sábado, março 25, 2023

JOHN WICK 4 – BABA YAGA (John Wick – Chapter 4)



“It’s not a piece of the song, it’s the whole song that makes you rock out.”
Chad Stahelski


Li uma crítica por aí comparando a cinessérie John Wick com a trilogia dos dólares de Sergio Leone. E se pensarmos JOHN WICK 4 – BABA YAGA (2023) como sendo o maior, mais arriscado e mais poético dos quatro, é sim possível vê-lo como o TRÊS HOMENS EM CONFLITO da nova geração, inclusive também por ter o western como um dos vários gêneros assimilados e por estender a ação como Leone tão habilmente fez. 

Até pouco tempo atrás havia poucos exemplares do cinema de ação recente, dentre os produzidos em Hollywood, cujos realizadores pareciam preocupados em mostrar a coreografia das cenas de luta. Talvez por isso Quentin Tarantino tenha deixado tanta gente impressionada quando fez o seu KILL BILL (2003/2004), não sem antes convidar assistentes de direção de Hong Kong, assim como fizeram também as irmãs Wachowski em seu MATRIX, lá em 1999. Sim, os verdadeiros especialistas em cinema de ação estavam (estão) no oriente, ainda que alguns tenham vindo trabalhar nos Estados Unidos. É de lá (Hong Kong, Japão e Tailândia, principalmente) a fonte, quando o assunto é esse.

E aí surgiu a opção dos filmes da franquia Jason Bourne (especialmente os dirigidos por Paul Greengrass), que supostamente nos colocavam no “meio da ação” para justificar aquela montagem picotada e caótica nas cenas de embate físico ou mesmo de tiroteio. E veio JOHN WICK – DE VOLTA AO JOGO (2014), dirigido por Chad Stahelski e David Leitch, para botar as cartas na mesa e mostrar o que havia de errado com esse cinema de ação mais preguiçoso. Não que isso tenha mudado muito o cenário atual, pois fazer esse tipo de trabalho requer muito esforço, talento e dedicação. Então, a franquia John Wick segue praticamente independente nesse cenário.

Depois de três filmes ótimos – o segundo, JOHN WICK – UM NOVO DIA PARA MATAR (2017), é uma pequena obra-prima –, Stahelski segue com o inspirado e carismático Keanu Reeves como o querido herói assassino disposto a encontrar um pouco de paz, quando na verdade está com a cabeça a prêmio. E um prêmio nas alturas, o que faz com que ele tenha que lutar com centenas de assassinos do mundo inteiro dispostos à glória para vencer o Baba Yaga, como é conhecido Wick por aí. O termo se refere a uma lenda do folclore eslavo: um ser sobrenatural com a aparência de uma mulher deformada que apaga os rastros que deixa com sua vassoura (obrigado, Wikipédia). Seria mais ou menos uma espécie de bicho-papão. Enfim, isso serve mais para dar ao personagem uma aura de medo, respeito e quase invencibilidade.

Ainda que muito se fale de sua duração (2h49min), o primeiro corte do filme tinha 3h45min (confesso que gostaria de ver esse corte também). É possível que a montagem tenha tirado muita coisa do que está na primeira hora de filme, que talvez seja a que mais se ressente de uma melhor coesão (se bem que eu precisaria rever, para saber se realmente há esse problema). Uma coisa que percebi é que o diretor Chad Stahelski prefere não colocar os nomes dos lugares onde a ação acontece. Numa hora, Wick está no Japão, depois está em Nova York novamente, por exemplo. Talvez essa questão do trânsito seja um problema, mas optar pelos hiatos muitas vezes é sinal de inteligência.

John Wick agora luta por sua sobrevivência. E por mais que haja uma amplitude no número de personagens para enriquecer sua mitologia, bem como para trazer graça e novidade constantes, sabemos que o que importa no filme é a ação, antes de mais nada. Um tipo de ação que nos deixa sem fôlego, mas que de vez em quando nos dá um respiro antes de começar novamente. 

Trata-se de uma obra que traz muitas surpresas e tem um capricho na direção de arte e na fotografia que enchem os olhos. As cores dos cenários, totalmente anti-naturalistas, servem ao deslumbre visual e me fizeram lembrar filmes de gênero italianos dos anos 1970. A criatividade com as cenas de ação segue em alta, com revezamento entre cenas com tiroteio, luta com faca ou corpo a corpo, com automóveis ou motocicletas etc. Stahelski une as tradições do cinema americano de ação dos anos 1970 (Friedkin, Frankenheimer), do cinema de artes marciais de Hong Kong, do cinema samurai do Japão e do faroeste para compor quase um novo gênero. Em determinado momento, no início do filme, é tanto tiro que me lembrei de FERVURA MÁXIMA, de John Woo.

Três cenas memoráveis: a luta contra um homem enorme (Scott Adkins) num clube, a luta no meio da rua com vários homens e com os carros passando, a luta para subir uma escadaria etc. E ainda temos dois anti-heróis muito legais: o assassino cego vivido por Donnie Yen (O GRANDE MESTRE) e o auto-intitulado Sr. Ninguém, vivido por Shamier Anderson. 

Aliás, poderia mais uma vez fazer referência a Tarantino e seu KILL BILL para fazer uma associação com JOHN WICK, pois ambos os diretores contam com vários personagens muito interessantes. O homem enorme vivido por Scott Adkins parece saído de uma história em quadrinhos (lembrei-me do Rei do Crime, da Marvel) e é incrível quando começa a luta entre os dois naquele clube, enquanto a música eletrônica (rock? industrial?) toca e as pessoas seguem dançando como se não houvesse amanhã. (Aliás, como é bom ouvir o rock no talo ao longo do filme. Por isso a importância de vê-lo numa sala de cinema que valorize a imagem e o som.)

Os dois assassinos citados representam pessoas que se identificam com John, que o respeitam muito, pessoas que ao mesmo tempo estão ali para trazer sua morte, mas que adiam isso, por algum motivo. Caine, o homem cego, é alguém que está ali por causa da família. Medo de perdê-la se não fizer o que o homem que o contrata pede. John, por sua vez, já perdeu sua esposa e se encontra só no mundo, como uma espécie de deus solitário que habita um Olimpo triste. O contratante dos assassinos é vivido por Bill Skarsgård, mais uma vez um sujeito covarde, mas que tem recursos para tentar vencer o adversário no cansaço. Já o Sr. Ninguém, em determinado momento, representa o espectador, ao assistir à luta final como nós no cinema. Ele bebe sua cerveja; nós comemos nossa pipoca. O fato de ele ter um cachorro sempre a seu lado o torna não apenas um personagem fascinante e querido, como alguém que tem outra coisa em comum com John.

O que torna difícil fazer jus a um filme como JOHN WICK 4 num texto escrito é o quanto se trata de uma obra quase que totalmente construída com a imagem. Logo, o formato ideal para prestar-lhe tributo seria com um ensaio visual, destacando imagens do filme. E é bem possível que isso já exista pela internet. E que deveria ser feito com muito carinho numa edição em mídia física da obra. Mas várias palavras ditas, ainda que poucas e econômicas, têm algo de poético. Destaque para o que Ian McShane diz para Wick sobre a beleza do sol nascendo antes do duelo. Ou quando Wick pede para que ele o leve para casa. Ou seja, Stahelski, poeta das imagens, sabe também usar palavras econômicas para atingir nossa sensibilidade.

+ TRÊS FILMES

VENUS

Bom ver que Jaume Balagueró segue fazendo filmes de terror  – sou fã de A SÉTIMA VÍTIMA (2002). Não sei por que motivo seus filmes deixaram de chamar a atenção depois de [REC] (2007) e sua sequência de 2009. Este seu novo filme, VENUS (2022), é visualmente muito bonito, embora eu tenha alguns poréns, especialmente com seu final. Ao contrário dos filmes de bruxaria ou de casa assombrada tradicionais, a pessoa que adentra a casa não está com a vida tranquila. Ao contrário, nossa heroína é uma dançarina de boate que rouba uma bolsa cheia de drogas excitantes (ecstasy?) e vai parar no apartamento da irmã, com um ferimento feio na perna. Mal sabia ela que aquele lugar é uma cilada muito maior do que lidar com os mafiosos ou a polícia. O que me agrada muito no filme é sua coragem de se apresentar bem gráfico e sangrento e de não ter medo de parecer inverossímil, ainda por cima trazendo uma trama envolvendo o sobrenatural. Ainda assim, podiam ter pensado num final melhor.

SHORTBUS

Uma surpresa ver que um filme que é mais famoso por suas cenas de sexo explícito acaba sendo, na verdade, um filme sobre pessoas que convivem com alguns problemas e que vivem em busca de solução. Há a terapeuta que nunca teve um orgasmo, um rapaz que teme sair da relação e magoar o namorado, uma moça que trabalha como dominatrix e que tem dificuldade de se relacionar etc. Um dos aspectos mais bonitos do filme é como ele é uma celebração da diversidade e da alegria trazida pelo sexo. É como se fosse uma obra passada num universo alternativo em que a década de 1970 pulou para os anos 2000 e não tivéssemos vivenciado a epidemia da AIDS e a era Reagan. SHORTBUS (2006), de John Cameron Mitchell, é uma obra ousada em sua proposta e com uma produção que deve ter dado muito trabalho, em se tratando da quantidade de figurantes nas cenas das orgias. Curiosamente, o filme não tem uma voltagem erótica muito elevada. Em vez disso, há um senso de humor muito interessante e que convida o espectador a se solidarizar com os personagens sem muito esforço.

