sábado, junho 01, 2024

A DAMA DE PRETO (Park Row)



Ainda estou lendo o capítulo “5. A Moral é uma questão de travellings – A crise fulleriana da cinefilia francesa (1953-1965)”, do livro Cinefilia, de Antoine de Baecque, e estou cada vez mais fascinado por Samuel Fuller, mesmo sabendo ainda tão pouco, mesmo apenas iniciando a minha peregrinação por sua obra e, por isso mesmo, não entendo muito bem a polêmica em torno de ele ser considerado fascista por parte da crítica francesa, uma parte hoje mais esquecida. Ao que parece, isso se apresentaria um pouco mais evidente na trama de ANJO DO MAL (1953), que é justamente o próximo trabalho que verei do realizador.

Por enquanto podemos nos concentrar em A DAMA DE PRETO (1952), que vejo como uma obra um pouco mais convencional na narrativa, mas até nesse sentido isso pode ser enganoso, pois há algo de estranho às vezes nas composições visuais e nas escolhas da montagem. Engraçado que no texto de Baecque, principalmente quando ele passa a fazer citações do crítico Luc Moullet, aparece uma referência à questão da feiura, que é algo que talvez tenha me incomodado a princípio no filme. A própria Mary Welch, a personagem feminina, não tem o mesmo ar de glamour de outras estrelas de Hollywood da época. Talvez por que estejamos diante de uma produção de baixo orçamento, mas deixo claro que não estou dizendo que a atriz é feia.

Vejamos o que diz o livro sobre esse aspecto:

É nesse instante que o crítico assinala a incongruência e a loucura do olhar em Fuller, essa maneira de mostrar com insistência o que outros descartam deliberadamente de seus filmes, a desordem, a sujeira, o inexplicável, a barba por fazer, “uma espécie de feiura fascinante do rosto do homem”. Ponto de vista que Moullet caracteriza como o do “primário”, mas um primário inteligente, dotado de olhar, para quem “o espetáculo do mundo físico, o espetáculo da terra, é a melhor testemunha de inspiração”. (p. 234-235)

(Eis o motivo de eu sentir dificuldade de encontrar imagens belas do filme para ilustrar a postagem que tivessem uma beleza mais clássica.)

A DAMA DE PRETO é um filme que faz um elogio ao jornalismo que busca a verdade e que luta por aquilo que considera correto. E também um elogio àquilo que é criado em circunstâncias precárias, como o próprio cinema de baixo custo de Fuller. O personagem de Gene Evans, anteriormente visto em CAPACETE DE AÇO (1951) e BAIONETAS CALADAS (1951), é um jornalista que logo no começo do filme se recente de sua patroa, a chefe do jornal The Star, que supostamente foi responsável pela morte condenação de um homem à morte. Por causa disso, ele é demitido ou se faz demitir do jornal e ganha o apoio de um homem que tem equipamento suficiente para fundar um outro jornal. A qualidade do papel teria que ser de qualidade bem inferior (de embrulho), a quantidade de páginas menor, mas o preço seria barato o suficiente, assim como o formato atraente para um público mais popular, com direito a um cartunista ilustrando a capa, algo novo naquela época, na década de 1880. 

Com a popularidade de seu jornal, chamado The Globe, o protagonista passa a ser atacado duramente por pessoas ligadas ao The Star, administrado pela personagem de Mary Welch, a tal dama de preto do título brasileiro (o título original se refere à rua onde se localizam os dois jornais). Em alguns momentos, o filme parece uma história de gângsteres, em outros, um melodrama bem carregado, em outros parece se perder quando a câmera corre violentamente pelas ruas e nos deixa atordoados em uma cena de violência confusa que acaba funcionando bem num filme de baixo orçamento como este.

Gostei muito de ver as dificuldades de botar um jornal no ar, naquela época em que teria que juntar os tipos um a um (o homem que trabalha com os tipos, inclusive, é analfabeto!). Há também uma questão envolvendo a Estátua da Liberdade, nos momentos em que ela estava prestes a ser erguida, mas o que mais gosto é do personagem de Evans, de sua nobreza, e do quanto, com frequência, a química entre ele e a dona do outro jornal se dá, de maneira explosiva, por mais que essa questão mais romântica entre eles possa parecer uma espécie de concessão para tornar o filme atraente para um número maior de espectadores.

