill Borgens, o personagem de Kinnear, e de sua esposa que agora mora com outro cara. Há também a história de seus filhos, que não poderiam ser mais diferentes: enquanto Sam (Lilly Collins), a mais velha, tem um pensamento mais cínico sobre o amor e a vida a dois, pela experiência de decepção que teve com a mãe, ela vive tendo relações com rapazes que ela faz questão de nunca mais ver. Ela passa a sua ideologia de vida amarga para o seu primeiro livro publicado.

Já o garoto mais novo, Rusty (Nat Wolff), tem uma visão mais romântica da vida e é apaixonado pela garota problemática e viciada em drogas da escola (Liana Liberato). Embora haja alguns momentos bons entre os dois, a maior força do filme está mesmo nos casos envolvendo os personagens de Kinnear e Collins, pelo aspecto mais singular de suas condições. Além do mais, Liana Liberato é o elo fraco do elenco.

O diretor Josh Boone, pouco tempo antes de realizar o popular A CULPA É DAS ESTRELAS (2014), teve a sensibilidade de fazer um filme em que o espectador fica a maior parte do tempo com um nó na garganta, sem que as emoções se desaguem em choro por um bom tempo. Trata-se de uma habilidade admirável. Ainda mais quando vemos uma cena tão bela quanto a que se passa no carro, quando Sam está com o futuro namorado Louis (Logan Lerman), e ambos escutam uma canção bem especial, que põe em cheque a visão cínica do amor de Sam. Trata-se da canção "Between the bars", de Eliott Smith, artista um tanto maldito, por seu envolvimento com drogas, depressão e suposto suicídio ainda muito jovem.

Mas o que mais deixa a gente com o coração na mão são as vezes em que Borgens encontra a mulher por quem ainda nutre uma intenção paixão. As tentativas de ela se esquivar só tornam a tensão ainda mais interessante e também dolorosa. Nem sempre é fácil seguir em frente, mas o filme não fica de chorar pitangas: há algo que é revelado só no final que faz o modo de ver a vida do personagem de Kinnear fazer sentido. Há também a relação de completo rancor da filha com a mãe, o que também rende alguns momentos bastante emotivos.

Enfim, LIGADOS PELO AMOR, por mais que não tenha como se aprofundar em tantos personagens em apenas uma hora e meia de duração, consegue dar contar de narrar essa história com muito amor pelos seus personagens. Só por isso, ele já merece uma conferida, até por não ser uma obra muito conhecida. Além do mais, quem ama livros e música pode sentir um especial carinho pelos personagens e pelos diálogos. A ideia de que um livro ou um álbum pode conter um bocado da personalidade de certa pessoa é muito bonita e possivelmente verdadeira.

quarta-feira, janeiro 24, 2018

MAZE RUNNER - A CURA MORTAL (Maze Runner - The Death Cure)

Um dos problemas das franquias de cinema que se estendem por capítulos é que elas exigem certa fidelidade do espectador. Não exatamente no fato de ter a obrigação de ver os referidos filmes, mas de ter que lembrar do que aconteceu nos anteriores, o que seria um convite para uma revisão. Que não seria uma má ideia, mas os dias andam muito corridos. Logo, entrar de novo no universo de MAZE RUNNER é trazer aos poucos as lembranças dos episódios passados. O roteiro ajuda e a ação deste novo filme, como nos demais, é bem eficiente.

MAZE RUNNER - A CURA MORTAL (2018) é o desfecho de uma série que começou de maneira bem modesta neste mundo de ficções científicas juvenis de universos distópicos. O primeiro filme, MAZE RUNNER - CORRER OU MORRER (2014), aliás, nem dava pistas de que se tratava de mais uma dessas distopias. É mais um interessante jogo em que jovens acordam desmemoriados em um perigoso labirinto cercado por monstros. É uma obra que se firma muito bem sozinha, por isso.