DECISÃO DE PARTIR (Heojil Kyolshim)

Interessante como DECISÃO DE PARTIR (2022) trouxe em mim sentimentos paradoxais: em alguns momentos, me sentia intrigado e encantado; noutros, a trama confusa me afastava. E o fato de eu achar a trama confusa não tem muito a ver com gostar ou não do filme. Há muitos filmes de fundir o cérebro que me ganharam. Park Chan-wook (e também muitos diretores da Coreia do Sul) optam por um tipo de narrativa que não subestima o espectador, e por isso é bem possível que se trate aqui de um filme que se beneficie bastante de uma revisão para clarear certas cenas. Na trama, um detetive de polícia se vê obcecado e apaixonado pela principal suspeita da morte de um homem. Sua obsessão por ela faz com que ele nuble seus olhos para a realidade. E por isso a metáfora do colírio que ele usa constantemente é tão eficiente. Na trama, há situações que são apresentadas em momento posterior na montagem e há situações que são simplesmente omitidas, o que torna a compreensão do filme por vezes confusa. A segunda parte (por assim dizer), que traz a personagem da mulher chinesa novamente para a vida do protagonista é até mais interessante, justamente por trazer ainda mais mistério para a trama. Aliás, podemos ver DECISÃO DE PARTIR como uma ode ao mistério. Assim como o protagonista, Park Chan-wook parece ser um amante da névoa, em detrimento da clareza. Só queria ter me envolvido mais com os personagens, de modo a me perder com gosto pelo filme. Ainda assim, não é sempre que temos a oportunidade de ver um grande cineasta com um filme novo no cinema. Isso já é uma alegria.

domingo, março 19, 2023

SHAZAM! FÚRIA DOS DEUSES (Shazam! Fury of the Gods)



Quando, no mês passado, eu escrevi sobre HOMEM-FORMIGA E A VESPA – QUANTUMANIA, já destaquei o cansaço que esse tipo de produção estava transparecendo, seja pela falta de entusiasmo do público (afinal, o povo não aguenta mais ver tanto filme ruim ou meia-boca), seja pelo número de pagantes, já que são filmes que não necessitariam de compra antecipada para garantir uma sessão em sala IMAX num sábado, por exemplo. Eu diria que SHAZAM! FÚRIA DOS DEUSES (2023), de David F. Sandberg, torna esse gosto (ruim) ainda mais pronunciado. Se a Marvel/Disney ainda tem como trunfo o sucesso (será que ainda tem?) do universo compartilhado, o caso da DC/Warner é muito mais delicado, já que o próprio anúncio de James Gunn meio que queimou os filmes do estúdio com lançamento para 2023, por não fazerem parte do novo universo imaginado pelo diretor, roteirista e agora responsável pela reestruturação da DC no cinema.

Além do mais, a Warner investiu muito pouco na publicidade do novo Shazam, como se não tivesse dinheiro a perder. Hoje, dia 19 de março, no IMDB consta que o faturamento bruto do filme nos Estados Unidos e no Canadá foi de apenas US$ 11.700.000,00. A situação da bilheteria trouxe uma resposta até do próprio diretor, que disse: “Não é como se fosse uma surpresa. Eu vi para onde isso ia há muito tempo. Eu vou ficar bem. Já recebi o meu dinheiro adiantado.” No mais, vale destacar que nenhum outro filme da DC teve uma arrecadação tão baixa em seu primeiro fim de semana.

Admito que sou simpático ao primeiro filme, de 2019, uma história de origem descompromissada, mas também bem redondinha, engraçada e colorida, que faz parte do universo criado por Snyder, mas que opta por um tom muito mais leve e cômico. Nesta sequência, por sua vez, por ser um filme que necessita de partir logo para a ação (será que precisava mesmo?), a solução que encontraram foi achar três deusas que resolvem confrontar o herói desprovido de muita inteligência. As três deusas são interpretadas por Helen Mirren, Lucy Liu e Rachel Zegler, personagens de idades distintas e que também não estão em harmonia com seus interesses ou sua forma de ver a situação de recuperar o que lhes foi tomado.

Essa desarmonia também se mostra na família de Billy Batson. Todos saíram de um orfanato e, agora que têm idades distintas, seus interesses também parecem muito diferentes um do outro. Mas uma coisa eles têm em comum: a estupidez. Aliás, o jeito como o filme retrata os adolescentes chega a ser ofensivo, já que todos da família são tão bobões quanto Billy Batson/Shazam. Inclusive, neste filme fica muito mais claro o abismo existente entre o Billy não transformado e quando o herói toma forma vivido por Zachary Levi. Talvez isso justifique um pouco a quase ausência do ator adolescente Asher Angel – mas talvez por ele ser ruim mesmo.

Talvez o fato de eu não desgostar por completo deste filme se dê pela simpatia que tive com os personagens desde o original, principalmente Freddy Freeman (Jack Dylan Grazer), que aqui é a espinha dorsal da trama, mais do que o herói principal, ganhando até um interesse amoroso. Porém, é muito difícil chegar ao terço final da narrativa e não ficar aborrecido e impaciente, e até constrangido (o que é aquele diálogo do Grazer com a Rachel Zegler no final?).

Até dá para imaginar que o público alvo do filme seja as crianças, mas não imagino que tenha sido pensado dessa forma. E eu até poderia ficar feliz com uma certa participação especial lá no final, mas aquele momento só serve para tornar essa produção ainda mais constrangedora.

+ TRÊS FILMES

CREED III

Dos três filmes da franquia, CREED III (2023), de Michael B. Jordan, é o que mais possibilidades teria de se afastar da eterna repetição que costumam fazer de "Rocky". Inclusive por tratar de questões mais delicadas, como agressão e extrema pobreza. No entanto, a preguiça dos roteiristas faz com que este seja o mais tosco de todos, mesmo se percebendo muito dinheiro injetado na produção, o que, inclusive, torna o problema ainda mais sério – sem falar que vi numa tela IMAX, e isso maximiza as falhas também. Tudo no filme é pensado apenas para seguir um esquema previsível para se chegar nas duas lutas principais, que não conseguem manter o mínimo interesse ou conseguir um suspense necessário. Isso porque os personagens são mal desenhados e os atores mal dirigidos e nem o trio de bons atores consegue salvar o texto ruim. Não há o elemento mais importante dos filmes estrelados por Sylvester Stallone, que é o coração – os dramas e as fragilidades dos personagens importavam muito mais do que as lutas nos ringues. Viver dói muito mais do que levar porrada na frente de milhares de pagantes.

NAS ONDAS DA FÉ

O diretor de E AÍ...COMEU?! (2012), Felipe Joffily, assume a função de contar esta história sobre a corrupção dentro das igrejas evangélicas. NAS ONDAS DA FÉ (2023) é um filme que acerta em muitas coisas, em especial na presença de Marcelo Adnet, que além de colaborar com a história e com o roteiro, pega um papel perfeito para ele, com aquela capacidade que tem de assumir muitas personas. Aqui ele acaba se tornando, graças a uma brincadeira, um pastor que desperta tanto a paixão de fiéis quanto a inveja de outros ministros do meio que se veem inferiorizados diante de sua ascensão. Destaque também para a inspirada Letícia Lima, como a esposa fiel, além de um elenco de apoio de craques (Otávio Müller, Stepan Nercessian, Tonico Pereira, entre outras participações especiais bem-vindas). Acho que o filme perde um pouco a força da metade para o fim, quando parece não ter muita ideia do que fazer com o protagonista, mas acaba encontrando um finalzinho bem acertado.

CASAMENTO EM FAMÍLIA (Maybe I Do)

O dramaturgo e roteirista Michael Jacobs estreia na direção de longas-metragens numa adaptação de uma peça de sua autoria com CASAMENTO EM FAMÍLIA (2023). Deixou-me admirado o fato de ele (ou a produção) ter conseguido atrair tanta gente boa para o elenco com um texto que está longe de ser dos melhores. Em vários momentos, falta lógica na conversa entre os personagens, e isso faz com que todo o peso do filme caia nas costas do ótimo elenco de atores. Como os personagens dos jovens Emma Roberts e Luke Bracey são muito mal estruturados, a força está mesmo nos dois casais de veteranos. Diane Keaton e William H. Macy, em especial, estão adoráveis, tanto por interpretarem personagens mais desprovidos de malandragem, quase ingênuos, quanto pelo grande talento deles mesmo. E há o carisma e a elegância de Richard Gere e Susan Sarandon. Como comédia, o melhor momento acontece quando os dois casais descobrem, num jantar em família, que são pais dos filhos de seus amantes (ou quase isso, no caso de Keaton e H. Macy). Então, não deixa de ser curioso que uma peça guarde seu mais bem-sucedido momento num tipo de humor mais físico. E que bom que os atores se entregam aos papéis e transformaram o que poderia ser um desastre num filme muito simpático e que ainda pode mexer com as emoções de muitas pessoas que se identificam com certas situações dos casais com mais tempo de estrada.

sábado, março 18, 2023

SERVANT – QUARTA TEMPORADA (Servant – Season Four)



A única série que estive acompanhando neste início de ano chegou ao fim. Não sei se tenho saudades de quando eu conseguia acompanhar de três a quatro séries ao mesmo tempo, mas o fato é que minha ansiedade de poder ver mais filmes (e me frustrar na maioria das vezes, com isso) acabou me afastando mais das séries. Mas desta eu não poderia me afastar, pois foi se tornando uma das mais queridas. A quarta temporada de SERVANT (2023) começa depois de um baita gancho: Leanne (Nell Tiger Free) resolve dar um castigo grande em Dorothy (Lauren Ambrose), fazendo-a cair do alto de uma escada. Ficou no ar, inclusive, a possibilidade de Dorothy ter morrido, mas a nova temporada volta com a personagem se recuperando, mesmo correndo o risco de nunca mais voltar a andar novamente.

Essa Leanne mais malvada foi aparecendo paulatinamente ao longo da série. Quando ela chegou na casa dos Turner, sua intenção era cuidar de Dorothy, tanto que trouxe de volta, com seus poderes mágicos, a criança que havia morrido. Na series finale, Dorothy diz a ela que isso foi a maior prova de amor que alguém já lhe deu. Foi um momento muito bonito da série, aliás, levando em consideração que as duas se tornaram inimigas mortais ao longo dessa longa história de abuso e carência afetiva.

Talvez o episódio final tenha deixado um gostinho de desapontamento, principalmente pelas coisas acontecerem de maneira tão rápida. Mas foi tão bom chegar até aqui nesses quatro/cinco anos de mistério geralmente acontecendo entre quatro paredes. SERVANT foi uma série surgida em 2019, mas meio que antecipou o clima de pandemia, dos espaços fechados, que se tornou regra em várias produções ocorridas em 2020. E M. Night Shyamalan, como o showrunner, soube muito bem criar um material com um cuidado visual muito bom, com uma direção de arte caprichada, com uma fotografia bem pensada. 

