sábado, maio 08, 2021

UM CORPO QUE CAI (Vertigo)



É curioso como, no início das minhas atividades no blog, eu não tinha medo ou problema nenhum em escrever sobre filmes tão herméticos como alguns do Godard ou outros do Tarkovski ou do Bresson e escrevia numa boa sobre todos os filmes de Alfred Hitchcock, como se desconhesse a imensa complexidade das obras do mestre do suspense. Hoje em dia, diante da revisão recente de um filme como UM CORPO QUE CAI (1958), que já até escrevi a respeito em uma peregrinação que fiz pela obra do mestre, fiquei paralisado na hora de tentar escrever outro texto, pois sei agora que a responsabilidade de escrever sobre um filme dessa estatura é grande.

Além do mais, recentemente pude ver o quanto essa obra-prima do Hitchcock foi essencial para a existência de outras obras-primas, como INSTINTO SELVAGEM, de Paul Verhoeven, DUBLÊ DE CORPO, de Brian De Palma, ou o mais recente PHOENIX, de Christian Petzold. Aliás, boa parte da obra do De Palma, que pretendo começar a adentrar com mais profundidade neste ano, se a ansiedade e a saúde permitirem, está intimamente ligada ao universo e às obsessões hitchcockianas. Então, estou lendo diferentes livros para escrever um novo texto sobre UM CORPO QUE CAI, um dos dois únicos Hitchcocks que tive a graça de ver no cinema (o outro foi REBECCA, A MULHER INESQUECÍVEL, 1940). E duas vezes: uma em película nos anos 1990, e outra em nova cópia digital remasterizada nos anos 2010.

Talvez neste ano tenha sido a sétima vez que vi este filme. As duas no cinema, uma na tevê dublado, uma vez em VHS, outra em DVD, outras duas baixado. Essa versão em 1080p que tem por aí está linda demais. Dá gosto só de olhar para as cores. E Hitchcock caprichou bastante nas cores e no simbolismo delas neste filme em especial. O curioso é que só nesta nova vez que eu percebi a homenagem que Lynch fez no último episódio da segunda temporada de TWIN PEAKS (1990-91), com aquele entrar em portas várias vezes. Talvez tenha achado menos erótico do que da última vez, mas continua sendo bem sensual. O próprio detalhe do novo sutiã projetado acaba sendo uma forma de chamar a atenção para o sexo, direta ou indiretamente. E nem preciso lembrar da cena do resgate na baía.

UM CORPO QUE CAI é uma perturbadora e obsessiva história de amor em que um detetive de polícia (James Stewart), que pediu demissão depois de seu sentimento de culpa por não conseguir salvar um colega em uma operação nos telhados, por causa da vertigem, é contratado como detetive particular por ex-colega de escola (Tom Helmore) para vigiar sua esposa, Madeleine, que anda, supostamente, obcecada por uma antepassada e sósia sua, do século XIX, e com tendências suicidas.

Depois de hesitar, Scottie (Stewart) aceita a missão e passa a perseguir a bela loira (Kim Novak). A primeira vez que o sentimento de paixão brota do personagem é traduzido de maneira extraordinária por Hitchcock, em trilha sonora e imagem. E, claro, na beleza de Novak em todo seu esplendor. Já a trilha de Bernard Herrmann é de uma beleza impressionante, especialmente nos momentos de perseguição pelas ruas de San Francisco, mas também naquela que talvez seja a cena mais icônica do filme, quando Scottie, ao tentar ressuscitar Madeleine usando o corpo de Judy (também Novak), traz a morta de volta. Hitchcock, inclusive, tinha prazer em dizer que estava contando a história de amor entre um homem vivo e uma mulher morta em algumas entrevistas.

Em texto de Kim Newman para o livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, a crítica e romancista diz:

"Para muitos, a cena em que Judy é finalmente transmutada e abraça Scottie com uma fome vampiresca é tão devastadora emocionalmente quanto a sequência do chuveiro em PSICOSE."

Já Olivier-René Veillon, em O Cinema Americano dos Anos Cinquenta, escreve sobre um filme de Hitchcock que muito possivelmente poderia ser UM CORPO QUE CAI. Na verdade, em seu ensaio ele não cita em nenhum momento o filme de 1958:

"A identidade perdida e reencontrada no jogo do desejo e do amor está no centro de "Spellbound" [QUANDO FALA O CORAÇÃO] (1945), onde já se encontram as representações da fuga e da perseguição amorosa."