A partir do momento em que descobrimos que aqueles garotos e garotas são cobaias de um experimento científico de uma grande corporação e que o restante do mundo está aparentemente em ruínas é que a série se torna um produto um tanto genérico. A sorte é que não deixam a peteca cair e os dois capítulos finais, mesmo tendo mais de duas horas de duração, conseguem ser muito bons no quesito ação.

Sem falar que o herói Thomas, vivido por Dylan O'Brien, é exemplar. Corajoso, apaixonado, bom de briga e disposto a enfrentar desafios gigantes para salvar aqueles a quem ama. Há também um complicador que ajuda a tornar o filme mais interessante: uma das mocinhas, Teresa (Kaya Scodelario), é uma espécie de traidora do grupo, embora ela tenha suas razões em ter ficado junto com o pessoal da WICKED. Ela ainda acredita que uma cura para o vírus mortal possa ser criada em laboratório.

MAZE RUNNER - A CURA MORTAL é um filme com poucas complicações. Os heróis têm como missão libertar um dos amigos que ficou sendo usado como rato de laboratório pela corporação. E, claro, Thomas vai querer ver de novo seu amor, Teresa. Então, há obstáculos pelo caminho, mas as soluções que aparecem são mais ou menos preguiçosas. O que há de interessante nesse percurso é a volta de um antagonista do primeiro filme.

O diretor Wes Ball perde a chance de transformar sua franquia em algo mais do que uma boa e simples aventura juvenil, arriscando-se mais um pouco. De todo modo, as sequências finais, bem dramáticas, são suficientemente boas e não passam do ponto ao querer mais de seus atores e atrizes do que eles são capazes de render. Os efeitos especiais da destruição da cidade não são dos melhores, mas tudo bem. Além do mais, há um pouco de exagero na caracterização do vilão vivido por Aidan Gillen, o Mindinho de GAME OF THRONES, mas isso também é algo que pode ser relevado entre prós e contras. No fim das contas, o saldo é positivo.

segunda-feira, janeiro 22, 2018

O DIA DEPOIS (Geu-hu)

A marca de um grande autor muitas vezes é claramente vista em suas repetições. E por repetições, no caso de Hong Sang-soo, não quer dizer exatamente repetições de temas, mas o uso de repetições dentro da própria estrutura de seus filmes. Por causa disso, quem for ver O DIA DEPOIS (2017) já um tanto acostumado com seus jogos em filmes como A VISITANTE FRANCESA (2012) e a obra-prima CERTO AGORA, ERRADO ANTES (2015) pode ter uma surpresa com este novo trabalho, exibido em Cannes-2017.

O DIA DEPOIS é uma espécie de lado B de NA PRAIA À NOITE SOZINHA (2017), e representa um momento muito particular em que a vida privada e a vida pública do cineasta se misturam, após a exposição do caso que ele teve com a atriz Kim Min-hee, sendo ele então casado. O DIA DEPOIS segue uma posição de lavagem de roupa suja interior ainda mais explícita, já que o protagonista aqui é um homem, o crítico Kim Bongwan (Hae-hyo Kwon, ator bastante conhecido de outros trabalhos de Hong Sang-soo).

Em certo sentido, lembra o que Woody Allen fez quando dirigiu MARIDOS E ESPOSAS em 1992, como que para expurgar a crise no relacionamento com Mia Farrow, crise que se reflete de maneira grave até os dias de hoje. No caso de O DIA DEPOIS, a situação complicada do homem casado cuja esposa descobre que ele tem uma amante, é explorada com o uso da personagem de Kim Min-hee sendo uma espécie de consciência do personagem, inclusive levando em consideração o fato de ela ser uma pessoa religiosa e tendo crenças bastante firmes.

Diferente de outros filmes anteriores, que exploravam de maneira mais enfática a necessidade de ser amado e elogiado e certa superficialidade das pessoas, aqui temos a aposta em diálogos mais profundos, como aquele em que Kim Min-hee diz se sentir como uma coadjuvante em sua própria vida e de uma maior consciência da própria finitude no mundo, sem no entanto se sentir mal por isso.