Alguns cineastas que Shyamalan convidou para dirigirem vários episódios foram jovens diretores talentosos (a dupla Severin Fiala e Veronika Franz, de BOA NOITE, MAMÃE; Kitty Green, de A ASSISTENTE; Julia Docournau, de TITANE; Isabela Eklöf, de HOLIDAY; Carlo Mirabella-Davis, de DEVORAR,  entre outros, além da própria filha do cineasta, Ishana Shyamalan, responsável por alguns dos mais estilosos e bonitos episódios). Esse aval a jovens cineastas é também um convite a certos espectadores para que conheçam o trabalho desses realizadores, que podem tanto ser gigantes no futuro (Docournau ganhou até Palma de Ouro), quanto injustamente esquecidos.

Uma das graças de SERVANT é temermos e ao mesmo tempo torcermos por Leanne, por mais que ela transforme a vida dos Turners num inferno e muito provavelmente seja um demônio. Se o final da série parece anticlimático, talvez seja porque o penúltimo episódio foi muito poderoso e tenso, e também muito triste – afinal, é quando acontece, finalmente, o tão aguardado momento da revelação do ocorrido com o filho de Dorothy para ela. Muito se aguardava por isso e Shyamalan foi o diretor do episódio, trazendo ainda mais dramaticidade para a situação, além de encerrar esse episódio (chamado de “Awake”) com aquela proposta sinistra de Leanne a Dorothy, parecendo o diabo oferecendo um pacto difícil de ser recusado.

Não dá para dizer que os criadores não foram coerentes no fim de tudo. E Leanne teve uma saída de cena tão bela quanto merecedora de sua grandeza como personagem tão doce quanto maligna. Por isso é muito bom ver a série encerrando com esse tom de ambiguidade.

No mais, vale lembrar que a temporada também contou com episódios memoráveis, como “Séance”, aquele da sessão espírita, quando uma das cuidadoras de Dorothy chama a atenção para um bebê; “Boo”, o da festa de Halloween, em que Leanne se veste de forma muito bonita para a festa e acaba enfrentando heroicamente os membros do culto; e “Tunnels”, quando Sean (Toby Kebell) e Julian (Rupert Grint) tomam a decisão de apoiar Dorothy e tirar Leanne de suas vidas. Daria para citar mais, mas o espaço não cabe. No mais, vale lembrar que SERVANT é a segunda incursão de Shyamalan pela televisão, depois da ótima primeira temporada de WAYWARD PINES (2015-2016), infelizmente uma série pouco lembrada.

+ TRÊS FILMES

AS DUAS VIDAS DE AUDREY ROSE (Audrey Rose)

Uma das coisas mais interessantes deste filme de Robert Wise, cineasta prestigiado em Hollywood e que gostava de dirigir filmes de gênero também (horror, sci-fi, musical, western), é que AS DUAS VIDAS DE AUDREY ROSE (1977) é uma obra que fica no meio do caminho entre o terror e o drama, já que a questão da reencarnação não é necessariamente algo para dar medo. Agora, há sim um momento de tensão muito forte, que é a cena da hipnose da menina, lá perto de seu final. Na trama, Anthony Hopkins é um homem que se aproxima de uma família para dizer que a filha do casal é na verdade a reencarnação de sua filha, morta num acidente de automóvel. Entre a aceitação e o ataque, o filme ainda apresenta um interessante momento de drama de tribunal. Ainda assim, fiquei um pouco confuso com esse negócio de dois espíritos num único corpo. (Ou ao menos é isso que aparenta, quase como se fosse uma possessão.) O pessoal do espiritismo vê com bons olhos esse filme? Filme visto no box Obras-Primas do Terror Vol. 20.

O ÚNICO SOBREVIVENTE (Sole Survivor)

Precursor da franquia PREMONIÇÃO (2000-2011), este filme de baixíssimo orçamento conta a história de uma jovem mulher que é a única sobrevivente de um acidente aéreo. Logo que ela sai do hospital ela passa a ser perseguida por pessoas que estão aparentemente mortas - ou no mínimo muito estranhas. Engraçado que O ÚNICO SOBREVIVENTE (1984) tem os seus momentos e sinto um esforço de parte do elenco de dar o seu melhor, mas a direção pouco inspirada (do mesmo Thom Eberhardt de A NOITE DO COMETA, 1984) não compensa a falta de uma história melhor pensada. Ou seja, um monte de coisas não faz sentido, mas o problema nem é exatamente esse. De todo modo, acredito que é uma obra que pode encontrar o seu público. Filme visto no box Obras-Primas do Terror - Anos 80.

A SOMBRA DO GATO (The Shadow of the Cat)

Esta produção da Hammer dirigida por John Gilling, que curiosamente não se apresenta como sendo da Hammer nos créditos, é bem divertida. E fico me perguntando se algumas cenas engraçadas nasceram de fato para serem engraçadas. A princípio achei que não fosse me divertir com essa história aparentemente muito simples sobre uma gata que se vinga dos responsáveis pelo assassinato de sua tutora. A gata é uma graça e a gente torce por ela e pela morte dos tais vilões. Barbara Shelley (A ALDEIA DOS AMALDIÇOADOS) está bem como a moça que não sabe do ocorrido e é o mais próximo de uma heroína para a trama, mesmo com sua passividade. Fico imaginando como deve ter sido difícil de fazer as cenas com o gato, mas até que eles se saíram bem, com uso de campo-contracampo, efeitos de câmera especiais para o ponto de vista do felino e a tentativa de manter a iluminação sem oscilação em cenas mais escuras. Como se trata de um suspense gótico, a maioria das cenas de A SOMBRA DO GATO (1961) é noturna ou dentro do casarão. Visto no box Obras-Primas do Terror 19.

segunda-feira, março 13, 2023

OSCAR 2023



Foi horrível. Se uma vez eu já reclamei do Oscar, eu retiro o que eu disse. E para completar, para nós brasileiros, ainda sofremos com os apresentadores locais (da TNT, pois não temos mais a opção da Rede Globo). Mas acho, de uma maneira geral, e esquecendo os apresentadores brasileiros, posso estar levando muito para o lado pessoal, já que não sou nada simpatizante do grande vencedor da noite, TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO, que conquistou sete estatuetas, no que parecia uma espécie de surto coletivo (ou delírio coletivo?). Aliás, ontem estive conversando brevemente sobre essa história de delírio coletivo no Oscar com uma amiga querida e ela me falou algo que me fez pensar: que isso é mais do que comum nas premiações da academia, especialmente quando certos filmes pouco ou nada interessantes acabam conquistando o prêmio principal. Alguém se lembra de QUEM QUER SER UM MILIONÁRIO? Pois é. Ou quando há essa loucura de muitos prêmios mesmos para um único filme. 

No ano passado ocorreu uma pulverização dos prêmios por causa da falta de um filme que causasse uma simpatia maior por parte dos votantes. Assim, pudemos ver o caso de NO RITMO DO CORAÇÃO, uma deliciosa sessão da tarde que acabou ficando mal vista por conquistar o prêmio principal no fim da noite, sem ter o diretor indicado à categoria de direção. Mais ou menos o que aconteceu quando SPOTLIGHT – SEGREDOS REVELADOS foi o grande vencedor da festa de 2016. De todo modo, ambos são relevantes: um por lidar com questões relativas ao universo das pessoas surdas; outro por explicitar uma denúncia contra padres abusadores.

A desculpa para a vitória de TUDO EM TODO O LUGAR AO MESMO TEMPO que ando vendo por aí é que se trata de um filme nascido num momento em que as pessoas viviam consumindo telas – de celular, de computadores, de televisão – como forma de se sentirem menos solitárias durante o período da pandemia, mas também como ferramentas para o trabalho. Essa multiplicidade de afazeres e de telas teria supostamente inspirado o filme dos Daniels, embora saibamos que se trata mais de uma espécie de vingança dos nerds, com essa história de trazer a noção de multiverso, que já está se tornando um tema aborrecido, graças aos filmes da Marvel.

Sobre os momentos mais memoráveis da noite, eu destacaria o In Memoriam, ao som de uma canção tocada por Lenny Krevitz. É sempre uma seção da noite que me traz reflexões e John Travolta a apresentou bastante emocionado, como se estivesse sentindo a perda de um grande amigo ou amiga que deixou esse plano da existência. E de fato sentia: de sua amiga Kirstie Alley, falecida em dezembro passado, com quem contracenou em OLHA QUEM ESTÁ FALANDO.

No mais, acredito que o mais próximo de uma zebra da noite foi o prêmio de figurino para PANTERA NEGRA – WAKANDA PARA SEMPRE. No mais, foi tudo mais ou menos como já esperado pelos sites de aposta, e talvez por isso a cerimônia tenha sido tediosa - o que salvou foram os bolões e as conversas pelo zap, messenger ou facebook com os amigos. Claro que eu não queria uma repetição do tapa do ano passado, mas seria interessante ter algo do que falar com entusiasmo no dia seguinte. Os prêmios para Brendan Fraser por A BALEIA e para Michelle Yeoh para o filme dos Daniels já eram aguardados, embora ainda se pensasse numa possível chance de o prêmio da direção ir para Steven Spielberg. Ou, melhor ainda: para Todd Field. Até o Oscar de roteiro adaptado parecia já destinado a ENTRE MULHERES.

Assim, os três melhores filmes indicados à categoria principal (na minha opinião) – OS BANSHEES DE INISHERIN, OS FABELMANS e TÁR – acabaram saindo da festa de mãos abanando. Mas tudo bem. Que o Oscar 2024 seja melhor.


