quarta-feira, abril 27, 2022

PEQUENA MAMÃE (Petite Maman)



Acho curioso como eu, que tenho tantas memórias afetivas e/ou complexas da infância e até hoje as levo para o divã, tenho uma relação um pouco estranha com filmes protagonizados por crianças. Fico me perguntando o motivo de muitos deles me fazerem dormir ou não me despertarem tanto o encanto. Claro que há casos e casos e alguns exemplares me trazem mais atenção (VENENO PARA AS FADAS, de Carlos Enrique Taboada; OS INCOMPREENDIDOS, de François Truffaut; O LABIRINTO DO FAUNO, de Guillermo del Toro; ABC DO AMOR, de Mark Levin; ou o maravilhoso ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO?, de Abbas Kiarostami; entre outros). Sei que colocar isso num mesmo balaio é injusto, mas acontece e é algo que eu vivo me perguntando por que acontece.

PEQUENA MAMÃE (2021) não chegou a me causar sono, não, mas digamos que, depois do entusiasmo e do encantamento que eu senti com RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS (2019), o novo filme de Céline Sciamma não me trouxe tanta alegria. Claro que são filmes e propostas muito diferentes e eu mesmo não tenho conhecimento suficiente da poética da cineasta para buscar muitos elos entre os dois filmes e outros dois que vi vários anos atrás. De todo modo, é possível perceber sua sensibilidade ao tratar de relações entre mulheres, seja de natureza romântica, familiar ou entre amigas.

É também preciso compreender o momento da gestação de PEQUENA MAMÃE, que foi durante a pandemia. E isso fica claro de notar na economia do elenco (e muito provavelmente da equipe de filmagem) e da grande quantidade de cenas em espaços abertos e distantes de uma cidade grande. Na trama, a pequena Nelly (Joséphine Sanz) sofre o luto da morte muito recente da avó e lamenta o fato de não ter conseguido dizer adeus a ela. Logo uma pessoa que ela tanto amava. Ao mesmo tempo, ela tem percebido o distanciamento físico de sua mãe, que está passando por uma situação provável de separação ou crise no casamento. Não sabemos o que está havendo também, pois nosso olhar se limita ao olhar de Nelly.

Algo mágico ou fantasioso acontece quando Nelly está na casa de campo da avó: ela tem contato com uma menina da sua idade, que é na verdade a sua própria mãe, vivida pela irmã de Joséphine Lanz, Gabrielle – as duas meninas são tão parecidas que senti dificuldade de definir quem era quem. Esse encontro, além de fantástico, pois funciona como uma máquina do tempo, é uma maneira de Nelly entrar em contato de modo mais próximo com a mãe, agora com sua idade e ainda muito inquieta com o próprio futuro, mesmo sendo tão jovem. É também a oportunidade de Nelly conversar com a avó, que a recebe com carinho como a nova amiguinha da filha.

Algumas religiões espiritualistas dizem que nossas famílias são geralmente compostas por revezamento de funções, por assim dizer. Se nesta vida reencarnamos como filhos, no passado poderíamos ter sido pais ou irmãos uns dos outros, e isso vale para o futuro também. Eu acho essa ideia muito simpática e PEQUENA MAMÃE meio que materializa uma possibilidade que não acontece na relação mãe-filha, por exemplo: de haver um tipo de relacionamento entre pares, em vez de uma relação de autoridade ou de uma menor aproximação pelo simples fato de que essa relação é entre adulto e criança.

Sciamma repete a parceria com a diretora de fotografia Claire Mathon, a mesma de RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS, mas que também fez trabalhos muito distintos e muito especiais em obras como UM ESTRANHO NO LAGO, de Alain Guiraudie, e SPENCER, de Pablo Larraín. Em PEQUENA MAMÃE, o trabalho de Mathon traz cores leves que fundem uma melancolia até própria do período em que o filme foi realizado com uma sutil alegria do encontro de Nelly com a versão mirim de sua mãe.

PEQUENA MAMÃE é um filme modesto e que foi recebido com pouco alarde dentro do circuito alternativo, principalmente levando em consideração o filme anterior da cineasta, eleito o melhor do ano por várias associações de críticos no Brasil e no mundo. Mas, de todo modo, não é um filme que procura chamar tanta atenção para si, é um filme que parece se esconder para ser encontrado por uma plateia menor e merecedora.

