segunda-feira, julho 22, 2024

O SEQUESTRO DO PAPA (Rapito)



De carreira longeva (dirige filmes desde a década de 1960) e considerado por muitos o maior cineasta italiano em atividade, Marco Bellocchio é um diretor cuja obra lamento não conhecer o suficiente, embora não deixe de conferir cada novo trabalho seu lançado nos cinemas desde pelo menos BOM DIA, NOITE (2003), ainda que tenha perdido alguns de lá pra cá. Na aurora de minha cinefilia, o nome de Bellocchio já era bastante citado e lembro que a revista SET destacava filmes como OLHOS NA BOCA (1982) e DIABO NO CORPO (1986) em suas páginas, filmes que até hoje não vi. Os anos 1990 aparentemente não foram tão bons para o cineasta.

O SEQUESTRO DO PAPA (2023) não é apenas mais uma obra do cineasta para nos deixar felizes, mas um dos melhores lançamentos deste ano. O filme trata de uma história real tão chocante quanto dolorosa e que estava no interesse de Steven Spielberg: a do menino Edgardo Mortara, filho de pais judeus, que é tirado à força de sua família pela igreja católica dos tempos do Papa Pio IX, por ter sido batizado pela babá que cuidava dele quando bebê. A mulher, preocupada se o menino morresse e não fosse para o céu, providenciou o que achava o correto, escondido da família da criança. Na época do sequestro, Edgardo tinha apenas seis anos e nem a polícia e nenhuma outra autoridade podia fazer nada a respeito. Naquela época, o poder da igreja era imenso, sendo maior que as leis do estado e a Itália não era ainda o reino unificado que se transformaria em 1871.

Há uma cena em O SEQUESTRO DO PAPA que já está entre as minhas favoritas do ano: aquela em que a mãe da criança vai visitá-la. Que cena de arrepiar! Uma explosão de emoção num momento em que há muita tensão e tristeza envolvida. Bellocchio foi feliz em trazer uma história real tão incrível quanto esta, uma história que se inicia em 1858, em Bolonha, e imagino o quanto deve assombrar vários católicos até hoje. Para o espectador, é muito fácil ver o papa pintado no filme, vivido por Paolo Pierobon, como o grande vilão. E por isso se torna difícil até aceitar que esse homem tenha sido beatificado em 2000 pelo Papa João Paulo II.

A história do sequestro dessa criança, que aos poucos passaria a ficar mais aproximada à crença católica a ponto de se tornar também um sacerdote, trata de um embate em que não há vencedores. Nem mesmo a Igreja Católica, que, mesmo tendo ganhado a queda de braço para os pais, que enfrentaram a situação se utilizando da justiça e da imprensa, que espalhou a história por todo o mundo.

O filme também faz crítica a estruturas de religiões que enfatizam a palavra dita como palavra que não se volta atrás, sendo que isso vale até para a família judia, ainda que no caso deles haja muito mais nobreza. O último ato é também muito bom, com o menino agora adulto, e há algumas imagens perturbadoras e imensamente tristes, como a do papa sendo empurrado e sua posterior reação, a do caixão sendo levado pela rua ou a da visita de Edgardo à mãe, perto do final. As últimas imagens de Edgardo representam a irreparabilidade dos danos, inclusive psicológicos, desse ato terrível, que para os dias de hoje pode simbolizar um momento em que há uma simpatia por parte da extrema direita de a igreja se intrometer em assuntos de estado.

+ TRÊS FILMES

A ÚLTIMA NOITE DE AMORE (L'Ultima Notte di Amore)

Terceiro longa-metragem dirigido por Andrea Di Stefano e o primeiro puramente italiano, em se tratando de produção (os outros dois são produções de vários países e falados majoritariamente em inglês), este A ÚLTIMA NOITE DE AMORE (2023) não apenas resgata mais uma vez nossa fé no cinema italiano contemporâneo, como também poderia ser um sucesso no circuito mainstream se contasse com um bom marketing. Isso porque se trata de um thriller policial que nos deixa tensos um tempo inteiro, além de ter um ator de primeira grandeza como Pierfrancesco Favino (O TRAIDOR, NOSTALGIA) trazendo ainda mais vigor para a trama. Favino é um policial que está prestes a se aposentar e que recebe uma proposta de trabalhar para os chineses (possivelmente mafiosos) ganhando um bom dinheiro, apenas tendo que fazer o transporte de uma mulher trazendo joias do aeroporto. Claro que sabemos que vai dar merda, mas a própria expectativa disso faz parte da graça, assim como as surpresas e o desenvolvimento da trama (o roteiro é original e também a cargo de Di Stefano). Destaque também no elenco para Linda Caridi, no papel da esposa do protagonista. A atriz pôde ser vista em trabalhos como ENTRE TEMPOS e LAÇOS e é responsável por alguns dos momentos mais bonitos do filme.

SEGREDOS (Confidenza)

A história de SEGREDOS (2024), de Daniele Luchetti se passa principalmente na mente de Pietro (Elio Germano) e por isso é uma história que deve ser vista com desconfiança. Depois do pacto que faz com sua ex-aluna Teresa (Federica Rossellini) de contarem ambos um segredo que jamais contariam para qualquer outro, esse homem começa a viver numa espiral de medo de que sua vida desabe totalmente a partir da revelação do tal segredo. Que o filme não chega a entregar, até para não interferir no julgamento do protagonista por parte do espectador. Por outro lado, nossa visão de Teresa também é a de uma figura que o ameaça apenas com a própria presença ou mesmo lembrança. Pietro casa com outra mulher, Nadia (Vittoria Puccini), de comportamento mais depressivo, mas riquíssima em detalhes nas cenas em que aparece, seja com gestos, seja com palavras. O filme apresenta Pietro como aquela pessoa comum, um professor, que é louvado pelo seu trabalho da chamada "pedagogia do afeto" e temos a impressão de que ele se sente desconfortável, talvez sofrendo de uma síndrome do impostor, sem, no entanto, deixar de aceitar elogios e homenagens de alunos e profissionais da educação. SEGREDOS é um filme envolvente que talvez peque por sua conclusão pouco satisfatória e meio atropelada, embora eu goste muito do instante da reação da filha do protagonista, que traz uma dramaticidade que combina com o tom de agonia e inquietação do personagem. Ao final, ouvimos uma canção de Thom York, que contribui com a trilha sonora. Grande escolha, aliás. Afinal, York talvez seja o compositor contemporâneo que parece melhor saber criar um tipo de música que define a angústia e o desespero do ser humano.

AINDA TEMOS O AMANHÃ (C'è Ancora Domani)

Que linda estreia na direção da atriz Paola Cortellesi! E eu não gosto de dizer que tal filme é necessário, mas diria que AINDA TEMOS O AMANHÃ (2023) é. E é também um filme que raramente teria a mesma força se dirigido por um homem. Afinal, só uma mulher sente na pele, mesmo uma mulher dos dias de hoje, a agressão que o mundo do patriarcado traz. AINDA TEMOS O AMANHÃ é herdeiro do neorrealismo de cineastas como Vittorio De Sica, até por localizar seu tempo no pós-guerra e na Itália destruída, empobrecida e humilhada. E para que personagem mais humilhada do que Delia, vivida pela própria diretora? É uma personagem que começa o filme recebendo tapa do marido. E outras agressões virão. Como se trata de uma obra que já passou pelo pós-modernismo, a narrativa também se constrói em alguns momentos com o uso de recursos musicais, até como uma forma de diminuir um pouco o peso da violência doméstica. E o que é aquele final, hein? O filme constrói um suspense que nos faz grudados na poltrona, torcendo por ela, e ainda muda nossas expectativas com uma surpresa linda e cheia de militância. Um dos melhores filmes italianos dos últimos anos.

sábado, julho 20, 2024

MAXXXINE



O grande barato de Ti West é que ele é um diretor que começou fazendo filmes de terror B, por mais estilosos e sofisticados que alguns sejam, e, agora, mesmo com muito mais dinheiro investido em seu mais novo filme, MAXXXINE (2024), ele segue fazendo essas obras. Seu primeiro filme é o pouco visto (inclusive por mim) ATAQUE DOS MORCEGOS (2005), cujo nome já deixa mais ou menos claro do que se trata. Começou a chamar mais a atenção dentro dos fãs de horror com A CASA DO DIABO (2009), que acho muito legal, talvez seu melhor trabalho até hoje, com um visual que remete ao cinema do gênero da década de 1970.

Essa busca por emular uma época, ele tratou de explicitar em sua trilogia estrelada por Mia Goth, formada por X – A MARCA DA MORTE (2022), a prequel PEARL (2022) e MAXXXINE. O primeiro filme tem um visual mais rústico, de modo a remeter a produções baratas dos anos 1970, a década em que se passa a história, enquanto que PEARL traz um visual à Velha Hollywood. Na trama do primeiro filme, um grupo de jovens procura um lugar na zona rural do Texas para filmar um pornô e ganhar um dinheiro com isso. 

Assim como ocorre em tantos slashers, esse bando de jovens pecadores acabam morrendo um a um, sendo Maxine (Goth), a final girl, ou seja, aquela que sobrevive, mas também mata, indo embora no final e deixando aquele cenário de morte e destruição. Se a jovem sai de lá traumatizada, também sai de lá capaz de cometer atrocidades, como fica claro neste terceiro filme, que se passa em 1985, com a personagem já estabelecida e famosa dentro da carreira de porn star, mas sem ter perdido a esperança de se tornar estrela de Hollywood em filmes, por assim dizer, genuínos.

Sua grande chance aparece quando uma diretora, mesmo sabendo que ela vem da indústria de filmes adultos, resolve enfrentar o mercado e colocá-la como estrela de “A Puritana 2”, continuação (fictícia) de um filme de muito sucesso entre os fãs do gênero. A tal diretora, inclusive, vivida por Elizabeth Debicki (TENET), acredita que seu trabalho não é um terrorzinho B qualquer, mas uma obra de respeito. Maxine passa no teste e começa a pensar já em seu futuro como grande estrela de cinema de Hollywood, espelhando-se não em Marilyn Chambers, atriz pornô que fez um filme de David Cronenberg, o ótimo ENRAIVECIDA – NA FÚRIA DO SEXO, mas em gente como Brooke Shields, que também começou a carreira muito jovem fazendo terror, o maravilhoso slasher COMUNHÃO. Gosto muito, aliás, dessa primeira parte do filme, de todas essas citações a filmes, atrizes e diretores.

No final, MAXXXINE não me empolgou tanto quanto X – A MARCA DA MORTE, mas sei que a ideia de uma trilogia foi uma sacada de mestre por parte de West, que soube aproveitar muito bem o sucesso de um primeiro filme feito com baixo orçamento e o talento de uma atriz como Mia Goth. Aliás, eu diria que Goth está ainda melhor em PISCINA INFINITA, de Brandon Cronenberg. Quem ainda não viu, dê uma chance. Ela está realmente incrível.

O novo filme já passa claramente a impressão de que tem mais dinheiro envolvido (e realmente tem), por mais que procure manter o estilo de filme B de terror da década de 1980, até mesmo emulando certo amadorismo nas cenas de terror, suspense e gore, além de uma fotografia que remonta a fitas de VHS. O suspense não chega a ser bem desenvolvido e em vez disso há uma predileção por cenas tão violentas e gráficas que servem menos para chocar e mais para divertir, como é o caso da cena do assaltante (de certa forma chocante, mas parece uma cena deslocada dentro da narrativa) ou a cena do carro sendo esmagado, talvez duas das minhas favoritas.

