sábado, junho 29, 2024

ANJO DO MAL (Pickup on South Street)



Eis que chego num momento de euforia dentro desta minha peregrinação pelo cinema de Samuel Fuller. Digo isso pois ver ANJO DO MAL (1953) foi ver algo muito especial, algo muito extraordinário e incomum. E essas reações servem para reacender nossa paixão pelo cinema, que às vezes, devido à falta de tempo por conta do trabalho e devido ao cansaço, acabam sendo um pouco prejudicadas. Talvez ANJO DO MAL dispute o posto de meu favorito (por enquanto) do realizador junto com EU MATEI JESSE JAMES (1949), sua estreia na direção, e certamente está naquele cantinho do coração.

Ambos são filmes em que o amor pulsa forte. E um tipo de amor mais cristão, digamos assim, mais espiritual, já que, mais uma vez, Fuller se solidariza com os marginais, com figuras julgadas pela sociedade. Se em seu western sombrio tínhamos um traidor convivendo com seu sentimento de culpa pelo ato deplorável, agora temos alguém que é mais fruto do fracasso de uma sociedade capitalista e individualista, um batedor de carteiras, Skip McCoy, o personagem de Richard Widmark, ator já marcado por personagens bandidos ou cruéis, mas que aqui ganha a chance de ser o herói, ainda que um herói torto e também bandido.

ANJO DO MAL representa a primeira incursão de fácil reconhecimento de Fuller pelo universo do filme noir. E talvez por isso se diferencie um pouco (ou um bocado?) de seus anteriores e até passa uma leve impressão de ser menos autoral. Mas é só uma impressão inicial que logo se dissipa. E, mais importante: que filme! O começo da narrativa meio que parece antecipar O BATEDOR DE CARTEIRAS, de Robert Bresson (olha ele mais uma vez sendo assunto aqui no blog!), devido à cena do ladrão vivido por Widmark no metrô. Uma cena, aliás, carregada de muita energia sensual: é como se aquele momento em que Widmark e a personagem de Jean Peters se aproximam no espaço coletivo representasse um sexo proibido, em que ambos se olham e ficam muito perto um do outro enquanto um deles penetra sua intimidade, ou seja, o interior de sua bolsa.

Depois a trama se transforma num suspense envolvente de guerra fria, como tantos produzidos logo após o pós-guerra, mas que causou um incômodo maior nos críticos franceses comunistas (por mais que os espiões comunistas do filme não sejam nada idealistas, sejam mais pragmáticos). Ou seja, o comunista aqui é só mais um inimigo dos Estados Unidos para fazer a vez de vilão em centenas de filmes no cinema daquele momento que se estenderia até os anos 1980. Na França, chegaram a mudar a trama do filme na versão dublada, trocando os comunistas por traficantes de drogas, vejam só! O público francês não entendeu nada, obviamente.

ANJO DO MAL é empolgante, tenso, apaixonado, apaixonante e sensual, tudo que esperamos de um grande noir. Além de tudo, a fotografia é linda, de Joseph McDonald, o mesmo de PAIXÃO DOS FORTES, de John Ford. Assim como é linda também a quase femme fatale, a Candy de Jean Peters, uma personagem que se apaixona pelo ladrão que a rouba, por mais que suas primeiras cenas com ele sejam carregadas mais de violência e certa brutalidade do que de amor. Muito porque Skip percebe que aquela jovem está ali principalmente por sua missão: reaver o microchip que o ladrão pegara no metrô junto com o dinheiro. Esse microchip contém informações confidenciais que agente comunistas passariam para a frente. A moça estava sendo seguida por agentes do FBI no metrô. Ou seja, há um jogo de gato e rato em que agentes do FBI, polícia, um ladrão pobre, uma mulher contratada e uma informante são peças que contribuem para a dinâmica e para a dramaticidade da trama. 

Falando em informante, não posso terminar o texto sem citar a performance gigante de Thelma Ritter, a velha informante que é capaz de dedurar o amigo ladrão para conseguir alguns trocados e juntar o suficiente para comprar um funeral bonito com um jazigo decente para si. E Fuller trata da personagem sem abusar de sentimentalismo, a exemplo do que havia feito em seus outros filmes, inclusive os de guerra. Mesmo assim, sua personagem é carregada de uma aura trágica e heroica e sua última imagem em cena é de deixar qualquer espectador calado e triste. A atriz foi indicada ao Oscar como coadjuvante por seis vezes desde A MALVADA e por ANJO DO MAL ela conseguiu mais uma. Foi a única indicação do filme, vale lembrar, o que mantém a posição de Fuller como cineasta marginal. Cada vez mais passo a compreender a adoração que muitos têm por esse grande mestre.