Não faltam, porém, vários momentos em que os personagens se embriagam para fugir de seus problemas ou para conversar de maneira mais franca com seu parceiro de copo. Além de tudo, há também o jogo de flertes que também é característico do cinema de Sang-soo, mas que aqui se manifesta de maneira mais sutil nas cenas do patrão e da nova empregada. O homem, mais uma vez, é visto como um ser patético, covarde e um tanto arrogante.

No aspecto formal, é um dos filmes mais prazerosos do diretor, com um uso lindo do preto e branco e de um scope que funciona perfeitamente para colocar os personagens em uma mesa de bar. Se for para enfatizar algo dos diálogos, há uma maior aproximação e um movimento pendular da câmera para cada personagem. Sempre uma satisfação gigante ver cada filme novo deste que já é um dos melhores cineastas em atividade no mundo.

domingo, janeiro 21, 2018

SOBRENATURAL - A ÚLTIMA CHAVE (Insidious - The Last Key)

A contrário da franquia INVOCAÇÃO DO MAL, que está se expandindo com novos personagens e criações (A boneca Annabelle, a freira assustadora), SOBRENATURAL já demonstrava sinais de cansaço no terceiro capítulo, não dirigido por James Wan. A falta de boas ideias segue predominando neste quarto filme, SOBRENATURAL - A ÚLTIMA CHAVE (2018). Ainda assim, o novo filme ganha um pouco de força lá pela metade da narrativa, principalmente no que é mais forte na série, a exploração dos mundos do além. Aqui é quase como entrar em um labirinto.

SOBRENATURAL - A ÚLTIMA CHAVE se passa em 2010, o ano de lançamento do primeiro filme da série, que mostrava o drama de um casal cujo filho não acordava de um sono e, em seguida, os mesmos pais perceberam a casa sendo assombrada por estranhos fenômenos. Na linha do tempo, a personagem da médium que ajudará esta família estava passando por uma terrível provação também. E essa é a história que é contada neste novo filme.

A parapsicologista Dra. Elise Rainier (Lin Shaye) luta agora com fantasmas do passado que voltam para assombrar o presente. Ela e sua dupla de caça-fantasmas vão parar na casa onde ela morou quando criança, uma casa assombrada por momentos de terror com o próprio pai, que batia nela pelo fato de ela persistir dizendo que via fantasmas. Já na adolescência, ela foge de casa para nunca mais voltar, deixando o irmão mais novo sozinho com o pai, e a mãe já tendo morrido misteriosamente.

A cena da morte da mãe é uma das mais fracas do filme. O que era para ser algo intenso e perturbador se torna banal, um terrível erro do roteirista Leigh Whannell e do novo diretor, Adam Robitel, que traz no currículo o pouco conhecido A POSSESSÃO DE DEBORAH LOGAN (2014). A banalização da morte de uma mãe é um pecado mortal. De todo modo, pode-se entender como sendo algo de menor importância para a trama, e seguir em frente, dando chances ao filme.

Logo no começo de SOBRENATURAL - A ÚLTIMA CHAVE, Elise é chamada para resolver mais um mistério. O que a deixa incomodada é que o mistério está acontecendo na tal casa onde ela morava quando criança. Ainda assim, ela resolve encarar o desafio e lá encontra um homem que está assombrado com vozes de espíritos perturbadores. Mostra a ela, então, o quarto onde há maior predomínio dessas vozes. Um dos espíritos, no entanto, acaba por revelar uma situação ainda mais aterradora acontecendo naquela casa.