Como se trata de um filme sobre uma jovem mulher que busca o estrelato em Hollywood, mesmo já tendo ficado famosa dentro do meio pornô, há muitos momentos que enfatizam essa obsessão da heroína. Nesse sentido, MAXXXINE encontra um forte paralelo com PEARL, que é o que mais lida com um desenvolvimento de personagem. O elenco de apoio também é luxuoso, destaque para Kevin Bacon, mas também para Giancarlo Esposito, Michelle Monaghan, Bobby Canavale e Lilly Collins.

Por mais que o filme de West tenha me decepcionado um pouco, vejo o filme como uma obra representativa da boa e criativa safra atual. Sem falar que se a intenção é mesmo emular obras com pouca capacidade de envolver emocionalmente, mas com um bocado de imagens memoráveis e com sabor exploitation, é sim uma obra que merece a devida atenção e que conseguiu muito do que pretendia. Além do mais, quem gosta de caçar referências, MAXXXINE é um prato cheio, inclusive na percepção do uso de trilha sonora oitentista e homenagem a um subgênero hoje muito mais respeitado, o giallo

+ TRÊS FILMES

UM LUGAR SILENCIOSO – DIA UM (A Quiet Place – Day One)

Imagino que este terceiro filme da franquia Um Lugar Silencioso, por mais que tenha tido a intenção de ser um prequel, já deixou claro que é preciso ideias muito boas para levar à frente uma história que se sustenta basicamente no jogo de não fazer nenhum barulho para não ser comido pelos monstros alienígenas. O novo diretor e roteirista, Michael Sarnoski, sabia disso e por isso tentou fazer um filme intimista, cujo maior mérito é quebrar as expectativas de quem viu os outros dois. O que temos em UM LUGAR SILENCIOSO – DIA UM (2024) é basicamente uma história de amizade de curta duração entre uma mulher com câncer e um homem inglês. Junto deles, um simpático gatinho, melhor coisa do filme. Também considero mérito a opção por mostrar o menos possível da destruição, até porque se percebe que o CGI dos efeitos não é dos melhores. O problema é que o filme também não me ganhou naquilo que mais poderia satisfazer, ou seja, na construção da relação dos dois ao longo da Nova York destruída em pânico. De todo modo, UM LUGAR SILENCIOSO – PARTE III está nos planos dos executivos, e provavelmente com a volta de John Krasinski na direção. A questão é: será que, depois deste prequel desanimador, as pessoas vão se sentir animadas para mais um?

VIOLÊNCIA E TERROR (Intruder)

Assistir a um slasher e ver o ano de produção e lançamento ajuda muito a lançar luz sobre o filme, ajuda a compreender o momento e até as opções estéticas do diretor dentro daquele contexto. Com o cansaço do subgênero ao longo da década de 1980, é de se imaginar que em 1989 já não havia mais tanta inventividade e esses filmes passariam a ser consumidos pelos fãs puramente como diversão, graças principalmente à familiaridade de seus clichês. Neste VIOLÊNCIA E TERROR (1989), de Scott Spiegel, o assassino é possivelmente um rapaz que acabou de sair da prisão e faz uma confusão ao se aproximar da caixa do supermercado, com quem teve um relacionamento no passado (infelizmente o trailer acaba entregando a identidade do assassino, assim como o próprio cartaz original). Esse tal estabelecimento estava fechando e a ideia do dono era fazer uma grande liquidação. Todos os funcionários são convidados a passar a noite trabalhando e mudando os preços para o dia seguinte, um pouco tristes porque estarão desempregados no dia seguinte. Até que começam as mortes. O interessante é que a primeira morte não é vista e a seguinte é muito sutil, o que me fez pensar que VIOLÊNCIA E TERROR seria um slasher sem muito grafismo. Mas eu estava errado e essas cenas mais gráficas vão surgindo de forma cada vez mais intensa - acho incrível a cena do sujeito que tem a cabeça partida ao meio numa serra de cortar osso de açougue. Se o filme é uma produção Bzona, a equipe de efeitos especiais é um luxo. Me incomodou um pouco a falta de habilidade do diretor nas cenas de ação corpo a corpo, no impacto físico mesmo, mas é algo que pode ser relevado em prol da diversão. Visto no box Slashers III.

ESCOLA NOTURNA (Night School)

Um slasher relativamente diferente, até lembrando mais um giallo. As cenas de assassinato são menos gráficas do que o costume, ainda que capriche um bocado no horror nas cenas de ataque do assassino, que sempre usa um capacete fechado e espelhado e uma jaqueta de couro. Enquanto isso, acompanhamos também as buscas do policial (Leonard Mann), cada vez mais indignado com o aumento do número de mulheres decapitadas. Trata-se de um filme bem cuidado nas interpretações (embora isso não seja uma obrigação para o subgênero) e há um capricho visual que contrasta com as imagens mais sujas. Apesar de ser até cultuado, imagino que, para a carreira do inglês Ken Hughes ESCOLA NOTURNA (1981) pode representar uma decadência, já que em sua carreira pregressa ele chegou a trabalhar com astros do primeiro escalão. No elenco deste, destaque para Rachel Ward. Filme visto no box Slashers VII.

quinta-feira, julho 18, 2024

VIAGEM A SAMPA 2024



Minha história com São Paulo é de muito amor. É minha cidade favorita. Só não digo que prefiro ela a Fortaleza porque nunca morei em São Paulo e sei o quanto pode ser dura de se trabalhar. É bem diferente ir a passeio. E só não digo que gosto mais do que de Nova York pois minha passagem pela cidade enaltecida por Frank Sinatra foi relâmpago. De todo modo, citando essas duas cidades, já se percebe minha predileção por espaços urbanos cheios de cultura por todos os lados. Mas a verdade é que também aprendi a amar praias, lugares para acalmar o espírito, ainda mais recentemente, com o retorno de Giselle a minha vida.

E por isso esta nova viagem a São Paulo foi tão especial, já que foi na companhia dela, que dizia que não gostava de frio e que até suspeitava de que não fosse gostar muito. Felizmente, ela adorou todos os dias que passamos lá. E eu também, claro. Foi a mais diferente de minhas idas à terra da garoa pois desta vez tive mais chance de conhecer mais espaços, já que das outras os meus focos eram basicamente o cinema e os encontros com os amigos (cinéfilos).

Desta vez, acabei não encontrando vários amigos queridos que encontrei em outras ocasiões. Senti falta de ver o Marcelo, a Ana, a Laura, o Leandro, o Gabriel, o Tiago, a Alê, o Alysson, a Márcia, a Bia, o Primati, o Gustavo, o Edu. Também queria muito encontrar o Renato, mas a distância da cidade dele complicou um pouco. Com alguns, ainda consegui organizar encontros. E houve encontros-surpresa também. Mas isso porque era importante que eu e a Giselle aproveitássemos mais nosso tempo juntos.

Quinta-feira, 11 de julho

Saímos para o aeroporto pela manhã para um voo que sairia próximo do meio-dia. Acho que foi o voo mais conveniente que encontramos, de modo que curtíssemos um pouco o dia e não precisássemos madrugar. Havia combinado com o Michel e a Cris um jantar naquele dia. Vê-los é de uma alegria tão grande pra mim que acho que eles não têm ideia. Fomos a um restaurante tailandês (ou meio tailandês) chamado Mestiço, próximo ao hotel onde nos hospedamos, o Ibis da Rua da Consolação. Gosto da localização desse hotel, além do preço mais camarada. E estar ali pertinho da Av. Paulista é uma delícia. Pena que o quarto é muito pequeninho. Mas tranquilo: a gente acaba se acostumando.

Por causa do horário inconveniente do voo (hora do almoço, e praticamente sem serviço de bordo, praxe atualmente) chegamos famintos e andamos alguns quarteirões da Rua da Consolação em busca de um lugar para comer, pouco antes do jantar, que já estava próximo. Mas deu tempo de tomarmos banho, trocarmos a roupa e irmos a pé ao restaurante, ali pertinho do hotel. E foi legal que o Chico pôde ir também.

A Cris, pessoa extraordinária que é, ainda sugeriu irmos comer uma sobremesa noutro lugar, o que logo me animou. Adoro esses passeios gastronômicos por São Paulo. O lugar aonde fomos, chamado Le Blé, no bairro de Higienópolis, é tão bonito, que achei mágico entrarmos ali, como se entrar naquele espaço fosse como atravessar uma passagem secreta para outro mundo, até pelo jazz que remetia à primeira metade do século XX. Sem falar na decoração e nas luzes. Lá, eu e a Giselle ainda pudemos comprar online nossas passagens para Aparecida, a viagem que faríamos no dia seguinte.



Sexta-feira, 12 de julho

Acordamos cedinho. E acordar cedinho em São Paulo, especialmente durante o inverno, não é fácil. Ficar na cama até mais tarde é uma tentação. Mas tínhamos passagem comprada e iríamos para a missa do meio-dia. Pra mim foi tudo muito novo e para a Giselle foi uma alegria atravessar todo aquele percurso para chegar a um destino que ela sonhava conhecer, o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, o maior templo religioso do Brasil e o segundo maior do mundo (menor apenas que a Basílica do Vaticano, segundo o Wikipédia).

Nos últimos meses, eu tenho ido de vez em quando à missa com a Giselle e, apesar de minhas raízes evangélicas, tenho gostado da experiência, inclusive por encontrar tanto beleza quanto mistério. Quem leu meu texto sobre nossa ida ao Instituto Hesed, na postagem sobre PADRE PIO, do Ferrara, certamente pode ter um pouco a noção da experiência mágica por que passei naquele dia.

Para chegar ao santuário, pegamos metrôs de diferentes linhas, chegamos ao terminal do Tietê para pegar o ônibus, viajamos duas horas e meia, e pegamos um táxi para nos deixar até lá em frente. Uma verdadeira peregrinação. Eu me emocionava com a emoção da Giselle. Esse momento foi muito especial pra gente e acredito que definidor de nosso destino juntos, fortalecedor de nosso amor.

Ao chegarmos ao santuário fiquei impressionado com o aspecto gigantesco daquele espaço. O tempo das missas é mais curto, praticamente sem uma homilia (que é o que eu mais gosto), mas foi o suficiente para nos deixar felizes de estarmos naquele lugar cheio de pessoas de fé. O espaço comercial de lá é também imenso, com direito a uma praça de alimentação muito ampla e vários estabelecimentos que vendem produtos relacionados principalmente à imagem de Nossa Senhora Aparecida. Depois do almoço, retornamos ao santuário para ver a imagem original em madeira, que fica num lugar especial e luminoso da igreja, sempre com filas de pessoas passando para ver e fazer suas orações.

Para a noite, o destino ainda nos reservou um encontro inesperado com amigos de Fortaleza em São Paulo. Murilo passa uma mensagem perguntando “você está aqui?”. Logo, deu a entender que ele estava em São Paulo também, com sua noiva. E que bom que conseguimos agendar esse encontro. E ele ainda conseguiu reunir a Camila e o JB para um jantar num restaurante italiano nas imediações da Paulista, a Osteria Generale. Foi um encontro muito feliz em que falamos de alegrias e de enfrentar bravamente deficiências. Adorei rever a Camila, uma sagitariana cheia de alegria como a Giselle. Adorei conhecer a Izabel, a noiva do Murilo. Saímos de lá praticamente enxotados pelos garçons, ansiosos para que fôssemos embora para fecharem o estabelecimento.