+ DOIS FILMES

FLEE - NENHUM LUGAR PARA CHAMAR DE LAR (Flugt)

Chega com algum atraso nos cinemas este documentário realizado no curioso formato de animação, o que traz um forte acento ficcional para ele. Curiosamente, uma animação que também tratava de personagens afegãos, o excelente OS OLHOS DE CABUL, me pareceu trazer mais verdade e realidade do que esta produção indicada triplamente ao Oscar. Confesso que posso incluir FLEE - NENHUM LUGAR PARA CHAMAR DE LAR (2021), de Jonas Poher Rasmussen, como mais uma animação que me fez cochilar, mas tenho que reconhecer suas qualidades, como a questão da falta de pertencimento do protagonista, tanto no que se refere às suas erranças por conta da fuga de seu país natal, quanto por causa de sua orientação sexual, que a princípio o deixou muito confuso.

HYPNOTIC

A Netflix e outros serviços de streaming vêm fazendo o que pequenas companhias faziam na era das locadoras e, antes disso, na era dos filmes produzidos para a televisão. A maioria desses filmes são pouco confiáveis, mas alguns chamam a atenção por outros motivos, seja pelo elenco (me atraiu a presença de Kate Siegel), seja pelo tema e a trama (no caso, o uso da hipnose me atrai). Este HYPNOTIC (2021), de Matt Angel e Suzanne Coote, lembra bastante os thrillers veiculados no Supercine, com clichês manjados e uma história que tem seus momentos. Na trama, a protagonista tem alguns problemas de ansiedade e visita um psicanalista, que sugere a hipnose. O interessante do filme é perceber como ele lida com questões contemporâneas, relativas a abuso psicológico, a partir de uma trama de suspense e mistério. Às vezes funciona, mas muito por causa da Siegel, que, se não me engano, só tem encontrado bons filmes quando trabalha com o marido, Mike Flanagan.

sábado, abril 23, 2022

CIDADE PERDIDA (The Lost City)



Acho que meu amor e minha admiração por Sandra Bullock começaram até que de maneira um pouco tardia, já que na época que a vi em VELOCIDADE MÁXIMA (1994) eu não a enxerguei tanto assim, embora tenha gostado bastante do filme, visto sob efeito de uma boa dose de suco de guaraná no Cine Diogo – bons tempos aqueles. Mas eis que, em seguida, a vi (em VHS) no drama romântico ENQUANTO VOCÊ DORMIA (1995) e já tive uma outra percepção. É um filme muito mais fácil de chamar atenção para ela.

E Bullock acertou em cheio quando se mostrou muito talentosa para a comédia, em filmes como FORÇAS DO DESTINO (1999), MISS SIMPATIA (2000) e AMOR À SEGUNDA VISTA (2002). E ela ainda venceu a barreira do preconceito com a idade em Hollywood quando continuou a brilhar em comédias românticas, como foi o caso de A PROPOSTA (2009). Ou em comédias “não-românticas”, por assim dizer, como AS BEM-ARMADAS (2013) e OITO MULHERES E UM SEGREDO (2018). E eu nem citei os dramas bem-sucedidos que ela fez nesse ínterim, que são vários (e alguns maravilhosos), mas porque o foco aqui é lembrar da comédia mesmo, do quanto seu timing é acertado para esse tipo de registro.

E eis que chegamos à nova comédia estrelada pela nossa querida estrela, CIDADE PERDIDA (2022), dirigida pelos irmãos Aaron e Adam Nee, cineastas até então bem pouco conhecidos e vindos de produções pequenas. Acho que o melhor elogio que eu posso fazer ao filme é dizer que não tenho recordação de quando foi a última vez que eu ri tanto no cinema. Foi provavelmente com O ESQUADRÃO SUICIDA, mas o riso vinha de outra maneira, provocado por um pouco de sadismo com a violência gráfica.

Neste filme em que Bullock contracena com Channing Tatum, outro ator muito bom no registro cômico, os risos são mais inocentes, mais relaxados. Aliás, toda a experiência de CIDADE PERDIDA se dá pelo se relaxar e se divertir com situações tão bobas quanto inteligentes em sua construção, como é o caso de cada cena envolvendo o personagem de Brad Pitt – da primeira à última aparição do personagem de Pitt, ele brilha.

Quanto a Sandra, ela está muito à vontade no papel e mostra que talvez ainda seja a rainha das comédias em Hollywood. Na trama, como uma escritora de romances baratos (mas lucrativos) de aventura, ela e o modelo da capa de seus livros (Tatum) vão parar em uma ilha desconhecida e perigosa (inclusive com um vulcão em erupção), depois que ela é raptada por um bilionário excêntrico (Daniel Radcliff). O filme tem espaço para algum romantismo, mas sempre associado ao riso e à comédia (vide a cena da rede) e para a ação.