E nisso é que o filme ganha pontos: nas pequenas surpresas. Há também boas sacadas e muita tensão em uma cena em que Elise entra em um duto de ventilação para investigar malas. Além do mais, não poderia faltar mais uma das viagens para o outro lado, onde vivem espíritos e demônios, a fim de solucionar o caso. No entanto, é quase certeza que este filme será brevemente esquecido, além de ter sujado um pouco a imagem dos dois primeiros títulos.

quarta-feira, janeiro 17, 2018

ARÁBIA

O que dizer de um filme que consegue ao mesmo tempo narrar com sensibilidade a história de um homem comum em sua trajetória de dor pelo mundo e ao mesmo tempo conclamar o público a usar o seu direito à desobediência civil para fazer valer os seus direitos? Ser transgressor faz muito bem à arte e por isso ouvir em certo momento "Cowboy Fora da Lei", de Raul Seixas, cantada por um grupo de rapazes, é tão bom. Pois esse é ARÁBIA (2017), obra-prima assinada por Affonso Uchôa e João Dumans e vencedor do prêmio de melhor filme no Festival de Brasília.

Quem viu A VIZINHANÇA DO TIGRE (2016) nem imagina o quanto Uchôa cresceu neste seu segundo trabalho em parceria com o roteirista do primeiro filme. Certamente a parceria na direção lhe fez muito bem, mas o fato é que bastam as imagens, nos créditos iniciais, do garoto André (Murilo Caliari) andando de bicicleta ao som de "I'll be here in the morning", de Steven Van Zandt, para percebermos que estamos diante de algo muito especial.

O cuidado com as imagens, que no filme anterior de Uchôa parecia mais solto, é percebido com maior rigor formal já nas primeiras cenas, que nos apresentam ao menino André, à sua tia e ao seu irmão pequeno, que está acamado. A pequena cidade onde moram parece agradável, mas também é triste, a julgar pela imagem que vemos logo de cara de uma fábrica que parece espalhar veneno por toda a redondeza.

Mas teremos ainda uma boa e agradável surpresa depois de sermos apresentados ao estranho e solitário Cristiano (Aristides de Sousa), rapaz que trabalha na fábrica da cidade. Ele será o narrador de sua própria história, a partir do diário encontrado por André. Assim, como em um trabalho literário em que uma história engole a outra, somos levados pelo braço, e com muito prazer e interesse, para conhecer a história de vida de Cristiano, que já antecipa que falará da mulher mais importante de sua vida, Ana (Renata Cabral).

Um dos aspectos mais interessantes de ARÁBIA é como a narrativa em tom rude de Cristiano consegue ser também tão delicada. O filme é praticamente todo narrado com a voz do rapaz, em sua passagem por diversas cidades de Minas Gerais, inclusive tendo feito uma passagem pela prisão por roubo de carro. Em suas paradas em tantos lugares, ele conhece pessoas que influenciam o seu modo de pensar, como o homem que trouxe os sindicatos e a greve a um povoado que estava trabalhando sem ser devidamente pago pelo patrão, dono de uma plantação de tangerinas.

Como se fosse a personificação do povo brasileiro, Cristiano segue procurando um lugar melhor para si. Acredita encontrar a felicidade quando conhece Ana, em uma fábrica. Justamente uma moça que tem leitura e instrução, coisa que ele não tem. Contrariando as previsões mais pessimistas, Ana o ama de volta. Pelo menos até determinado momento de suas vidas, quando algo ocorre e eles não sabem bem o que é. Como se a sorte tivesse prazo de validade.

ARÁBIA ainda conta com uma trilha sonora admiravelmente linda, com canções de Maria Bethânia ("Três apitos", de Noel Rosa), Renato Teixeira ("Raízes"), um senhor cantando de maneira imperfeitamente bela "Marina", de Dorival Caymmi, em uma festa, além das acima citadas. E boa parte das vezes o convite para ouvir as canções segue junto com o convite para se deleitar com a melancolia da narrativa de Cristiano e das imagens deslumbrantes da fotografia de Leonardo Feliciano. O mundo pode ser um lugar triste, mas ainda há espaço para a beleza da arte, que não apenas nos faz pessoas melhores e mais sensíveis, mas também, neste caso, nos incita a agirmos como seres políticos mais ativos.