Sábado, 13 de julho

O sábado foi dedicado só a nós dois. Para passearmos por diversos espaços de São Paulo, propus que fôssemos inicialmente à Galeria do Rock. Queria comprar umas camisetas novas de bandas de rock e era uma chance de conhecermos mais a área do Centro da cidade. O engraçado é que entrei numa galeria e achei tudo muito estranho. Muitos estabelecimentos afro e inclusive uma mulher chegou a perguntar à gente: o que vocês querem aqui? Algo do tipo. Senti que estava no lugar errado. A Giselle perguntou se ali era a galeria do rock. Era a do Reggae, um homem falou. A do rock era a próxima. Adoro passar por essas situações que servem para contar histórias depois. A galeria do rock é mais animada e bem menos abandonada, com direito até a lugares para alimentação e bebida. Como o rock é um estilo bem segmentado é possível ir atrás de lugares com que você se identifica mais. Só comprei uma camiseta do Rage Against the Machine e a hipoglicemia atacou. Precisava almoçar urgentemente. O almoço foi um peixinho com legumes delicioso num lugar chamado Ponto Chic – O Famoso Bauru, espaço tradicional de São Paulo.

A próxima parada estava no ar ainda: MASP? Parque do Ibirapuera? Liberdade? Optamos pelo MASP, mas no meio do caminho, ao atravessar a Estação Liberdade, descemos lá, como num impulso. E foi mágico conhecer esse bairro japonês. A Giselle comprou um monte de coisas numa loja sul-coreana, mas eu fiquei de olho mesmo foi na comida de rua, como num festival gastronômico. Até queria estar com mais fome para comer mais. Conhecemos um café muito bacana lá, onde tiramos fotos e curtimos a paisagem (o café fica nos altos). Depois ainda voltamos para as banquinhas, onde comi dois bolinhos de feijão (não sei o nome exato) e a Giselle comeu outra comida salgada (também não lembro o nome; essas coisas, principalmente de comidas diferentes, preciso anotar).

Estávamos cansados, mas ainda conseguimos energia para voltar ao hotel, tomar banho, trocar de roupa e ir a uma sessão das nove, no Espaço Augusta, de COMO COMPRAR A LUA. Filme simpático, projeção muito boa, e nem tive sono (rolou um cafezinho rápido antes). Depois disso, ainda fizemos um breve passeio pela Rua Augusta, que estava animadíssima. Passamos por uma galeria ao ar livre cheia de pequenos restaurantes, mas optamos pelo tradicional Pedaço da Pizza, que eu já conhecia e aprovava. O frio da noite não deixou a gente ficar muito tempo passeando pelas redondezas. Hora de voltar pra casa.



Domingo, 14 de julho

Os dias anteriores estavam nublados, mas naquela manhã de domingo o sol chegou bonito. Havíamos combinado um encontro com o Eduardo Aguilar, amigo cuja simpatia tenho desde as cartas que ambos enviávamos para as colunas de Carlos Reichenbach, e depois nos aproximamos na lista Canibal Holocausto, e, com o tempo, sempre que viajo para São Paulo arranjo um jeitinho de encontrar com ele. Achei muito legal que a Giselle gostou muito dele. Mas antes de encontrá-lo, ao virar a esquina para a Av. Paulista, já vimos a alegria da avenida fechada e à disposição de pedestres e ciclistas, com shows, danças, vendedores ambulantes, tudo muito legal e alto astral.

Nossa primeira ida foi ao MASP, que contava como principal atração os quadros de Francis Bacon. São pinturas bem diferentes, impressionantes, algumas quase assustadoras. Chegamos a ver também exposições noutro andar, que para nossa surpresa são tão ou mais belas e de encher os olhos quanto a principal. Por causa da fome, largamos mão da outra exposição e fomos ao shopping onde havíamos combinado de tomar o café com o Aguilar e almoçamos no Giraffa’s. Comida boa e rápida. E já a partir de lá começamos nosso papo com meu amigo católico, como eu o apresentei à Giselle. O café no Ofner com docinho estava bom demais. E o papo mais ainda. Rolou conversa sobre cinema, mas também teve sobre família, religião e encontros.

O próximo passeio programado para o domingo foi para a sessão de TWISTERS, que havíamos combinado com a Cris, o Michel e o Chico. A Paula e seu filho Francisco também estavam lá. O filme é divertido e eu adoro a Daisy Edgar-Jones desde NORMAL PEOPLE. A sala lá do shopping Cidade de São Paulo é muito boa. O jantar foi no Outback e eu solicitei a permissão de Moisés para pedir a tradicional costelinha de porco de lá (o Ribs on the Barbie), que dividi com a Giselle, que já ficou com vontade de repetir o prato noutra ocasião, aqui em Fortaleza. Voltamos para casa de Uber com o Chico. Como eu gosto dessa turma.

Segunda-feira, 15 de julho

O dia amanheceu bem ensolarado e o plano inicial daquela segunda-feira era conhecer o Parque do Ibirapuera. Eu havia dado uma passada muito rápida ali na primeira vez que fui a São Paulo, mas foi só para bater ponto. Dessa vez pude curtir de verdade e o sol e o sorriso sempre encantador da Giselle fizeram a diferença. Eu não sei andar de bicicleta e achava que não daria conta nem daquele triciclo. Mas a Giselle achou que seria uma ótima ideia para passearmos pelo parque, conhecer o lago e outras partes do lugar. E de fato foi uma delícia, sim. Comemos um pastel debaixo de uma árvore e depois alugamos a bicicleta para passear. Foi de uma alegria imensa aquele nosso momento. E acabamos nos perdendo lá dentro e pagamos valor adicional. Mas claro: valeu cada centavo.

Havíamos combinado de nos encontrar com o Aguilar novamente. Ele se dispôs a nos acompanhar ao mercado municipal, outro lugar que a Giselle queria conhecer e que eu não conhecia. Almoçamos por lá um sanduíche tradicional paulistano e depois fomos ver as frutas e conhecer o espaço. A Giselle ainda comprou algumas frutas para levar para o Gustavo, seu filho, mas acabei não comprando nada pra eu levar. Não sabia o quão conveniente seria carregar aquelas frutas no avião. Mas ela estava certa em trazer. Tão sabida ela. Depois do mercado, fomos conhecer o mosteiro de São Bento, e achei o lugar incrível. Lá imperam o silêncio, o respeito e estava acontecendo uma cerimônia que nunca vi antes. Ficamos pouco tempo, mas gostei da impressão que aquele lugar me causou. De lá nos despedimos do Aguilar e fomos de volta ao hotel.

Chegamos tão cansados que acabei dormindo um bocadinho, de modo que acordamos um pouco tarde para aproveitar alguma coisa no shopping. Deu para comprar o boneco-combo dos minions para meu sobrinho no Shopping Pátio. E depois jantar lá perto. O passeio no parque havia nos deixado um pouco fatigados.

Terça-feira, 16 de julho

A Cris havia feito a gentileza de nos ajudar a aproveitar o último dia. Nosso voo seria apenas às sete da noite e teríamos que fazer o check-out no hotel até o meio-dia. Então, saímos de manhã e ainda almoçamos com ela e o Michel num lugar muito legal chamado Quiche & Cia. Logo em seguida, Cris nos levou à Cinemateca Brasileira. Deu para ver a mostra dedicada a Vladimir Herzog. Importante e feita com amor à democracia. Em seguida, para aproveitar o restinho do dia, fomos ao centro novamente, mais uma vez à Galeria do Rock – queria comprar um boné para o meu sobrinho. Acabei trazendo de volta mais duas camisetas de bandas (The Smiths, Radiohead).

Ou seja, até mesmo este dia com pouco tempo disponível acabou sendo muito proveitoso e gostoso. Andamos muito de metrô e Uber principalmente, mas também bastante a pé, de táxi e até de ônibus. Podemos dizer que soubemos aproveitar São Paulo, mesmo sabendo que faltou muita coisa ainda para conhecer e curtir. Michel nos entregou as malas, partimos para Congonhas e voltamos para nossas casas, felizes por termos feito uma viagem tão incrível, tão próxima da perfeição. A companhia da Giselle é um presente para mim e tenho certeza de que ela ama estar a meu lado também. Então, acho que consegui juntar o amor que eu tenho por uma cidade ao amor por uma mulher em uma só tacada. Sucesso!, como diria meu amigo Michel.



sábado, julho 06, 2024

ENTREVISTA COM O DEMÔNIO (Late Night with the Devil)



Algo que é ao mesmo tempo um problema e uma alegria para os fãs do cinema de horror (na verdade vale para qualquer gênero) é o vazamento de filmes na internet. Um problema para quem gostaria de ver certos filmes no cinema e às vezes nem sabe se alguma distribuidora chegou a comprar o objeto do nosso interesse para exibição futura. Eu, como não tenho tanto tempo disponível, vejo o ato de esperar pelo filme como algo interessante. Mas sei também que, em se tratando de terror, poderei ficar frustrado com o lançamento do filme em apenas cópias dubladas, o que tem sido comum de acontecer com filmes do gênero, infelizmente. Além do mais, há a questão das salas ruins, as salas com projeção tremida, muito escura ou com cores lavadas e sem nitidez. E eu já sei quais são várias dessas salas. Se não me engano, acabei optando por ver PEARL em casa, de Ti West, por um desses motivos: sala ruim ou cópias dubladas.

Recentemente mesmo (neste ano), pedi meu dinheiro de volta em duas ocasiões para filmes de terror: MERGULHO NOTURNO e IMACULADA – este, já havia caído na internet e deu pra vê-lo em casa. Então, ir ao cinema ultimamente tem sido uma caixinha de surpresas, nem sempre com final feliz. No entanto, sinto que fiz o certo em esperar alguns meses para ver no cinema ENTREVISTA COM O DEMÔNIO (2023), numa sessão apropriada, ou seja, perto das onze da noite (incrível como as redes de cinema agora estão empurrando as poucas sessões legendadas, principalmente dos filmes de terror, para bem mais tarde). Deixo claro que digo “apropriada” pelo “late night” do título original e não porque acho decente só colocarem sessões legendadas desses filmes muito tarde da noite, o que acaba espantando desanimando muita gente de vê-los.

Muita gente já viu o filme em casa quando vazou, e na época que vazou era possível ver muita gente postando no Letterboxd sobre ele, mas duvido muito que a experiência tenha sido tão boa quanto vê-lo na tela grande, com imersão e excelente som. Até porque este é um dos filmes da safra recente mais interessantes e diferentes, trazendo de volta o found footage de maneira muito criativa e contando com um time de atores tão bons que quase nos esquecemos de que se trata de um filme e não de um programa de TV dos anos 1970 que topa tudo para aumentar a audiência, inclusive entrevistar uma garota que supostamente está possuída por um demônio. Aliás, sobre a qualidade da atuação do elenco, o ator que faz o protagonista, David Dastmalchian, merece um prêmio. Está simplesmente incrível no papel do apresentador do programa.

Os irmãos Cameron e Colin Cairnes, talentos vindos da Austrália, assim como os irmãos Philippou, do impressionante FALE COMIGO, são criativos o bastante para colocar mais atrativos no programa de variedades. Por isso eu digo que é filme para se ver sabendo o mínimo possível, para valorizar as surpresas e as opções estéticas dos realizadores em sua condução da história até a conclusão, nem sempre muito querida dos espectadores. (Eu mesmo tenho minhas reservas quanto ao último ato, mas não desgosto totalmente.)

