domingo, abril 17, 2022

SEM SOL (Sans Soleil)



“Not understanding obviously adds to the pleasure.”

A frase acima, dita pelo alter-ego de Chris Marker em SEM SOL (1983), um homem chamado Sandor Krasna, capta muito do que este filme em particular, mas também do que muitos filmes que nos conquistam por caminhos mais tortuosos, conseguem nos ganhar. Sandor é o sujeito que supostamente viaja pelo mundo e cujas cartas servem de base para a construção deste filme-ensaio sobre a modernidade, o amor e a memória (entre outras coisas que poderíamos incluir). O que nos deixa ao mesmo tempo felizes e frustrados com o filme, assim como outros títulos de Marker, é que ver uma única vez não é o bastante. É mais um exemplo de filme que não reclamaríamos em ter uma versão em livro, mas se fosse apenas um livro perderíamos as imagens valiosas.

Vi SEM SOL pela primeira (e por enquanto única vez) na Mostra Retrospectativa do Cinema do Dragão em janeiro deste ano. A mostra contou também com outros dois títulos do cineasta francês, LA JETÉE (1962) e LEVEL 5 (1995). Pena que havia poucas pessoas na sala para compartilhar essa felicidade de ver um filme como este no cinema. Por outro lado, isso me fez sentir ainda mais privilegiado. Mas a verdade é que eu demorei a escrever sobre o filme por não ter a menor ideia de como começar. Sei que o ideal seria revê-lo para tentar escrever um texto um pouco mais decente, mas acabei de ler um texto gringo sobre alguém que também se sentiu inseguro como eu me senti e resolveu ver o filme outras vezes e isso acabou não ajudando muito – embora eu acredite que tenha ajudado sim.

O outro problema que tenho é, obviamente, o distanciamento temporal. Estamos em abril e vi o filme em janeiro. Um filme cheio de imagens de diferentes lugares, que traz reflexões nem sempre fáceis de compreender, além de informações completamente novas. Assim, talvez seja melhor encarar SEM SOL como um desses filmes nascidos do sonho, dessas obras que parecem não se esforçar em buscar uma lógica muito racional. A lógica seria mais de cunho intuitivo.

SEM SOL nos leva a diferentes partes do mundo. Há a imagem bonita de três crianças caminhando em uma estrada na Islândia em 1965 como um registro da felicidade. Depois disso somos enviados a países como Japão, Guiné-Bissau, Cabo Verde e até aos Estados Unidos, particularmente, a São Francisco, quando Marker faz um link de suas reflexões com teoria da linguagem cinematográfica usando UM CORPO QUE CAI, de Alfred Hitchcock. O modo como ele estabelece essas ligações é incrível. Talvez uma maneira de rever o filme no futuro seja ficar prestando atenção em como essas conexões são feitas.

O fato de haver múltiplos assuntos em um único filme – e assuntos que parecem não ter tanta ligação um com o outro – parece passar a ideia de que se trata de um filme sem foco. Mas eu não ousaria dizer isso, já que o fascínio que SEM SOL me provocou foi tão grande que meu respeito pelo filme está acima de qualquer pensamento sobre falhas na estrutura narrativa. Percebe-se que há uma tendência do diretor em se fixar mais no Japão, como se esse país lhe despertasse mais interesse, mais fascinação. Assim, temos claramente um olhar estrangeiro sobre uma sociedade japonesa “exótica”. E isso nos leva à influência da cultura americana no Japão do pós-guerra. E sobre guerras e atritos entre diferentes povos, o filme, por sua vez, nos leva à relação do povo de Guiné-Bissau com os portugueses, seus colonizadores.

Lá no primeiro parágrafo eu disse que SEM SOL é um filme sobre modernidade, amor e memória, mas lendo agora o pequeno texto de Jonathan Rosenbaum presente no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer (sim, de vez em quando gosto de recorrer a esse livro), o crítico do Chicago Reader diz que este é um filme sobre subjetividade, morte, fotografia, costumes sociais e a própria consciência. Então, talvez o que eu tenha escrito acima diga mais de mim do que do filme de Marker. Mais uma vez precisamos nos lembrar que ver e pensar os filmes é uma experiência muito particular e que depende de nossa sensibilidade e de nossa bagagem cultural.

+ DOIS FILMES

LEVEL 5 (Level Five)

Enquanto eu assistia a LEVEL 5 (1995) já ficava desejando revê-lo. Tanto pelo prazer que ele proporciona, quanto por sua complexidade e inventividade na forma e por certas informações que me eram inéditas e que gostaria de parar com calma para rever ou estudar a respeito. Se fosse um livro, LEVEL 5 seria lido com paradas estratégicas. Como é um filme-ensaio, temos que seguir o ritmo adotado por Chris Marker, que é ótimo. Às vezes é rápido, às vezes é cadenciado, em especial quando ouvimos as reflexões na interpretação de Catherine Belkhodja. O assunto principal do filme é um episódio muito triste da Segunda Guerra Mundial, envolvendo as mortes de japoneses na ilha de Okinawa, muitas delas por suicídio. Ótimos os depoimentos de Nagisa Oshima e também de um japonês que foi soldado na guerra e se tornou pastor evangélico.

VISÕES DO IMPÉRIO

Este filme de Joana Pontes traz um assunto interessante, mas que nem sempre me deixou interessado ao longo de sua metragem. Talvez pela utilização de um estilo mais comum, com depoimentos sobre a história problemática das fotografias, a maioria delas de autores anônimos, vindas dos países que foram colonizados por Portugal. Há uma ênfase principalmente em Angola, e na violência que o povo angolano sofreu quando foi assassinado e assaltado por aqueles que se autoproclamaram colonizadores. Essa indignação comparece em VISÕES DO IMPÉRIO (2021) de maneira bem educada, bem limpa, por estudiosos do assunto, o que acabou me deixando um pouco incomodado. De todo modo, é um filme importante para que se possa discutir a crueldade e o absurdo que foi a colonização, em vez de achar que temos que esquecer tudo, levar a dor e o sofrimento para debaixo do tapete.

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