Os premiados


Melhor Filme – TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO
Direção – Daniel Kwan e Daniel Scheinert (TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO
TEMPO) Ator – Brendan Fraser (A BALEIA)
Atriz – Michelle Yeoh (TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO)
Ator Coadjuvante – Ke Huy Quan (TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO)
Atriz Coadjuvante – Jamie Lee Curtis (TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO)
Roteiro Original – TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO
Roteiro Adaptado – ENTRE MULHERES
Fotografia – NADA DE NOVO NO FRONT
Montagem – TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO
Trilha Sonora Original – NADA DE NOVO NO FRONT
Canção Original - "Naatu Naatu” (RRR – REVOLTA, REBELIÃO, REVOLUÇÃO)
Som – TOP GUN – MAVERICK
Efeitos Visuais – AVATAR – O CAMINHO DA ÁGUA
Direção de arte – NADA DE NOVO NO FRONT
Figurino – PANTERA NEGRA – WAKANDA PARA SEMPRE
Maquiagem e cabelos – A BALEIA
Filme Internacional – NADA DE NOVO NO FRONT (Alemanha)
Longa de Animação – PINÓQUIO POR GUILLERMO DEL TORO
Curta de Animação – O MENINO, A TOUPEIRA, A RAPOSA E O CAVALO
Curta-metragem live action – AN IRISH GOODBYE
Documentário – NAVALNY
Curta Documentário – COMO CUIDAR DE UM BEBÊ ELEFANTE

  

sábado, março 11, 2023

PÂNICO VI (Scream VI)



As últimas semanas (na verdade, os últimos meses) foram marcadas por muito trabalho, muita preocupação, muitos afazeres e, além de tudo, pouca energia para me dedicar ao blog, o que me deixa um pouco frustrado. Mas não posso reclamar, pois houve motivos nobres e positivos para minha dificuldade de conseguir mais tempo para o que gosto de fazer. Por conta disso, houve um acúmulo altíssimo de filmes vistos e apenas comentados brevemente no calor do momento. Logo, vou voltar, pelo menos neste mês de março, a colocar mini-textos de três e não de dois filmes, de modo a diminuir essa pilha. Geralmente tomo cuidado para colocar filmes que tenham um pouco a ver com o texto principal, mas nem sempre isso é possível.

Falemos então de PÂNICO VI (2023), o mais novo exemplar da franquia criada por Wes Craven e Kevin Williamson em 1996 e que foi marcante por trazer um senso de humor muito próprio e um sentimento de autoconsciência dos personagens de estarem dentro de um slasher em que eles são suspeitos e vítimas. Dois anos antes, Craven havia brincado com metalinguagem no genial O NOVO PESADELO – O RETORNO DE FREDDY KRUEGER (1994), em que a maior parte do elenco e da equipe técnica interpretava a si mesmos e eram também potenciais vítimas do assassino dos sonhos. (Se bem que esse tipo de brincadeira, o nosso querido José Mojica Marins já havia feito em EXORCISMO NEGRO, em 1974.) 

Com a morte de Craven em 2015 e um quarto filme de PÂNICO tendo surgido em 2011, num espaçamento maior de tempo com os demais exemplares que trazia tanto a sensação de cansaço, quanto de alegria, parecia quase impossível alguém conseguir fazer algo tão bom quanto os trabalhos do mestre. Alguns fãs mais radicais nem olhavam (nem olham) com bons olhos o trabalho da dupla Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillet de assumir a dura tarefa de continuar o legado do mestre. E por isso PÂNICO (2022), o quinto filme da franquia, recebeu críticas divididas. Não se poderia esperar algo diferente deste novo filme, ainda mais por ter sido feito com tanta rapidez, aproveitando evidentemente o sucesso comercial do anterior.

O novo filme, com “sede” agora em Nova York, mantém a tradição de começar com um prólogo em que uma garota recebe uma ligação do assassino e é brutalmente morta. Aqui há algo que chama mais a atenção dos fãs mais atentos de slashers, que é a menção explícita aos gialli, os charmosos filmes de matança italianos que influenciaram o surgimento dos slashers a partir do final dos anos 1970. A garota da vez é interpretada por Samara Weaving, protagonista de CASAMENTO SANGRENTO (2019), o filme que deu maior visibilidade à dupla de diretores. Mas há algo que foge à regra, pelo menos aparentemente, no prólogo: o assassino tira a vestimenta e vemos seu rosto. Além disso, quando ele chega em casa, ele usa uma camiseta com o título de um filme cult de Dario Argento, QUATRO MOSCAS SOBRE VELUDO CINZA, terceiro filme do maestro do terror. E há outro detalhe muito importante que será a cara deste novo filme: ao chegar em casa, esse rapaz falará sobre o quanto foi prazeroso para ele matar aquela mulher. Quase como um orgasmo.

Essa questão do prazer nas mortes lembra bastante os filmes de Argento, que trazem o prazer associado à beleza visual das cenas gráficas de morte e violência, e também associadas a uma excelente trilha sonora. Não temos uma excelente trilha sonora aqui, mas o tema do prazer de matar está presente. Inclusive, eu diria que o fato de termos uma heroína que carrega o sangue de um dos assassinos do primeiro filme, Billy Loomis (Skeet Ulrich), e de ter contato com seu fantasma – ou seriam alucinações? –, ajuda a tornar a personagem mais sombria. Aliás, a classificação indicativa 18 anos do filme no Brasil deve ter mais a ver com essas questões do que com as cenas de assassinatos em si. Falando na moça, Melissa Barrera já é uma das melhores musas do gênero. Por outro lado, acho a personagem de Jenny Ortega fraca. E como o tempo é cruel, já se percebe uma falta de interesse em dar maior importância à personagem de Courtney Cox, a única do trio original que volta para o novo filme.

Uma das coisas que senti falta neste novo exemplar da franquia foi a falta de um humor mais eficiente. E foi algo que não entendi, pois a dupla de diretores conseguiu direitinho no filme anterior, que me deixou com um sorriso de orelha a orelha do início ao fim. De todo modo, PÂNICO VI ainda é um bom filme e os novos autores não deixam a peteca cair e mantêm o legado de Wes Craven bastante relevante. Talvez só precisem pensar melhor o próximo projeto e não fazer as coisas de maneira tão apressada. E o que é aquela personagem da Hayden Panettiere? Uma participação infeliz ou apenas uma personagem mal construída? Ela foi a “primeira garota” de PÂNICO 4 (2011) e agora volta como uma agente do FBI. Pelo menos a rápida conversa dela sobre filmes de terror com a personagem de Jasmin Savoy Brown é divertida.

Mudar as regras e as repetições é outro desafio que é conseguido pelos diretores, assim como trazer questões de tempos de pós-verdade. A violência segue bem gráfica e enaltecendo alguns mestres do horror italiano, mas não acho que nenhuma cena tenha o mesmo impacto daquela antológica dos assassinos se esfaqueando do primeiro filme. Mas fazer isso seria muito difícil. Uma pergunta que me faço: o fato de o filme deixar a gente com vontade de ver um slasher “raiz” (dos anos 1980) ou um bom giallo (dos anos 1970) seria um bom ou um mau sinal?

PÂNICO VI foi o primeiro filme da franquia a ganhar lançamento em 3D. Não sei como foi o resultado pois quase sempre o 3D mais atrapalha do que ajuda. Se alguém viu em 3D, me diga se há algum ganho no entretenimento.

+ TRÊS FILMES

PEARL

A prequel de X – A MARCA DA MORTE (2022) é um filme mais ousado que seu anterior em aspectos formais. Há um tempo mais estendido, com direito até a um monólogo muito mais longo do que estamos acostumados em filmes do gênero. Podemos chamar de slasher também, já que há a figura do assassino e várias mortes, mas é uma obra mais interessada na personagem de Mia Goth do que em trazer diversão ou medo com as mortes. Ao que parece a atriz contribuiu bastante com os diálogos, já que é corroteirista junto com Ti West. O diretor também tem se mostrado muito habilidoso em homenagear determinados períodos do cinema usando uma direção de arte muito criativa. Seus melhores filmes fazem essa homenagem - incluo A CASA DO DIABO (2009) entre eles. Aqui ele homenageia os filmes do cinema mudo, já que a história se passa em 1918. Aguardemos MAXXINE, a verdadeira continuação de X, novamente com Mia Goth, e com uma pegada oitentista.

O PÁSSARO SANGRENTO (Deliria/StageFright)

A revisão de O PÁSSARO SANGRENTO (1987), de Michele Soavi, me ajudou não apenas a refrescar a memória, afinal vi o filme pela primeira vez há vinte anos, mas a perceber melhor o interesse de Soavi em fazer um slasher com um cuidado muito maior na direção de arte, seguindo os passos de seu mestre, Dario Argento. Este foi o primeiro filme do realizador e demoraria mais uns poucos para que ele mostrasse ao mundo sua obra-prima (PELO AMOR E PELA MORTE, 1994). Na trama, um assassino psicopata entra dentro de um teatro onde um grupo de artistas pouco famosos está ensaiando uma peça. As cenas de violência não são exatamente violentas. Elas parecem procurar uma espécie de beleza transcendental e isso faz com que a obra se distancie bastante dos exemplares do gênero lançados com bastante frequência na década de 1980. A trilha sonora é bem oitentista, mas remete mais às produções italianas (aos gialli, principalmente) do que às americanas. Visto no box Slashers (o primeiro).