ENTREVISTA COM O DEMÔNIO relembra o pânico do satanismo que acometeu os Estados Unidos na década de 1970 e sabe trazer isso de forma muito particular. Nessa época, Hollywood soube aproveitar bastante essa onda de medo, que vem de uma reação conservadora a um avanço de costumes mais ligados à contracultura, como uma maior liberdade sexual, o uso de drogas e um abraçar maior ao rock’n’roll, um gênero musical que tem por tradição essa relação com o sexo e com as drogas – e às vezes até com o satanismo, dependendo da banda ou artista. Inclusive, essa reação da sociedade conservadora está voltando com força, embora de maneira mais delirante, na era da pós-verdade.

Por isso até podemos dizer que o filme dos irmãos Cairnes retrata um pouco o espírito de nossa época, por mais que nos leve para um programa de televisão dos anos 1970. E nos leva de maneira muito envolvente. Enfim, fico feliz com essa nova onda de bons e muitas vezes ótimos filmes de terror trazidos por novos realizadores. Há vários muito interessantes chegando por aí.

Visto na muito boa sala 6 do UCI Iguatemi Fortaleza.

+ TRÊS FILMES

CHRISTINE, O CARRO ASSASSINO (Christine)

Não lembro se vi CHRISTINE, O CARRO ASSASSINO (1983) pela primeira vez na televisão ou em VHS. Mas o fato é que na primeira vez que vi fiquei encantado. Talvez mais do que agora, na revisão, embora continue sendo um dos grandes trabalhos do John Carpenter, que torna crível (talvez não tanto quanto Stephen King, mas nunca li o romance) a ideia de um carro maligno que tem vida própria e não apenas mata, mas também modifica a personalidade de um rapaz tipicamente nerd e que costuma sofrer agressões dos bullies na escola, mas que se converte num bully também já a partir do primeiro contato com Christine, o carro velho e abandonado que ele compra e restaura. O filme trata de um tipo de masculinidade muito associada à violência e da relação quase sexual que o homem contemporâneo tem por carros – isso é ainda mais explícito nos Estados Unidos. O filme pertence a uma das fases mais brilhantes da filmografia de Carpenter – ele vinha de pelo menos três joias consecutivas: A BRUMA ASSASSINA (1980), FUGA DE NOVA YORK (1981) e O ENIGMA DO OUTRO MUNDO (1982). Depois tem gente que não entende a idolatria que muitos têm por seu cinema. Visto no box em Blu-Ray Carpenter Essencial.

O CHICOTE E O CORPO / DRÁCULA, O VAMPIRO DO SEXO (La Frusta e il Corpo)

O livro da Versátil sobre pérolas do cinema de horror da coleção me lembrou de que já fazia muito tempo da última vez que havia visto O CHICOTE E O CORPO (1963) – foi em 2007 a primeira vez que vi (com áudio em italiano, que parece ser bem melhor que esse áudio em inglês que experienciei agora, e que acabou atrapalhando um pouco a imersão, não sei dizer o porquê). É talvez o mais estranho dos filmes de Mario Bava, uma história de amor doentia situada num castelo à beira-mar, que tem uma cadência um tanto irregular, mas com aquelas imagens de impacto, como a cena do Christopher Lee dentro do caixão sendo levado por aqueles homens de capuzes vermelhos, ou as vezes em que ele chicoteia a hesitante mas apaixonada mulher vivida por uma Daliah Lavi com seus olhos tão expressivos quanto a Barbara Steele de A MALDIÇÃO DO DEMÔNIO (1960). Seu horror, seguido de dor, prazer, êxtase e finalmente entrega diante de seu amante/torturador é de deixar a gente desconcertado. E há uma música que parece balançar ao ritmo das ondas do mar e faz ressoar aquele romance contado junto com algo parecido com um whodunit sobrenatural com aquela fotografia em cores fantástica, com destaque para o verde e o vermelho, a morte e a paixão.

A CURA (Cure)

Kiysohi Kurosawa é um dos mais interessantes cineastas da atualidade. Já o era lá nos anos 1990, mas eu nem sabia de sua existência. Só a partir dos anos 2000 que seu nome passou a ser mais celebrado, principalmente por seus filmes de terror ou thrillers, embora ele costume enveredar por outros gêneros também. A CURA (1997) é uma de suas maiores obras. É tão enigmático quanto KAIRO (2001), mas com outro tom, de investigação policial e com menos imagens escuras. O mal se manifesta às claras, ou na tonalidade cinzenta da fotografia. Os policiais investigam assassinatos muito estranhos e muito semelhantes, em que os assassinos não lembram suas motivações. Aos poucos, o filme vai encaixando as peças e apresentando novos players para o jogo, como um sujeito que se diz desmemoriado. Sua primeira aparição, na praia, já traz um senso de medo que se manifestará em diversos momentos ao longo da narrativa, que em muitos momentos parece um sonho ou pesadelo. O andamento é lento, mas a montagem é bem ágil, se prestarmos atenção nos movimentos de câmera, nos ângulos e nos cortes. O que vemos é um dos filmes de horror mais estranhos e originais das últimas décadas.

quinta-feira, julho 04, 2024

HERE



Alguns filmes são tão sutis que clamam por uma revisão imediata. No caso de HERE (2023), primeiro filme do cineasta belga Bas Devos que chega aos cinemas brasileiros, essa necessidade me surgiu quase que imediatamente. É como se fosse um objeto etéreo, muito pouco palpável, e talvez por isso mesmo muito atraente. O fato de ter uma duração curta (apenas 84 minutos) e terminar de maneira aparentemente brusca, ainda que perfeita, contribui para que queiramos adentrar seu mundo mais uma vez.

Talvez seja o caso de conhecer mais a poética de Devos para entendê-lo melhor, mas acredito que ter este filme como porta de entrada para seu cinema já é uma alegria. Ainda mais vendo numa sala tão especial quanto o Cinema do Dragão. O outro filme do diretor lançado no Brasil, TRÓPICO FANTASMA (2019), foi direto para o streaming, e acho uma pena que ver filmes em casa ultimamente esteja sendo uma tarefa um pouco mais complicada para mim, do ponto de vista da concentração.

O título do filme, HERE (“aqui”), pode se referir tanto ao lugar onde o protagonista masculino Stefan (Stefan Gota) pretende ficar, sua cidade natal Bruxelas (há uma repetição em sua fala de que  muito provavelmente ficará mais que o tempo de férias), quanto a uma forma de presentear alguém – “aqui, pra você”. Essa segunda opção me parece mais poética, e tem um pouco a ver com as sopas caseiras que ele costuma presentear para os amigos. Um presente artesanal parece ter maior valor que um  comprado numa loja.

HERE não é um filme com ênfase na narração, embora haja, sim, uma história. Mas ela é muito menos importante que as sensações que o verde e os sons da natureza provocam. O verde aqui chama mais atenção que nos filmes de Apichatpong Weerasethakul e ele é mágico, misterioso. É no verde que acontecem as cenas mais belas entre os dois protagonistas. São cenas tão sutis que até parece que nada aconteceu. Há uma cena, por exemplo, do tipo “piscou, perdeu”, em que algo brilha nas mãos do protagonista, como que enfatizando o caráter fantástico do filme, sem, no entanto, abrir mão do pé no chão. Afinal, a mágica presente em HERE é uma mágica presente na natureza, no mundo material.

Há um uso do extraplano magnífico, e uma outra cena, seguinte, com o som da chuva e uma iluminação singular que nem sei explicar direito o que me fez sentir. Acontece na cena em que o casal, Stefan e Shuxiu (Lyio Gong), depois de passarem um tempo na floresta, esperam a chuva passar abrigados debaixo de uma árvore. Aliás, a chuva desempenha um papel muito importante no filme. Vale lembrar da cena em que Stefan vai parar no restaurante chinês e é atendido justamente por Shuxiu.

Filmado originalmente em 16 mm, há uma textura muito particular em HERE que faz uma transição linda entre o ambiente mais urbano do início para o espaço rural e verdejante do desenvolvimento e conclusão. E o fato de o rapaz se relacionar com uma cientista e professora pesquisadora de musgos pode dizer muito sobre esse seu encontro com a calma, a paz, o amor, sendo ele alguém que sofre com insônia. Pena que vi o filme ainda em estado de saúde não muito apropriado. Ainda assim ele me encantou e me encanta cada vez mais, à medida que volto a pensar nele.

+ TRÊS FILMES

CAPTURAR O FANTASMA

A trajetória de Davi Mello é fascinante e deveria ser mais conhecida e reconhecida, por mais que saibamos que o curta-metragem ainda seja uma espécie de formato mais marginal em sua dificuldade de aproximação com um público maior. Depois do viajante PROMESSA DE UM AMOR SELVAGEM (2022), que conta com uma produção mais cara e caprichada, temos um filme menor, com apenas três atores em cena num espaço fechado, naquilo que parece ser uma cozinha. CAPTURAR O FANTASMA (2024) é talvez o seu filme mais lynchiano (inclusive pelo uso do som), por trazer uma espécie de medo de algo que não sabemos muito bem o que é, o que eu costumo chamar de medo irracional, embora esse termo não seja assim tão feliz. Na verdade, pela primeira fala, é possível acreditar que o filme seria sobre ver fantasmas  é o que a personagem de Yasmin Gomes diz, sobre apenas as mulheres de sua família terem esse dom. E então a cena corta para Gilda Nomacce, essa atriz incrível que já participou de outro excelente trabalho do realizador, AS VIAJANTES (2019), e que acrescenta mais mistério em seu segmento. Já o segmento de Raimundo Moura é o que mais se aproxima do espectador, em sua falta de compreensão do medo que sente. Certamente é um filme que ganha mais em revisões, de modo a se perceber mais atentamente as falas, certas palavras-chave, os gestos e o não-dito.

VERISSIMO

O segundo longa de Angelo Defanti, depois da adaptação do romance O Clube dos Anjos, de Luís Fernando Verissimo, em 2020, é um olhar para o próprio Verissimo, esse autor celebrado da literatura brasileira, mais especificamente nos dias que antecedem seu aniversário de 80 anos. Como alguém de poucas palavras, pelo menos em conversas e entrevistas, o escritor seria um personagem complicadíssimo para encabeçar um documentário em que ele é o protagonista. No entanto, é esse aspecto de sua personalidade que faz com que esse filme se torne único. Como se fôssemos convidados a desvendar o mistério que é a mente desse senhor. Às vezes a impressão que dá, vendo VERISSIMO (2024), é que as pessoas se aproximam dele apenas por ele ser quem é; sendo um anônimo, talvez não fosse atraente o suficiente. O filme tem alguns momentos de humor sutil, bem característico da personalidade do escritor. A opção pelo registro de observação das imagens escolhidas na mesa de montagem foi acertada, no sentido de que se torna um filme em que os espectadores vão acessar de maneira ainda mais pessoal.