P.S. 1: ANJO DO MAL está entre os três filmes de Fuller selecionados para integrar o livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer. Os outros são PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963) e AGONIA E GLÓRIA (1980).

P.S. 2: Nos extras do box Filme Noir (o primeiro volume, que só tem obras-primas, e por isso merece uma reedição) é possível ver uma bela entrevista do cineasta, que ajuda a compreender sua visão de mundo e sua preferência por certos ângulos de câmera, como nas cenas de ação filmadas de cima, por exemplo.

+ TRÊS FILMES

O MONSTRO DO CIRCO (The Unknown)

Um dos filmes mais incríveis já feitos na era do cinema mudo, O MONSTRO DO CIRCO (1927), de Tod Browning, tem tantas cenas inacreditáveis que é até difícil acreditar que tenha se materializado. Lembro que a primeira vez que ouvi falar deste filme foi numa edição da Cine Monstro, que contava a história completa (ou quase). E eu disse a mim mesmo: preciso vê-lo o quanto antes. Mesmo na revisão, e não tendo o mesmo impacto da primeira vez, ainda continua sendo impressionante, inclusive do ponto de vista visual. Não lembrava, por exemplo, da última cena do personagem de Lon Chaney, aquela cena dos cavalos. É um filme em que os atos do protagonista o qualificam para enquadrá-lo na prateleira dos horrores mais bizarros já feitos. No mais, o filme ainda traz Joan Crawford linda, na flor da idade, mas já interessada em se embrenhar em filmes estranhos e sombrios. Tenho já um texto sobre o filme aqui no blog.

A MÁSCARA DO HORROR (Mr. Sardonicus)

Os filmes de terror do William Castle hoje em dia têm um toque até ingênuo, de certa forma. O diretor e produtor foi um grande mestre do entretenimento e A MÁSCARA DO HORROR (1961) é um de seus trabalhos mais divertidos e bem acabados. Como grande fã do gênero, Castle constrói uma divertida história gótica sobre um médico que, graças a uma paixão que ainda nutre por uma mulher, vai parar num castelo habitado por um barão que utiliza uma máscara para cobrir o rosto, e tem uma história fascinante de origem, que será contada no devido tempo. O diretor vinha do ótimo TRAMA DIABÓLICA (1961), uma espécie de homenagem a seu ídolo Hitchcock, e estava muito à vontade em trabalhar com as variações do horror, usando mais uma vez os seus famosos jogos publicitários. Aqui ele antecipa os programas interativos (tudo enganação), fazendo com que o espectador, supostamente, decida o destino do vilão no final. Muito legal. Visto no box Obras-Primas do Terror 6.

A FILHA DE SATÃ (Night of the Eagle / Burn, Witch, Burn)

Gostei bastante de ter conhecido de A FILHA DE SATÃ (1962), de Sidney Hayers, este filme de terror inglês contemporâneo ao auge da Hammer que foge dos monstros então explorados pelo lendário estúdio para lidar com seriedade e ambiguidade com o tema da fé, ao contar a história de um professor de sociologia de uma cidade tranquila que descobre que a esposa guarda inúmeros amuletos e encantamentos dentro de casa. Logo ele, uma pessoa declaradamente descrente de tudo de natureza sobrenatural, como deixa claro na aula que abre a narrativa, tendo que lidar com essa situação. Acontece que o tom do filme, após o primeiro terço de metragem vai ganhando contornos mais tensos e perturbadores, ao percebermos o que acontece após o professor queimar todo o material que a esposa tão devotadamente cuida. Janet Blair está excelente como a esposa, já que sua personagem lida com diversas situações e diversos modos de encarar essas situações. Curiosamente, o filme traz um prólogo com uma narração em voice-over com alguém executando uma espécie de feitiço para tornar os espectadores imunes aos efeitos nocivos da bruxaria que emanaria da tela. Lembrei-me da bruxa do começo de À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA, do nosso querido Mojica. Visto no box Obras-Primas do Terror 4.

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