sábado, outubro 19, 2024

SORRIA 2 (Smile 2)



Os filmes de terror me deixam feliz. Essa frase eu ouvi de um amigo querido, o Chico Fireman. E hoje repito, como minha, pois de fato eu também tenho essa relação de afeto com o horror no cinema. Muito provavelmente já devem existir algumas pesquisas científicas sobre o porquê de isso ocorrer com tantas pessoas, já que é um gênero que tem muitos fãs. Hoje tenho perdido alguns títulos do gênero no cinema pois muitos deles só entram em cartaz em minha cidade em cópias dubladas, e eu não entendo muito bem o raciocínio das distribuidoras que fazem esse tipo de coisa. Aliás, até em filmes mais “adultos”, por assim dizer, como O APRENDIZ, para citar um exemplo de um título que entrou em cartaz na última quinta-feira, o grosso das cópias aqui é dublado. E estamos falando de um filme que fala da juventude de Donald Trump, um filme político. SORRIA 2 (2024), felizmente, contou com mais cópias legendadas e não precisei pegar a última sessão da noite ou buscar numa sala VIP para ter acesso.

Outra coisa que queria deixar registrada, ainda sobre a questão do prazer, é o quanto esse momento de estar desligado do mundo numa sala escura, de poder me desligar dos problemas e do celular por cerca de duas horas, o quanto isso me faz bem. Então, meu sentimento de gratidão com o filme cresce, principalmente quando começo a perceber, desde a primeira cena, que não estamos diante de um filme vulgar, mas de um trabalho de direção sofisticada, ainda que jogando um jogo de familiaridade e de aproveitamento dos clichês do horror, como os jump scares, as cenas com espelhos e o uso do som como auxiliar na promoção do susto.

Ou seja, o diretor Parker Finn não tenta fazer um arthouse ou algo próximo do que chamavam certos filmes de horror da década passada, o tal do pós-terror ou pós-horror, termo que felizmente logo caiu em desuso e foi rejeitado pelos próprios fãs do gênero que já sabiam que a invenção e a originalidade no cinema de horror são tão antigas quanto o próprio cinema em si. Ele adiciona neste novo filme ainda mais sangue, mais gore, mais violência gráfica e mais vigor. A história não é sobre a maldição misteriosa que chega até essa mulher e depois vai passando para outras pessoas, mas se concentra exclusivamente nela. Como se o filme percebesse que o seu maior trunfo estivesse em sua atriz, e em momento algum ele larga a mão dela.

Um dos maiores méritos de SORRIA 2 é conseguir nos envolver numa história que de certa forma já havia sido contada no primeiro filme, que eu considero um exemplar de terror quase genérico e esquecível, mas que até acho que preciso rever para perceber melhor, já que neste segundo fica muito clara a elegância na direção de Parker Finn desde o prólogo, mas principalmente como ele lida com a perda gradual e desesperadora da sanidade da protagonista, vivida por uma ótima Naomi Scott (ALADDIN). Aliás, é até curioso a gente ter em cartaz um filme com personagens tão parecidas (refiro-me a Margaret Qualley em A SUBSTÂNCIA).

Naomi Scott é uma verdadeira scream queen, um deslumbre na aparência e na entrega de sua personagem, com sua tricotilomania (transtorno psiquiátrico que faz com que o paciente sinta um desejo incontrolável e frequente de arrancar fios de cabelo), com seu nervosismo que já começa com a dor que sente no corpo e ausência de um vicodin para não sentir a dor na coluna, ocasionada pelo terrível acidente a que sobreviveu. E isso piora quando ela visita a casa de um amigo traficante de drogas e o vê extremamente alterado, para logo em seguida ter que testemunhar o rapaz tirando a própria vida de maneira brutal e gráfica na sua frente, enquanto sorri um sorriso diabólico. A partir daí é inferno abaixo na vida da personagem.

Destaque para o modo como Finn enquadra e escolhe o que mostrar e o que não mostrar para o espectador. E quando ele quer mostrar, ele é impiedoso. SORRIA 2 é também um filme sobre depressão e solidão, quando nos coloca na vida da protagonista e do quanto esse sentimento de isolamento vai se tornando cada vez mais intenso. Tanto que em certo momento sua esperança passa a estar na morte. Mas atenção: quem for ver o filme esperando uma composição narrativa calcada na história pode não gostar do filme. O interesse maior está na ambientação e nas situações desesperadoras e aterrorizantes por que passa a heroína.

Outro grande mérito está nas cenas musicais de Scott como pop star. São cenas tão caprichadas e exuberantes que deixam as cenas do show da filha do Shyamalan em ARMADILHA comendo poeira, inclusive no que se refere à música. No mais, parece que os anos 80 estão de volta novamente, com esse interesse pelo horror mais gráfico e efeitos (aparentemente?) práticos e muito criativos.

+ TRÊS FILMES

LAURA HASN’T SLEPT

O curta que inspirou e trouxe investimento para que o diretor Parker Finn fizesse o seu primeiro SORRIA (2022) se destaca também pela atenção dada à boa performance da protagonista feminina, aqui vivida por Caitilin Stasey. LAURA HASN’T SLEPT (2020) começa numa sessão de terapia, em que a jovem conta, extremamente perturbada, a seu analista estar tendo pesadelos com uma pessoa que se apresenta a ela com um sorriso assustador. A produção é bem barata, mas há alguma sofisticação no uso da câmera, seja na aproximação, seja na movimentação em 360 graus. Provavelmente ver este curta antes de ver SORRIA 2 (2024) pode ser uma experiência qualquer nota, mas, vendo do futuro onde estamos faz uma diferença, sim. Disponível no YouTube.

A GAROTA DA VEZ (Woman of the Hour)

Um filme de um assassino de mulheres dirigido por uma mulher tem um tipo de sensibilidade diferente. Nota-se que há uma busca de equilíbrio entre mostrar as cenas de violência de modo que se construa o clima de tensão e medo do assassino e não tornar essas cenas gráficas o suficiente para que se tornem um espetáculo. Anna Kendrick é a atriz principal de sua estreia na direção, um filme em sintonia com a onda de produções que parecem muito interessadas na década de 1970. Inclusive, A GAROTA DA VEZ (2023) até faria uma bela sessão dupla com ENTREVISTA COM O DEMÔNIO, já que ambos se passam num programa de televisão. Este aqui bem menos, já que há um trabalho de montagem que também tem a função de nos apresentar a algumas das vítimas do serial killer, que estava como participante nesse programa de namoro na TV. Há cenas de muita tensão, como a conversa do sujeito com a personagem de Kendrick depois do programa e há também a crítica feroz ao machismo que contribuiu, inclusive, para que o assassino continuasse a matar mais e mais vítimas.

ALIEN: ROMULUS

Legal terem dado a direção do novo “Alien” para Fede Alvarez, um cineasta que começou em Hollywood com o cinema de horror, A MORTE DO DEMÔNIO (2013), e que poderia trazer algo novo para a franquia, já que o próprio Ridley Scott, com sua irregularidade, havia fracassado com ALIEN: COVENANT (2017), cuja existência eu até já havia apagado de minha memória. Este novo filme começa já empolgante, com um novo universo sendo apresentado a princípio, o de um planeta de mineração em que não se vê o sol e tudo é feio e escuro e as pessoas trabalham nas minas até morrer. A única saída possível é através de naves com equipamentos de criogenia, dada a distância para outros planetas habitados e habitáveis. Daí a personagem principal, Rain (Cailee Spaeny), ter aceitado se a arriscar com a missão de roubar câmeras criogênitas de uma espaçonave abandonada. A espaçonave é a de ALIEN, O 8º PASSAGEIRO (1979), quase toda destruída após os acontecimentos e a posterior fuga de Ripley. Um dos personagens mais legais do novo filme é novamente um androide, Andy (David Jonsson). O ator é ótimo, desconhecia o seu trabalho. Andy passa de criatura falha e frágil e além de tudo odiada por alguns para herói que toma decisões necessárias para a sobrevivência do grupo de jovens, quando do ingresso deles na nave abandonada e ainda cheia daquelas criaturas perigosas. Fede Alvarez homenageia o filme original inúmeras vezes, mas traz um frescor necessário e uma dinâmica empolgante. Penso neste momento numa cena que envolve o funcionamento da gravidade numa situação de ataque de diversos monstros. Cena excelente, como outras tantas. Não é um trabalho totalmente original, mas não tinha mesmo como ser, já que tem a função de dar continuidade à mitologia, mas aqui sem muitas complicações. Uma das coisas que me incomodou foi aquela contagem regressiva do computador central, excessivamente conveniente para a trama, embora compreensiva do ponto de vista do jogo de suspense.

domingo, outubro 13, 2024

ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS



Ontem, ao escrever sobre o mais recente filme de Woody Allen, dei de cara com um texto escrito por mim, aqui para o blog, 22 anos atrás, sobre A OUTRA. Nele eu meio que reclamava e meditava sobre a mudança para a casa dos 30 anos de idade, uma passagem que eu de fato senti mais que a mudança para a casa dos 40, muito pelo que eu lamentava não ter conseguido em minha vida naquele momento. Hoje, aos 52 anos, me sinto mais feliz e grato, apesar de já sentir o peso da idade no corpo e também perceber as marcas do envelhecimento cada vez mais duro em minha mãe, que tem sofrido muito com as dores e a dificuldade de mobilidade. O fato de eu estar vivendo também um feliz romance tardio também me traz uma consciência maior do passado e do que pode vir a acontecer no futuro, mas também me faz valorizar mais as alegrias do presente.

Ontem à noite, por exemplo, eu, Giselle e Regina, uma amiga dela, fomos a uma festa dessas de flashback, com uma banda muito famosa por tocar jovem guarda, que é um tipo de música que serve mais como museu do que como algo a ser de fato curtido. Mas isso é só a minha impressão, não um fato. O fato é que existe um monte de gente que se sente feliz e com um sentimento de pertencimento em estar numa festa como essas, cantando a plenos pulmões e muitos com o corpo frágil as letras. A maior parte do público presente na festa era de pessoas da terceira idade, muitas delas extremamente felizes de estarem ali. Por isso, não importa se eu me incomodava com as versões toscas de canções dos Beatles da fase inicial, ou outras canções desse período, mas no final, especialmente quando a banda também toca outros gêneros e artistas (era disco, Secos e Molhados, A Turma do Balão Mágico, Sidney Magal, Elvis, Frank Valli etc,) e quando fomos lá para a frente dançar, valorizei a banda, a música, a alegria de estar dançando com alguém que amo.

E assim faço ligação com ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS (2024), de Eduardo Escorel, um filme que chama a atenção para o envelhecimento e a aproximação da morte, essa figura invisível que pode chegar a qualquer momento e a qualquer pessoa, mas que parece, naturalmente, ainda mais próxima de alguém que já está entre 96-98 anos de idade, como é o caso da pessoa que escreve as anotações lidas na voz de Matheus Nachtergaele.