AS LINHAS DA MINHA MÃO

Há uma cena em AS LINHAS DA MINHA MÃO (2023) em que Viviane de Cássia Ferreira conta de uma experiência que teve na França. Nesse instante, o olhar cansado de alguém que sofre em se equilibrar entre a sanidade e a perda de controle mental parece mudar. Ela fica bonita, até remoça, como diria Chico Buarque. É como se ela tivesse se transportado para aquele evento de seu passado. E o mais incrível é que lá perto do final ela fala de algo envolvendo realidades alternativas, quando cita um presente que recebeu de Tom Jobim. A opção de João Dumans (um dos diretores de ARÁBIA, 2017) por cortes aparentemente independentes e às vezes bem diferentes entre si para formar capítulos divididos por telas pretas dão ao filme certa pluralidade para o espectador entender e se solidarizar com Viviane. Há outro "capítulo" muito bonito, que é quando ela conversa com um amigo, enquanto fuma e bebe uma cerveja. Dumans parece perceber que a personagem em si já é meio caminho andado para o sucesso de seu filme. Ainda que "sucesso" seja um termo bem relativo, principalmente em se tratando de filmes "pequenos" como este.

domingo, junho 30, 2024

O TERCEIRO HOMEM (The Third Man)



Enfim, férias! E com novidades boas para os próximos meses. Mas isso não quer dizer que estarei livre de um monte de afazeres e de alguns compromissos que preciso cumprir neste mês de julho que está chegando. Para minha alegria, alguns compromissos são de natureza cinéfila e crítica, como um texto que preciso preparar e minha intenção de dar um gás na peregrinação pelo cinema de Samuel Fuller. Tenho também pilhas de livros e quadrinhos esperando por mim enquanto escrevo este texto. São duas pilhas na mesa do computador, e mais duas no armário de três gavetas (acho que chamam de criado mudo). Sem falar nas pilhas de livrinhos temáticos da Versátil, que estou lendo aos poucos, à medida que vou vendo ou revendo os filmes.

Esses livros, aliás, têm sido fundamentais para a curiosidade e posterior descoberta de obras valiosíssimas. A revisão de O TERCEIRO HOMEM (1949), por exemplo, veio, se não me engano, de quando chegou o livro Filme Noir – Obras Essenciais dos Spin-Offs. De uma hora para a outra veio uma vontade imensa de rever o filme. No livro da Versátil, o texto sobre o clássico é de autoria de Marden Machado, que destaca o fato de se tratar de uma obra que faz parte de uma de trilogia de títulos do autor inspirados em romances de Graham Greene.

Havia visto pela primeira vez o clássico de Reed há mais ou menos uns 30 anos. Lembro de ter gostado bastante na época, mas foi uma maravilha poder rever agora, com uma cópia muito melhor, que valoriza a excelente fotografia em preto e branco de Robert Krasker, que tão bem soube filmar a noite de uma Viena ainda em ruínas e rateada em quatro nações dos países aliados (Estados Unidos, França, União Soviética e Reino Unido).

Nesse sentido, o filme é quase um documentário daquele momento da Áustria pós Segunda Guerra Mundial. Foi uma festa quando a cidade parou para receber as filmagens e estrelas como Cotten, Welles e Valli. A narrativa já começa em tons mistos, tanto trazendo angústia quanto certa leveza, como uma balança que fica pendendo de um lado para o outro, muito também por causa da música em tom alegre e muito singular, do austríaco Anton Karas.

A angústia está na dificuldade de comunicação do escritor americano vivido por Joseph Cotten, que ao chegar na cidade para ver o amigo Harry Limes (Orson Welles), descobre que o caixão com o corpo do amigo acabou de partir para o cemitério – Harry havia, supostamente, morrido atropelado. Ao investigar o estranho acidente que teria matado seu amigo, ele acaba se envolvendo numa rede de intrigas e vai descobrindo coisas que aparentemente não deveria. Inclusive, depois, sobre o tal amigo. E durante boa parte do filme eu fiquei ansioso para que o amigo aparecesse logo.

Enquanto isso, ao buscar informações com a namorada de Harry, uma bela atriz de teatro vivida por Alida Valli (AGONIA DE AMOR), o protagonista acaba se apaixonando por essa mulher de olhar distante e triste. A fotografia em tons expressionistas, com ângulos de câmera inusitados, contribui para essa sensação de agradável estranheza e cada imagem parece cheia de uma beleza única.

O roteirista e autor do romance Graham Greene já havia pesquisado áreas de Viena que funcionaram como um personagem para a história, como é o caso do incrível sistema de esgotos da cidade. O papel de Orson Welles é decisivo e muito importante, mas se não fosse a cena do diálogo no parque de diversões perto do final, com falas escritas pelo próprio Welles, seria um papel muito pequeno, quase como um fantasma. No diálogo, ele revela seu real caráter e sua visão de mundo, e isso é algo que deixa o personagem de Cotten sem chão. É como se o homem que ele havia conhecido, ou achado que conhecia, tivesse morrido. As últimas imagens do filme são incríveis e acentuam o mal estar.

Visto no box Filme Noir Britânico, que contém mais de uma hora de extras só sobre o filme. (Aliás, comecei a ver numa cópia em 1080p lindona, até para sentir ainda mais valorizada a fotografia foda do filme, mas depois de meia hora, as legendas deram uma despirocada e a sincronia se perdeu, e aí continuei do DVD, que está ótimo. Nessas horas, vemos o quanto ter um DVD oficial faz a diferença.)

+ TRÊS FILMES

ASSASSINO POR ACIDENTE (Hit Man)

O gosto de Richard Linklater pelo texto se evidencia nesta divertida trama baseada na história real de um homem que se passa por matador de aluguel de modo a facilitar a prisão daqueles que o contratam – ele é um professor universitário que trabalha também para a polícia. O foco da trama ganha contornos mais interessantes quando o rapaz (Glen Powell) se apaixona por uma de suas clientes (Adria Arjona) e que acaba se vendo metido numa trama que muito lembra a de clássicos noir do passado (ela seria uma atraente femme fatale). ASSASSINO POR ACIDENTE (2023) aposta em dois jovens em ascensão em Hollywood. Embora ainda não tenha achado Powell um sujeito muito carismático assim (na verdade, nem sei se há alguém bom, por outro lado, gostei demais de Arjona. Vamos ver como ela se sairá nos filmes seguintes. ASSASSINO POR ACIDENTE brinca com as possibilidades de se poder ser várias pessoas ao mesmo tempo e de abraçar uma persona confortável no processo. Não há uma intenção de fazer uma investigação psicológica profunda, mas há claramente uma vontade de deixar certas questões de id, ego e superego para o espectador pensar um pouco.

A ESTRELA CADENTE (L'Étoile Filante)

Não é preciso saber muito sobre o casal de diretores e atores Dominique Abel e Fiona Gordon para perceber que suas origens vêm do teatro. E quando essa teatralidade se explicita mais em A ESTRELA CADENTE (2023) é quando o filme mais cresce, mais fica interessante e bonito – até porque as cores vivas e cartunescas são um prazer de ver. Há quem compare com o cinema de Aki Kaurismäki, mas há uma bela diferença no cinema de Abel e Gordon: a fisicalidade e um tipo de humor tão popular quanto sofisticado. Além do mais, há bem menos melancolia. Em prol do humor, eles criam um fiapo de história que faz muito sentido e, em diversos momentos, fica muito engraçada. Gosto demais sempre que o inimigo do trio aparece armado no bar para se vingar. Por causa de atos terroristas cometido no passado, Boris se disfarça de dono de bar. Um grande ganho para o filme é a presença da ótima Kaori Ito, um deslumbre no humor e na sensualidade, como a esposa do homem que vê no trocar de lugar com um sósia dele a solução para ele escapar vivo da vingança do homem sem braço. Há uma cena de dança no bar engraçadíssima e muito inventiva. Pena que nem todo o filme é assim, tão empolgante. Talvez seja o caso de se acostumar com o estilo.

NA CAMA COM VICTORIA (Victoria)

Às vezes é preciso o aval dos prêmios em festivais para que determinado autor passe a chamar a atenção para sua filmografia pregressa. Infelizmente isso acontece com muito mais frequência com cineastas mulheres. Justine Triet foi apenas a terceira mulher a ganhar a Palma de Ouro (as outras foram Jane Campion e Julia Docournou, todas com a letra J!). E confesso que não sei se teria gostado tanto de NA CAMA COM VICTORIA (2016) se não fosse pelo tanto que Triet provou com seu ANATOMIA DE UMA QUEDA (2023). Ambos são filmes que tratam da verdade e da justiça (mas não só); ambos lidam com mulheres vivendo acuadas; ambos trazem cenas que se passam em tribunais (ANATOMIA claramente muito mais). A diferença é que NA CAMA COM VICTORIA tem uma leveza que o outro não tem. As próprias cores vivas dos tribunais acentuam isso. Outra coisa que se destaca, tanto em VICTORIA quanto em ANATOMIA, é a excelente montagem. Em VICTORIA, ela funciona para, não apenas dar dinamismo à trama, como também para mostrar o atropelamento de situações por que passa a protagonista, a advogada vivida por Virginie Efira (ótima). Ora ela tem que lidar com um cliente complicado e impulsivo, ora está processando um ex que a usa em seu projeto de autoficção. Além do mais, a vemos visitar cartomante, buscar frustrantemente novos parceiros em aplicativos de relacionamento, e a se relacionar com o rapaz que se oferece para ser seu assistente (Vincent Lacoste). E a riqueza de Victoria é que ela é uma mulher que pode ser muitas coisas em diversos momentos: sexy e insegura, ótima profissional e talvez um pouco relapsa com suas filhas. Mas até essa última observação tenha partido de um tipo de visão de sociedade que cobra muito mais das mulheres do que dos homens. E Triet mostra isso sem parecer panfletária, de forma sutil o bastante para, infelizmente, demorar a ser devidamente valorizada como grande artista que é.

sábado, junho 29, 2024

ANJO DO MAL (Pickup on South Street)



Eis que chego num momento de euforia dentro desta minha peregrinação pelo cinema de Samuel Fuller. Digo isso pois ver ANJO DO MAL (1953) foi ver algo muito especial, algo muito extraordinário e incomum. E essas reações servem para reacender nossa paixão pelo cinema, que às vezes, devido à falta de tempo por conta do trabalho e devido ao cansaço, acabam sendo um pouco prejudicadas. Talvez ANJO DO MAL dispute o posto de meu favorito (por enquanto) do realizador junto com EU MATEI JESSE JAMES (1949), sua estreia na direção, e certamente está naquele cantinho do coração.

Ambos são filmes em que o amor pulsa forte. E um tipo de amor mais cristão, digamos assim, mais espiritual, já que, mais uma vez, Fuller se solidariza com os marginais, com figuras julgadas pela sociedade. Se em seu western sombrio tínhamos um traidor convivendo com seu sentimento de culpa pelo ato deplorável, agora temos alguém que é mais fruto do fracasso de uma sociedade capitalista e individualista, um batedor de carteiras, Skip McCoy, o personagem de Richard Widmark, ator já marcado por personagens bandidos ou cruéis, mas que aqui ganha a chance de ser o herói, ainda que um herói torto e também bandido.

ANJO DO MAL representa a primeira incursão de fácil reconhecimento de Fuller pelo universo do filme noir. E talvez por isso se diferencie um pouco (ou um bocado?) de seus anteriores e até passa uma leve impressão de ser menos autoral. Mas é só uma impressão inicial que logo se dissipa. E, mais importante: que filme! O começo da narrativa meio que parece antecipar O BATEDOR DE CARTEIRAS, de Robert Bresson (olha ele mais uma vez sendo assunto aqui no blog!), devido à cena do ladrão vivido por Widmark no metrô. Uma cena, aliás, carregada de muita energia sensual: é como se aquele momento em que Widmark e a personagem de Jean Peters se aproximam no espaço coletivo representasse um sexo proibido, em que ambos se olham e ficam muito perto um do outro enquanto um deles penetra sua intimidade, ou seja, o interior de sua bolsa.