A PRAIA DO PESADELO (Nightmare Beach / La Spiaggia del Terrore)

Quando estou muito estressado ou cansado ou me sentindo um tanto sem energia, minha vontade é ver um filme de décadas passadas, de preferência de gênero, para relaxar. Recorri ontem a este slasher de Umberto Lenzi, diretor a que sempre tive uma relação de achar menor ou de menor importância, mas isso é um preconceito bobo de que preciso me livrar. Este A PRAIA DO PESADELO (1989) é bem divertido, com a beleza da praia de Palm Beach, das mulheres lindas em roupas de banho, e há um visual muito interessante do assassino, um cara com roupa de motoqueiro com um capacete em que não se vê o rosto, e durante as mortes vemos a imagem dos últimos momentos de vida das vítimas. A trilha sonora de Claudio Simonetti ajuda a dar um ar gostoso ao filme, assim como as canções que pendem para o hard rock e o heavy metal. Na trama, motoqueiro vai injustamente para a cadeira elétrica e promete se vingar. Logo em seguida, aparece esse motoqueiro misterioso que mata suas vítimas queimadas ou eletrocutadas, em geral. O filme explora a beleza dos corpos na juventude da mesma maneira que flerta com a morte, o que é uma coisa muito comum no slasher. Esse aqui, porém, tem um quê de giallo, mas isso se dá mais pelo estilo do diretor e pela questão da investigação do assassino. Filme visto no box Slashers VII.

terça-feira, fevereiro 21, 2023

HOMEM-FORMIGA E A VESPA – QUANTUMANIA (Ant-Man and the Wasp – Quantumania)



Engraçado como a nossa recepção com os filmes tem muito a ver com nossa expectativa. Fui olhar as produções da chamada quarta fase da Marvel e os títulos que mais criaram expectativas foram HOMEM-ARANHA – SEM VOLTA PARA CASA, de Jon Watts, e DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA, de Sam Raimi. E de fato são filmes que guardam alguns momentos memoráveis, mas que não demora para ficarem nublados em nossa memória afetiva. Por outro lado, dois títulos um bocado apedrejados apedrejados, como THOR – AMOR E TROVÃO, de Taika Waititi, e PANTERA NEGRA – WAKANDA PARA SEMPRE, de Ryan Coogler, já me agradaram em mais aspectos. E olha que não gostei dos filmes anteriores do Thor e do Pantera, mas, por algum motivo, enxerguei qualidades ou pelo menos muita diversão nesses filmes.

E muita diversão era o mínimo que poderia se esperar de HOMEM-FORMIGA E A VESPA – QUANTUMANIA (2023), de Peyton Reed, filme que abre a quinta fase da Marvel no cinema (e na televisão). Os dois primeiros títulos do Homem-Formiga são bem divertidos, ambos dirigidos também por Reed, que havia saído de interessantes comédias no início da carreira e que acabou “se vendendo” para a Marvel. Ele tem no currículo títulos muito legais, como ABAIXO O AMOR (2003), SEPARADOS PELO CASAMENTO (2006) e SIM SENHOR (2008). A partir de HOMEM-FORMIGA (2015) não se soube de outros trabalhos dele que não fossem da corporação Marvel/Disney. Acho isso uma pena, e é pior ainda quando a essência do seu humor se apresenta totalmente perdida no novo filme.

Neste terceiro título do Homem-Formiga (e da Vespa, sendo que a Vespa é a personagem da família menos importante na história!), talvez por ter a obrigação e o engessamento de ser um filme para abrir a nova fase e introduzir de maneira mais definitiva o super-vilão da vez, Kang, o Conquistador (Jonathan Majors), que já havia sido visto, mas sem ter seu nome citado, na primeira temporada de LOKI. Se na série do deus da mentira essa ideia de universos alternativos foi muito bem trabalhada, neste filme a ideia da pluralidade a partir da probabilidade se apresenta pelo menos em dois momentos. E o próprio universo quântico aparece como sendo um espaço muito plural e com referências a filmes de ficção científica dos anos 1950 e ao universo de Star Wars. Aliás, quando começa, eu até me animo com o filme. Infelizmente a trama não tem força e há um momento que deveria trazer pelo menos um pouco de entusiasmo para a plateia, que é o momento da revolução do povo de lá contra Kang, a partir da ajuda da “família formiga”.

Na trama, Cassie (Kathryn Newton), filha de Scott Lang (Paul Rudd), descobre uma maneira de se comunicar com o universo quântico. Acontece que isso foi um erro terrível, já que Janet (Michelle Pfeiffer) havia estado presa nesse universo por 30 anos e não contou os perigos que lá existem. O que é um erro do roteiro, talvez, mas que eu relevo em função da trama. Assim, esse universo acaba sugando os cinco membros da família, incluindo também Hope (Evangeline Lilly) e o Dr. Hank Pym (Michael Douglas), para lá.

Enquanto Michelle Pfeiffer ganha o status de protagonista na primeira metade da narrativa, já que ela é a pessoa que mais conhece aquele universo, dita as regras e apresenta os amigos e inimigos, o próprio Paul Rudd fica muito apagado. Além do mais, ver o filme inteiro se passando em cenários de fundo verde cansa um bocado. É quase como a experiência de AVATAR – O CAMINHO DA ÁGUA, só que em 3D muito vagabundo e efeitos menos sofisticados. Bom, pelo menos não é insuportável de ver quanto o filme de Cameron. O elenco carismático ajuda um pouco a tornar a jornada um pouco mais satisfatória. Enquanto isso, uma música genérica (Christophe Beck é o compositor) torna a experiência ainda menos interessante.

Ao final da sessão, com a falta de entusiasmo do público (que batia palmas até para os filmes mais fracos da Marvel), já fica claro o cansaço dessas produções construídas em esquema industrial e sem o interesse no principal: criar um bom filme, independente de estar ou não atrelado a um universo compartilhado. Para este ano temos mais dois títulos: GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3, de James Gunn, e THE MARVELS, de Nia DaCosta. Mais uma vez, não espero nada deles.

+ DOIS FILMES

M3GAN

Talvez não seja regra, mas é bom ficar com um pé atrás quando um filme for "apenas" produzido por James Wan, e não dirigido por ele. Há exceções, mas não creio que M3GAN (2022), de Gerard Johnstone, esteja entre elas, ainda que seja, sim, um filme que se assiste com interesse e que lida com o velho tema do homem (no caso, uma mulher) que brinca de deus, ao criar uma inteligência artificial super evoluída, e que acaba causando uma série de problemas. M3GAN é ficção científica com terror, mas com muitos momentos de humor bizarro. E talvez esse humor, que parece ser um indicativo de que seus criadores não o levam tão a sério, seja seu maior trunfo. Tanto que o sucesso de público já garantiu uma continuação.

PINÓQUIO POR GUILLERMO DEL TORO (Guillermo del Toro's Pinocchio)

Acho que meu problema com o filme foi a dificuldade de me envolver com o drama dos personagens, o que com frequência acontece com animações mais infantis, embora esta esteja também muito interessada em agradar aos adultos. O interessante desta nova versão é que há várias mudanças na história original, ou nas histórias que são frequentemente contadas em outros filmes. Justamente a parte que me deixou assombrado, quando criança, ficou de fora dessa versão, que parece trazer uma espécie de racionalidade para a magia da madeira que ganha vida. Mas acredito que há uma coisa de que eu gostei e comprei no final, que foi o fato de Pinóquio passar a ser amado pelo que ele é e sair do estigma de moleque que vive entrando em encrenca para desespero do pai. A animação em stop motion de PINÓQUIO POR GUILLERMO DEL TORO (2022), assinada por del Toro e Mark Gustafson, dá um ar bonito de imperfeição e a criação do Pinóquio foi muito feliz em aproveitar as características da madeira.

sábado, fevereiro 18, 2023

TEUS OLHOS MEUS



Acho que preciso lidar melhor com questões relativas à exposição para os outros. No meu ambiente virtual, no blog, em geral eu costumo falar aquilo que penso, embora de uns anos para cá tenha me policiado para filtrar algumas coisas que poderia pensar. São novos tempos e tempo também de repensarmos aquilo que deve ser falado. No caso, escrito. Pensei nisso agora pois ando preocupado com dois textos que preciso entregar para veículos importantes, textos de encomenda que julgo serem importantes, tanto por eu respeitar muito as pessoas que os pediram, quanto porque eles serão registrados em papel também e eu quero dar sempre o melhor, ficar esperando o dia mais inspirado etc, mesmo sabendo que nem tudo é inspiração. E é por causa disso que tenho tido menos tempo para escrever para o blog. Hoje, por acreditar que não será um dia tão produtivo assim, vou tentar escrever um texto sobre um filme relacionado a um dos textos de encomenda. Deixando claro que, “texto de encomenda” não quer dizer que não seja texto tão pessoal quanto os que escrevo para o blog.

Por causa do texto sobre CANASTRA SUJA (2016), filme cujo texto com as primeiras impressões pode ser lido aqui no blog em postagem de 2018, estou conhecendo um pouco mais sobre seu diretor, Caio Sóh. Não sabia quem ele era até então. CANASTRA SUJA já era seu quarto longa-metragem e foi lançado de maneira muito independente, apesar de ter no elenco astros de primeiro escalão num filme que parece até um pouco deslocado no tempo. Lembra muito as adaptações para o cinema de Nelson Rodrigues rodadas nos anos 1980. A impressão que tenho, aliás, é que hoje em dia as pessoas não estão mais preparadas para a porrada que é o texto do Nelson.

Pois bem. Cheguei então em TEUS OLHOS MEUS (2011), primeiro longa-metragem de Sóh. Uma coisa interessante é que o diretor não começou com um curta, como geralmente a maioria dos diretores preferem, mas logo com um longa. Em entrevista que vi recentemente no YouTube, ele conta que as pessoas diziam: puxa, por que você não começa com um curta? Ele dizia: porque a minha história é longa. Tem que ser um longa. E já começo admirando também o fato de que ele fez esse filme com um orçamento de apenas mil reais. Não sei se isso é lenda, mas acredito nisso. A câmera usada não é das melhores e a fotografia, pelo menos a disponibilizada na cópia para o YouTube não é uma das maiores preocupações. E, de certa forma, gosto disso. Gosto como seu interesse maior, a construção dos personagens e a busca por uma narrativa fluida e interessante, é afinal o que se destaca.

E também gosto como é bem a cara do primeiro filme de um jovem diretor, cheio de angústias, cheio de ideias, e esse conjunto de angústias e ideias se apresenta na figura do personagem de Emilio Dantas, chamado Gil. Ele é um jovem rebelde e que adora escrever nas paredes pensamentos que lhe surgem na cabeça, como se aquilo fosse uma necessidade tão grande quanto comer, beber ou fazer suas necessidades. Na entrevista, soube que Caio Sóh era (ou é?) esse sujeito que também tinha esse hábito de escrever nas paredes, até mesmo nas paredes das casas dos amigos. Não só em paredes, ele dizia, mas em qualquer papel que estivesse pelo caminho. Podia ser papel higiênico até. Aliás, sobre essa coisa de escrever nas paredes, acho que já devo ter contado por aqui que aprendi/descobri a ler escrevendo meu nome nas paredes da minha casa. Logo, houve um pouco de identificação com o personagem/autor nesse sentido.