segunda-feira, janeiro 15, 2018

STROMBOLI

Ter visto EU SOU INGRID BERGMAN, documentário de Stig Björkman, ajuda bastante a nos levar aos sentimentos da personagem Karin, de STROMBOLI (1950), primeira parceria de Ingrid Bergman com o diretor italiano Roberto Rossellini. Foi nas produções deste filme que Ingrid teve um caso extraconjungal com Rossellini e ficou grávida. Isso significou para ela uma espécie de suicídio comercial de sua carreira em Hollywood, tendo ela se tornado persona non grata nos Estados Unidos.

Sua vida, certamente, passou por uma reviravolta tremenda. Imagina só: abandonar a família que tinha até então e passar a viver em um outro país e formar uma nova família com esse cara de filmes baratos mas cultuados. De certa forma, Karin, a mulher que cai na cilada de casar com um sujeito que mora em uma ilha que não tem nada, a não ser um vulcão ativo, lembra um bocado a própria atriz sueca. Embora a atriz estivesse ali porque queria e não numa situação de prisão. No entanto, tanto a atriz quanto a personagem têm que enfrentar o preconceito de uma sociedade.

Visto hoje, é possível que STROMBOLI seja visto com certa estranheza pelo público, pela mistura de um tipo de dramaturgia que lembra o que se fazia em Hollywood na época, misturado com o que havia de mais melodramático no cinema italiano e incluindo a utilização de não-atores também, característica do neorrealismo italiano. Mas tudo isso pode ser abraçado com muito carinho.

Até porque o filme é narrado de uma maneira tão intensa que é muito fácil nos colocarmos no lugar de Karin. Há, porém, uma cena que é vista com horror pela personagem, mas que pode ser encarada com maravilhamento pelo espectador: uma cena filmada em tom documental, até por ser de fato o registro de pescadores em um ritual de pesca de peixes enormes. Eles cantam enquanto levantam as redes, que trazem o que mais parecem tubarões para seus barcos. É tão admirável quanto a cena do estouro da boiada em RIO VERMELHO, de Howard Hawks.

E há, no final, aquilo que se tornaria muito comum de se ver na filmografia de Rossellini: sua busca pelo religioso, por Deus. Seu filme seguinte já seria FRANCISCO, ARAUTO DE DEUS (1950). Quanto ao personagem do marido, Antonio, vivido por Mario Vitale, trata-se de um homem simples, comum, que fica um bocado eclipsado pela complexidade e brilho de Karin, uma mulher que, já no próprio filme talvez tenha sido vista pelas alas mais tradicionais da sociedade como um exemplo de mulher imprudente. Hoje é muito mais fácil vê-la como alguém que precisava usar o que dispunha, ou seja, sua beleza e sua sedução, para tentar conseguir o que desejava. Mas o filme, o diretor ou o destino parecem querer pregar-lhe uma lição.

segunda-feira, janeiro 08, 2018

GLOBO DE OURO 2018


E toda a polêmica em torno do abuso sexual que chamou a atenção em 2017 deu o tom nesta edição do Globo de Ouro, que contou com a participação da imensa maioria das mulheres vestidas de preto, em protesto. Ficou até complicado para o host Seth Meyers fazer piada no monólogo de abertura, diante de tal situação, mas até que ele conseguiu fazer graça e foi bastante elegante, embora as farpas tenham ido mais para Kevin Spacey do que para Harvey Weinstein, já que o próprio nome do produtor resultou em vaia.

De todo modo, esta edição dos Golden Globes ficará lembrada durante um bom tempo. Principalmente pelo discurso poderoso de Oprah Winfrey (a grande homenageada da noite, com o prêmio Cecil B. De Mille). Ela deixou muita gente de queixo caído pela sensibilidade e por lembrar também da questão racial, que continua sendo um problema nos Estados Unidos. O fato de a atriz e apresentadora ser uma das pessoas mais queridas do país não diminui o preconceito racial.