Depois a trama se transforma num suspense envolvente de guerra fria, como tantos produzidos logo após o pós-guerra, mas que causou um incômodo maior nos críticos franceses comunistas (por mais que os espiões comunistas do filme não sejam nada idealistas, sejam mais pragmáticos). Ou seja, o comunista aqui é só mais um inimigo dos Estados Unidos para fazer a vez de vilão em centenas de filmes no cinema daquele momento que se estenderia até os anos 1980. Na França, chegaram a mudar a trama do filme na versão dublada, trocando os comunistas por traficantes de drogas, vejam só! O público francês não entendeu nada, obviamente.

ANJO DO MAL é empolgante, tenso, apaixonado, apaixonante e sensual, tudo que esperamos de um grande noir. Além de tudo, a fotografia é linda, de Joseph McDonald, o mesmo de PAIXÃO DOS FORTES, de John Ford. Assim como é linda também a quase femme fatale, a Candy de Jean Peters, uma personagem que se apaixona pelo ladrão que a rouba, por mais que suas primeiras cenas com ele sejam carregadas mais de violência e certa brutalidade do que de amor. Muito porque Skip percebe que aquela jovem está ali principalmente por sua missão: reaver o microchip que o ladrão pegara no metrô junto com o dinheiro. Esse microchip contém informações confidenciais que agente comunistas passariam para a frente. A moça estava sendo seguida por agentes do FBI no metrô. Ou seja, há um jogo de gato e rato em que agentes do FBI, polícia, um ladrão pobre, uma mulher contratada e uma informante são peças que contribuem para a dinâmica e para a dramaticidade da trama. 

Falando em informante, não posso terminar o texto sem citar a performance gigante de Thelma Ritter, a velha informante que é capaz de dedurar o amigo ladrão para conseguir alguns trocados e juntar o suficiente para comprar um funeral bonito com um jazigo decente para si. E Fuller trata da personagem sem abusar de sentimentalismo, a exemplo do que havia feito em seus outros filmes, inclusive os de guerra. Mesmo assim, sua personagem é carregada de uma aura trágica e heroica e sua última imagem em cena é de deixar qualquer espectador calado e triste. A atriz foi indicada ao Oscar como coadjuvante por seis vezes desde A MALVADA e por ANJO DO MAL ela conseguiu mais uma. Foi a única indicação do filme, vale lembrar, o que mantém a posição de Fuller como cineasta marginal. Cada vez mais passo a compreender a adoração que muitos têm por esse grande mestre.

P.S. 1: ANJO DO MAL está entre os três filmes de Fuller selecionados para integrar o livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer. Os outros são PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963) e AGONIA E GLÓRIA (1980).

P.S. 2: Nos extras do box Filme Noir (o primeiro volume, que só tem obras-primas, e por isso merece uma reedição) é possível ver uma bela entrevista do cineasta, que ajuda a compreender sua visão de mundo e sua preferência por certos ângulos de câmera, como nas cenas de ação filmadas de cima, por exemplo.

+ TRÊS FILMES

O MONSTRO DO CIRCO (The Unknown)

Um dos filmes mais incríveis já feitos na era do cinema mudo, O MONSTRO DO CIRCO (1927), de Tod Browning, tem tantas cenas inacreditáveis que é até difícil acreditar que tenha se materializado. Lembro que a primeira vez que ouvi falar deste filme foi numa edição da Cine Monstro, que contava a história completa (ou quase). E eu disse a mim mesmo: preciso vê-lo o quanto antes. Mesmo na revisão, e não tendo o mesmo impacto da primeira vez, ainda continua sendo impressionante, inclusive do ponto de vista visual. Não lembrava, por exemplo, da última cena do personagem de Lon Chaney, aquela cena dos cavalos. É um filme em que os atos do protagonista o qualificam para enquadrá-lo na prateleira dos horrores mais bizarros já feitos. No mais, o filme ainda traz Joan Crawford linda, na flor da idade, mas já interessada em se embrenhar em filmes estranhos e sombrios. Tenho já um texto sobre o filme aqui no blog.

A MÁSCARA DO HORROR (Mr. Sardonicus)

Os filmes de terror do William Castle hoje em dia têm um toque até ingênuo, de certa forma. O diretor e produtor foi um grande mestre do entretenimento e A MÁSCARA DO HORROR (1961) é um de seus trabalhos mais divertidos e bem acabados. Como grande fã do gênero, Castle constrói uma divertida história gótica sobre um médico que, graças a uma paixão que ainda nutre por uma mulher, vai parar num castelo habitado por um barão que utiliza uma máscara para cobrir o rosto, e tem uma história fascinante de origem, que será contada no devido tempo. O diretor vinha do ótimo TRAMA DIABÓLICA (1961), uma espécie de homenagem a seu ídolo Hitchcock, e estava muito à vontade em trabalhar com as variações do horror, usando mais uma vez os seus famosos jogos publicitários. Aqui ele antecipa os programas interativos (tudo enganação), fazendo com que o espectador, supostamente, decida o destino do vilão no final. Muito legal. Visto no box Obras-Primas do Terror 6.

A FILHA DE SATÃ (Night of the Eagle / Burn, Witch, Burn)

Gostei bastante de ter conhecido de A FILHA DE SATÃ (1962), de Sidney Hayers, este filme de terror inglês contemporâneo ao auge da Hammer que foge dos monstros então explorados pelo lendário estúdio para lidar com seriedade e ambiguidade com o tema da fé, ao contar a história de um professor de sociologia de uma cidade tranquila que descobre que a esposa guarda inúmeros amuletos e encantamentos dentro de casa. Logo ele, uma pessoa declaradamente descrente de tudo de natureza sobrenatural, como deixa claro na aula que abre a narrativa, tendo que lidar com essa situação. Acontece que o tom do filme, após o primeiro terço de metragem vai ganhando contornos mais tensos e perturbadores, ao percebermos o que acontece após o professor queimar todo o material que a esposa tão devotadamente cuida. Janet Blair está excelente como a esposa, já que sua personagem lida com diversas situações e diversos modos de encarar essas situações. Curiosamente, o filme traz um prólogo com uma narração em voice-over com alguém executando uma espécie de feitiço para tornar os espectadores imunes aos efeitos nocivos da bruxaria que emanaria da tela. Lembrei-me da bruxa do começo de À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA, do nosso querido Mojica. Visto no box Obras-Primas do Terror 4.

domingo, junho 23, 2024

JARDIM DOS DESEJOS (Master Gardener)



De FÉ CORROMPIDA (2017) para cá, Paul Schrader parece querer provar ser um dos maiores da Nova Hollywood, já que não recebeu a mesma consideração e o mesmo louvor que seus colegas, em especial aquele que mais se aproxima dele, até por terem trabalhado juntos, Martin Scorsese. O que, aliás, é compreensível, já que Schrader, mesmo sendo roteirista de TAXI DRIVER – MOTORISTA DE TÁXI (1976), TOURO INDOMÁVEL (1980) e A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO (1988), três filmes muito queridos de Scorsese, fica naquela posição de bastidores, como se não fosse tão autor desses trabalhos quanto o próprio diretor. (Eu mesmo tenho um monte de lacunas de Schrader para preencher e espero encontrar tempo para resolver essa pendência.)

TAXI DRIVER, em especial, ao ser colocado perto dessa nova trilogia, por assim dizer, formada por FÉ CORROMPIDA, O CONTADOR DE CARTAS (2021) e o objeto de nossa discussão de hoje, JARDIM DOS DESEJOS (2022), tem se mostrado presente nos textos a respeito da autoria de Schrader, no que ele tem chamado de filmes de profissão, filmes de ofício. Assim como nos dois filmes anteriores, o protagonista escreve e mantém um diário, o que é outra marca que novamente remete a DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA, de Bresson. Mas o personagem escreve mais sobre sua especialidade. Seu passado neonazista surge em flashes rápidos, como que para assombrá-lo.

Esses novos trabalhos, que trazem uma homenagem mais explícita ao mestre francês Robert Bresson, acabaram por trazer mais luz para seu cinema, que nunca deixou de ser brilhante, mas que ficou um pouco mais apagado nas décadas de 1990-2000. JARDIM DOS DESEJOS é outro em que o personagem é definido pela profissão. Não mais um padre, não mais um especialista em jogos de azar (e não mais um motorista de táxi), mas um jardineiro, alguém que tem como uma de suas qualidades a paciência de ver as flores nascerem, crescerem e adornarem os espaços, como é o caso da mansão da personagem de Sigourney Weaver, uma mulher que acredita que está no fim da vida e tem como eventual amante e profissional talentoso seu próprio jardineiro, vivido por Joel Edgerton.

Logo no começo do filme, ela apresenta uma situação para ele resolver, alguém que virá (uma sobrinha-neta) e a quem ele, o jardineiro-mestre, deverá ensinar seus conhecimentos. Logo também saberemos do passado desse homem, um passado nada tranquilo, um passado que está literalmente marcado em sua pele. E esse passado é incômodo também a nossos olhos: as marcas mais assustadoras trazem suásticas e louvores à supremacia branca. Ou seja, herói do filme é esse homem que tem essas marcas abjetas na pele, que costuma esconder por debaixo das roupas.

Do ponto de vista visual, adoro como Schrader faz da tela uma pintura colorida, cheia de flores, desde os créditos iniciais, de como ele, pacientemente, vai construindo a relação de aproximação entre Edgerton e a jovem Quintessa Swindell, de como, perto do final, mais uma vez ele apresenta uma experiência transcendental do amor e do sexo usando simbolismos. 

Mas eu diria que a grande beleza de JARDIM DOS DESEJOS (acabei gostando bastante do título brasileiro) está no modo como se trata também de um filme sobre perdão, sobre redenção, ainda que torto à maneira do diretor. Como aquela moça negra (ou mestiça) que se apaixona por ele poderia perdoá-lo ou aceitá-lo com aquelas imagens tatuadas em sua pele? O contato com a natureza parece uma espécie de tentativa de remissão de pecados do personagem: depois de matar pessoas movido ao ódio no passado, hoje ele busca o contato com a terra, que ele cheira com gosto, busca embelezar o jardim de uma mulher mais velha, que também nutre fortes sentimentos de atração por ele, embora prefira mantê-lo na posição de subalterno.

Já a garota mais jovem, ao namorar um traficante bem violento e ser dependente química, também encontra na figura daquele homem uma salvação. Certamente não é um filme que agrada a todos os públicos pela complexidade desses personagens ou pelo fato de que não é todo mundo que perdoa neonazista. Mas Schrader ama esses personagens cheios de falhas e pecados, como amou figuras violentas como o motorista de táxi e o boxeador dos filmes de Scorsese. Além do mais, assim como em FÉ CORROMPIDA, o modo como o diretor e roteirista apresenta a glória do sexo com amor como uma espécie de experiência de iluminação, é coisa linda de Deus. Schrader segue se mostrando um gigante da Nova Hollywood que já foi subestimado. Mas não mais. Pelo menos não deveria ser. 

P.S.: A revista Sight and Sound de junho de 2023 traz cinco listas de votos de Schrader para sua tradicional votação de melhores filmes de todos os tempos. Deixo aqui o ranking dele de 2022 (na revista, consta também seus votos em 1972, 1992, 2002 e 2012). 