Curiosamente, nos últimos tempos eu tenho tido bem pouca paciência para esse tipo de aventura que se passa em lugares exóticos (talvez pelo excesso de CGI nas paisagens e nos efeitos usados atualmente), mas temos que lembrar que o apelo popular desse tipo de filme já remonta à época do cinema mudo. No ano passado mesmo, acabei vendo o trabalho que Fritz Lang fez nesse gênero, em momentos distintos de sua carreira, como as duas partes de AS ARANHAS e a dupla de filmes O TIGRE DA ÍNDIA e O SEPULCRO INDIANO. E isso aconteceu porque havia um tipo de pulp fiction que era bastante consumida antes mesmo do advento do cinema.

Sobre CIDADE PERDIDA, o filme tem sido bastante comparado a TUDO POR UMA ESMERALDA, de Robert Zemeckis, a aventura oitentista que vi na televisão na aurora da minha cinefilia e de que tenho pouca lembrança – mas creio que ainda deva permanecer um ótimo filme, dado o talento do diretor. E basta pegarmos a sinopse para ver coisas em comum, como o fato de ambas as protagonistas femininas (Bullock aqui e Kathleen Turner no filme de Zemeckis) serem romancistas e irem parar em lugares selvagens em situações perigosas e descobrindo o amor naquele ambiente inóspito.

E eu nem sei afirmar (ainda?) se CIDADE PERDIDA é fruto de um trabalho de mestres do cinema ainda pouco reconhecidos e que ainda se farão perceber como tais – assim como Zemeckis já era considerado um mestre em sua época, mesmo que sob a asas de Spielberg. O fato é que o filme estrelado por Bullock deve muito de sua força à presença da atriz e por isso resolvi dedicar o texto a ela, principalmente. Afinal, o que seria de Hollywood sem o carisma de suas estrelas?

+ DOIS CURTAS

PREMONITION FOLLOWING AN EVIL DEED

O curta de apenas um minuto que David Lynch fez para o projeto que celebrou os 100 anos do cinema (LUMIÈRE E COMPANHIA) possui imagens tão fascinantes que ficamos na torcida para que um dia o cineasta resolva transformá-las em um longa, ou pelo menos em um curta mais longo, mais desenvolvido. A proposta feita aos cineastas que toparam o projeto era usar as mesmas câmeras e trabalhar com as mesmas limitações técnicas daquele fim de século XIX. A sinopse de PREMONITION FOLLOWING AN EVIL DEED (1995) diz: “a short film about the events following a murder”. Assim, vemos a imagem de um corpo morto, três policiais avançando diante da tela, a imagem de uma mulher que parece sentir a presença de algo ou alguém, e há algo muito aterrador, que parece saído de um filme de terror e ficção científica. Mas tudo muito rápido, feito para ser visto e revisto. Já havia visto há cerca de vinte anos, mas é algo que, quando sai da memória de rápido alcance, começa a povoar outros segmentos da nossa mente.

MODELO MORTO, MODELO VIVO

Uma mulher trans, Manuela, se candidata a modelo para ser desenhada por estudantes de uma oficina de desenho. É barrada logo na entrada, claramente pela sua identidade. MODELO MORTO, MODELO VIVO (2020), de Iuri Bermudes e Leona Jhovs, manifesta um amor muito grande por seus personagens, a protagonista e seu interesse amoroso. E há uma fluidez narrativa que faz com que os 25 minutos pareçam 10 ou até menos. O fato de que o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQI+ no mundo, por mais que seja conhecido, é importante que seja relembrado. Assim como é importante que filmes como este sejam vistos por mais pessoas, já que nossa sociedade precisa ter sua compreensão do outro, do sentimento do outro, melhor trabalhada.

domingo, abril 17, 2022

SEM SOL (Sans Soleil)



“Not understanding obviously adds to the pleasure.”

A frase acima, dita pelo alter-ego de Chris Marker em SEM SOL (1983), um homem chamado Sandor Krasna, capta muito do que este filme em particular, mas também do que muitos filmes que nos conquistam por caminhos mais tortuosos, conseguem nos ganhar. Sandor é o sujeito que supostamente viaja pelo mundo e cujas cartas servem de base para a construção deste filme-ensaio sobre a modernidade, o amor e a memória (entre outras coisas que poderíamos incluir). O que nos deixa ao mesmo tempo felizes e frustrados com o filme, assim como outros títulos de Marker, é que ver uma única vez não é o bastante. É mais um exemplo de filme que não reclamaríamos em ter uma versão em livro, mas se fosse apenas um livro perderíamos as imagens valiosas.

Vi SEM SOL pela primeira (e por enquanto única vez) na Mostra Retrospectativa do Cinema do Dragão em janeiro deste ano. A mostra contou também com outros dois títulos do cineasta francês, LA JETÉE (1962) e LEVEL 5 (1995). Pena que havia poucas pessoas na sala para compartilhar essa felicidade de ver um filme como este no cinema. Por outro lado, isso me fez sentir ainda mais privilegiado. Mas a verdade é que eu demorei a escrever sobre o filme por não ter a menor ideia de como começar. Sei que o ideal seria revê-lo para tentar escrever um texto um pouco mais decente, mas acabei de ler um texto gringo sobre alguém que também se sentiu inseguro como eu me senti e resolveu ver o filme outras vezes e isso acabou não ajudando muito – embora eu acredite que tenha ajudado sim.