Outro detalhe curioso também nesta edição é que as atrizes puxaram os prêmios principais. O prêmio de melhor filme dramático para TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME veio logo depois do prêmio de melhor atriz para Frances McDormand. O mesmo aconteceu com a jovem Saoirse Ronan e o filme LADY BIRD - É HORA DE VOAR, injustamente não recebendo uma indicação de melhor direção para Greta Gerwig.

O mesmo aconteceu com os prêmios para a televisão. As maravilhosas Rachel Brosnahan e Elisabeth Moss venceram os prêmios em suas categorias e alavancaram premiações para THE MARVELOUS MRS. MAISEL e THE HANDMAID'S TALE. O mesmo aconteceu com Nicole Kidman e BIG LITTLE LIES. Ou seja, as premiações giraram em torno delas.

E os filmes e séries em si trataram de temas muito apropriados para a situação. O filme dramático premiado fala de morte e estupro de uma jovem, seguido de uma tentativa de vingança de uma mãe. Outros títulos também lidam com a opressão sofrida pelas mulheres em um mundo ainda dominado pelo patriarcado. Mesmo em uma série tão leve quanto THE MARVELOUS MRS. MAISEL.

Assim, os prêmios masculinos acabaram sendo eclipsados nesta premiação, mesmo tendo um time de gigantes na categoria de atores para filme (drama) e a premiação de James Franco ter sido engraçada. O próprio Guillermo Del Toro, que recebeu prêmio de direção, teve a complicada tarefa de subir ao palco depois do discurso fantástico de Oprah. Mas foi muito bom. Mesmo sem mulheres na categoria de direção e sem uma apresentadora mulher no comando, a impressão que fica é que algo mudou ou está mudando em Hollywood. E que pode se expandir para os Estados Unidos e o mundo. Tomara.



Prêmios da noite

Cinema

Melhor Filme (Drama): TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME
Melhor Filme (Comédia/Musical): LADY BIRD - É HORA DE VOAR
Melhor Direção: Guillermo Del Toro (A FORMA DA ÁGUA)
Melhor Ator (Drama): Gary Oldman (O DESTINO DE UMA NAÇÃO)
Melhor Ator (Comédia/Musical): James Franco (O ARTISTA DO DESASTRE)
Melhor Atriz (Drama): Frances McDormand (TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME)
Melhor Atriz (Comédia/Musical): Saoirse Ronan (LADY BIRD - É HORA DE VOAR)
Melhor Ator Coadjuvante: Sam Rockwell (TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME)
Melhor Atriz Coadjuvante: Allison Janney (EU, TONYA)
Melhor Roteiro: Martin McDonaugh (TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME)
Melhor Trilha Sonora: A FORMA DA ÁGUA
Melhor Canção Original: "This is me" (O REI DO SHOW)
Melhor Animação: VIVA - A VIDA É UMA FESTA
Melhor Filme Estrangeiro: EM PEDAÇOS (Alemanha)

Televisão

Melhor Série (Drama): THE HANDMAID'S TALE
Melhor Série (Comédia/Musical): THE MARVELOUS MRS. MAISEL
Melhor Minissérie ou Telefilme: BIG LITTLE LIES
Melhor Ator de Série (Drama): Sterling K. Brown (THIS IS US)
Melhor Ator de Série (Comédia): Aziz Anzari (MASTER OF NONE)
Melhor Ator em Minissérie ou Telefilme: Ewan McGregor (FARGO)
Melhor Atriz de Série (Drama): Elisabeth Moss (THE HANDMAID'S TALE)
Melhor Atriz de Série (Comédia): Rachel Brosnahan (THE MARVELOUS MRS. MAISEL)
Melhor Atriz em Minissérie ou Telefilme: Nicole Kidman (BIG LITTLE LIES)
Melhor Ator Coadjuvante em Série, Minissérie ou Telefilme: Alexander Skarsgard (BIG LITTLE LIES)
Melhor Atriz Coadjuvante em Série, Minissérie ou Telefilme: Laura Dern (BIG LITTLE LIES)


quarta-feira, janeiro 03, 2018

MULHER MOLHADA AO VENTO (Kaze ni Nureta Onna)