Meu contato com o sociólogo, crítico literário e professor Antonio Candido se deu na faculdade de Letras, tanto na graduação quanto no mestrado. Era/é um nome muito querido pelos professores e também pelos alunos como um grande pensador da nossa literatura. Ver este documentário me fez conhecer um pouco mais o pensador e teórico, um dos criadores do PT, entusiasta do socialismo e alguém que poderia ter optado por viver na bolha de seu mundo maravilhoso de livros e erudição, mas que fez questão de conhecer o Brasil profundo com os próprios olhos, entrando em contato com as misérias do povo brasileiro desfavorecido.

Os trechos de seus textos para o filme são de dois dos 74 cadernos encontrados após sua morte, aos 98 anos, escritos entre os anos de 2015 e 2017. Não mais tão ativo, Candido testemunhou a derrocada dos anos Lula com tristeza: o golpe de Dilma Roussef e um novo e aterrador momento de nossa política, que ele teve a sorte de não ver. Com frequência, ouvimos sua voz enquanto a câmera passeia pela casa vazia, enfatizando sua ausência física e sua rica estante ainda disposta.

Algo muito bonito que o filme destaca a partir da própria fala do escritor é seu imenso amor pela esposa, Gilda, falecida em 2005, mas presente todos os dias em seus pensamentos. Candido dizia que Gilda foi a melhor coisa que lhe acontecera na vida e é tocante essa devoção a ela, principalmente partindo de alguém que tem também uma outra paixão imensa: a literatura, além da política. Como filme, é simples, mas ouvir o texto de Candido, tão lúcido quanto poético, falando inclusive de sua condição de pessoa idosa e da expectativa da morte, é de um prazer imenso.

+ TRÊS FILMES

TERMODIELÉTRICO

É impressão minha ou uma relação mais estreita entre cinema e ciências naturais dificilmente é bem-sucedida? E olha que o mundo dos cientistas e inventores é fascinante, assim como é fascinante também saber mais sobre radioatividade. Este documentário é um exemplo dessa dificuldade, com a diretora falando sobre seu avô, Joaquim da Costa Ribeiro, pioneiro da física no Brasil, e detalhando um pouco suas pesquisas e realizações. TERMODIELÉTRICO (2023), de Ana Costa Ribeiro, entrecorta a vida do cientista com uma apresentação de seus estudos, descobertas e êxitos. O resultado é um tanto irregular, por vezes interessante, outras vezes monótono. Nem sempre a costura que a diretora faz funciona, mas gosto das escolhas das imagens e de sua plasticidade.

DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA

É imprescindível que um filme em homenagem a Ruth de Souza exista, de modo que a atriz seja devidamente valorizada e lembrada, não apenas por ser a primeira atriz negra brasileira a chegar ao cinema, ao teatro e à televisão, mas pela trajetória brilhante e de enfrentamento dos preconceitos, começando já nos anos 1930, e servindo como abertura para outras tantas atrizes pretas que viriam. Não gosto das cenas de dramatização (não vejo força nelas) de DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA (2022), de Juliana Vicente, mas acho brilhante a diretora ter deixado na mesa de montagem um monte de entrevistas de famosos para se concentrar apenas nos registros de entrevistas da própria Ruth, inclusive em seus anos de saúde mais debilitada. Gosto também quando o filme mostra cenas de filmes que ela fez, alguns deles mais raros, da época da Vera Cruz. Por vezes, dá vontade de ver aqueles filmes inteiros. Há até bem poucos trechos de trabalhos dela para cinema e televisão, se olharmos para sua filmografia de mais de 80 títulos. Entre os apresentados no doc, estão clássicos e cults como TAMBÉM SOMOS IRMÃOS (1949), SINHÁ MOÇA (1953), O ASSALTO AO TREM PAGADOR (1962) e PUREZA PROIBIDA (1974).

DORIVAL CAYMMI – UM HOMEM DE AFETOS

É difícil sair da sessão deste documentário sobre Dorival Caymmi e não ficar emocionado e ainda mais encantado com o cantor e compositor e seu trabalho único, e que reverbera na obra de artistas tão diferentes quanto Caetano Veloso e Marcelo Camelo. DORIVAL CAYMMI – UM HOMEM DE AFETOS (2019), de Daniela Broitman, tem um formato mais tradicional, com a presença de vários depoimentos, mas já começa com uma filmagem de 1989, do próprio Dorival brincando com sua beleza física e com sua idade, e de como o fato de ele ter uma boa relação com as pessoas acabar repercutindo na própria beleza que vibra de si. Ou algo parecido. Inclusive, há coisas que ele fala que parecem poesia metafísica. Não à toa, há um trecho em que sua filha apresenta um livro de poesia completa de Fernando Pessoa como uma obra fundamental para o pai, que era uma pessoa com muita consciência da grandeza e importância da própria obra, seja num detalhe pertencente a um verso, seja numa nota musical bem pensada. Adorei também as histórias que ele contou de sua vida e o quanto o filme o coloca numa posição de entidade espiritual da música brasileira. E que final bonito, hein. Lágrimas rolaram.

sábado, outubro 12, 2024

GOLPE DE SORTE EM PARIS (Coup de Chance)



Woody Allen foi (é) um dos cineastas mais importantes da história de minha cinefilia. Descobrir seus filmes, vistos primeiramente na televisão, foi uma alegria imensa. Lembro do quanto ri de madrugada sozinho enquanto assistia a SONHOS DE UM SEDUTOR (1972), que não é dirigido por ele, mas é como se fosse, pois a peça original é dele. E depois outros filmes seus também foram descobertos na televisão (acho que até me acostumei com o dublador dele, inclusive): BANANAS (1971), NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA (1977) e MANHATTAN (1979), que passou na Sessão de Gala com a obrigatoriedade por parte do autor de manter a janela original em scope, com o aviso no início da projeção. Não lembro, aliás, de ter presenciado algo parecido. A regra geral era sempre as tevês (na época da tela de tubo) mutilarem as projeções com esse aspecto ou mesmo no menos largo, em 1.85:1. Não enumero mais filmes vistos primeiramente na televisão pois ficaria um tanto monótono, mas poderia destacar mais dois muito especiais que só vi na televisão e nunca mais revi: MEMÓRIAS (1980) e HANNAH E SUAS IRMÃS (1986).

Depois disso, a minha memória mistura os filmes vistos no cinema com obras também vistas em VHS. Meu primeiro Woody Allen no cinema foi CRIMES E PECADOS (1989), ou seja, já estava diante de uma obra mais séria, mais pesada do realizador. E um filme incrível. Senti-me privilegiado. E a cada ano que passava tínhamos uma certeza: haveria um novo Woody Allen para ver no cinema. E era sempre um prazer começar a ver seus filmes com a familiaridade dos créditos iniciais em ordem alfabética, com fonte de cor branca aplicadas em fundo preto e um jazz ao fundo. Poucas vezes ele fugiu a essa regra. Sei que ele usou outro tipo de música na abertura de PONTO FINAL – MATCH POINT (2005) e talvez tenha feito algo parecido em A OUTRA (1988).

A era de ouro do cinema de Woody Allen pode até se concentrar no século XX, mas discordo totalmente que seu cinema tenha se tornando desinteressante nas últimas décadas. Entre suas obras da década de 2010, por exemplo, tenho MAGIA AO LUAR (2014) como um dos mais queridos; além de também podermos testemunhar interpretações gigantes de grandes atrizes em obras como BLUE JASMINE (2013) e RODA GIGANTE (2017). Mesmo os filmes menores têm sua graça. Mas de fato me decepcionei muito com O FESTIVAL DO AMOR (2020), um de seus filmes mais tristes. E triste justamente por ser uma comédia absolutamente sem graça e com homenagens cinematográficas muito óbvias. Há outros problemas e há o fato de ele já ter sido lançado diante da onda de cancelamento que o diretor estava enfrentando, com vários astros de Hollywood participando do apedrejamento em rede do autor. Tanto que até imaginava que seu último trabalho, GOLPE DE SORTE EM PARIS (2023), sequer fosse lançado nos cinemas. Felizmente foi lançado pela O2 Play, garantindo sua exibição em nosso circuito alternativo, e em alguns cinemas de shopping.

Foi um alívio ver seu novo filme sabendo que, se for seu último trabalho para cinema, não será uma despedida triste como teria sido se fosse com O FESTIVAL DO AMOR. Fazendo seu primeiro filme inteiramente numa língua não-inglesa, Allen ganha mais força e frescor, embora esteja revisitando temas caros a sua filmografia, como a infidelidade e o crime, que aqui é tratado de maneira até um pouco leve, longe de ter a carga trágica de CRIMES E PECADOS, PONTO FINAL – MATCH POINT e O SONHO DE CASSANDRA (2009).

A música que ouvimos na trilha é alegre o suficiente para fazer o espectador desacreditar em certo momento do crime que acontece. Lou de Laâge (que já havia me ganhado em 2014 com RESPIRE) está ótima como a jovem mulher que começa a trair o marido milionário com um ex-colega de escola que reaparece em sua vida e diz que sempre a amou. Desencantada com o casamento, ela logo passa a ver na figura do rapaz uma espécie de resposta a seu desencanto com o matrimônio.

Se o texto dado a Niels Schneider (AMORES INFIÉIS, de Mouret) é pobre e raso, Lou de Laâge ganha espaço para brilhar no papel de Fanny, a mulher angustiada pela vida dupla que passa a levar quando inicia um caso extraconjugal. E imagino que Allen coloca muito de sua própria experiência de vida nessas questões de infidelidade na angústia da personagem, embora se perceba que o registro aqui é mais leve.

Melvil Poupaud (GRAÇAS A DEUS, de Ozon), que faz Jean, o marido traído, vai se tornando um personagem cada vez mais interessante, à medida que revela seu real caráter, se transformando num das melhores construções vilanescas dos filmes do realizador. Tanto que ele ganha mais tempo de tela e faz justificar o fato de Allen não ter dado tanta atenção à construção do personagem de Schneider, quase um bobão sempre que fala que está apaixonado por Fanny. Não pelo sentimento em si, mas pelo desinteresse do realizador em dar uma dimensão mais tridimensional ao personagem. Talvez para não sofrermos tanto com seu desaparecimento em determinado momento da narrativa.

Temos aqui outra bela parceria de Allen com o diretor de fotografia Vittorio Storaro, que gosta dos tons de amarelo, laranja e marrom do outono, também presentes no lugar de encontro mais íntimo do casal, o apartamento charmoso com a luz que entra pela janela.

Não sei se Allen tem interesse em fazer outro filme na França, mas na minha opinião a experiência deu muito certo e podia ser repetida. Poderíamos ser presenteados com pelo menos mais uma obra sua. Com quase 90 anos de idade, o realizador deve estar um pouco cansado, mas sabemos o quanto continuar fazendo filmes, a exemplo de Clint Eastwood, o mantinha/mantém mais vivo e mais disposto.