+ TRÊS FILMES

DO LODO BROTOU UMA FLOR (Ride the Pink Horse)

Segunda incursão na direção de Robert Montgomery, depois do experimental e muito citado A DAMA NO LAGO (1946), que eu nunca vi até hoje, DO LODO BROTOU UMA FLOR (1947) também foge um bocado às convenções do noir daquele período, até por se passar numa cidadezinha da fronteira com o México, onde o herói um tanto amoral vivido pelo próprio Montgomery chega para fazer uma chantagem ao homem que matou seu melhor amigo e sair de lá com um bom dinheiro. Mas, logo que chega, ele encontra uma jovem com aparência meio indígena e também semelhante a uma santa. Ela tem uma visão da morte desse homem e faz questão de ser seu anjo da guarda, por mais que ele tente se afastar dela. O filme tem uma cena de violência tão brutal que eu jamais imaginaria ver numa produção dessa época: trata-se da brilhante cena do carrossel. O fato de a violência ser infligida a um personagem tão simpático e querido, o Pancho (Thomas Gomez), só a torna ainda mais dolorosa para o espectador. E ainda tem o olhar de pânico das crianças no carrossel. Foi nesta cena que eu percebi o quanto o filme havia me ganhado. Se bem que, logo que a narrativa começa, os movimentos de câmera de Montgomery olhando para o próprio protagonista já chamam a atenção para a direção. Já mostram que estamos diante de uma obra fora do comum. Filme visto no box Filme Noir Vol. 3.

ANJO OU DEMÔNIO? (Fallen Angel)

Recém-saído da obra-prima LAURA (1944), Otto Preminger adentra novamente o mundo das sombras, dos mistérios e dos desejos do film noir com esta história sobre homem trambiqueiro que se apaixona por uma mulher, mas que se casa com outra para obter dinheiro de modo a conquistar a primeira. Achei incrível essa ideia e me saltou aos olhos cada imagem e cada ação dos personagens, inclusive a de Alice Faye, como a mulher rica que se apaixona por Dana Andrews, mesmo sabendo de sua fama. Já Linda Darnell, ela é um exemplo de femme fatale que foge ao padrão, pois é uma mulher de certa forma inocente, embora consciente de sua beleza e sensualidade. E muito à frente de seu tempo, no modo como não se importa com as convenções sociais, fazendo o que deseja. O filme pode ser facilmente dividido em três partes e essas três partes trazem tramas quase distintas: o médium, a luta para conquistar a mulher e a morte, seguida de investigação, de uma personagem. Cheio de surpresas e reviravoltas, de imagens que valorizam as sombras e o movimento da câmera e a angústia dos personagens, ANJO OU DEMÔNIO? (1945) ainda tem créditos de abertura que podem ter inspirado David Lynch com seus créditos de ESTRADA PERDIDA. Além do mais, Preminger também lida com a presença de uma ausência, assim como faz em LAURA. Sensacional. Presente no box Filme Noir – Femme Fatale (primeiro volume).

O PRANTO DE UM ÍDOLO (This Sporting Life)

Assistir a filmes com uma ponta de angústia no peito pode funcionar quando damos de cara com obras que exploram as aflições ou o processo confuso de compreender a vida, como é o caso do personagem de Richard Harris, que aqui interpreta um jogador de rugby temperamental que tem com frequência explosões de fúria, mesmo com as pessoas que ama, como é o caso da personagem de Rachel Roberts, a mulher que aluga o quarto de sua casa para ele morar. Quando ele passa a ser um profissional bem-remunerado e pode trazer mais conforto para a mulher que ama, suas explosões de raiva até aumentam e o filme é tanto uma obra que denuncia a hoje chamada masculinidade tóxica, quanto nos convida a ter empatia por esse homem, apesar ou até por causa dos erros. Embora O PRANTO DE UM ÍDOLO (1963), de Lindsay Anderson, seja uma obra muito mais voltada ao protagonista e a sua relação de hostilidade com os mais ricos, há cenas bem realistas dos jogos. No mais, Richard Harris está brilhante. Filme visto no box Nouvelle Vague Britânica – Vol. 2.

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