Que bom seria se alguma produtora brasileira bancasse algo semelhante ao que a produtora japonesa Nikkatsu fez com este projeto, de trazer de volta o espírito das comédias eróticas japonesas que faziam muito sucesso nos anos 1970 e 80, a exemplo do que acontecia também no Brasil e na Itália.

Foram produzidos cinco filmes, sendo que os diretores, alguns deles famosos mundialmente, teriam que cumprir três regras. São elas: o filme deve ter menos de 80 minutos de duração; deve conter uma cena de nudez ou de sexo a cada dez minutos pelo menos; e deve ser filmado em menos de uma semana. MULHER MOLHADA AO VENTO (2016), de Akihiko Shiota, foi o primeiro dessa linha a sair do forno.

E que delícia que é este filme, hein. Não só porque as cenas de sexo são boas, a atriz é linda e carismática e o filme é muito divertido, sendo possível rir muitas vezes, mas por causa também de seus aspectos formais. A fotografia em cores é linda, a direção de arte é caprichada, mesmo com uma agenda de produção tão apertada, e, principalmente, é possível se sentir no lugar do protagonista.

Na trama, Kosuke (Tasuku Nagaoka), um dramaturgo que vive isolado no meio da selva, é constantemente perseguido por uma bela e sensual jovem chamada Shiori (Yuki Mamiya). A primeira aparição da moça é impagável. Ela entra com bicicleta e tudo dentro de uma lagoa e sai de lá tirando a camiseta e mostrando os seios ao assustado dramaturgo. Enquanto ela espreme a camiseta molhada para vestir novamente, ela diz que vai ficar com o rapaz.

Kosuke não diz nada e vai embora, Shiori tenta agarrá-lo, literalmente, pelo pescoço, mas ele a joga no chão, violentamente. Aos poucos, porém, ele vai se tornando cada vez mais excitado e interessado por aquela mulher meio louca, que ele acaba vendo que está trabalhando de garçonete em um café que ele costuma frequentar. Chega um ponto em que o jogo muda, e ele, sem aguentar mais de desejo, tenta agarrar a moça. Ela, porém, joga com ele e aparece fazendo sexo com outros homens, fazendo com que ele fique ainda mais louco de vontade.

Até certo momento, parece uma variação de ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO, de Luis Buñuel, mas as coisas mudam bastante de rumo a cada virada inesperada do roteiro e do modo como os personagens solucionam seus problemas, necessidades e desejos. Assim, é possível também rir do quanto a cada momento esses personagens vão tomando atitudes bem loucas. A cena de sexo dos dois personagens, enquanto uma mulher está ao telefone é genial, assim como a tentativa de um ménage à trois dentro do barraco de Kosuke. Começar o ano com este filme foi uma escolha bem acertada.

terça-feira, janeiro 02, 2018

BLACK MIRROR - QUARTA TEMPORADA (Black Mirror - Series 4)

É até meio covardia fazer uma única postagem para o que podemos encarar como sendo seis longas-metragens de curta duração. Ainda assim, tentemos falar alguma coisa sobre cada um dos assim chamados episódios da quarta temporada de BLACK MIRROR (2017), sem que pareça uma mera descrição da trama. Antes de mais nada, vale destacar que estamos diante da mais bem-sucedida das temporadas da série/antologia criada por Charlie Brooker, que também participou como roteirista de todos os episódios.

"USS Callister", dirigido por Toby Haynes, a princípio parece apenas uma sátira de Star Trek, exagerando no que pode ter ficado datado na série que nasceu nos anos 1960. Mas depois vemos que a história é outra: conhecemos um diretor de uma empresa de informática (Jesse Plemons) que não é muito popular em seu ambiente de trabalho. Em compensação, ele é o líder da nave no universo virtual que criou. É uma história sobre carência afetiva e maldade.