Pois bem. Gil mora com os tios numa casa simples. Paloma Duarte é a tia carinhosa; Roberto Bomtempo é o tio que não tem muita paciência e não curte nada aquele sobrinho que chega bêbado e não estuda e nem trabalha. Gil mora com os tios pois a mãe dele morrera vários anos atrás. Mas a convivência não é muito boa. E temos o outro protagonista, Otávio (Remo Rocha, que aparece numa cena engraçada e tensa de CANASTRA SUJA), um homem mais velho que Gil e que mora com o namorado num apartamento luxuoso, mas que já está cansado das crises de ciúme do tal namorado. Numa discussão, ele sai de casa à noite e acaba encontrando Gil num barzinho. Gil não tinha dinheiro nem para uma dose de vodca, mas Otávio puxa conversa com ele (sobre o ato de compor músicas) e oferece uísque à vontade. É o começo de uma noite memorável entre os dois, uma amizade que nasce do respeito mútuo, e que se encaminha para um beijo na praia. Beijo problematizado por Gil: eu não sou viado, diz ele repetidamente, perturbado.

Uma das coisas que eu acho muito interessante nessas cenas da noite entre esses dois personagens que acabaram de se conhecer, e que geram um vínculo imediato, é que os diálogos são todos recortados com a edição. Diálogos recortados e uma câmera na mão bastante tremida para ressaltar um tipo de cinema mais próximo do realismo. E esse realismo obtido (não sei se de maneira deliberada) acaba se encontrando com um tom de fábula mitológica, quando o filme apresenta o seu final.

O final é outra coisa que se destaca no filme, pois foi alvo de crítica até mesmo na hora da distribuição. TEUS OLHOS MEUS não chegou nem a ser distribuído em circuito brasileiro, ficando apenas arquivado e depois exibido na televisão. E olha que o filme chegou a ganhar prêmios no Los Angeles Brazilian Film Festival, levando as estatuetas de melhor filme, roteiro (do próprio diretor), ator (Emilio Dantas), atriz coadjuvante (Paloma Duarte) e música – Maria Gadú, uma das autoras da trilha, participa na música e em pontas no filme.

Ou seja, o filme poderia ter se beneficiado de uma exposição maior, sendo visto por um público maior, e em vez disso ficou meio invisível. Ainda sobre o final, é interessante como, se compararmos com CANASTRA SUJA, Caio Sóh parece um daqueles roteiristas que se apresentam como um deus cruel e sádico nas histórias de suas criações. Por mais que pareça amar muito seus personagens também. Amando ou detestando TEUS OLHOS MEUS, é difícil desgrudar os olhos do filme. Isso por si só já é um mérito e tanto. Ainda mais levando em consideração que a experiência que o diretor havia tido era nos estúdios da Rede Globo, no tempo que auxiliava Jayme Monjardim em telenovelas. TEUS OLHOS MEUS surgiu da necessidade de criar algo seu, algo próprio. Nem que essa criação tivesse que nascer da forma mais barata possível e com a ajuda e a gentileza dos amigos.

+ DOIS FILMES

A VIDA SÃO DOIS DIAS

Uma das coisas admiráveis em Leonardo Mouramateus é que neste seu segundo longa-metragem ele não muda tanto assim, no que se refere à experimentação comumente adotada em seus curtas. Em A VIDA SÃO DOIS DIAS (2022), há uma história um pouco mais linear sobre um rapaz português que vem ao Brasil para uma coletiva de imprensa sobre um livro escrito pelo irmão gêmeo. Mais do que a história, o que conta é a ambientação que o diretor cria nessa sua comédia sobre criatividade, que talvez seja um meio de imprimir mais leveza para o modo como o público vê os seus filmes. Em vez de herméticos, eles podem ser vistos como divertidos. No caso deste filme, senti um problema de ritmo nos dois últimos capítulos (são cinco, bem demarcados e nomeados). Mesmo assim, acho que vou ficar pensando sobre o filme por uns dois dias, pelo menos.

O CLUBE DOS ANJOS

Antes de mais nada, já chama a atenção o incrível elenco masculino (sim, pois praticamente o filme é um clube do Bolinha, mas isso tem tudo a ver com o espírito do próprio clube do título). Otávio Müller, Matheus Nachtergaele, Paulo Miklos, Marco Ricca, Augusto Madeira e André Abujamra já são nomes que justificam a espiada neste que parece ser o nosso A COMILANÇA (quem nunca viu o filme de Marco Ferreri?). Depois, há o aspecto mais sombrio da trama, envolvendo um cozinheiro enigmático (Nachtergaele) que começa a fazer refeições divinas para o clube dos 7 e, aos poucos, um por um, eles vão morrendo após o jantar do mês. Baseado em obra de Luís Fernando Veríssimo, O CLUBE DOS ANJOS, de Angelo Defanti, ganha contornos de filme de horror perto de seu final, embora eu veja o final como um dos pontos menos interessantes da história. Sobre esse aspecto de horror enfatizado por fotografia, iluminação, maquiagem, é sensacional uma cena em que Miklos aparece com uma expressão cadavérica. Um desses filmes que pouca gente sabe da existência, mas que faria muito sucesso se passasse na televisão aberta, por exemplo.

domingo, fevereiro 12, 2023

TRÊS MÉDIAS E DEZ CURTAS



A BBS E A NOVA HOLLYWOOD (BBStory - An American Film Renaissance)

Documentário em média-metragem (47 minutos) presente no box O Cinema da Nova Hollywood 3. É muito bom poder ouvir das pessoas envolvidas sobre o momento e as circunstâncias que levaram à criação de alguns dos filmes mais importantes da Nova Hollywood, a partir do sucesso de SEM DESTINO (1967) e da recepção menos calorosa de OS MONKEES SOLTOS (1968). Em A BBS E A NOVA HOLLYWOOD (2010), de Greg Carson, percebi o quanto Jack Nicholson foi importante não apenas como ator, mas como criador, diretor, roteirista e até montador nos filmes da companhia BBS Productions, fundada por Bob Rafelson, Bert Schneider e Stephen Blauner. O documentário destaca principalmente CADA UM VIVE COMO QUER (1970) e A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA (1971), mas há destaque também para O DIA DOS LOUCOS (1972) e para os menos lembrados O AMANHÃ CHEGA CEDO DEMAIS (1971) e REFÚGIO SEGURO (1972). Entre os entrevistados, gosto muito dos depoimentos do próprio Nicholson, de Ellen Burstyn e de Bob Rafelson, com sua história divertida sobre Nicholson não querer chorar numa cena-chave de CADA UM VIVE COMO QUER.

LE FRANC

O que mais me deixou impressionado com LE FRANC (1994), de Djibril Diop Mambéty, foi minha ignorância em perceber o quanto havia países ainda vivendo num grau tão grande de miséria em plenos anos 1990. O diretor do clássico TOUKI BOUKI – A VIAGEM DA HIENA conta neste seu média-metragem a história de pessoas que moram numa espécie de grande favela próxima a um lixão, que por sua vez é também próximo do mar. O personagem principal é um homem que deve o aluguel da casa e aposta um dinheiro que encontrou num bilhete de loteria. O filme é tão envolvente que me peguei com raiva do personagem, pela falta de inteligência em lidar com as situações, mesmo quando a sorte parece finalmente bater à sua porta. Mas o mais bonito (e triste) é que seu sonho é também muito modesto: fazer sucesso tocando o instrumento musical daquele lugar do Senegal que é muito simples, uma espécie de caixa que funciona tanto como instrumento que simula cordas quanto de percussão. O final me deixou na dúvida se o simbolismo foi crítico ou não às intenções do protagonista.

A PEQUENA VENDEDORA DE SOL (La Petite Vendeuse de Soleil)

Lindo filme sobre garota com deficiência física que resolve trabalhar como vendedora do Soleil, o jornal do governo senegalês. A PEQUENA VENDEDORA DE SOL (1999, foto acima) funciona como um contraponto interessante de LE FRANC. Talvez seja uma obra mais otimista, embora se veja também a maldade humana muito presente, principalmente nos garotos que insistem em maltratar os personagens deficientes, casos da garotinha protagonista e de um jovem cadeirante que ganha uns trocados tocando no seu rádio as FMs que lhe pedem para ele tocar. É interessante como esses filmes lidam com aquilo que é mais urgente nessa sociedade, o dinheiro, para que se possa sobreviver com um pouco mais de dignidade, e por isso mesmo parecem tão tocantes. Há momentos de dor e de ternura neste último trabalho na direção de Djibril Diop Mambéty. Memorável a cena da garotinha na delegacia.

AFRIQUE SUR SEINE

Pode-se considerar este filme como um exemplar da pré-história do cinema africano, já que a produção é totalmente francesa e se passa em Paris, mostrando imigrantes africanos morando na capital francesa. O texto em AFRIQUE SUR SEINE (1955), de Mamadou Sarr e Paulin Vieyra, exalta a riqueza e a beleza de Paris, mas é bem possível perceber que há ali um pouco de ironia por parte do narrador, levando em consideração que as riquezas desse país ainda vinham da exploração de suas colônias. Ainda assim, achei o filme pouco rico do ponto de vista cinematográfico, funcionando mais como um registro histórico importante de cineastas que posteriormente fariam filmes (como diretores ou como atores) em seus países de origem.

EU TE AMO É NO SOL

Retrato aparentemente simples de uma relação entre duas jovens mulheres, que traz mais coisas enriquecedoras nas entrelinhas. Na história de EU TE AMO É NO SOL (2022), de Yasmin Guimarães, jovem reencontra sua namorada, que agora mora num lugar distante e frio (o filme nunca diz que lugar é esse), e passam a morar juntas. É interessante notar as escolhas da diretora nesse pequeno espaço de tempo de 15 minutos de metragem. Por vezes, a diretora prefere mostrar uma ou outra das moças sozinha, em uma situação mais de solidão, do que as duas juntas, embora haja também momentos delas juntas em celebração e intimidade. Talvez a força do filme esteja justamente nesses pequenos detalhes que são de escolhas inusitadas, como mostrar uma delas olhando as flores em uma tomada rápida, a cena do copo quebrado, ou a cena final da janela do apartamento, cujo significado ainda permanece um mistério para mim.

