domingo, junho 30, 2024

O TERCEIRO HOMEM (The Third Man)



Enfim, férias! E com novidades boas para os próximos meses. Mas isso não quer dizer que estarei livre de um monte de afazeres e de alguns compromissos que preciso cumprir neste mês de julho que está chegando. Para minha alegria, alguns compromissos são de natureza cinéfila e crítica, como um texto que preciso preparar e minha intenção de dar um gás na peregrinação pelo cinema de Samuel Fuller. Tenho também pilhas de livros e quadrinhos esperando por mim enquanto escrevo este texto. São duas pilhas na mesa do computador, e mais duas no armário de três gavetas (acho que chamam de criado mudo). Sem falar nas pilhas de livrinhos temáticos da Versátil, que estou lendo aos poucos, à medida que vou vendo ou revendo os filmes.

Esses livros, aliás, têm sido fundamentais para a curiosidade e posterior descoberta de obras valiosíssimas. A revisão de O TERCEIRO HOMEM (1949), por exemplo, veio, se não me engano, de quando chegou o livro Filme Noir – Obras Essenciais dos Spin-Offs. De uma hora para a outra veio uma vontade imensa de rever o filme. No livro da Versátil, o texto sobre o clássico é de autoria de Marden Machado, que destaca o fato de se tratar de uma obra que faz parte de uma de trilogia de títulos do autor inspirados em romances de Graham Greene.

Havia visto pela primeira vez o clássico de Reed há mais ou menos uns 30 anos. Lembro de ter gostado bastante na época, mas foi uma maravilha poder rever agora, com uma cópia muito melhor, que valoriza a excelente fotografia em preto e branco de Robert Krasker, que tão bem soube filmar a noite de uma Viena ainda em ruínas e rateada em quatro nações dos países aliados (Estados Unidos, França, União Soviética e Reino Unido).

Nesse sentido, o filme é quase um documentário daquele momento da Áustria pós Segunda Guerra Mundial. Foi uma festa quando a cidade parou para receber as filmagens e estrelas como Cotten, Welles e Valli. A narrativa já começa em tons mistos, tanto trazendo angústia quanto certa leveza, como uma balança que fica pendendo de um lado para o outro, muito também por causa da música em tom alegre e muito singular, do austríaco Anton Karas.

A angústia está na dificuldade de comunicação do escritor americano vivido por Joseph Cotten, que ao chegar na cidade para ver o amigo Harry Limes (Orson Welles), descobre que o caixão com o corpo do amigo acabou de partir para o cemitério – Harry havia, supostamente, morrido atropelado. Ao investigar o estranho acidente que teria matado seu amigo, ele acaba se envolvendo numa rede de intrigas e vai descobrindo coisas que aparentemente não deveria. Inclusive, depois, sobre o tal amigo. E durante boa parte do filme eu fiquei ansioso para que o amigo aparecesse logo.

Enquanto isso, ao buscar informações com a namorada de Harry, uma bela atriz de teatro vivida por Alida Valli (AGONIA DE AMOR), o protagonista acaba se apaixonando por essa mulher de olhar distante e triste. A fotografia em tons expressionistas, com ângulos de câmera inusitados, contribui para essa sensação de agradável estranheza e cada imagem parece cheia de uma beleza única.

O roteirista e autor do romance Graham Greene já havia pesquisado áreas de Viena que funcionaram como um personagem para a história, como é o caso do incrível sistema de esgotos da cidade. O papel de Orson Welles é decisivo e muito importante, mas se não fosse a cena do diálogo no parque de diversões perto do final, com falas escritas pelo próprio Welles, seria um papel muito pequeno, quase como um fantasma. No diálogo, ele revela seu real caráter e sua visão de mundo, e isso é algo que deixa o personagem de Cotten sem chão. É como se o homem que ele havia conhecido, ou achado que conhecia, tivesse morrido. As últimas imagens do filme são incríveis e acentuam o mal estar.

Visto no box Filme Noir Britânico, que contém mais de uma hora de extras só sobre o filme. (Aliás, comecei a ver numa cópia em 1080p lindona, até para sentir ainda mais valorizada a fotografia foda do filme, mas depois de meia hora, as legendas deram uma despirocada e a sincronia se perdeu, e aí continuei do DVD, que está ótimo. Nessas horas, vemos o quanto ter um DVD oficial faz a diferença.)