PICKPOCKET (Bresson, 1959)
ERA UMA VEZ EM TÓQUIO (Ozu, 1953)
PERSONA (Bergman, 1966)
A REGRA DO JOGO (Renoir, 1939)
O CONFORMISTA (Bertolucci, 1970)
UM CORPO QUE CAI (Hitchcock, 1958)
MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA (Peckinpah, 1969)
METRÓPOLIS (Lang, 1927)
O PODEROSO CHEFÃO (Coppola, 1972)
AS TRÊS NOITES DE EVA (Sturges, 1941)

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A MUSA DE BONNARD (Bonnard – Pierre et Marthe)

Martin Provost não é um cineasta dos mais prestigiados, mas tem feito filmes que têm alcançado os circuitos internacionais e sempre com um elenco classe A, como foram os casos de O REENCONTRO (2017) e A BOA ESPOSA (2020). Este seu mais novo trabalho, A MUSA DE BONNARD (2023), conta com um dos melhores atores do cinema francês contemporâneo, Vincent Macaigne, que interpreta o pintor Pierre Bonnard. Cécile De France (que já tem no currículo trabalhos com os irmãos Dardenne, Clint Eastwood, Catherine Corsini, Emmanuel Mouret e até Wes Anderson) interpreta sua companheira e também sua musa em diversos trabalhos importantes. O que me deixou pouco empolgado com o filme, digamos assim, foi o modo como ele pintou a personagem, de uma maneira que não a torna tão querida da audiência. As próprias falas para a personagem não são as melhores e acabam estereotipando a mulher dentro do relacionamento. Gosto quando entra em cena Stacy Martin, como o pivô de uma traição, mas depois isso não é muito bem desenvolvido e acaba por se mostrar apenas necessária para o enredo. É como se faltasse ao filme mais coração. De todo modo, gosto muito de como a fotografia valoriza a natureza e os ambientes interiores. Isso ajuda um bocado em nossa relação de prazer com o filme. A propósito, gostei da projeção e do som da sala 2 do Cine Del Paseo.

MEU SANGUE FERVE POR VOCÊ

Muito legal ter a oportunidade de registrar uma história de amor tão bonita e tantas vezes contada pelo próprio Sidney Magal, agora em formato de ficção para os cinemas. Pena que o resultado em MEU SANGUE FERVE POR VOCÊ (2023) tenha sido um tanto insatisfatório, embora em nenhum momento deixe de ser um filme interessante em suas imperfeições. Inclusive, a coisa que mais funciona no filme é a relação que se estabelece entre dois personagens coadjuvantes. Sempre que eles se encontram sozinhos o filme ganha, em parte porque há química no casal, em parte porque o diretor Paulo Machline e os roteiristas parece saírem um pouco das amarras da história principal, que conta da paixão que o cantor tem por uma jovem de Salvador, em sua passagem pela cidade. Na época, 1979, Sidney Magal era um dos cantores mais populares do país e, por mais que alguns taxassem sua música de brega, há algo de muito especial em sua interpretação e em algumas canções memoráveis, em especial, a que dá título ao filme, que tantas vezes fez minha alegria na infância. Só hoje soube se tratar de uma versão brasileira de uma canção argentina de 1971. O filme perde a chance de brilhar justamente na execução dessa canção, assim como vai perdendo várias chances ao longo da narrativa, talvez por inexperiência do casal de protagonistas, ou talvez pela falta de um roteiro melhor elaborado. Não deixem de ver nos créditos finais uma participação muito especial de Emanuelle Araújo (AOS VENTOS QUE VIRÃO), que no filme faz o papel da mãe de Magali, o grande amor da vida de Magal. O interesse do filme por criar uma espécie de musical inspirado nos clássicos de Hollywood é boa e às vezes funciona, como na cena em que Caco Ciocler canta (e dança) uma certa canção de Johnny Hooker.

TUDO OU NADA (Rien à Perdre)

Um filme que deve muito à interpretação intensa de Virginie Efira, grande atriz que tem se dedicado a uma carreira de papéis bem diferentes uns dos outros e demonstrado o quanto sua versatilidade eleva as obras em que protagoniza. TUDO OU NADA (2023), primeiro trabalho de ficção no cinema de Delphine Deloget, carrega elementos do documentário que ajudam a passar mais realismo e crueza ao drama da mãe que tem seu filho mais novo tirado de si e que se vê num pesadelo kafkiano que vai ganhando proporções maiores ao longo da trama. É impressão minha ou o cinema francês tem dado espaço a obras que retratam a rotina de pessoas de classes menos desfavorecidas da sociedade? Gosto bastante do final.

domingo, junho 16, 2024

QUATRO NOITES DE UM SONHADOR (Quatre Nuits d'un Rêveur)



Robert Bresson é fascinante. O período que mais vi filmes do realizador foi entre os anos de 2004 e 2007. Ou seja, preciso rever tudo que vi. Por mais que o ideal seja rever seus filmes numa bela sala de cinema em cópias remasterizadas digitalmente, como foi o caso de O DINHEIRO (1983), revisto em 2021, o lançamento do box O Cinema de Robert Bresson pela Versátil é um verdadeiro presente para os cinéfilos, especialmente os fãs do cineasta. Como o próprio curador Fernando Brito bem disse, o próprio box é uma obra-prima. E há filmes que ainda não havia visto/não vi nenhuma vez ainda, como foi o caso de QUATRO NOITES DE UM SONHADOR (1971), que está em uma cópia tão linda que parece BluRay. 

Ainda que traga alguns elementos que se destacam de outras obras do realizador, esta adaptação da novela Noites Brancas, de Fiódor Dostoiévski, como o inusitado de ouvirmos música brasileira, ou haver um protagonista-pintor (Bresson queria ser pintor quando jovem), a assinatura e as marcas do cineasta estão presentes de maneira muito forte. Para começar, temos mais uma vez um herói aprisionado. Não literalmente aprisionado, como em UM CONDENANDO À MORTE ESCAPOU (1956) ou O PROCESSO DE JOANA D’ARC (1962), mas alguém que é escravo de seu próprio destino pouco generoso.

Jacques (Guillaume des Forêts) é um jovem pintor que vive uma vida de desânimo e muita solidão e que tem por hábito usar um gravador portátil para lhe auxiliar na criação de suas pinturas feitas a partir de seus sentimentos mais profundos. Um dia, ele encontra uma jovem, Marthe (Isabelle Weingarten, de O ESTADO DAS COISAS), que está prestes a se suicidar, pulando da Ponte Neuf. Ele a impede e os dois passam a conversar sobre seus próprios problemas e Jacques se mostra disposto a ajudá-la.

No flashback de Marthe, ficamos sabendo seus motivos, assim como também é o momento em que o filme mais explora a sensualidade e a carnalidade: o belo corpo nu da atriz, em delicadas luz e cor, é algo que o cineasta faz para tornar a imagem da jovem atraente para os espectadores, de modo que fique muito mais fácil nos identificarmos com o sentimento de paixão crescente de Jacques por ela. Ele grava seu nome, "Marthe", repetidamente numa fitinha cassete. Ele vê o nome dela em todos os lugares. Mas ele sabe, no fundo, que, dada sua experiência de vida, dada sua falta de sorte com relacionamentos amorosos, raramente terá chance naquele jogo de entregar cartas para o homem por quem Marthe é apaixonada e esperar pela não-vinda dele, esperar por um possível sentimento que a jovem possa criar por ele nessas quatro noites do título.

Uma das cenas finais é tão perfurante no peito quanto o final de JOANA D’ARC ou as palavras finais do casal de PICKPOCKET (1959). Talvez tenha sido o filme de Bresson que mais me causou identificação com o protagonista – por mais que seja uma identificação mais com meu passado do que com meu presente. O pessimismo do realizador tem a ver com sua crença no jansenismo, uma doutrina de um pensador católico que atribui a salvação da alma ao juízo prévio de Deus e não às boas obras, não à caridade. Ou seja, se o destino de cada pessoa já está escrito, não há muito sentido em lutar tanto pela salvação, ou pelo que essa salvação possa simbolizar de bom na vida material.

Na obra de Breson, a prisão é uma metáfora para o aprisionamento espiritual. E Jacques é uma pessoa presa àquilo que o destino supostamente o transformou, ou a sua própria sorte. Assim, as composições do diretor, em sua austeridade, são ao mesmo tempo duras e carinhosas com seus personagens. É como se o ato do diretor de mostrar o movimento de seus olhos, enfatizando suas tristezas e falta de esperança no próprio destino, fosse uma maneira de ele se solidarizar com eles, dizer que os compreende. Ele, que depois de ter sido prisioneiro de guerra, fora resgatado por uma ordem de freiras. Nada dessas circunstâncias pessoais parece em vão nas obras do realizador .

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O ANDARILHO NA CHUVA (Vagabundo en la Lluvia)

Muito bom o trabalho que a Versátil vem fazendo de trazer em mídia física obras que muito provavelmente passariam batidas em nosso mercado, como é o caso de certos filmes de terror mexicanos, que eu só conheci graças a eles. O ANDARILHO NA CHUVA (1968) já é o quinto filme de Carlos Enrique Taboada trazido na coleção Obras-Primas do Terror - Horror Mexicano (este no volume 3) e, mesmo sendo inferior aos outros quatro títulos, é um claro exemplo de um mestre trabalhando com poucos recursos, construindo toda uma atmosfera de suspense numa casa de campo com apenas três atrizes e um ator que faz o personagem-título, não sem antes deixar bem claro o zeitgeist de 1968, na cena inicial de uma festa. Na trama, uma mulher que espera alguém na casa traz sem querer em seu carro uma outra que estava dormindo bêbada no banco de trás. E há a figura pouco confiável de um homem que aparece com um sino amarrado na perna (o aspecto mais interessante do personagem). Achei que faltou mais intensidade, de modo que compartilhássemos o medo daquelas mulheres desse homem e talvez esse seja o principal problema do filme. Mesmo assim, são pouco mais de 80 minutos que passam voando e que até poderia ser uma peça de teatro, de tão caprichado que está o texto. Se tiver mais Taboada disponível, Versátil, pode mandar.

A HORA DA ESTRELA

Jurava que havia visto A HORA DA ESTRELA (1985), de Suzana Amaral, nos anos 1990 ou 2000, mas, pelas minhas anotações no blog, tive a certeza (?) de que o vi pela primeira vez só em 2011. A reestreia nos cinemas está sendo um sucesso, com as salas lotadas para ver as desventuras de Macabéa, uma jovem mulher semianalfabeta que veio do Nordeste para ganhar a vida em São Paulo e acaba sofrendo humilhações de vários tipos. E nem sempre ela percebe que está sendo humilhada, de tão ingênua que é. Primeiro dos três (belos) filmes de Suzana Amaral, A HORA DA ESTRELA é sua obra mais popular. Faz rir ao longo da sessão, tem cenas e falas memoráveis, e esse riso de nós, o público, vejo como de certa forma problemático, já que é como se estivéssemos também rindo dela, como se fôssemos tão cruéis quanto os demais personagens que passam por sua vida. Não sei o quanto isso "trai" a obra de Clarice Lispector, no sentido de ser mais ou menos empático com Macabéa, mas certamente oferece uma experiência própria. Sem falar que não é porque somos espectadores de cinema que somos isentos da crueldade.