+ TRÊS FILMES

CASA COMIGO? (Leap Year)

Nem sabia da existência deste filme. Quem me apresentou foi a Giselle, que viu no Amazon Prime e me contou um pouco a respeito. Fiquei interessado pelo tema, pela Amy Adams e por se passar na Irlanda. Além do mais, eu sinto falta de boas comédias românticas, um subgênero que está em baixa já faz um tempo. CASA COMIGO? (2010) tem alguns momentos brilhantes, como aquele perto do final, depois que a personagem de Adams faz uma proposta (confesso que até queria que o filme terminasse ali). Naquele momento eu vi uma força incrível também na direção. Inclusive, fui checar o currículo do realizador e Anand Tucker é o diretor do ótimo HILARY & JACKIE (1998). Pra quem queria saber por onde ele andava, eis um dos títulos. O filme é um sucesso na construção da tensão entre o casal vivido por Adams e Matthew Goode. Ela quer chegar a Dublin para propor casamento ao noivo no dia 29 de fevereiro, de modo que ele não possa recusar (como é tradição no país, neste dia). Mas o o noivo é um bocó (Adam Scott) e o filme tem o mérito de construir muito bem uma ótima química entre a moça dos Estados Unidos que quer chegar a Dublin para materializar seu sonho e o sujeito um tanto ranzinza que a ajuda a chegar lá neste road movie que, além de tudo, encanta com as paisagens irlandesas. CASA COMIGO? também explora bem a tradição da comédia romântica e traz alguns momentos de esquentar o coração.

OS FANTASMAS AINDA SE DIVERTEM – BEETLEJUICE BEETLEJUICE (Beetlejuice Beetlejuice)

Acho que o único filme do Tim Burton que amei mesmo foi ED WOOD (1994). Os outros de que gostei dele, como BATMAN – O RETORNO (1992), A LENDA DO CAVALEIRO SEM CABEÇA (1999) ou PLANETA DOS MACACOS (2001) nem chegam perto. Sua tentativa de resgatar o seu bom momento com uma continuação de um projeto do início da carreira parece até desespero, mas funciona, em muitos aspectos. Gosto do visual da personagem de Monica Bellucci, da inclusão de Jenna Ortega, uma atriz nova que curte estar em projetos do gênero, e ter novamente a dupla principal do primeiro filme, Michael Keaton e Winona Ryder. Confesso que não acho lá muito engraçado o Beetlejuice, mas talvez não tenha nascido para ser engraçado, apenas apresentar um humor estranho e, sendo assim, tudo bem. Em OS FANTASMAS AINDA SE DIVERTEM – BEETLEJUICE BEETLEJUICE (2024), Burton soube juntar os antigos efeitos práticos hoje retrôs e a computação gráfica com um bom resultado visual. E acho curiosos como os personagens masculinos são mostrados de maneira quase sempre pouco confiáveis. Não entendo muito bem os motivos, mas não deixa de ser algo que combina com outros trabalhos mais recentes de Burton que exaltavam as personagens femininas em detrimento dos abusos dos homens, como em ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (2010) e GRANDES OLHOS (2014), dentro ou fora do registro do fantástico.

COMO VENDER A LUA (Fly Me to the Moon)

Eis uma comédia romântica à moda antiga, tanto que parece até anacrônica, inclusive no modo esquemático do roteiro (o gato preto aparecendo como função importante é o melhor exemplo). Mas isso acaba fazendo bem ao tipo de história que se deseja contar, uma que se passa às vésperas da chegada do homem à lua, em 1968/69, com Scarlett Johansson no papel de uma mulher que esconde muitos segredos e que é convidada pelo governo americano a usar sua grande capacidade de convencimento para alavancar o interesse político pela corrida espacial, em momento de queda de popularidade, através de instrumentos de marketing e até dados falsos. O personagem de Channing Tatum no começo parece apenas o par romântico da história de amor, mas defende bem o personagem o suficiente para que ganhe força ao longo do desenvolvimento do enredo. O diretor de COMO VENDER A LUA (2024) é Greg Berlanti, o mesmo de COM AMOR, SIMON (2018), que não se destaca nos aspectos formais de seu trabalho, mas que consegue manter o interesse até o fim nesta agradável sessão da tarde.

sábado, outubro 05, 2024

VIAGEM À IRLANDA



Em outras circunstâncias um texto sobre minha viagem à Irlanda já estaria pronto há dias. Mas é difícil fazer isso quando o cansaço impera e há pilhas de demandas para resolver, ao mesmo tempo que há também o trabalho exaustivo de professor do ensino fundamental. Mas foi esse emprego que possibilitou minha inscrição no intercâmbio para essa viagem dos sonhos. Antes havia a possibilidade de uma viagem para os Estados Unidos de 30 dias através da Fulbright e da Capes em julho passado, mas minha pontuação, dois pontinhos acima, no Toefl, me desclassificou. No entanto, o certificado poderia ser aproveitado quando a prefeitura soltasse o edital da Irlanda, algo esperado. Poderia entrar na vaga de fluência em língua inglesa, pensei.

E quero deixar este espaço para agradecimento a minha noiva, Giselle, que esteve comigo, que acompanhou cada passo do processo e que vibrou até mais do que eu quando saiu o resultado final, com minha classificação. A Giselle me ajudou até com a documentação necessária. Um catatau de coisas exigidas na primeira e depois na segunda etapa, quando da classificação. E eu levei a Giselle pra viajar junto comigo, de certa forma. Conversávamos todos os dias à distância, mesmo com o fuso horário de quatro horas atrapalhando um pouco, e apresentava a ela, muitas vezes ao vivo, os lugares incríveis que conheci.

Então, quando cheguei ao último dia do curso, e a professora Fionnuala Tynan nos deu uma atividade inicial de desenhar como estávamos nos sentindo naquele momento, um sentimento de gratidão e de alegria imensos me envolveu. Então desenhei com uma tesoura e massinha de modelar uma carinha sorridente rodeada por pinguinhos amarelos formando um sol. Foi uma aula muito especial, que assisti com um brilho maior nos olhos e depois fiz questão de agradecer pessoalmente à professora por aquela aula incrível e cheia de afeto. Naqueles três últimos dias no país já havíamos provado do tempo habitual de lá, ou seja, com chuva, às vezes com muito vento. E escrevi embaixo do desenho a frase “Here comes da sun”, fazendo referência à canção dos Beatles. Foi quando caiu a ficha sobre o quanto aquele sol cantado por George Harrison é um presente mais do que bem-vindo para as pessoas que moram naqueles lugares (Reino Unido, Irlanda).

Quando chegamos lá, os professores irlandeses, com frequência, diziam que havíamos trazido o sol. E de fato tivemos a sorte de ganhar mais de uma semana e meia de dias com sol no período que lá passamos – fim de verão, início de outono. Aliás, quero deixar registrada aqui minha gratidão ao povo irlandês, que tão bem nos recebeu. Depois de sermos um pouco recebidos com patadas pelos portugueses durante a passagem por Lisboa, percebemos o quanto é raro termos uma nação que, apesar das diferenças culturais, nos abraça com tanto carinho.

O objetivo principal da viagem era conhecer o sistema educacional da Irlanda, tido como um dos mais bem-sucedidos do mundo, e fazermos comparações e talvez adaptações e trocas, a partir também de visitas às escolas. Era proibido tirar fotos das crianças das escolas, e por isso quase não há fotos nesses espaços, mas as visitas ficarão guardadas com carinho na lembrança. Gostei especialmente de uma escola pequena, a St. Michael’s National School, que juntava dois anos numa só sala, e cuja diretora escolheu três alunos para nos apresentarem às instalações. Nesse momento, tive que ser um dos intérpretes de um dos três grupos, uma tarefa que achei empolgante e divertida.



Éramos 25 selecionados para o intercâmbio, mais dois coordenadores, a Thaís e o Glauber. É natural que dentro dessas 27 pessoas, alguns grupos encontrem mais afinidade entre si. Durante os dias, costumava sair mais com meus roomates, o Leonardo e o Messias, e com as professoras Thaís, Jose, Rochelly (que eu sempre chamava de “Rochelle, Rochelle”, em referência a um episódio clássico de SEINFELD), a Lidiane e a Rosângela. As paradas finais geralmente eram nos pubs da cidade, mas como não bebo, a não ser uma cerveja sem álcool (achei os chopes zero de lá deliciosos), acabava não ficando tanto tempo assim com a turma.

Nas minhas escapulidas noturnas, inclusive, fui ao cinema três vezes (queria ter ido mais, claro), para ver três filmes de terror, NÃO FALE O MAL (a versão nova, em língua inglesa), STRANGE DARLING e A SUBSTÂNCIA. Gostava dessas escapulidas, que também eram uma forma de eu ter contato com a língua inglesa sem intérprete ou legendas, ainda que fosse apenas falando brevemente com os motoristas de Uber, os atendentes do cinema, ou escutando a conversa de pessoas na sala escura. Achei interessante no dia que fui parar numa lojinha de artigos indianos e encontrei um homem migrante que falou para mim dos benefícios do cravo – ele comprava um pacote e dizia o quanto aquilo era bom para a vitalidade, especialmente para a potência do homem. Logo mais, quando chamo o Uber, é este mesmo homem o motorista, e continuamos a conversa sobre alimentos com forte potencial afrodisíaco – lembrei a ele da canela e do gengibre, que meu saudoso amigo Santiago havia me ensinado.



As aulas, em sua maioria, aconteceram no Mary Immaculate College, e eu já estava me acostumando e gostando muito da rotina de acordar, comer aquele Irish breakfast caprichado, com direito a um feijão levemente adocicado (uma delícia), nos encontrarmos no saguão do hotel para ouvirmos a Thaís e depois seguirmos a pé, agasalhados para a universidade. Várias aulas tratavam de educação especial, com bastante atenção para crianças autistas, e tivemos aulas sobre os direitos das crianças, seu desenvolvimento cognitivo, o bem-estar na escola, a tecnologia na educação, a experiência de dois professores brasileiros na Irlanda, o gaélico irlandês (língua original) e a forte influência da Igreja Católica na educação irlandesa. A questão da inclusão causou alguma polêmica, pois na Irlanda, há escolas exclusivas para alunos especiais. Inclusive, conhecemos uma delas.

Como nem só de sala de aula se faz cultura, a programação também incluiu passeios a castelos de Limerick e de outra cidade próxima (acho que me esqueci de dizer que foi em Limerick onde ficamos, e infelizmente não deu tempo de incluir Dublin no passeio, pela distância e pelos horários dos transportes) e a igrejas muito antigas. Uma delas, aliás, a St. Mary’s Cathedral, é o prédio mais antigo de Limerick e tem um curioso registro da época em que as pessoas leprosas, não podendo entrar na igreja, assistiam à missa por um buraquinho. A senhora que nos apresentou à igreja contou do tempo em que o prédio foi fundado, em 1168, do ataque sofrido pelo exército de John Crowell, dos vários vitrais substituídos nos séculos XIX e XX etc. É a catedral mais bela que já vi na vida. Ah, e lá também acontecem espetáculos musicais e sinfonias.