O outro problema que tenho é, obviamente, o distanciamento temporal. Estamos em abril e vi o filme em janeiro. Um filme cheio de imagens de diferentes lugares, que traz reflexões nem sempre fáceis de compreender, além de informações completamente novas. Assim, talvez seja melhor encarar SEM SOL como um desses filmes nascidos do sonho, dessas obras que parecem não se esforçar em buscar uma lógica muito racional. A lógica seria mais de cunho intuitivo.

SEM SOL nos leva a diferentes partes do mundo. Há a imagem bonita de três crianças caminhando em uma estrada na Islândia em 1965 como um registro da felicidade. Depois disso somos enviados a países como Japão, Guiné-Bissau, Cabo Verde e até aos Estados Unidos, particularmente, a São Francisco, quando Marker faz um link de suas reflexões com teoria da linguagem cinematográfica usando UM CORPO QUE CAI, de Alfred Hitchcock. O modo como ele estabelece essas ligações é incrível. Talvez uma maneira de rever o filme no futuro seja ficar prestando atenção em como essas conexões são feitas.

O fato de haver múltiplos assuntos em um único filme – e assuntos que parecem não ter tanta ligação um com o outro – parece passar a ideia de que se trata de um filme sem foco. Mas eu não ousaria dizer isso, já que o fascínio que SEM SOL me provocou foi tão grande que meu respeito pelo filme está acima de qualquer pensamento sobre falhas na estrutura narrativa. Percebe-se que há uma tendência do diretor em se fixar mais no Japão, como se esse país lhe despertasse mais interesse, mais fascinação. Assim, temos claramente um olhar estrangeiro sobre uma sociedade japonesa “exótica”. E isso nos leva à influência da cultura americana no Japão do pós-guerra. E sobre guerras e atritos entre diferentes povos, o filme, por sua vez, nos leva à relação do povo de Guiné-Bissau com os portugueses, seus colonizadores.

Lá no primeiro parágrafo eu disse que SEM SOL é um filme sobre modernidade, amor e memória, mas lendo agora o pequeno texto de Jonathan Rosenbaum presente no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer (sim, de vez em quando gosto de recorrer a esse livro), o crítico do Chicago Reader diz que este é um filme sobre subjetividade, morte, fotografia, costumes sociais e a própria consciência. Então, talvez o que eu tenha escrito acima diga mais de mim do que do filme de Marker. Mais uma vez precisamos nos lembrar que ver e pensar os filmes é uma experiência muito particular e que depende de nossa sensibilidade e de nossa bagagem cultural.

+ DOIS FILMES

LEVEL 5 (Level Five)

Enquanto eu assistia a LEVEL 5 (1995) já ficava desejando revê-lo. Tanto pelo prazer que ele proporciona, quanto por sua complexidade e inventividade na forma e por certas informações que me eram inéditas e que gostaria de parar com calma para rever ou estudar a respeito. Se fosse um livro, LEVEL 5 seria lido com paradas estratégicas. Como é um filme-ensaio, temos que seguir o ritmo adotado por Chris Marker, que é ótimo. Às vezes é rápido, às vezes é cadenciado, em especial quando ouvimos as reflexões na interpretação de Catherine Belkhodja. O assunto principal do filme é um episódio muito triste da Segunda Guerra Mundial, envolvendo as mortes de japoneses na ilha de Okinawa, muitas delas por suicídio. Ótimos os depoimentos de Nagisa Oshima e também de um japonês que foi soldado na guerra e se tornou pastor evangélico.

VISÕES DO IMPÉRIO

Este filme de Joana Pontes traz um assunto interessante, mas que nem sempre me deixou interessado ao longo de sua metragem. Talvez pela utilização de um estilo mais comum, com depoimentos sobre a história problemática das fotografias, a maioria delas de autores anônimos, vindas dos países que foram colonizados por Portugal. Há uma ênfase principalmente em Angola, e na violência que o povo angolano sofreu quando foi assassinado e assaltado por aqueles que se autoproclamaram colonizadores. Essa indignação comparece em VISÕES DO IMPÉRIO (2021) de maneira bem educada, bem limpa, por estudiosos do assunto, o que acabou me deixando um pouco incomodado. De todo modo, é um filme importante para que se possa discutir a crueldade e o absurdo que foi a colonização, em vez de achar que temos que esquecer tudo, levar a dor e o sofrimento para debaixo do tapete.