ISTO É PELÉ

Lançado quatro anos após a vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970, ISTO É PELÉ (1974), de Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto, parece mais um filme institucional. A narração de Sérgio Chapelin torna essa impressão ainda mais evidente (a produção é da Rede Globo). Mas não há como negar a força das imagens de Pelé em campo. Seus passes, seus gols, o culto criado em torno dele, algo que as pessoas que não viveram a época ou não se interessam por documentários sobre futebol e sobre o jogador não têm ideia. A boa montagem de Eduardo Escorel une imagens do presente, com Pelé ensinando futebol para adolescentes, e imagens das copas vencidas por ele (embora a de 1962 tenha sido basicamente sem ele, que saiu mais cedo, machucado). Até o fato de as imagens não serem tão boas contribui para o predomínio da construção da mitologia em torno do jogador. E o curioso é que, em nenhum momento, o filme busca o homem Pelé, com detalhes sobre sua intimidade: há apenas o jogador. E para o personagem basta. Já para o filme, não sei se é suficiente.

domingo, junho 09, 2024

OS OBSERVADORES (The Watchers)



“Try not to die.”
(Darwin) 

Em outras circunstâncias eu estaria aqui escrevendo um relato do show a que fui ontem com minha amada, de Anavitória e Nando Reis, no Iguatemi Hall. São artistas de que gosto muito, embora não seja fã o suficiente para conhecer a maior parte de suas canções. Esse quesito não quer dizer que o show vá ser mais ou menos interessante para o espectador. É possível ir a um show musical sem conhecer nada de um artista e ficar encantado com seu trabalho. Pois bem. O problema maior do show de ontem foi técnico. Os artistas falavam em seus microfones crentes que estavam sendo ouvidos, mas não era isso que acontecia. Eu e a Giselle estávamos nas cadeiras lá do fundão, mas mesmo quando fomos ficar de pé lá no meio, mais próximo do palco, não era ainda possível compreender bem frases inteiras ditas por Nando e as meninas.

Na minha vida toda de ida a shows em vários espaços, nunca vi nada parecido. E ainda por cima, como podem cobrar tão caro dentro de um espaço tão luxuoso para oferecerem um som tão aquém (para não dizer tão cocô)? Ainda cheguei a reclamar em algumas postagens do Iguatemi Hall no Instagram, mas apenas uma ou outra pessoa aparece concordando comigo (depois vi que mais pessoas reclamaram). Existe uma espécie de negação ou de falta de percepção da qualidade técnica nos espaços. Estou acostumado a ser o reclamão das projeções de cinema e não quero ser o sujeito que reclama dos shows. 

Uma possível explicação: aquela espécie de colchão que funciona como teto do espaço pode estar interferindo na reverberação sonora (já que às vezes o som dos instrumentos ficou bem alto, tão alto que incomodava e distorcia, o que aliás é outro problema). A segunda explicação é mesmo o aparato técnico dos artistas, mas acho pouco provável, não sei. Pois bem, na falta de um registro do show hoje e usando o “prefiro não opinar” da Glória Pires, vamos de filme.

Estava há pouco dando uma olhada na repercussão crítica de OS OBSERVADORES (2024) no Rotten Tomatoes e, para minha surpresa, o filme está cheio de críticas negativas. Pelo menos lá fora a recepção não foi boa, o que de fato me surpreendeu pela riqueza e elegância visual que enxerguei nesta estreia na direção de longas-metragens de Ishana Night Shyamalan, filha do nosso querido M. Night Shyamalan, que está com filme novo chegando, hein.

Quem viu a excelente série SERVANT (2021-2023) deve ter prestado atenção nos diferentes diretores que comandavam alguns episódios – Shyamalan e o criador Tony Basgallop convidaram jovens cineastas como Severin Fiala e Veronika Franz, de BOA NOITE, MAMÃE; Kitty Green, de A ASSISTENTE; Julia Docournau, de TITANE; Isabela Eklöf, de HOLIDAY; Carlo Mirabella-Davis, de DEVORAR. E havia também os episódios dirigidos pela filha. E eu notava que os episódios dirigidos por Ishana eram tão ou até mais caprichados e exuberantes na construção visual que os do próprio pai; sendo que ela que não havia dirigido sequer um curta-metragem antes. SERVANT acabou servindo de laboratório para ela começar seu ofício.

Por isso, quando fiquei sabendo do primeiro filme dirigido por ela, logo esperei algo no mínimo bom e digno. E fui ainda mais surpreendido, com um tipo de terror que procura trazer algo novo (e encontra), por mais que não consiga fugir de todos os clichês – o que é quase impossível e nem sei se gostaria disso. OS OBSERVADORES é o tipo de terror pagão, em contraponto ao terror católico de uma obra como A PRIMEIRA PROFECIA, para citar um bom exemplo recente.

E isso acaba por trazer coisas novas, trazidas da rica mitologia irlandesa – as locações são no interior da Irlanda (lindas!). Podemos dizer, sim, que é um conto de fadas, mas um dos mais sombrios. Dakota Fanning é uma jovem que fica presa numa floresta cuja saída é aparentemente impossível de encontrar. Até que ela encontra alguém em condições semelhantes, vivendo num lugar chamado de poleiro, no meio daquela floresta totalmente fechada.

Gosto muito das regras que ela recebe, impostas pela líder do grupo de sobreviventes da floresta, o que faz lembrar alguns filmes do Shyamalan pai (A VILA, A VISITA), mas há uma vivacidade na condução narrativa que nem o pai tem conseguido em certos filmes mais recentes. Ou seja, não há nenhum momento para ir ao banheiro, um momento menos importante. É sentar na cadeira e ficar interessado na trama, nos personagens, nos mistérios, e no quanto o filme muito elegantemente trata de trabalhar o medo, a escuridão e o desconhecido. Dakota está ótima, mas os outros três atores também estão, inclusive Georgina Campbell (vista no ótimo NOITES BRUTAIS). Não é um filme de grandes diálogos, o foco está mais na riqueza visual e em alguma possível metáfora sobre espelhos e espetáculos.

Filme visto numa projeção excelente da sala 10 do UCI Iguatemi. Algo me diz que é projetor novo, de dar gosto, e o som também estava excelente.

P.S.: Depois da sessão, eu e meu sobrinho experimentamos o horror da vida real. Estávamos voltando depois das 11 da noite de carro através de uma rua sinuosa que vai dar na Av. Pontes Vieira. Eu percebo que um homem corre e se aproxima do carro à nossa frente. Depois outro homem se aproxima. Falei para o Lucas: é um assalto que tá rolando. Como a rua é uma subida, gosto de deixar o meu carro 1.0 com o ar condicionado desligado e o freio de mão puxado e com uma distância razoável do carro à frente. Em seguida, outro homem sai de um muro, das sombras e se aproxima da gente. O Lucas grita: “vai!, vai!”, e eu contorno o carro e acelero, sem me importar se vou atropelar ou não o terceiro assaltante que se aproximava da gente, não sei se com uma arma na mão ou não. Meu sobrinho até faz um gesto de apontar uma arma (imaginária) para ele, gesto que não cheguei a ver, só depois ele me disse. Não olhei para o rosto desse homem – para mim, os três continuarão a ser sombras. Só queria sair dali, buscar uma saída aproveitando inclusive que o sinal estava verde. E saí cantando pneu.

Sempre usei essa rua de nome comprido (Santa Terezinha do Menino Jesus e da Sagrada Face) em muitas décadas e nunca vi tal coisa acontecendo antes. Não sei se isso é sinal de que nossa segurança está pior, pois não vimos um carro da polícia sequer no caminho de volta para casa, ainda com a adrenalina agindo no corpo. Mesmo assim, respirando fundo, consegui cantar uma canção no caminho de volta: “Long line of cars”, do Cake. Adoro essa música.

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IMACULADA (Immaculate)

A primeira coisa que me incomodou em IMACULADA (2024), de Michael Mohan, foi a fotografia. E isso veio lá desde a projeção ruim do cinema que cheguei a abandonar, passando pela tentativa de ver em melhor qualidade numa cópia 4K (em vão, pois a TV deixa um brilho incômodo) e em seguida fechando numa cópia 1080p apenas razoável para o que se podia aproveitar das intenções das imagens, no terço final. E olha, chequei: a diretora de fotografia tem coisas bem legais no currículo, como COLUMBUS e A CASA SOMBRIA. Eis que tento prestar atenção na trama e também demoro a ver algo que não seja uma repetição de tantos outros filmes que seguem essa linha de terror dentro dos muros de um convento. Tem a tal freira se atirando lá de cima, o pombo que se atira na janela de vidro, as figuras soturnas no meio da noite, gente malvada cometendo atrocidades e contando seus planos diabólicos. Aliás, comecei a achar interessante no momento que o filme ganha mais em violência e sangue, mas não o suficiente para não torcer para que acabasse logo. Mesmo assim, tenho que reconhecer que a cena final de entrega na interpretação de Sydney Sweeney foi espetacular. Chega a se aproximar, pelo menos neste momento, da excelência que é Nel Tiger Free em A PRIMEIRA PROFECIA, o filme-irmão mais elegante. De todo modo, gosto do final de ambos, embora eu veja o de IMACULADA como tanto um ato de rebeldia muito bem justificado, quanto uma espécie de autodestruição de algo que talvez tenha falhado.

IMAGINÁRIO – BRINQUEDO DIABÓLICO (Imaginary)

Se visto como uma fábula, ou uma fantasia, e não como um filme de horror, talvez este novo trabalho de Jeff Wadlow possa ser melhor aceito. Mas só um pouco, pois quando começam a explicar demais (e há uma personagem que entra na história só para isso) IMAGINÁRIO – BRINQUEDO DIABÓLICO (2024) começa a ir ainda mais fundo em sua trajetória descendente. A princípio, pode-se pensar que é um filme estilo BRINQUEDO ASSASSINO, mas felizmente (ou não, na verdade) trata-se de algo totalmente diferente. Aliás, quando o filme se apresenta como algo diferente e parece enveredar por um caminho mais psicológico, por assim dizer, eu achei que fosse para o seu bem. Mas nada depois consegue funcionar. Talvez eu coloque um pouco mais de destaque à personagem da adolescente (Taegon Burns), pois ela parece estar levando um pouco mais a sério o filme. E eu até diria que, mesmo com um roteiro problemático como esse, uma boa direção conseguiria salvar algo. Lá por perto do final, o filme mais parece um teatrinho de escola, com uma referência visual a Coraline, do Neil Gaiman, mas isso acaba não fazendo muita diferença a seu favor.

MADAME TEIA (Madame Web)

Eu fico sem entender como gente que até tem uma reputação a zelar se arrisca a entrar num desses projetos da Sony/Marvel, mesmo sabendo que todos resultaram em fiascos vergonhosos. Como sei que vergonha é roubar e não poder carregar e que é preciso ter bom humor para quase tudo nessa vida, é justamente por isso que não acho que seja completa falta de tempo ver MADAME TEIA (2024), de S.J. Clarkson. Até porque você pode juntar os amigos só para rir das linhas de textos ruins, das ideias que só podem ter saído de alguém que estava chutando o balde. E quando a gente pensa que o filme não pode ficar mais ridículo, damos de cara com as cenas finais, que não acredito que possam ter sido criadas com seriedade por parte do time de roteiristas. As cenas da Dakota Johnson com as três atrizes que fazem as adolescentes são cheias de graça. E pelo menos é um filme de super-herói em que a heroína não tem poderes tão explícitos nem sai fantasiada o tempo todo, o que é algo diferente, mesmo que o vilão, Ezequiel, apareça com uma roupa muito similar à do Homem-Aranha. Na trama, Dakota Johnson é uma jovem que trabalha como paramédica numa ambulância, quando começa a prever o futuro.