Entre os outros lugares visitados por nós, destaque para os Cliffs of Moher, uma das principais atrações turísticas da Irlanda, e um dos lugares mais belos, com falésias verdes à beira do oceano. Alguns filmes contaram com os Cliffs como locação, como HARRY POTTER E O ENIGMA DO PRÍNCIPE, A PRINCESA PROMETIDA, A FILHA DE RYAN e OS CANHÕES DE NAVARONE. O outro local lindíssimo que conhecemos foi a cidade costeira de Dingle e sua península. É mais um lugar de encher os olhos e é uma cidade que sabe se beneficiar da localização para lucrar com muitas lojinhas de souvenirs. A praia é linda, mas não vemos ninguém tomando banho nela. Até porque, com aquele frio, é complicado mesmo. Ah, e numa sexta-feira, fizemos um passeio de barco adorável numa localidade chamada Killaloe.

Uma experiência que merece um parágrafo à parte é a noite do banquete medieval no Castelo de Bunratty. Estava na programação e era algo bastante aguardado. Antes do jantar, pudemos conhecer um pouco o vilarejo que é mantido para visitação, como uma espécie de museu dos tempos passados, da época medieval, com casinhas com cheiro da fumaça que não vai embora totalmente pelas chaminés. Um local adorável e apesar da leve chuva foi muito bom caminhar por lá. Na hora de sermos recebidos para o jantar, vimos que se tratava também de uma experiência ao mesmo tempo imersiva e teatral, com um grupo de artistas que atuava, cantava, fazia piadas e ainda servia as mesas. Tivemos pão com sal, uma bebida que não reconheci, sopa de carne, costelinha de porco e frango cozido, além de uma sobremesa e café no final. Tudo muito bom em duas horas que passaram voando e provocaram muitas risadas. Inclusive, dois dos nossos colegas foram escolhidos rei e rainha pelo ator vestido em trajes característicos da época, o Tércio e a Marília. Uma excelente noite.



Enfim, foram 15 dias de vivência feliz. E até pude conhecer um pouco de Lisboa, no intervalo para o voo para Dublin. Saí com Janne e Darliane para andar pelo Centro Histórico de Lisboa. Lugar lindo demais. E depois de um excelente almoço, pude experimentar na rua o pastel de nata. As visitas aos pubs são casos à parte, pois cada lugar tem sua cara própria, alguns mais escuros, outros mais familiares, alguns servindo comida, outros apenas bebidas. Também vale destacar o fato de que ficamos numa cidade pequena e que isso contribuiu para que andássemos muito a pé e fôssemos conhecendo aos poucos outros locais, outras lojas. Conheci poucas livrarias, mas comprei numa delas Film Noir, o livro da Taschen que traz a Peggy Cummins (MORTALMENTE PERIGOSA) na capa, e noutra, comprei a edição de outubro da Sight & Sound, com Francis Ford Coppola na capa e que conta com uma entrevista deliciosa de Martin Scorsese, papeando com Edgar Wright sobre o cinema britânico, a partir de uma lista de 50 importantes títulos, feita pelo próprio Scorsese.

Se eu ficar buscando mais lembranças, muitas virão. Deixei algumas fotos no meu Instagram pessoal, em que registrei quase todos os dias. Anotei várias coisas das aulas para aplicar na escola e em seguida elaborar um projeto. E guardarei com muito carinho a companhia dos colegas que lá conheci. Das brincadeiras descontraídas (a história da cama de casal do hotel rendeu bastante), das piadas de tiozão que eu às vezes trazia, da ótima recepção de brasileiros que moram lá, como o Giovanni, a Lívia e a Ketlin, do acompanhamento atencioso da Germânia, da atenção da turma como um todo, que cuidava um do outro. Muita gratidão a todos os envolvidos e muito feliz de ter experienciado, visto, sentido na pele (gosto tanto do vento frio quanto do sol) e provado nesses dias. Tenho certeza que se cada um parar para contar, como eu fiz agora, sua experiência nessa viagem teremos visões complementares, mas todas de contentamento de cada momento passado no país de James Joyce, W.B. Yeats, Oscar Wilde, U2, The Cranberries, Damien Rice, Saoirse Ronan etc.

E, no final, a alegria de ser recebido pela Giselle no aeroporto, com um balão gigante escrito “Eu te amo”, isso não tem preço, minha gente. É muita alegria para um coração só.



domingo, setembro 29, 2024

STRANGE DARLING



Minha viagem para a Irlanda foi maravilhosa. E eu ainda quero parar um pouco para escrever pelo menos um relato resumido do que foram os 15 dias em território de James Joyce, W.B. Yeats e Oscar Wilde. Mas foi lá na Irlanda que eu também, ao fugir um pouco da ida quase diária da turma aos pubs, optei por ir ao cinema sozinho. E, entre as opções disponíveis, me chamou a atenção um filme chamado STRANGE DARLING (2023), dirigido por um nome que desconhecia, JT Mollner, passando numa salinha pequena de um dos maiores multiplexes de Limerick. Aliás, é uma pena que o filme tenha passado numa sala tão pequena e esteja sendo visto por uma audiência pequena, pois certamente seria um sucesso dentro de uma sala grande e com uma audiência grande, que urraria diante de tantas cenas intensas e de plot twists de cair o queixo.

Comprei a nova Sight & Sound nesta minha passagem pela Irlanda e a primeira matéria que li foi “Retro Horror – Why Modern Horror Is Thrall to the Past”, texto de Roger Luckhurst que cita títulos recentes do cinema de horror que parecem olhar com muito interesse para o passado. Casos de LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL, I SAW THE TV GLOW (esse ainda não vi), O TELEFONE PRETO, A PRIMEIRA PROFECIA, a trilogia “X” de Ti West, A VASTIDÃO DA NOITE etc. Isso só pra citar alguns filmes mencionados na matéria.

Este STRANGE DARLING, se não se passa nas décadas passadas, já começa com um aviso de que foi filmado em 35mm. O que achei incomum. Não a filmagem em película em si, mas a informação explícita. É como se o filme quisesse trazer de volta o palpável no mundo digital. E logo vemos, claro, a textura mais característica da película. Inclusive nas cores mais vivas, o vermelho mais intenso, nas cenas em que os capítulos remetem mais à violência, e o azul, nas cenas mais fechadas e intimistas. Aliás, o diretor de fotografia do filme é o ator Giovanni Ribisi!

Antes de mais nada, fui ver STRANGE DARLING sem saber quase nada do filme. E essa é a melhor coisa a se fazer, já que surpresas acontecem. Além do mais, a própria opção da narração por capítulos embaralhados contribui para essas surpresas muito bem- vindas, que facilmente nos remetem a PULP FICTION – TEMPO DE VIOLÊNCIA, de Quentin Tarantino, e sua montagem em capítulos. Aliás, ele fez o mesmo em KILL BILL, com muito sucesso. Mas acredito ser mais fácil lembrar de PULP FICTION.

Essa narração por capítulos embaralhados contribui para deixar o espectador no mínimo muito intrigado, além de tenso, já que a primeira imagem que vemos é a de uma mulher ferida e aterrorizada, correndo, muito possivelmente, de seu algoz, muito provavelmente o serial killer mencionado no texto de abertura, que diz que o filme é uma história real de algumas das últimas matanças nessa magnitude de um serial killer americano, que começou uma série de mortes entre os anos de 2018 e 2020.

Gostei muito do quanto o filme é forte na condução de uma trama cuja maior parte do tempo quase não tem diálogos e do suspense e da tensão sempre presentes. Eis uma obra que merece muito a atenção não só dos fãs do cinema de horror, mas dos cinéfilos como um todo. Afinal, estamos vivendo um momento excitante em que o cinema de horror voltou a ser extremamente atraente e empolgante, como gênero em si, mas também como reflexo de nossas ansiedades e da nossa sociedade doente.

O filme deve muito às performances dos dois atores principais: Willa Fitzgerald (A QUEDA DA CASA DE USHER) como “the lady”, e Kyle Gallner (SORRIA) como “the demon”. Além do mais, há participações especiais dos veteranos Barbara Hershey e Ed Begley Jr. Outro ponto positivo está na trilha sonora, não só pela cover muito bacana de “Love Hurts”, do Nazareth, por Z Berg, mas pelas canções originais de Berg, em tons sombrios e com letras cheias de lirismo.

Tentei ao máximo não contar detalhes sobre a trama, pois o filme ainda está inédito no Brasil. E não seria legal tirar esse gostinho dos futuros espectadores. STRANGE DARLING já está no meu top 3 do ano, até o momento. E eu gostaria muito de revê-lo nos cinemas. Espero que alguma distribuidora brasileira o tenha comprado. Se não compraram, estão vacilando feio.

+ TRÊS FILMES

NÃO FALE O MAL (Speak No Evil)

O remake do homônimo dinamarquês de 2022, se não é tão pancada quanto, traz mudanças no enredo que o beneficiam, que o tornam de certa forma até melhor, trazendo um pouco de poesia em meio a tanto mal-estar e violência, especialmente psicológica. A escalação do elenco de NÃO FALE O MAL (2024) ajuda muito, principalmente Mackenzie Davis como a mulher forte do casal convidado a passar uns dias com um casal estranho que conhecem numa viagem à Itália. O sujeito que os convida é muito bem defendido por James McAvoy, que encarna brilhantemente uma pessoa perturbadora. O diretor James Watkins é o mesmo do ótimo e sangrento SEM SAÍDA (2008) e por isso tem experiência em entregar um produto cheio de terror e muita tensão. Ambos os filmes são exemplares do horror mais “real”, sem a necessidade de fantasia ou sobrenatural para nos fazer sentir medo. A poesia, ou melhor, um tipo de poesia mais sensível, menos brutal, está na última imagem. O menino mudo ainda conta com uma cena que entra em sintonia com outros dois filmes recentes e bem distintos, e que me fez pensar no quanto estamos vivendo uma necessidade de explodir e, de preferência, matar aquilo que nos atormenta no fim do processo. (Os filmes recentes a que me refiro são IMACULADA e MAIS PESADO É O CÉU.)

LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL

Até que estou em dia com os filmes de Osgood Perkins, mesmo não tendo me esforçado muito para tal. Este é o quarto longa-metragem do realizador e o que mais está fazendo barulho. Um barulho um tanto exagerado, eu acho, e que tem trazido certos problemas no quesito expectativa. Mas LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL (2024) é um terror plasticamente tão bonito que fica difícil não valorizá-lo. O que me deixou incomodado foi o quanto o filme não foi eficiente em fazer com que as cenas mais chocantes ou aterrorizantes me pegassem. O que eu gosto no filme é o quanto ele subverte o gênero policial de investigação de crime e reveste de um tom de pesadelo, que tem muito a ver com o que uma personagem que acorda de um coma diz que tem a sensação de estar vivendo um longo sonho. Mas é preciso embarcar na proposta ou na viagem para ter uma experiência no mínimo boa. Gosto muito de como a Maika Monroe e o Blair Underwood se completam como agentes do FBI de estilos totalmente diferentes, sendo que ela é uma pessoa que está em constante estado de ansiedade e desconforto. Aliás, eu até queria ser contaminado no filme por esse desconforto da personagem, mas acho que acabei ficando muito confortável com a construção visual, com a beleza das imagens que me ganharam nesse aspecto, mas que acabaram por me afastar do que mais me importaria. No mais, Nicolas Cage está de fato um vilão e tanto. P.S.: O satanismo voltou de vez para o cinema de horror? Este já é no mínimo o quarto filme badalado com esse tema lançado em 2024.