FANTASMA NEON

Musical que nos apresenta a um rapaz que faz entregas por aplicativo em sua bicicleta e sonha em ter uma moto. Há belas coreografias, canções diversificadas, um trabalho de direção de arte caprichado (destacando sempre a cor vermelha) e momentos revoltantes, com frequência. A melancolia preenche o filme do início ao fim, como se não houvesse uma solução para essa vida, pelo menos num futuro próximo. FANTASMA NEON (2021), de Leonardo Martinelli, estreou mundialmente no Festival de Locarno, tendo ganhado o Leopardo de Ouro de melhor curta-metragem. Aliás, isso é outra coisa revoltante: mesmo sendo um filme premiado, dificilmente este trabalho será visto por um grande público. Algo precisa ser feito para que os curtas ganhem maior visibilidade.

INFANTARIA

Quando vemos as primeiras imagens de INFANTARIA (2022), de Laís Santos Araújo, já percebemos que se trata de um filme diferente. As cores se destacam, em especial cores que remetem à feminilidade infantil. Temos basicamente quatro personagens. Uma mãe (1) que está preparando o aniversário da filha (2) de dez anos de idade e que também lida com o filho (3) um pouco mais velho e com o surgimento de uma jovem de 16 anos (4) que aparece para resolver um problema que lhe aflige. O filme garante sua força no modo como trata a situação da adolescente e o distanciamento que há entre os universos masculino e feminino. Mais do que um filme que trata do amadurecimento de jovens meninas, "Infantaria" lida com o patrulhamento masculino em relação ao corpo feminino. E faz isso de maneira muito sensível e inteligente.

XAR - SUENO DE OBSIDIANA

A sinopse diz o seguinte: "Ao despertar de um sonho de obsidiana, o jovem Maya Edgar Calel realiza um ritual artístico na Bienal de São Paulo. Entre aspirações e memórias, seu percurso espiritual vai conduzi-lo para ser incorporado ao seu animal de poder". Costumo às vezes buscar as sinopses de modo a compreender um pouco melhor a obra, quando ela me foge um pouco à compreensão ou necessita de uma revisão. O que ficou na primeira impressão de XAR - SUENO DE OBSIDIANA (2022), de Edgar Calel e Fernando Pereira dos Santos, curta falado em outra língua (maia?) é que há um embate entre o espírito da natureza próprio do indígena, único personagem presente, e aquela arquitetura enorme e totalmente artificial onde ele está ao mesmo tempo abrigado (da chuva) e aprisionado. Suas palavras, em voice-over, são tristes e poéticas e as imagens são bem pensadas pelos dois diretores.



MUTIRÃO: O FILME

Gosto quando certos projetos originais como este são ao mesmo tempo simples e fáceis de serem realizados. Claro que a menina que narra as imagens tem uma graça toda própria, mas o filme em si é sobre a percepção dela das imagens de um mutirão nos anos 1980 que resultará na construção da casa onde ela mora. E uma coisa que ela percebe, e que ela percebe que os adultos não percebem, é a presença de crianças nas fotos. Então, o filme não seria o mesmo, obviamente, se fosse narrado por um adulto. Até porque as fotos não têm nada de muito especial, a não ser para as pessoas que ali moram ou que conhecem quem está retratado. MUTIRÃO: O FILME (2022), de Lincoln Péricles, é um filme que chama à reflexão para o nosso momento presente como resultado de ações do passado; de como certas ações precisam ser feitas sem permissão do estado; e de como pensar nas crianças é extremamente importante.

MEIO ANO-LUZ


Gosto de estar acompanhando a carreira de Leonardo Mouramateus desde MAURO EM CAIENA (2012) e perceber o quanto seus filmes têm sensibilidades tão singulares quanto distintas, à medida que ele vai criando e pensando novas situações. Apesar de já ter dois longas em sua carreira, ANTONIO UM DOIS TRÊS (2017) e o novo A VIDA SÃO DOIS DIAS (2022), o curta-metragem parece ser o espaço mais adequado para suas experimentações, por causa da maior liberdade que lhe é característica. Na trama de MEIO ANO-LUZ (2021), o próprio Mouramateus encontra uma carteira no chão e, conversando com o amigo Mauro, procura decifrar a identidade da dona da tal carteira, ao mesmo tempo que refletem sobre as origens dos nomes das ruas onde estão e possibilidades que parecem saídas de filmes de ficção científica. O barato do filme é que passa uma paz muito boa ver as imagens das pessoas andando pela rua, enquanto ouvimos a conversa dos dois.

SOLMATALUA

Um filme que dói ver, por mais que algumas imagens sejam cifradas para quem não conhece suas origens, afinal, não se trata de um vídeo didático, mas uma obra que prima pela liberdade. Liberdade, uma palavra importante. A liberdade que é tirada de um dos narradores, outrora rei na África, e agora escravizado numa terra estrangeira e hostil. Do mesmo diretor, Rodrigo Ribeiro-Andrade, do celebrado A MORTE BRANCA DO FEITICEIRO NEGRO (2020), SOLMATALUA (2022) também trabalha imagens que encantam e atordoam. Ora imagens do passado, ora imagens criadas para enfatizar uma beleza plástica da natureza que encontra consonância com os poemas e as canções pretas.

NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA

Que lindo este filme em homenagem a Grande Otelo, um dos nossos maiores atores. A opção do diretor por trazer à tona entrevistas que o ator deu a programas de televisão importantes ajuda bastante a pensarmos seus gestos e suas respostas, que unem a simplicidade e a grandeza. A pergunta que costumavam fazer era talvez complicada de ser respondida, sobre uma possível identificação com Macunaíma, o chamado herói sem nenhum caráter, e a sua comparação com o povo brasileiro. NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA (2022), de Fabio Rodrigues Filho, vai fundo nessa questão e apresenta, em recortes, vídeos e trechos de filmes que, sem dar respostas prontas, cutucam nosso espírito e a história racista de nosso país. Muito bonitas as cenas em silêncio e de arrepiar a música escolhida para encerrar o filme.

MANHÃ DE DOMINGO

O filme já chama a atenção pelo plano fixo que vemos, que denuncia claramente que a atriz é uma pianista de fato (Raquel Paixão). Uma mulher preta toca Chopin e na parede vemos um cartaz da Nina Simone. Seu gato preto permanece quietinho em cima do piano. Uma imagem linda de ver e de ouvir. Depois vemos que ela tem um espectador, mas talvez isso não seja tão importante assim, a não ser para nos apresentar a sua intimidade e a suas preocupações a respeito de uma apresentação futura. MANHÃ DE DOMINGO (2022, foto acima), de Bruno Ribeiro, premiado com o Urso de Prata em Berlim, tem uma sofisticação visual que se percebe desde o primeiro plano e que assim permanece até o último. Não é um filme de muitos diálogos, é mais de observação e apreciação visual, mas é claramente um filme de resistência e luta que passa longe de ser panfletário. Não que isso fosse um problema.

sexta-feira, fevereiro 10, 2023

OS BANSHEES DE INISHERIN (The Banshees of Inisherin)



Uma das recordações mais bonitas que guardo é a do funeral do meu avô. Como ele foi uma pessoa muito querida, notava-se no ar o carinho que todas aquelas pessoas presentes em sua despedida nutriam por ele, por sua história de vida, pelo seu bom humor. Eu costumava dizer que gostava mais de meu avô que de meu pai, por exemplo, embora a comparação possa ser injusta. Afinal, as pessoas são diferentes. Mas ver aquelas pessoas batendo palmas para o meu avô enquanto os homens finalizavam sua sepultura me deixou muito comovido e acreditando que sua passagem pela Terra foi para trazer luz, bondade e um exemplo a ser seguido, que valia a pena ser bom, fazer o bem. Meu avô não era letrado e não deixou nada escrito. Nenhum poema, conto ou canção (embora ele adorasse tocar violão). Mas isso faz de sua passagem por esse mundo menos importante? De um ponto de vista mais frio, e analisando as obras deixadas para a posteridade, talvez sim. Esse é um dos pontos que OS BANSHEES DE INISHERIN (2022), quarto (e melhor) longa-metragem de Martin McDonagh, traz.

Filmes sobre amizades foram se tornando frequentes ultimamente. Já havia um punhado na velha Hollywood (Howard Hawks explorava bastante, por exemplo), mas a partir da Nova Hollywood esses exemplares pareceram aumentar, já que o foco passou a ser mais nos personagens do que nas tramas. Mais recentemente, até criaram o termo bromance, para falar de amizades masculinas tão carinhosas que se aproximam de um romance. O que temos neste filme de McDonagh talvez possamos chamar de bromance tóxico. E eu jamais podia imaginar o quanto isso mexeria comigo. Acho que por eu valorizar muito minhas relativamente poucas amizades verdadeiras. 

Na trama, Colin Farrell é Pádraic Súilleabháin, um sujeito que mantém uma amizade duradoura com um homem mais velho que ele, Colm Doherty, vivido por Brendan Gleeson. Acontece que, em determinado dia, Colm decide não falar mais com Pádraic. O rapaz, que trabalha como pastor de bois, não entende o motivo, acha que o amigo está com algum problema. Mas Colm acaba deixando claro que não quer mais a companhia de Pádraic, pois não aguenta mais jogar conversa fora com alguém que nada acrescenta em sua vida. Diferente da irmã Siobhán (Kerry Condon), também solteira, que vive na mesma casa que ele, Pádraic não possui hábitos de leitura e tampouco é famoso por sua sabedoria ou esperteza.

Essa situação é potencializada pelo fato de esses personagens morarem numa ilha pequena da Irlanda dos anos 1920, época de guerra civil no país. Logo, não há tantas opções de amizades naquele espaço desolado, por mais que a bela paisagem do local pareça algo que traz certo refrigério para o espírito. Mas de nada adianta a paisagem tão bem explorada pela linda fotografia de Ben Davis (TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME, 2017), pois Pádraic se sente não apenas abandonado pelo melhor amigo, mas também consciente do pouco respeito que o povoado tem por ele.