sexta-feira, abril 15, 2022

APOLLO 10 E MEIO – AVENTURA NA ERA ESPACIAL (Apollo 10 1/2: A Space Age Adventure)



Infelizmente o nosso sonho de ver um quarto filme estrelado pelo nosso casal de personagens favorito do cinema americano, Jesse e Celine, não se materializou. Pela regra dos nove anos de intervalo entre os três filmes, a continuação de ANTES DA MEIA-NOITE (2013) deveria sair neste ano. Julie Delpy já afirmou que não haverá um quarto filme dos personagens. Os três, o diretor Richard Linklater, Delpy e Ethan Hawke conversaram e viram que não havia ideias suficientemente boas que justificassem um quarto filme. E, de fato, se for para estragar a magia, melhor mesmo que não haja.

No entanto, eis que Linklater volta com um filme delicioso e que surge com bem pouco alarde na Netflix. APOLLO E MEIO – AVENTURA NA ERA ESPACIAL (2022) é a terceira animação que o diretor faz usando o recurso da rotoscopia. E talvez o mais visualmente bonito, ainda que, pela minha memória, o meu favorito dos três continue sendo WAKING LIFE (2001), pelo tanto que me deixou entusiasmado com os questionamentos filosóficos feitos um atrás do outro. Era como se o filme necessitasse de uma versão em livro, para que pudéssemos parar, pensar, pesquisar, estudar.

De certa forma, APOLLO E MEIO é um pouco assim, mas em vez de buscar uma reflexão mais cabeça, o aspecto enciclopédico está nas inúmeras referências – musicais, cinematográficas, televisivas, comportamentais, históricas – daqueles anos finais da década de 1960. E dentro de uma visão deliciosamente nostálgica. Há uma subtrama envolvendo o jovem protagonista entrando numa missão secreta da NASA, como que mostrando o quanto aquele momento da corrida espacial fez a cabeça do jovem Linklater, mas o mais importante, e o que mais agrada, é mesmo a viagem no tempo para a infância de Stan (Milo Coy).

Na voz de Jack Black, a versão adulta de Stan, claramente o alter-ego de Linklater, pegamos na mão do personagem e seguimos nessa viagem rumo a 1968/69. E quem me conhece sabe que o ano de 1968 é particularmente especial para mim, já que é o ano do meu filme favorito (2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO, claramente uma referência explícita já no título) e do meu álbum favorito (o “Álbum Branco” dos Beatles). E muitas coisas são vistas rapidamente nessa lista de motivos para celebrar o passado. As sessões duplas ou triplas no cinema têm tanto valor afetivo quanto o sabor do sorvete que ele tomava com os irmãos, ou as disputas pela posse da televisão em uma época de ouro das séries. Sem falar naquilo que movimentava a sociedade da época, a corrida espacial, que culminou na chegada do homem à lua, evento televisionado para todo o mundo em 20 de julho de 1969. O fato de Linklater ter crescido no Texas e mostrado já em outras obras as dores e as delícias de ter vivido nesse estado o aproxima ainda mais da NASA e daquele momento histórico.

E há aquilo que afeta de maneira muito intensa a memória afetiva, que é a música. E o que dizer da música produzida nos anos 1960? Especialmente aquelas da segunda metade dessa década?! Há muitos trechos de canções que aparecem no filme e outras são citadas verbalmente também. Há Credence Clewater Revival, The Byrds, Johnny Cash, Pink Floyd, entre outras. Acho que Linklater só não incluiu mais porque ia custar uma fortuna pagar os direitos autorais por tanta música. De todo modo, já há o bastante para conferir ainda mais empolgação para o filme.

E sabemos a forte relação que Linklater tem com a música, sendo que sua juventude mais adulta foi representada nos filmes JOVENS, LOUCOS E REBELDES (1993) e em sua continuação espiritual, JOVENS, LOUCOS E MAIS REBELDES (2016), filmes que representam um Linklater menos intelectual e mais em sintonia com o jovem americano médio. Esses filmes talvez possam ser vistos, inclusive, como continuações de APOLLO 10 E MEIO, se pensarmos sua história do ponto de vista cronológico.

Como temos uma história de um menino de nove anos, há toda uma carga de inocência, que só fica um pouco de lado quando o espectador adulto percebe as diversas aberturas, ainda que discretas, de crítica social, que, afinal, era algo presente e de muito mais interesse das irmãs mais velhas do protagonista. Em fins dos anos 1960, os Estados Unidos estavam vivendo um momento de lutas pelos direitos civis. Dá até um pouco de inveja de quem pôde vivenciar e testemunhar tudo isso.