O MAL NÃO EXISTE (Aku Wa Sonzai Shinai)

Este é o quarto filme de Ryûsuke Hamaguchi que vejo e a única coisa que encontro em comum em seus trabalhos, se não me engano, e sem reler meus textos passados, é o gosto por planos longos, em especial com diálogos longos. O MAL NÃO EXISTE (2023) começa com cenas silenciosas, imagens da natureza de uma área rural do Japão, com árvores altas, um rio limpo e um espaço onde os cervos habitam. Esse cenário paradisíaco é ameaçado com a chegada de uma empresa com o plano de construir um retiro no vilarejo, algo que vai mexer com a estrutura do lugar, inclusive com a água. Os habitantes não gostam nada e se revoltam durante reunião de apresentação do projeto. O filme fica mais interessante quando mostra também o ponto de vista daquelas duas pessoas que vieram apresentar o projeto. O filme recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza e o prêmio da crítica (FIPRESCI), além de outros dois prêmios menores no mesmo festival, sendo que um deles é dado a obras com o tema do meio ambiente. Confesso que não está entre os meus favoritos do realizador, mas é, sim, um trabalho de quem, claramente, tem pleno domínio de sua arte. E só por isso já é de dar gosto.

sábado, setembro 14, 2024

TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO (Witness for the Prosecution)



Experimentando preparar uma postagem para o blog num aeroporto, o de Salvador, enquanto aguardo um voo com destino final para Dublin. Minhas colegas de grupo estão conversando e eu vim carregar meu celular. Ótimas chances de serem ótimos 15 dias em minha vida, um presente de Deus. Mas quem é cinéfilo fica logo pensando em meios de ver filmes dentro desse programa. De preferência numa sala de cinema. Acho que vai dar certo. Oremos. Enquanto isso, atualizemos este espaço tão abandonado para falar sobre um grande clássico da Velha Hollywood.

Nunca fui de destacar mais a atuação de um intérprete do que o filme em meus textos. A não ser em casos especiais. E fazer isso pode dar a impressão de que estaria diminuindo o filme ou a direção. Mas diminuir TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO (1957), baita drama (com toques de comédia e suspense) de tribunal, e sei diretor Billy Wilder, que o dirigiu pensando em fazer um thriller divertido com toques hitchcockianos, seria uma injustiça.

Pois bem. Acontece que o que mais me encantou neste filme foi Charles Laughton. E achei isso curioso, já que havia visto o ator em outros quatro filmes (A ESTALAGEM MALDITA e AGONIA DE AMOR, ambos de Alfred Hitchcock; OS AMORES DE HENRIQUE VIII, de Alexander Korda; e, mais recentemente, A ILHA DAS ALMAS SELVAGENS, de Erle C. Kenton) e não tinha percebido toda essa grandeza, todo esse brilho. Dizia-se que na época da realização do filme de Wilder, na maturidade, ele vivia uma das melhores fases de sua vida: havia deixado de fingir que era hétero e ter um casamento de conveniência e estava feliz com um outro homem.

TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO (1957) logo de início nos ganha pelo humor, e depois vi que o sucesso desse humor estava não apenas no domínio e no estilo característico de Wilder, mas na presença vibrante de Laughton, definitivamente um dos maiores atores de todos os tempos e aqui no papel de um advogado de defesa com a saúde frágil de maneira deliciosa. É difícil não se encantar com o ator, que havia também marcado seu nome na história do cinema dois anos antes, dirigindo o cultuado O MENSAGEIRO DO DIABO.

Curiosamente, eu não tinha visto TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO até um dia desses por ter um pouco de preguiça de filmes de tribunal. Mas este aqui é tão divertido que acho quase impossível alguém não gostar. Tive dois empurrõezinhos: o livro da Versátil sobre filmes de tribunal e o BluRay Wilder Essencial, também da Versátil, que traz o filme, o único dos quatro totalmente inédito para mim, em imagem e som cristalinos, de dar gosto.

Na trama, Tyrone Power é um sujeito simpático que é o principal suspeito de ter assassinado uma senhora idosa. Acontece que, para surpresa dos advogados, a esposa do homem parece mais disposta a depor contra ele do que a favor. Fiquei surpreso pelo papel relativamente pequeno de Marlene Dietrich, mas com Laughton em cena a gente até esquece da pouca presença de qualquer outro ator. Ainda assim, as cenas de flashback que o personagem de Power conta são deliciosas, especialmente a que ele relembra do dia em que conheceu sua esposa numa Alemanha destruída pela guerra. Essa é a cena mais sensual do filme, e que convida o espectador a fazer um exercício de complementação entre o visual e a palavra oral. Inclusive, Dietrich faz lembrar seu papel em O ANJO AZUL.

Quanto ao plot twist, é mesmo importante ver o filme sabendo o mínimo possível da trama. Num dos extras no BluRay, destaco um sobre Laughton, que conta que daquele momento feliz da vida do ator. E que a atriz que faz a personagem da enfermeira (Elsa Lanchester, indicada ao Oscar) havia sido sua esposa por um longo tempo no passado, num casamento obviamente complicado, e neste filme eles se encontraram novamente, resultando em cenas muito divertidas

TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO foi baseado num conto de Agatha Christie publicado originalmente em 1925 e que virou uma peça de teatro de sucesso em 1953. Quem teve a ideia da adaptação foi Dietrich, mas ela só queria Wilder na direção. E felizmente o diretor aceitou e fez algo antológico com sua assinatura.

+ TRÊS FILMES


STOP MAKING SENSE

Ver STOP MAKING SENSE (1984) no cinema e em especial na sala IMAX é um privilégio e tanto. Eu, que nunca fui fã dos Talking Heads, fiquei muito empolgando com o show, mas também muito feliz de estar vendo um trabalho feito também como cinema. Quem dera outras grandes bandas tivessem também a sorte de ter um filme dirigido por um cineasta de verdade e com afinidades entre si, como é o caso de Jonathan Demme e a banda de David Byrne. É só lembrar que nos anos 1980, o cineasta havia parido filmes quentes e com forte presença da música, como TOTALMENTE SELVAGEM (1986) e DE CASO COM A MÁFIA (1988). O "maior filme-concerto de todos os tempos", como afirma o cartaz do relançamento da A24, é de fato empolgante do início ao fim. Desde o instante em que Byrne chega com um rádio daqueles típicos dos anos 80 e um violão para tocar uma versão acústica de "Psycho Killer", passando pela chegada da baixista, e depois com o surgimento da banda inteira e a disposição de fazer com que cada canção seja um evento visual único, tudo nos faz ter vontade não apenas de nos aprofundar mais no som da banda, mas de voltar àquele filme novamente, a essa experiência cinematográfica e musical sem igual novamente. Byrne diverte e impressiona com seus movimentos, sua dança e sua energia. De certa forma, fiz bem em não ter ligado muito para a crítica da SET lá do início da minha cinefilia e alugado o filme em VHS, já que ver pela primeira vez numa sala de cinema não tem preço.

OS FANTASMAS SE DIVERTEM (Beetlejuice)

Na época que tomei a decisão de me tornar cinéfilo OS FANTASMAS SE DIVERTEM (1988) já havia sido exibido nos cinemas. E mesmo com todos os elogios da crítica, durante todos esses anos, nunca havia parado para ver o filme. Eis que a sequência vindoura fez voltar em cartaz a hoje clássica comédia que mostra o ponto de vista dos fantasmas que querem expulsar os novos habitantes da casa, em vez da tradicional história de assombração do ponto de vista dos assombrados. Aliás, os novos habitantes quase não são assombrados: querem mesmo é tirar proveito de terem fantasmas em casa para lucrar. Exceto a personagem da garota vivida por Winona Ryder, que na época ainda não tinha atingido a maioridade. Ryder fica amiga do casal de falecidos. Um dos grandes baratos de ver este filme no cinema hoje é perceber o quanto Tim Burton quis apresentá-lo como algo bem artesanal, quase caseiro. Os efeitos visuais não buscam o realismo, e vez por outra passa a impressão de estarmos vendo uma animação. Foi o segundo longa para cinema de Burton, mas o aspecto de produção de baixo orçamento só fica dissonante com a presença de astros do primeiro time de Hollywood - Michael Keaton, Geena Davis, Alec Baldwin e Winona Ryder. Depois desta sessão da tarde anárquica, foi dada a Burton a missão de dirigir BATMAN (1989), projeto ambicioso que fez à sua maneira e novamente com seu amigo Keaton. Mesmo não sendo um fã do cineasta, é difícil não reconhecer seus méritos e suas conquistas. Nunca deixei de ver nenhum filme dele lançado nos cinemas, inclusive.

O SAMURAI (Le Samouraï) 

Sou praticamente um ignorante no cinema de Jean-Pierre Melville. Antes deste filme só havia visto TÉCNICA DE UM DELATOR (1962), que talvez até tenha gostado mais - principalmente por sua violência brutal, que me pegou de surpresa. O SAMURAI (1967) é mais melancólico, ainda que uma melancolia mais centrada na forma e no estilo, menos preocupada na trama. O filme deixa escapar o espírito de seu tempo, um momento mais aberto a experimentações formais. O personagem de Alain Delon é um homem que é pago para matar as pessoas e em determinado momento ele é tido como o principal suspeito de um homicídio pela polícia, o que o coloca num jogo de gato e rato pelas ruas e metrôs de Paris. Delon traz olhares ambíguos e pouco evidentes em seus gestos e suas ações e o filme usa muito pouco as palavras para contar a história, principalmente por parte do personagem de Delon, que fala somente o necessário, acentuando tanto o mistério quanto a elegância (seu sobretudo e seu chapéu são tão importantes que ele não os descarta quando efetua o primeiro crime do filme). Na época que vi O ASSASSINO, de David Fincher, muito se falava de O SAMURAI. Agora compreendo e acho justa a comparação.

domingo, setembro 08, 2024

FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE



O cinema que reflete sobre a vida e sobre a própria arte. Que reflete sobre a vida de uma mulher, como artista e como pessoa, e no caso de Fernanda Young essas duas coisas não são exatamente separadas. Pelo menos, é a impressão que fica depois que vemos FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE (2024), de Susanna Lira. No IMDB também consta o nome de Clara Eyer como codiretora, mas nem todos os sites apresentam o nome de Clara nessa função. De todo modo, o fato de termos um documentário sobre uma mulher e dirigido por uma mulher faz toda a diferença aqui.