Mas a análise mais bonita que li sobre o filme, a escrita por Luiz Carlos Oliveira Jr., para o catálogo Hitchcock É o Cinema, organizado por Rafael Ciccarini, destaca uma cena como a possivelmente mais representativa da complexidade e da beleza de UM CORPO QUE CAI, aquela em que Madeleine/Judy está em uma floricultura e é observada por Scottie. É plasticamente impressionante e linda, obviamente, mas o jogo de espelhos traz um convite a análises. Segundo Oliveira Jr.,

"...o plano insinua a maquinação ilusionista em que Scottie está se deixando envolver. Afinal de contas, o que ele vê nessa cena não é Madeleine, mas Judy interpretando Madeleine interpretando Carlotta. Madeleine não passa de uma ilusão forjada sob medida para a captura de seu olhar."

Mesmo antes, quando Scottie vê Madeleine no museu, ela de costas, olhando para o retrato de Carlotta, ele constrói uma imagem perfeita da mulher. Assim, UM CORPO QUE CAI é também um filme sobre a construção do amor a partir da ilusão, como se não coubesse o real dentro do romantismo. Tanto que o que ele deseja, quando encontra Judy, a verdadeira face e da persona da mulher, é transformá-la na imagem idealizada da mulher que ele amou.

Enfim, são tantas coisas a falar sobre o filme. Há o erotismo fino ajudado bastante pelo sex appeal de Kim Novak, mas intensificado pelo instinto de transgressão de Hitchcock. Há a arrepiante queda de Judy após ver a imagem da freira em uma das últimas e mais tensas cenas do filme. Há aquele inteligente flashback de Judy, que entrega ao espectador o mistério até então não explicitado. Estar diante de uma obra de tal magnitude é como relembrar que é possível recobrar a fé no ser humano pelo que ele é capaz de criar, no caso, pela arte.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES

CRIATURAS DAS PROFUNDEZAS (Humanoids from the Deep)

Divertida produção de Roger Corman sobre criaturas anfíbias e humanoides que começam a atacar uma pequena cidade costeira. Como se trata de uma produção de baixo orçamento, os efeitos especiais dos monstros em CRIATURAS DAS PROFUNDEZAS (1980) não são exatamente realistas, mas para o tom do filme funcionam muito bem. Até achei que a nudez seria mais explorada (mas até que há boas cenas, ainda que curtas). Pelas cenas deletadas presentes no DVD, nota-se que algumas dessas mais de exploração da nudez ficaram na mesa de edição. Como era início dos anos 1980 e nudez era algo muito atraente, esse tipo de filme chamava a atenção das plateias. Muito bom quando a trama sai do registro do terror e vai para a ficção científica em certo momento. Dirigido por Barbara Peeters e Jimmy T. Murakami (não creditado), o filme está presente no box Cinema Exploitation, da Versátil.

DANÇA MACABRA (Danza Macabra)

Belo filme que abraça a tendência do horror dos anos 1960 de contar histórias sobrenaturais ainda com muita influência da tradição gótica e com um estilo que talvez hoje esteja ultrapassado. Há algo muito interessante que destaco em DANÇA MACABRA (1964), que é o diálogo entre o jornalista vivido por George Rivière e o homem que apresenta para ele a história daquele castelo assombrado (Arturo Dominici). Há uma explicação sobre a chamada "força dos sentidos" que muito me interessou, inclusive do ponto de vista espiritual. Na trama, Rivière é um jornalista que aceita a aposta de passar a noite em uma casa assombrada e sair de lá vivo. O interessante é que o filme começa com a participação de Edgar Allan Poe, contando, em um pub londrino, uma de suas histórias fantásticas. Barbara Steele tem uma participação menor do que eu esperava, mas é sempre marcante. O filme começou sendo dirigido por Sergio Corbucci, que saiu com uma semana das filmagens e foi substituído por Antonio Margheriti. DANÇA MACABRA está presente no box Obras-Primas do Terror - Gótico Italiano, da Versátil.

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