+ DOIS FILMES

AMBULÂNCIA - UM DIA DE CRIME (Ambulance)

Um dos acertos (poucos, diria) na carreira de Michael Bay, AMBULÂNCIA – UM DIA DE CRIME (2022) tem um espírito de filme B com orçamento de filme A. Me vi pensando nisso na cena em que um homem se mete no para-brisa do carro. Além disso, o senso de humor afiado está presente principalmente na cena da cirurgia de emergência. Jake Gyllenhaal parece estar se divertindo bastante com seus overactings, Yahya Abdul-Mateen II é um astro em ascensão que só tem contra si o nome difícil de memorizar, e a jovem Eliza González brilha em cena e segura a onda nos momentos de tensão dentro da ambulância. E falando em brilho, podemos destacar a fotografia solar, mas também podemos seguir reclamando da montagem excessivamente picotada, que já é a cara do Michael Bay e aqui não é muito diferente. Na cena do assalto eu fiquei completamente zonzo. Além do mais, quem toma um café e vai ver o filme na sala IMAX com o som no talo fica ainda mais zonzo. Tiro, porrada e bomba que me fez esquecer os problemas e até sorrir. Então, tá valendo demais.

MEDIDA PROVISÓRIA

Eu achei o ponto de partida de MEDIDA PROVISÓRIA (2020) muito interessante, como mais um desses contos distópicos, mas senti falta de um desenvolvimento que funcionasse dramaturgicamente e que tivesse um aprofundamento maior dos personagens. As frases feitas e meio batidas me incomodaram também e há momentos em que o diretor Lázaro Ramos parece não saber onde colocar a câmera (isso é sentido principalmente no começo do filme, depois ele parece desistir de fazer algo diferente visualmente). Como objeto político e de contestação, acho que tem o seu valor. Vejo também valor como entretenimento popular, principalmente se o público é de gente de esquerda - acredito que seja o grosso da audiência presente. O Cineteatro São Luiz, pelo menos, estava bem cheio, e houve palmas e gritos em determinados momentos. Então, vejo isso como positivo, por mais que eu não tenha me sentido em sintonia com a alegria e com o contentamento do público.

domingo, abril 10, 2022

ONIBABA - A MULHER DEMÔNIO (Onibaba)



Em tempos de “revolta das máquinas” aqui em casa, vou procurando diminuir o intervalo de postagem para o blog (que já é de uma semana!) escrevendo escrevendo sobre o fascinante ONIBABA - A MULHER DEMÔNIO (1964), de Kaneto Shindô, que integra a seleção de clássicos do horror japonês presentes no box Obras-Primas do Terror Vol. 5. Meu conhecimento de cinema de horror japonês (de cinema japonês em geral, eu diria) é cheio de lacunas, é muito limitado, mas nunca é tarde para ir conhecendo as obras mais reverenciadas. 

O que mais me deixou surpreso ao ver este filme foi o quanto, na maior parte de sua metragem (cerca de 100 min), ONIBABA parece se distanciar do rótulo “horror”, pelo menos de um horror mais sobrenatural. Já adianto (spoiler!) que isso muda em seu desfecho, o que alguns críticos veem como uma falha. Eu, ao contrário, achei esse aspecto muito interessante. Até porque eu já havia aceitado que era horror suficiente ter duas mulheres matando samurais e roubando seus pertences como forma de sobrevivência em um Japão sofrendo com uma guerra civil no século XIV. Depois do primeiro assassinato, ocorre uma quase naturalização desses eventos, já que eles fazem parte de uma situação de desespero e necessidade. Há outra cena em que as duas mulheres matam um cachorro para se alimentar.

Essa rotina, por assim dizer, é interrompida quando um homem retorna da guerra e as visita. Este homem é amigo do filho da mulher mais velha, que por sua vez é marido da mais nova. Ele conta que seu companheiro havia morrido e ele conseguiu escapar. Com a chegada do homem e o interesse dele pela mulher mais nova (as duas mulheres não têm nome no filme), uma nova dinâmica é estabelecida. Principalmente quando se passa a enfatizar o desejo carnal dos dois jovens e o misto de ciúme e raiva da mulher mais velha, que tenta a todo custo impedir o encontro dos dois, que acontece com frequência na calada da noite, quando a jovem corre pelos juncos ao som da trilha sonora percussiva de Hikaru Hayashi. E as cenas de sexo são bastante ousadas se pensarmos que estamos em 1964, e de fato a sexualidade intensa do filme foi um elemento que chamou muita atenção na época de seu lançamento. Mas, como o próprio Shindô diz, o sexo no filme não é dado a perversões, ele é apenas realisticamente selvagem. Afinal, os dois personagens são jovens com a libido em alta.