Conhecia muito pouco o trabalho de Young. Só havia visto alguns episódios soltos de OS NORMAIS (2001-2003), série que ela escreveu com o marido Alexandre Machado. Também percebo que vi alguns filmes que ela assinou o roteiro, como BOSSA NOVA, de Bruno Barreto e MUITO GELO E DOIS DEDOS D’ÁGUA, de Daniel Filho, mas o grosso do trabalho dela dentro do audiovisual foi para a televisão, principalmente para a Rede Globo.

Vendo o documentário fica claro que ela se via como escritora e ficava um pouco triste de ver que sua obra literária não era devidamente valorizada pelos seus colegas escritores, talvez por seu envolvimento com a televisão ou por seu visual tatuado. Ou quem sabe até por seu ensaio para a revista Playboy. Vendo o filme também percebemos o quanto se desnudar era natural para Young, que achava que o desnudar-se através da poesia era muito mais difícil, ainda que uma necessidade de seu espírito.

A grandeza de FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE está no fato de que é mais do que um filme-ensaio de apresentação de uma artista: é também um filme sobre amor, dor, dislexia, atitude punk, depressão, ansiedade e ser mulher neste mundo. Inclusive, um dos momentos que mais me chamou atenção é sua participação no programa SAIA JUSTA. Ela fez parte da primeira formação do programa, de 2002, junto com Rita Lee e Marisa Orth. Chamou-me a atenção o modo como ela trouxe, com muita sensibilidade, uma canção de Madonna, “What it feels like for a girl”, de modo que nos convida a tentar entender ou refletir sobre o que a letra diz. Outro trecho de música que ela traz – e traz para si, para sua própria vivência – é “Os Cegos do Castelo”, dos Titãs (composição de Nando Reis), uma canção um tanto cifrada, e que ganha um novo olhar com sua tradução, por assim dizer.

O primeiro tópico que o filme traz é o amor. E acredito que Fernanda Young teria aprovado essa opção de Susanna Lira. E ouvir a escritora cantando o clássico de Roberto Carlos “As Canções Que Você Fez pra Mim” no karaokê, depois de ouvirmos na gravação original, é o pontapé inicial desse capítulo do filme, onde vemos trechos de programas de TV que ela roteirizou, como SHIPPADOS, ODEIO SEGUNDAS ou OS NORMAIS, um convite a percebermos em criações artísticas geralmente menos valorizadas sua autoria. Tanto, talvez, quanto em seus livros (de prosa e poesia), vários deles citados na voz de Maria Ribeiro e que se mostram um verdadeiro convite a adquiri-los, como A Sombra das Vossas Asas (2011), Dores do Amor Romântico (2012), Vergonha dos Pés (2012), A Mão Esquerda de Vênus (2016), Pós-F: Para Além do Masculino e do Feminino (2019), Posso Pedir Perdão, Só Não Posso Deixar de Pecar (2019), entre outros.

Inclusive, eu diria que um dos motivos de nos apaixonarmos por Fernanda Young e pelo filme está nos excertos desses livros, desses escritos, dos trechos pungentes que queremos fixar, anotar em algum lugar. Quando saí do cinema, aliás, vi uma das espectadoras dizendo que pretende ver o filme novamente, e isso realmente é uma vontade que temos. Vontade de abraçar o filme, abraçar aquela mulher, abraçar a artista que ficou e o quanto soube falar tão bem das dores e das perturbações provocadas pela depressão e pela ansiedade. Mas ela fala tudo de maneira tão apaixonada que é difícil não se pegar também apaixonado.

Achei muito interessante quando ela falou que usava a depressão como agente para que ela trabalhasse e saísse pra correr, se exercitar. Não como algo que paralisa, embora ela deixe claro que a doença chega nas pessoas de maneira muito diferente. Uma coisa que adorei foi a ideia que ela teve de colocar um aviso com uma luz escrito “divina” na porta de seu quarto, para acender nos momentos que estivesse trabalhando, nos momentos que estivesse inspirada e colocando pra fora essa inspiração.

O documentário usa vários trechos de filmes para ilustrar suas obras literárias e para entrecortar imagens de arquivo, como que colocando num plano onírico as suas falas, os seus pensamentos. Como se esses pensamentos fluíssem para muito além do nosso plano terreno. As imagens em preto e branco de filmes variados, de artistas como Man Ray, Maya Deren, Joseph Losey e Dziga Vertov, entre outros, se harmonizam com seus poemas e trechos de prosa.

Fiquei muito feliz de ter visto esse filme. E ainda saí do cinema escutando no carro Madonna e Roberta Miranda.

+ TRÊS FILMES

NADA SERÁ COMO ANTES – A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA

Tenho que confessar que até hoje não consegui entrar no clássico álbum Clube da Esquina. Por entrar, quero dizer compreendê-lo mais profundamente, principalmente pelo caminho das emoções (que é o que mais faz sentido pra mim, em se tratando de música). Certamente me faltou dedicação, mas também faltou, até o momento, uma identificação maior. Junte-se a isso, no caso da sessão, um sono proveniente da crise alérgica no horário tradicional das 18h e eis que o resultado foi uma sessão bem ruim. A impressão que ficou de NADA SERÁ COMO ANTES – A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA (2023), de Ana Rieper, foi de um especial para a televisão, com entrevistas dos envolvidos no disco. Há poucas imagens de arquivo e mais uma busca de reconstituição através de depoimentos muitas vezes apaixonados, especialmente de Lô Borges. Não entendi a escolha da diretora por uma janela scope para um documentário quadrado como este.

TODAS AS VIDAS DE TELMA

Temos aqui mais um filme que me enganou direitinho. TODAS AS VIDAS DE TELMA (2022), de Adriana Botelho, pega uma história real (de uma mulher chamada Telma Saraiva) e a partir daí cria uma narrativa de ficção com características de documentário de busca. Até mesmo a personagem que manipula a câmera é uma criação da diretora e roteirista. O filme foi rodado em 16 mm e depois convertido em digital com som adicionado e esse formato causa uma agradável estranheza. Faz lembrar VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO, de Aïnouz e Gomes, inclusive nas cenas em que a protagonista está na estrada, se dirigindo à cidade de Crato-Ce, local onde viveu a mulher que fazia fotopinturas (lembro que o costume dessas fotos pintadas chegou a minha casa na minha infância; hoje parece artigo de museu, pouca gente quer exibir nas paredes). Para completar, a história acontece durante a pandemia, mas com as pessoas viajando e fazendo turismo com certa leveza. Acho que me perdi um pouco lá perto do final, com o filme trazendo outras questões também, como o machismo em todos os lugares públicos e a invisibilidade do legado de Telma e a lembrança da cidade do Crato de décadas atrás.

INCOMPATÍVEL COM A VIDA

Eis um filme que nasce não apenas de uma dor, mas de várias. Afinal, o assunto que a diretora Eliza Capai traz para INCOMPATÍVEL COM A VIDA (2023) é o das gestações interrompidas, por má formação do feto, ou perda da criança bem no inicio do nascimento. Perdi no cinema, mas o filme entrou na MUBI, em glorioso 4K, que valoriza as cenas que envolvem mares ou rios. Afinal, o simbolismo da água ainda é algo forte quando se fala sobre maternidade e funciona muito bem, tanto para momentos de respiro das histórias quanto para enfatizar a dor das mulheres. O flme também traz à tona a questão da proibição do aborto no Brasil em comparação com o Portugal, que está bem mais adiantado na questão. Achei corajosa a proposta de Capai em mostrar a si mesma naquela situação, e também muito inteligente em trazer paralelismos com casos similares de outras mulheres, fazendo com que essas experiências ganhem mais força e voz. Uma das coisas que me pegou muito foi uma cena de despedida, cheia de amor. Não estava esperando, e, nesse sentido, a montagem é crucial para que o momento certo de certas partes seja anunciado num instante mais sábio.

quinta-feira, agosto 15, 2024

MAIS PESADO É O CÉU



A figura de um bebê (ou de um feto) é recorrente nos trabalhos de Petrus Cariry. Em MÃE E FILHA (2011) a criança nasceu morta, mas a avó, em negação, prefere niná-la, “botá-la para dormir” na rede. A criança, geralmente associada ao futuro, deixa de existir. Como se o futuro também não existisse, o que existe são apenas paisagens desérticas, casas abandonadas, fantasmas. Em A PRAIA DO FIM DO MUNDO (2021), a criança está prestes a nascer. Uma das personagens está grávida e quer sair daquela cidade prestes a ser invadida pelo mar. Sua mãe, no entanto, não quer ir embora. Prefere ficar e até mesmo rasgar suas fotos, rasgar todos os seus registros de memória, como se tivesse a intenção de matar também o seu passado.

Em MAIS PESADO É O CÉU (2023), a criança está viva e chora constantemente para ser alimentada, como se fizesse questão de viver, não importando o mundo frio e tenebroso que receberá de herança. Ela fora abandonada dentro de um barco à beira do Açude Castanhão e é encontrada por Teresa (Ana Luiza Rios, O CLUBE DOS CANIBAIS), uma mulher que já morou na extinta cidade de Jaguaribara, agora coberta pelas águas. No caso da criança de MAIS PESADO É O CÉU, ela é agente propulsora da sobrevivência, já que ela, mais à frente batizada de Miguel, passa a ser o ponto de união para o casal vivido por Teresa e Antônio (Matheus Nachtergaele). Em comparação com as demais crianças, essa é a que mais parece ter um futuro, seja lá qual for esse futuro.

O universo de Petrus Cariry é para os fortes. Mas mesmo os fortes às vezes se veem numa situação tão difícil que acreditam que não vão mais suportar. MAIS PESADO É O CÉU, mesmo sendo um filme duro, eu diria que é o mais clássico do diretor, mas, como dá para perceber, ele faz isso sem deixar de lado suas marcas, suas obsessões. Talvez por isso seu sétimo longa tenha chegado ao circuito antes do excelente sexto, A PRAIA DO FIM DO MUNDO, mais hermético, por assim dizer.

O novo filme é mais convidativo ao grande público. Trata-se de uma espécie de "road movie a pé" com dois personagens vivendo vidas miseráveis numa cidade próxima a um açude que cobriu uma cidade inteira – há diversos diálogos sobre essa falta que a cidade faz, como se fosse uma falta na alma. E os diálogos muitas vezes são ditos em tom antinaturalista, o que causa um estranhamento bem-vindo. Na trama, Antônio e Teresa são duas pessoas que não têm para onde ir e que se encontram junto ao bebê que logo é "adotado" por ela e depois pelos dois. Teresa nunca chega a dizer que a criança não é sua, como se aquela criança fosse uma espécie de presente de Deus. 