+ TRÊS FILMES

ASSASSINO POR ACIDENTE (Hit Man)

O gosto de Richard Linklater pelo texto se evidencia nesta divertida trama baseada na história real de um homem que se passa por matador de aluguel de modo a facilitar a prisão daqueles que o contratam – ele é um professor universitário que trabalha também para a polícia. O foco da trama ganha contornos mais interessantes quando o rapaz (Glen Powell) se apaixona por uma de suas clientes (Adria Arjona) e que acaba se vendo metido numa trama que muito lembra a de clássicos noir do passado (ela seria uma atraente femme fatale). ASSASSINO POR ACIDENTE (2023) aposta em dois jovens em ascensão em Hollywood. Embora ainda não tenha achado Powell um sujeito muito carismático assim (na verdade, nem sei se há alguém bom, por outro lado, gostei demais de Arjona. Vamos ver como ela se sairá nos filmes seguintes. ASSASSINO POR ACIDENTE brinca com as possibilidades de se poder ser várias pessoas ao mesmo tempo e de abraçar uma persona confortável no processo. Não há uma intenção de fazer uma investigação psicológica profunda, mas há claramente uma vontade de deixar certas questões de id, ego e superego para o espectador pensar um pouco.

A ESTRELA CADENTE (L'Étoile Filante)

Não é preciso saber muito sobre o casal de diretores e atores Dominique Abel e Fiona Gordon para perceber que suas origens vêm do teatro. E quando essa teatralidade se explicita mais em A ESTRELA CADENTE (2023) é quando o filme mais cresce, mais fica interessante e bonito – até porque as cores vivas e cartunescas são um prazer de ver. Há quem compare com o cinema de Aki Kaurismäki, mas há uma bela diferença no cinema de Abel e Gordon: a fisicalidade e um tipo de humor tão popular quanto sofisticado. Além do mais, há bem menos melancolia. Em prol do humor, eles criam um fiapo de história que faz muito sentido e, em diversos momentos, fica muito engraçada. Gosto demais sempre que o inimigo do trio aparece armado no bar para se vingar. Por causa de atos terroristas cometido no passado, Boris se disfarça de dono de bar. Um grande ganho para o filme é a presença da ótima Kaori Ito, um deslumbre no humor e na sensualidade, como a esposa do homem que vê no trocar de lugar com um sósia dele a solução para ele escapar vivo da vingança do homem sem braço. Há uma cena de dança no bar engraçadíssima e muito inventiva. Pena que nem todo o filme é assim, tão empolgante. Talvez seja o caso de se acostumar com o estilo.

NA CAMA COM VICTORIA (Victoria)

Às vezes é preciso o aval dos prêmios em festivais para que determinado autor passe a chamar a atenção para sua filmografia pregressa. Infelizmente isso acontece com muito mais frequência com cineastas mulheres. Justine Triet foi apenas a terceira mulher a ganhar a Palma de Ouro (as outras foram Jane Campion e Julia Docournou, todas com a letra J!). E confesso que não sei se teria gostado tanto de NA CAMA COM VICTORIA (2016) se não fosse pelo tanto que Triet provou com seu ANATOMIA DE UMA QUEDA (2023). Ambos são filmes que tratam da verdade e da justiça (mas não só); ambos lidam com mulheres vivendo acuadas; ambos trazem cenas que se passam em tribunais (ANATOMIA claramente muito mais). A diferença é que NA CAMA COM VICTORIA tem uma leveza que o outro não tem. As próprias cores vivas dos tribunais acentuam isso. Outra coisa que se destaca, tanto em VICTORIA quanto em ANATOMIA, é a excelente montagem. Em VICTORIA, ela funciona para, não apenas dar dinamismo à trama, como também para mostrar o atropelamento de situações por que passa a protagonista, a advogada vivida por Virginie Efira (ótima). Ora ela tem que lidar com um cliente complicado e impulsivo, ora está processando um ex que a usa em seu projeto de autoficção. Além do mais, a vemos visitar cartomante, buscar frustrantemente novos parceiros em aplicativos de relacionamento, e a se relacionar com o rapaz que se oferece para ser seu assistente (Vincent Lacoste). E a riqueza de Victoria é que ela é uma mulher que pode ser muitas coisas em diversos momentos: sexy e insegura, ótima profissional e talvez um pouco relapsa com suas filhas. Mas até essa última observação tenha partido de um tipo de visão de sociedade que cobra muito mais das mulheres do que dos homens. E Triet mostra isso sem parecer panfletária, de forma sutil o bastante para, infelizmente, demorar a ser devidamente valorizada como grande artista que é.

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