O filme tem uma virada impressionante a partir do momento em que a mulher mais velha recebe a visita de um samurai usando uma máscara de demônio. A princípio, ela teme esse homem, pela máscara horripilante que ele usa, mas o homem pede que ela o ajude a encontrar uma saída daquele lugar. O sujeito também diz que nunca tira a máscara, pois ele tem um rosto muito bonito, que a mulher se apaixonaria por ele se o visse. Ao livrar-se do homem e enxergar seu rosto, ela passa a usar a máscara para aterrorizar a nora em suas escapadas noturnas. E esses momentos preparam a narrativa para um final aterrorizante.

A sintética crítica do filme presente no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer atribui o rosto deformado por detrás da máscara como sendo o hibakusha, ou seja, o rosto de uma vítima da bomba atômica. Isso faz muito sentido se pensarmos que, se as feridas das duas bombas ainda são sentidas até hoje pelo povo japonês, imagine em 1964. Além do mais, essa conexão faria ainda mais sentido com o tom mais realista que Shindô utiliza na maior parte da narrativa. E ele faz isso trazendo no final um sentimento de horror e perturbação singular na cena das mulheres lutando para arrancarem a máscara de demônio. Sem dúvida, um dos maiores clássicos do gênero já realizados.

+ DOIS FILMES

O ESQUELETO DA SRA. MORALES (El Esqueleto de la Señora Morales)

Fechei o primeiro box Horror Mexicano, spin-off de Obras-Primas do Terror, da Versátil (o segundo está à minha espera), e fiquei bastante satisfeito com todos os seis filmes presentes. Cada um deles é muito singular. O ESQUELETO DA SRA. MORALES (1960), de Rogelio A. González, não é um filme de horror convencional. Ele nos coloca no ambiente tóxico de uma casa onde vivem um homem que trabalha com taxidermia e uma mulher, a Sra. Morales, do título, que faz o possível para encher a paciência do sujeito, além de contar mentiras para o padre da cidade e suas amigas beatas a respeito dele. Há um quê de Edgar Allan Poe no protagonista e em sua teoria sobre a execução do crime perfeito. Há, inclusive, uma citação de "O Coração Denunciador", do mestre dos contos de horror. Junte-se a isso o senso de humor todo particular, temos um filme que, no mínimo, merece muito nossa atenção. Dos seis filmes do box, O ESQUELETO DA SRA. MORALES é o mais mundano e realista.

O CREMADOR (Spalovač Mrtvol)

Não foi um filme fácil pra mim, talvez por vê-lo sofrendo incômodas dores no corpo e o que o diretor Juraj Herz oferece não é diversão. Mas é fascinante ver uma obra tão ímpar, tão singular como esta. A própria montagem de O CREMADOR (1969) é um caso à parte. Há saltos de uma cena para a outra ao mesmo tempo drásticos e suaves, quase como se não percebêssemos. Uma vez que percebemos, ficamos mais atentos para essas quebras de cenário. Além do mais, o protagonista é fascinante em sua fala e também em sua narração monótona, do início ao fim. E o que é aquele uso do pente nos mortos? Ele penteia os mortos no caixão e em seguida usa o pente em si mesmo ou em seus filhos adolescentes. Na trama, ele é um homem que trabalha em um crematório e que se delicia com a cremação. A história de acreditar que as almas das pessoas desencarnadas logo procurarão um novo corpo, a partir do que ensina o livro tibetano dos mortos, parece até uma desculpa para sua maldade. Que, claro, tem tudo a ver com o nazismo, os campos de concentração e os banheiros dos campos. Filme visto no box Obras-Primas do Terror Vol. 11.

domingo, abril 03, 2022

SERVANT – TERCEIRA TEMPORADA (Servant – Season Three)



Acabei de reler o texto que escrevi um ano atrás sobre a segunda temporada de SERVANT e percebi que na temporada passada Leanne, a personagem mais interessante da série, vivida por Nell Tiger Free, já iniciava um processo de mudança bem radical em sua maneira de ser e de ver a vida, e também de ter consciência de seu poder de manipulação e de sua autoestima, que também tem a ver com sua negação da opressão relacionada à seita que ela participava. Por outro lado, agora que ela matou a tia no final da temporada passada (e escondeu o corpo dentro da casa, sendo que os dois atos podem ser vistos como atos simbólicos), ela sabe que, a qualquer momento, pode ser alvo dos membros da seita.

E assim começa a terceira temporada (2022), com seus episódios dedicados principalmente a mostrar essa situação de clausura e medo de Leanne, que trouxe de volta o bebê Jericho, para alegria do casal Dorothy (Lauren Ambrose) e Sean (Toby Kebell). Sean, inclusive, passa a se ligar mais na fé, entra em uma igreja evangélica, acreditando que o milagre da volta de Jericho precisa sim ser celebrado, ele acredita que precisa ser grato a Deus. Aliás, que cena fantástica a que mostra o diálogo de Sean com Leanne, quando ela diz que não foi Deus quem trouxe de volta Jericho.