Em busca de um trabalho ou de qualquer coisa que traga um pouco de comida e sustento, andam feito fantasmas, feito mortos-vivos numa cidade que não os acolhe, a não ser por uma mulher (Sílvia Buarque), que parece destruir seus sonhos de sairem daquele lugar. Em alguns momentos parece uma espécie de O ANJO EXTERMINADOR, o filme de Luis Buñuel em que pessoas ficam presas misteriosamente numa casa. Aqui o espaço é maior, uma cidade com pessoas bem pouco afáveis (o que faz lembrar um pouco o incrível PELOS CAMINHOS DO INFERNO, de Ted Kotcheff), e isso vai se tornando ainda mais visível na busca de Teresa pelo dinheiro de cada dia, nas estradas. Essa busca pelo dinheiro é extremamente dura para a mulher: prostituir-se por uma miséria com caminhoneiros agressivos.

Petrus, como excelente diretor de fotografia que também é, enche a tela com aquele céu azul e bonito, mas que se torna ameaçador nos momentos finais, com as nuvens carregadas e com a trilha sonora de João Victor Barroso, que vai impregnando aos poucos a vida daquelas duas pessoas (e do bebê) de um ar crescente de perigo, mas um perigo diferente do que geralmente vemos em filmes de horror. No entanto, sabemos, sim, do carinho que Petrus tem pelo cinema de horror e como ele mesmo tratou de contribuir para o gênero mais explicitamente em CLARISSE OU ALGUMA COISA SOBRE NÓS DOIS (2015) e mais sutilmente em quase todos os demais trabalhos.

Aqui o perigo de um assassino à solta precisa disputar com a angústia e a falta de perspectiva dos heróis, esse sim o grande horror, o horror do dia a dia, o horror de morrer de fome, de perder cada vez mais o que lhes resta de dignidade. Tanto que em determinado momento, ao olhar para fotografias antigas de pessoas velhas e mortas, Antônio chega a pensar se não seria melhor estar morto. Até mesmo a cena de sexo entre os dois é uma cena totalmente despida de sensualidade, de vida mesmo. Teresa faz sexo com seu companheiro talvez por pena, ou talvez porque suas experiências sexuais de sobrevivência tenham sido apenas com pessoas destituídas de amor e ela quisesse um pouco de ternura.

A fotografia em scope, deslumbrante, valoriza os espaços da tela e nos traz aquela certeza de que é o cinema, a telona, e não a telinha da tevê, o lugar ideal para ver um filme dessa magnitude, de um de nossos maiores autores.

+ TRÊS FILMES

A METADE DE NÓS

Para um filme que se propõe a tratar do luto de um casal de idosos diante da perda do filho que cometeu suicídio, não sei se me senti tão comovido ou tocado. De todo modo, A METADE DE NÓS (2023), de Flavio Botelho, não tem uma estrutura de um melodrama. Sua abordagem é mais seca e mais dura, inclusive com a ausência de música. O filme fica um pouco mais problemático no momento em que passa a mostrar as diferentes maneiras com que os personagens de Denise Weinberg e Cacá Amaral lidam com a ausência do filho e o desconhecimento de seus problemas. Ainda assim, é um filme que se mantém sempre intrigante e interessante. O uso de uma fotografia em tons frios ajuda a compor o universo retratado.

UMA FAMÍLIA FELIZ

José Eduardo Belmonte faz sua segunda parceria com Grazi Massafera, mais de dez anos depois do muito interessante BILLI PIG (2012). Desta vez, sai a comédia e suas cores vibrantes, entra o suspense com toques de terror associado a muitas cenas escuras (infelizmente a sala 11 do Iguatemi também não estava em suas melhores condições e a fotografia de penumbras acaba ganhando esse elemento que mais prejudica). UMA FAMÍLIA FELIZ (2023) é um jogo de aparências, que vai deixando pistas e dúvidas sobre as ações dos personagens, seja a protagonista (Eva, Grazi), seja o marido (Vicente, Reynaldo Gianecchini). Eva é uma mulher que tem uma empresa de confecção de bonecas hiperrealistas que tem uma criança com o marido, Vicente, um homem carinhoso, mas que de vez em quando se apresenta pouco compreensivo com ela. O filme vai ganhando contornos de suspense gradualmente, mas o tom já é dado a partir do prólogo, retirado de uma cena de sua parte final. O jogo que Belmonte faz com o cinema de horror mais clássico é muito interessante, tanto quando apresenta as bonecas, quanto quando mostra as gêmeas, que às vezes lembram as meninas fantasmas de O ILUMINADO. As duas meninas são filhas do casamento anterior de Vicente, mas tratam Eva como mãe e certas informações são passadas muito suavemente ao longo da trama. O ideal é ver o filme sabendo o mínimo possível, de modo que as viradas de roteiro sejam melhor apreciadas. Vale destacar também a excelente performance de Grazi. Em alguns momentos, sua atuação faz lembrar a de protagonistas de filmes de Roman Polanski, como REPULSA AO SEXO e O BEBÊ DE ROSEMARY, esse último por conta do sentimento de paranoia por que ela passa, e que contamina a audiência. O filme é baseado no romance homônimo de Raphael Montes, escritor que se tornou mais famoso recentemente, graças ao sucesso da série BOM DIA, VERÔNICA. Aqui ele assume também o papel de roteirista.

REPRESA

Foi interessante ver REPRESA (2023) um dia após ter experienciado A CIDADE DOS ABISMOS. Sair de uma obra tão experimental e mais vanguardista, por assim dizer, para assistir a uma narrativa mais naturalista e aparentemente simples foi quase um choque. Felizmente um choque muito bom, já que o diretor Diego Hoefel tem um domínio de direção de atores excelente, o que faz com que personagens do sertão cearense pareçam estar sendo eles mesmos, e não interpretando um papel, principalmente Gil Magalhães, que interpreta Robson, o homem que trabalha como guia turístico do local. Além do mais, os momentos engraçados aliviam bastante o drama dos personagens. Na trama, Renato Linhares (ANA. SEM TÍTULO) é um homem gaúcho que chega a um espaço árido no sertão cearense cujas pessoas vivem o luto de ter perdido uma cidade inteira para a construção de uma represa. REPRESA foi exibido no Festival de Roderdã e é uma produção da Tardo de Ticiana Augusto Lima, que esteve presente junto com o diretor Diego Hoefel e equipe à sessão especial no Cinema do Dragão.

sábado, agosto 10, 2024

ARMADILHA (Trap)



Quem diria. ARMADILHA (2024) já é o 16º longa-metragem de M. Night Shyamalan. O cineasta que ainda tem como auge de popularidade um filme do século passado, O SEXTO SENTIDO (1999), e que começou a aumentar a quantidade de haters a partir mais ou menos de A VILA (2004) e A DAMA NA ÁGUA (2006), ao mesmo tempo que foi conquistando defensores e fãs mais ardorosos justamente nesse momento, começou a ser mais benquisto por uma parcela maior de espectadores desde A VISITA (2015). Shyamalan também fez uma carreira muito interessante na televisão, sendo voz fundamental em obras como WAYWARD PINES (2015-2016) e SERVANT (2019-2023).

Aliás, SERVANT tem tudo a ver com este novo filme. Pois foi nesta série que o cineasta deu espaço a sua filha Ishana Night Shyamalan, que havia trabalhado como assistente de direção do pai em TEMPO (2021), dirigiu seis episódios da série, alguns dos melhores e mais bem cuidados no uso de câmera e direção de arte, e estreou no cinema como diretora de longa-metragem este ano com OS OBSERVADORES, filme que a maior parte da crítica não curtiu, mas de que gostei muito. Muito mesmo.

Em ARMADILHA, Shyamalan se mostra novamente um paizão, ao dar espaço agora para sua filha mais velha, Saleka Shyamalan, cantora e compositora de música pop/r&b. Para o novo filme do pai, ela compôs 14 canções. Eu, como pouco apreciador da música pop do novo milênio, acho tudo monocromático e sem graça, mas quem tem que dizer se a música é boa ou não é a nova geração, os jovens que estão mais sintonizados com o zeitgeist. Mas o que conta aqui nessa história de pai que faz de tudo pelas filhas, e que pode receber as mesmas reclamações que Francis Ford Coppola recebeu quando escalou Sofia para O PODEROSO CHEFÃO – PARTE III, é que ARMADILHA é também a história de um pai que faz de tudo por sua filha.

O problema é que esse pai é um serial killer. E justamente no dia que ele resolve estar com a jovem adolescente (Ariel Donoghue) no show de seu ídolo, a cantora pop Lady Raven (Saleka Shyamalan), ele se vê preso numa força-tarefa da polícia para prender o “Açougueiro”, como é chamado o assassino que deixa suas vítimas em pedaços usando um cutelo. Inclusive, no momento em que ele está com a filha, uma de suas vítimas estava amarrada num local secreto. Outra coisa que deixa claro neste trabalho de Shyamalan é que ele passa um pouco longe da violência gráfica, embora esbanje na construção de suspense e tensão. Se bem que o diretor não é tão famoso pela violência mesmo. Seu filme mais violento talvez seja BATEM À PORTA (2023).

Nesse sentido (e também na questão da nudez), ele guarda certo distanciamento de Brian De Palma, o cineasta com quem se aproxima em ARMADILHA. Aliás, eu diria que na falta de De Palma, percebo no novo filme de Shyamalan uma aproximação muito grande com o cineasta mais hitchcockiano da Nova Hollywood. Pra começar, a produção conta com três países, o que lembra a fase tardia de De Palma. Além do mais, toda a longa parte que se passa no show pop lembra bastante OLHOS DE SERPENTE, com aquela câmera que perscruta o ambiente, com o olhar nervoso do protagonista vivido por Josh Hartnett, que esteve em DÁLIA NEGRA e que aqui aparece em registro bem diferente.

O assassino tem visões de uma senhora idosa que o assombra, e que mais tarde saberemos ser sua mãe e isso facilmente nos remete a PSICOSE, inclusive na dualidade do personagem, que se divide numa vida dupla de bombeiro e pai de família atencioso e de assassino serial. E assim como o filme de Hitchcock, este aqui é redondinho, uma delícia de assistir, sem parecer ter uma barriga ou um problema eventual de ritmo, que de vez em quando acomete certos filmes de Shyamalan.

O final nos faz pensar no mundo atual, em que a atenção pela família esconde os aspectos sombrios de certas pessoas. Além do mais, há uma ambiguidade e até uma simpatia pelo assassino muito interessante, e que é também uma marca hitchcockiana. (Queria muito saber a opinião de De Palma sobre este filme.)

Uma coisa que me chamou a atenção em ARMADILHA foi a fotografia, que me pareceu bem mais despojada do que na maioria das obras do diretor, que pareciam pinturas filmadas, com um cuidado formal maior na construção do quadro. Talvez desta vez Shyamalan tenha se preocupado mais na criação da atmosfera de suspense e tensão e tenha deixado de lado um pouco a beleza visual que lhe é característica. Mas a gente perdoa, pois é um baita filme, sim. Além do mais, a direção de fotografia é de ninguém menos que o tailandês Sayombhu Mukdeeprom, da obra-prima MEMORIA e do recente RIVAIS, entre outros trabalhos de respeito.  