"Arkangel", dirigido por Jodie Foster, foca na vida preocupada de uma mãe, que uma vez perde sua filha em um passeio e resolve aceitar uma experiência de uma empresa que implanta um chip na filha e a mãe pode não apenas monitorá-la, mas também ver o que ela está vendo, entre outras coisas. É um conto moral sobre invasão de privacidade, mais um tema muito contemporâneo. Gosto muito de como o filme lida com o crescimento da garota e do momento de ruptura/discussão com a mãe.

"Crocodile", dirigido por John Hillcoat, junta duas histórias que se cruzam lá no final. A da mulher que comete um crime ao aceitar esconder o corpo de uma vítima de acidente na estrada; e a de uma moça que trabalha em seguros de vida e que tem à sua disposição aparelhos que conseguem capturar as memórias das pessoas. A história é fascinante e o modo como Hillcoat lida com o medo da mulher de ser descoberta e de cada vez mais aumentar os seus problemas e pecados é angustiante. É mais um thriller que conta com uma tecnologia fascinante a favor da trama.

"Hang the DJ" (foto), dirigido por Timothy Van Patten, é o episódio que mais agradará os espíritos românticos. É o episódio de BLACK MIRROR que conta uma história de amor, assim como na temporada passada foi "San Junipero". Podemos dizer que são histórias irmãs, sendo que "Hang the DJ" expressa de maneira mais enfática a ideia de se ter uma alma gêmea. Quem determina é um programa de relacionamentos que obriga as pessoas a ficarem com as pessoas na duração que o sistema achar mais conveniente, seja apenas 12 horas, seja um ano ou mais. E é assim que vamos nos apaixonando pelo casal vivido por Georgina Campbell e Joe Cole. Os dois se gostam desde o primeiro encontro, mas logo têm que se afastar e ficar com outras pessoas por períodos longos. Histórias de amor que encontram obstáculos não são novidade nenhuma. Ao contrário. Mas a inclusão de um evoluído sistema de matches dentro de uma espécie de universo distópico torna tudo bem atual.

"Metalhead", dirigido por David Slade, é o episódio que mais junta terror com ação e suspense da temporada. É o equivalente ao "Shut up and Dance", da temporada passada. Só que com muito mais estilo. A fotografia em preto, branco e prata é de uma beleza impressionante. Na trama, um pequeno grupo de pessoas em um carro futurista passeiam por um deserto a fim de obter uma caixa. Mas eles são atacados pelo que chamam de cachorro - na verdade, uma espécie de robô de quatro patas quase invencível que sai à cata de seres humanos. Esse monstrinho é fascinante em sua criação. Muito bom ver que o dinheiro que colocaram a mais na série está rendendo bons frutos. Slade consegue, aqui, superar todos os seus trabalhos no cinema.

"Black Museum", dirigido por Colm McCarthy, é o que pode pegar um público pouco acostumado com um horror com violência desprevenido. É talvez o mais pesado dos episódios de BLACK MIRROR. Charlie Brooker junta várias ideias muito inteligentes e não tem pena de gastá-las em um único episódio, que conta a história de uma jovem que visita um museu especializado em crimes. E, como não há ninguém no tal museu, ela é recepcionada pelo dono do lugar, que conta três histórias tão envolventes quanto horripilantes. A ideia dos cookies, que foi usada também nos episódios "USS Callister", em "Hang the DJ", e em "White Christmas" (2014), em maior ou menor grau de terror e angústia, é usada aqui novamente. Talvez o problema do episódio seja a duração e a sensação de que ele não é tão unitário e orgânico quanto os demais. Mas é difícil passar indiferente por ele.

No mais, podemos dizer que esta quarta temporada foi um grande sucesso criativo, por mais que não esteja agradando a todos.