Por mais que a série ganhe muito pelo seu mistério, um dos maiores méritos de SERVANT está em seu capricho visual. M. Night Shyamalan deu o tom, dirigindo alguns episódios (nesta terceira, ele dirige apenas o primeiro), e convida cineastas jovens e talentosos para seguir o estilo, embora percebamos também certa liberdade criativa no uso da câmera, dos ângulos, das opções visuais. Percebe-se, por exemplo, o quanto a filha do cineasta, Ishana Shyamalan, mostra serviço nesse sentido nos episódios assinados por ela.

Entre os demais jovens diretores convidados, vale destacar a presença de Carlo Mirabella-Davis, do horror psicológico DEVORAR (2019); de Kitty Green, a diretora de A ASSISTENTE (2019), outra obra que lida com a tensão de maneira forte; e a dupla Severin Fiala e Veronika Franz, de BOA NOITE, MAMÃE (2014). Outros nomes novos e cujos trabalhos não conheço ainda, e creio que merecem nossa atenção, são Dylan Holmes Williams (THE DEVIL’S HARMONY, 2019) e a dupla Logan George e Celine Held (TOPSIDE, 2020). Prestemos atenção nesses nomes.

Esta terceira temporada é totalmente dominada por Leanne, mas com Dorothy sendo, mais uma vez, sua inimiga, em um embate muito tenso dentro de um espaço relativamente pequeno. Alguns episódios são muito especiais. Adoro "Tiger", quando Leanne aceita sair de dentro de casa para uma festa na rua e acaba enfrentando uma situação de perigo. É um dos poucos episódios situados fora da casa. Em "Donut", vemos uma tentativa de uma colega de Dorothy de usar Leanne para derrubar a ex-colega com ajuda da bruxinha, tendo resultados arrepiantes. E os dois últimos episódios, com a tentativa de Dorothy de se afastar ou de afastar Leanne, fecham muito bem (e com um baita choque) uma temporada que começou mais tranquila que as anteriores.

Para uma temporada que parecia demorar muito na situação de medo de Leanne de sair de casa, o modo como a trama avança a partir da segunda metade faz com que ela seja talvez a melhor até o momento. O olhar de Dorothy na cena final da temporada já prenuncia o que vem de perturbador por aí. E talvez deixemos de simpatizar tanto assim com Leanne, a bruxa (ou seja lá o que ela é) que aprendemos a amar, apesar de tudo.

+ DOIS FILMES

O RITUAL - PRESENÇA MALIGNA (The Banishing)

Apostar apenas na atmosfera sem ter tanta preocupação com um roteiro é uma tarefa que apenas grandes diretores ou cineastas muito talentosos podem se dar ao luxo. Infelizmente não é o caso de O RITUAL - PRESENÇA MALIGNA (2020), de Christopher Smith, que tem um problema em lidar com a história em si, que chega a se tornar desinteressante até para quem conta, mas que possui sim alguns momentos visuais muito interessantes. A cena da personagem de Jessica Brown Findlay correndo "em duplicatas" pela casa assombrada, por exemplo, é muito boa, embora pareça copiada de TWIN PEAKS ou de algum filme do Mario Bava. Há também uma preocupação do diretor em não parecer vulgar e por isso não há muitos jump scares - acho isso válido. Também há uma correlação com o mal causado pelo nazismo, já que a história se passa pouco antes da entrada da Inglaterra na Segunda Guerra.

MORBIUS

Não sei se o pessoal que cria esses filmes com personagens da Marvel exclusivamente para a Sony (ainda que em conjunto e com o aval da própria Marvel) quer fazer o público desistir dessas tranqueiras ou quer fazer uma espécie de teste de paciência ou de fidelidade com o espectador. A fidelidade de fato existe - eu sou um dos vários que assiste, mesmo que sem vontade e bastante cansado, todos esses filmes com heróis e vilões da Casa das Ideias para o cinema - e talvez por isso eles ainda estejam se mantendo firmes com esses projetos toscos. Em MORBIUS (2022), dirigido por Daniel Espinosa, temos um filme que até poderia resultar em algo decente, uma história de um cientista "maluco" que se transforma em um vampiro pelo caminho dos experimentos científicos, mas que infelizmente vai ficando cada vez mais desinteressante até chegar ao ápice na cena da luta de Morbius com seu antagonista no metrô. É o momento em que gritamos "tirem-me daqui!" ou olhamos para o relógio, com impaciência. E o que é aquele primor de diálogo da cena pós-créditos, hein? Só deixa explícito que não existe uma pessoa interessada em fazer algo minimamente razoável. E o pior é que aponta para continuações, junções com outros heróis e vilões etc.