+ TRÊS FILMES

CLUBE DOS VÂNDALOS (The Bikeriders)

Jeff Nichols tem uma especial atração por personagens brancos e ignorantes do meio-oeste americano. Isso pode ser visto com ainda mais clareza neste CLUBE DOS VÂNDALOS (2023), em que o cineasta se detém em pessoas que têm como estilo de vida andar de motocicleta em grupos, beber e conversar. Para enfatizar o ambiente cheio de testosterona a personagem de Jodie Comer se vê logo de início ameaçada por aquele grupo enorme de homens. Assim, ela vai parar na garupa do rapaz por quem se sente atraída, o mais rebelde do grupo, aquele que nem sequer trabalha, o jovem vivido por Austin Butler, ainda em processo de sair do personagem Elvis, que tanto o marcou. CLUBE DOS VÂNDALOS é também uma espécie de triângulo amoroso mais ou menos sutil, já que o personagem de Butler é também disputado e querido pelo líder do grupo de motoqueiros, vivido por Tom Hardy. O filme me cansou um pouco, menos pela narrativa e mais pelos personagens pouco atraentes intelectualmente. Por outro lado, é possível pensá-lo como um convite à reflexão sobre a violência em crescimento em grupos muito masculinizados e em como isso está ainda bastante entranhado na sociedade. E o que antes era visto como algo rebelde e mais à esquerda nos tempos da contracultura, hoje é visto como algo mais próximo de uma extrema direita.

PLANETA DOS MACACOS – O REINADO (Kingdom of the Planet of the Apes)

Confesso que a saída de Matt Reeves do comando da franquia havia me deixado um pouco desestimulado a ver este novo filme. A direção de PLANETA DOS MACACOS – O REINADO (2024) é de Wes Ball, o sujeito que fez a pouco brilhante franquia MAZE RUNNER (2014-15-18). Mesmo assim, o resultado é bom o suficiente para ficarmos interessados na trama e em seus personagens até o fim. Além do mais, como todo bom filme dessa leva dos macacos, temos aqui uma obra que traz discussões políticas relevantes para o atual momento. A trama, agora sem a presença do excelente protagonista César, se passa vários anos após a sua morte, e novos personagens são apresentados. Um deles é o jovem chimpanzé Noa, que vai ter que passar por uma prova de fogo muito maior do que esperava ao atingir a maioridade. No mundo de Noa, há poucos humanos à vista e a maldade dos demais macacos ainda não havia chegado a sua aldeia. Um dia chega, porém. A jovem personagem feminina, Mae (Freya Allan, vista recentemente em A BRUXA DOS MORTOS – BAGHEAD), tem boa presença de cena, embora não consiga roubar os momentos de Noa e do orangotango Raka. Senti falta de cenas de ação melhores, mas o resultado é um feijão com arroz gostoso.

AS BESTAS

Vendo AS BESTAS (2022), de Rodrigo Sorogoyen, lembrava-me vez por outra de PROPRIEDADE, o ótimo filme de Daniel Bandeira que também é um suspense muito tenso, com forte e complexo comentário social. No filme espanhol vencedor do Goya 2023, temos uma situação ainda mais tensa. Na verdade, é tão fácil se colocar no lugar do personagem de Denis Ménochet (PETER VON KANT) que rapidinho estamos vivendo junto com ele todo o terror que ele vem passando. Na trama, esse homem e sua esposa (Marina Foïs, ENORME) são proprietários de uma pequena fazenda na Galícia. O problema é que eles não são benquistos por certas pessoas da vila, em especial os dois irmãos que são seus vizinhos. Há um cuidado que o filme tem com a construção do medo dentro de espaços abertos que hoje é o melhor exemplo de criação do horror nesse sentido que me vem à mente. Além de muita tensão, o filme é carregado de uma desesperança que pode nos contaminar, caso estejamos um pouco mais fragilizados.

quinta-feira, agosto 01, 2024

DEADPOOL & WOLVERINE



Estava com uma preguiça imensa de escrever sobre DEADPOOL & WOLVERINE (2024), mas talvez consiga fazer isso de maneira prática e rápida, até porque costumo escrever sobre os filmes de super-heróis aqui para o blog, com algumas exceções, nem que seja só para bater ponto. Vi o filme na pré-estreia, na quarta-feira, no Cine Del Paseo, e havia dois sujeitos vestidos como os heróis do filme, para fazer graça ao público presente. As vestimentas estavam bem-feitas, o que me levou a pensar que aquilo fazia parte de um marketing bem pago, talvez até pela Disney (será?) ou pela própria rede de cinemas. Mas acontece que a sala escolhida não era das mais animadas e as pessoas pareciam não se importar com esses personagens coloridos, o que tornava a presença deles um tanto constrangedora.

A gente sabe que os filmes de Deadpool são construídos a base de muita bobagem e humor, mas, mesmo assim, com um filme com classificação indicativa de 18 anos talvez esse tipo de humor físico e infantil não estivesse atingisse o público apropriado. Será que quem contratou pensava que era filme para todas as idades? Sei que se divertir depende muito do estado de espírito, que tem dias que a gente ri do vento, como dizem, mas nunca vi muita graça no Deadpool.

O novo filme, agora a cargo de Shawn Levy, diretor de filmes parecidos com sessões da tarde, como GIGANTES DE AÇO (2011) e FREE GUY – ASSUMINDO O CONTROLE (2021), portanto parceiro de Hugh Jackman e de Ryan Reynolds, tem um trunfo e tanto ao trazer também Wolverine, personagem querido e morto em LOGAN, de James Mangold, lá em 2017. E LOGAN tem essa cara de filme muito sério, muito dramático e o próprio Jackman não queria mais voltar ao personagem depois de ter lhe dado adeus. Mas a gente sabe que dinheiro compra quase tudo e aqui está o herói de garras de adamantium de volta, e com o mesmo ator (“até os 90 anos”, dizia Deadpool). A saída para trazer o herói desta vez foi a noção de multiverso aprofundado na série do LOKI e o Wolverine deste filme é uma variação de outro universo, um Wolverine que se acha o ser mais fracassado do universo.

Os filmes de super-heróis nos últimos anos acabaram criando uma subcategoria: a dos filmes que se importam mais em explorar referências do que em contar uma boa história. Vimos isso em DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA, em HOMEM-ARANHA – SEM VOLTA PARA CASA e em THE FLASH. Levando isso em consideração, sobra pouco de novidade para DEADPOOL & WOLVERINE, a não ser explorar ainda mais os títulos da companhia, desta vez os produzidos pela Fox, como uma espécie de despedida.

E não nego que algumas dessas brincadeiras são legais, principalmente se vistas de maneira isolada, com o aparecimento surpreendente de certos personagens do passado, mas a história é bem "qualquer coisa", talvez confiante demais dos dois heróis. A equipe de roteiristas não conseguiu criar um tipo de humor mais eficiente. Ou seja, o filme vai agradar quem já é fã das piadas bobas de Deadpool, de seu estilo e de uma quarta parede que deixou de ser novidade. Mas mesmo cansado desses filmes, desejo boa sorte à Marvel no próximo ano. Ainda mais depois do recente anúncio do retorno de Robert Downey Jr. ao MCU, que serviu para trazer uma boa dose de animação para o filão.

+ TRÊS FILMES

TWISTERS

Divertida e dinâmica “continuação” do original de 1996. Este tipo de filme tem como principal base as boas cenas de passagens dos tornados e a destruição que eles provocam das mais diferentes e criativas maneiras. O que há de humano em TWISTERS (2024), de Lee Isaac Chung, se deve principalmente à presença de Daisy Edgar-Jones (eternamente querida por causa da série NORMAL PEOPLE). Essa moça tem muito talento e ganha o filme para si, bem mais que o novo queridinho do momento, Glen Powell, que faz um bom trabalho como interesse amoroso da história e inicialmente rival da protagonista feminina, que carrega consigo uma memória trágica envolvendo tornados. Tenho impressão de que os efeitos visuais de hoje parecem tão parecidos com videogames que já não impressionam mais ninguém. Não duvido nada que o filme anterior até funcione melhor nesse quesito. Ainda assim, é uma diversão garantida.

DIVERTIDA MENTE 2 (Inside Out 2)

Acho que estou ficando velho para essas animações da Disney e da Pixar. Quando foram apresentados os novos personagens-emoções me senti representado por dois deles, a Ansiedade e o Tédio. DIVERTIDA MENTE (2024) sofre com excesso de falas e de um dinamismo exacerbado que me parece uma busca desesperada de não cansar o espectador, especialmente as crianças menores, mesmo as que não entendem muito da complexidade dos sentimentos humanos que o filme busca retratar. No entanto, essa busca de não cansar é que acaba me cansando ou me deixando bem pouco interessado. Felizmente, lá pela metade o filme vai ficando mais interessante quando a personagem Alegria ganha um pouquinho mais de profundidade (a alegria pela alegria é algo muito superficial). Claro que uma produção da Pixar faz uma diferença em comparação com outras de outros estúdios. Há todo um cuidado visual e aqui há até mesmo uma pesquisa no campo da psicologia para tratar de problemas de ansiedade e da chegada da puberdade. Mas houve outra coisa que me incomodou: a sala 3 do UCI Parangaba (justamente a XPlus!) está com uma leve tremida e aguentei toda a metragem por ser dublado e eu poder fechar os olhos de vez em quando para não me sentir tão afetado. Ainda assim, eu e a Giselle saímos e fomos a uma farmácia comprar um colírio anti-inflamatório pra mim. Até quando as redes de cinema vão dar a devida atenção a todos os "detalhes" de uma projeção?

FURIOSA – UMA SAGA MAD MAX (Furiosa – A Mad Max Saga)

Expectativa pode ser inimiga do espectador. Além do mais, esperar algo tão impactante quanto MAD MAX – ESTRADA DA FÚRIA (2015) é querer muito de George Miller. A paleta de cores de FURIOSA – UMA SAGA MAD MAX (2024) é igual e há a intenção de contar um outro tipo de história de vingança – o primeiro MAD MAX (1979) já era uma história de vingança num mundo devastado. O que dá gosto de ver neste novo filme é a beleza das tomadas, o olhar de Anya Taylor-Joy, mesmo quando coberta por sujeira ou outro tipo de protetor contra a areia e o vento do deserto. Chris Hemsworth faz um vilão tão carismático (e de certa forma simpático) que não consegui me encher de fúria para ir atrás da vingança junto com a heroína. Também acaba depondo contra o filme de Miller o fato de não ser mais uma novidade, mas um retorno ao universo do filme anterior, à loucura das cenas com carros e motos e pessoas sendo atropeladas ou se suicidando. É um filme quase mudo, da herança de um Buster Keaton, no sentido de não haver tantos diálogos e de ser um cinema mais físico, apesar do CGI. Miller nos apresenta a um mundo tão desesperançado que até o momento digamos romântico do filme sai prejudicado, como se todos ali tivessem que ser tão fortes quanto cruéis, não apenas para sobreviver, mas até para sentirem certo prazer naquela existência amarga. Gosto do final e lamentei não ter revisto o ESTRADA DA FÚRIA imediatamente antes, de modo a fazer as devidas conexões.