A situação do personagem de Colin Farrell, mesmo dolorosa, a princípio traz momentos de humor, graças ao roteiro tão bem construído e às interpretações inspiradas do excelente elenco (Farrell faz o papel da vida dele aqui). O personagem de Gleeson é também fascinante. Inclusive por levar suas decisões a consequências assustadoras. Tanto que, em certo momento, a história ganha contornos de cinema de horror, o que a torna ainda mais desconcertante.

Não é um filme com personagens que agem com prudência ou inteligência, mas justamente por isso gera um enredo tão cheio de intensidade, com direito a uma personagem idosa semelhante a uma bruxa e que justifica o título que remete a lendas do folclore irlandês. Adoro a personagem de Kerry Condon, que faz essa contraparte feminina, sensível e inteligente num mundo de homens brutos. O filme seguir num crescendo de angústia contribui para que provoque um aperto no coração. É tão belo quanto cruel, e um desses exemplares singulares que ficam nos assombrando por muito tempo.

+ DOIS FILMES

FALANDO SOBRE ÁRVORES (Talking about Trees)

E eis que um dos filmes mais bonitos sobre o amor pelo cinema que eu já tive o prazer de ver na vida vem do Sudão, um país que está longe de ter uma tradição (conhecida) em se tratando de cinema. Em FALANDO SOBRE ÁRVORES (2019), de Suhaib Gasmelbari, misto de documentário e encenação, quatro amigos diretores de cinema vivendo a terceira idade compartilham seu amor pelo cinema e têm o projeto de trazer de volta uma sala fechada e abandonada há décadas. Aos poucos, vamos conhecendo mais da triste história do Sudão e de como o fechamento dos cinemas no país teve razões políticas. O país passou por guerras civis e ditaduras entre momentos supostamente democráticos e o que sobrou para o cinema foi o abandono e o esquecimento das obras de seus realizadores. É difícil não sair da sessão com um aperto no peito (o que são aquelas cenas das latas de filme abandonadas?), mas também feliz de ter conhecido esses senhores. Feliz por eles terem compartilhado conosco esse amor mútuo.

UMA VEZ MAIS (Once More / Encore)

Com apenas dois filmes (da década de 1980) vistos de Paul Vecchiali (por mim), é possível notar um gosto pela tragédia, pela celebração do amor de forma dramática. Saio dos prostíbulos parisienses do lindo ROSA LA ROSE, GAROTA DE PROGRAMA (1986) e entro na vida proibida e ambientada em guetos dos grupos de homossexuais sacrificados pela epidemia da AIDS na década de 1980. Na trama de UMA VEZ MAIS (1988), Jean-Louis Rolland é um homem que se vê insatisfeito com o casamento que leva e com o fato de não amar a esposa. Resolve sair de casa e é desses homens facilmente amados por outras pessoas, inclusive um homem, por quem se apaixona. Para tornar as emoções ainda mais à flor da pele, a dramaticidade é acentuada e há espaço para belas canções. Curiosamente, costumo associar os musicais (hollywoodianos) à alegria, mas a minha experiência com o musical francês é associada com frequência à tristeza. Minha homenagem a Paul Vecchiali (1930-2023) foi conferir mais um filme desse realizador que merece um maior reconhecimento.

terça-feira, fevereiro 07, 2023

A PAIXÃO DE JOANA D'ARC / O MARTÍRIO DE JOANA D'ARC (La Passion de Jeanne d'Arc)



Em agosto de 2005 eu voltava da hoje infelizmente extinta Distrivídeo com dois DVDs de dois dos filmes mais importantes sobre Joana D’Arc, O PROCESSO DE JOANA D’ARC, de Robert Bresson, e este maravilhoso A PAIXÃO DE JOANA D’ARC (1928), também conhecido como O MARTÍRIO DE JOANA D’ARC, do mestre dinamarquês Carl Theodor Dreyer. Na época, embora tenha achado o filme incrível, não me envolvi totalmente, tanto que até preferi o do Bresson. Por isso sabia que a experiência de revê-lo na telona, numa cópia nova remasterizada, faria toda a diferença. Seria um desses momentos históricos de minha cinefilia. 

Mas eu não tinha como saber que o filme chegaria ao meu topo de favoritos da vida, não sabia que se mostraria uma obra tão imensa e tão impactante, a ponto de eu não saber como explicar em palavras o que senti, o que aquelas imagens me disseram. O evento foi especial também por ter sido uma sessão de um filme mudo com música ao vivo. E muito do prazer de vê-lo veio do excelente trabalho dos músicos que acompanharam esta obra-prima, Clau Aniz, Marta Aurélia, Victor Cozilos e Rudriquix. A música usada foi mais moderna, com sintetizador, bateria, vocal e um instrumento de sopro (a identificar) e pra mim funcionou muito bem, tanto para atribuir ruídos deliberadamente incômodos nas primeiras horas de projeção, nos questionamentos dos inquisidores, quanto para subir em tom na catártica conclusão.

Houve um probleminha técnico, com a ausência de legendas em português, mas depois nem senti falta, já que a força das imagens do Dreyer é coisa de outro mundo. Tanto Maria Falconetti, que interpreta Joana, quanto os atores que vivem os homens da inquisição estão excelentes, com uma expressividade que os transforma em fantasmas ou espíritos bizarros – um deles parece até possuir chifres. A quase completa falta de cenários ao fundo é proposital: as paredes do cenário foram pintadas de cor-de-rosa para remoção do brilho, de modo que não houvesse interferência no rosto de Falconetti. O cenógrafo do filme, Herman Warm, havia trabalhado em O GABINETE DO DR. CALIGARI, de Robert Wiene, obra essencial para quem quiser entender o expressionismo alemão.

Os momentos em que Joana prefere ir para a fogueira do que ficar na prisão para o resto da vida traduzem uma espiritualidade poucas vezes vista no cinema (talvez só o próprio Dreyer tenha conseguido algo parecido com seu A PALAVRA, 1955). Difícil conter as lágrimas nos instantes finais, com aquelas tomadas da fogueira, dos pássaros, das pessoas que assistem ao crime (muitas delas em prantos), das crianças (uma delas mamando). Sem dúvida alguma, um dos maiores filmes de todos os tempos, visto junto a uma experiência sonora que faz questão de marcar seu lugar em nosso tempo presente.

Sobre Joana d’Arc, ela é possivelmente uma das figuras femininas mais importantes da História – só consigo me lembrar de outras duas tão celebradas: Maria, mãe de Jesus, e Cleópatra. E justamente por isso, sua história já foi contada em inúmeros filmes. Lá na aurora do cinema, em 1900, George Méliès já havia feito um filme sobre ela (disponível no YouTube). Na Hollywood dos anos 1910, Cecil B. De Mille fez o épico JOANA D’ARC, A DONZELA DE ORLÉANS, que consta no box Joana d’Arc no Cinema, lançado pela Versátil.

No mesmo box, há JOANA NA FOGUEIRA, de Roberto Rosselini, com Ingrid Bergman (que já havia interpretado Joana em Hollywood em 1948, em filme de Victor Fleming); SANTA JOANA D’ARC, de Gustav Ucicky; o já citado filme de Bresson; e os filmes de Jacques Rivette JOANA, A VIRGEM I – AS BATALHAS e JOANA, A VIRGEM II – AS PRISÕES. Além do mais, todos devem lembrar de JOANA D’ARC, de Luc Besson, e talvez até da minissérie para a televisão estrelada por Leelee Sobieski. Há ainda SANTA JOANA, de Otto Preminger, e o mais recente JOANA D’ARC, de Bruno Dumont. Enfim, há ainda muitos, mas talvez eu tenha listado os mais importantes ou mais famosos.

Na história incrível de Joana, ela é uma jovem que diz ter visões do Arcanjo Miguel, de Santa Catarina e de Santa Margarida. Ao 16 anos, ela resolve se alistar e tomar parte na guerra (dos cem anos), de modo a ajudar a França a enfrentar a Inglaterra e diminuir a miséria, a fome e as doenças que o conflito estava trazendo. Depois de conseguir liderar exércitos e vencer várias batalhas (outra coisa incrível é imaginar o Rei Carlos VII ter aceitado essa proposta de Joana), a jovem foi capturada pelos borguinhões durante a batalha de Compiègne e vendida para os ingleses. Não demorou para ela ser acusada como bruxa pela inquisição.

Na época do lançamento de A PAIXÃO DE JOANA D’ARC, a Igreja Católica havia há pouco tempo canonizado Joana (em 1920, pelo Papa Bento XV). O filme é a única obra de Dreyer que não é baseada em um escrito literário, mas nos registros do processo.

+ DOIS FILMES

CARTA DA SIBÉRIA (Lettre de Sibérie)

Antes de trabalhar em outros filmes-ensaio mais famosos, como A SEXTA FACE DO PENTÁGONO (1968) e SEM SOL (1983), Chris Marker já fazia na década de 1950 esse tipo de documentário muito ligado à espirituosidade do texto e com um olhar antropológico apaixonado. Em CARTA DA SIBÉRIA (1958), vemos o diretor olhando para os habitantes de uma das regiões mais frias do planeta, seus costumes, suas heranças políticas (vindas da União Soviética e da China), sua geografia, suas vestimentas, a relação com os animais (por vezes cruel, segundo o pensamento do narrador), a extração do ouro etc. O filme faz parte de uma série de trabalhos dedicados à União Soviética num momento em que o regime socialista ainda seguia forte, inclusive tendo seu cinema premiado em festivais internacionais. Acontece que Marker não entrega, pelo menos não neste filme, a União Soviética como uma espécie de salvadora daquele povo. Tanto que CARTA DA SIBÉRIA não agradou nem à direita nem à esquerda.

MANDABI

Uma oportunidade e tanto essa que o cinéfilo de Fortaleza está tendo de ver no cinema alguns, ainda que poucos, clássicos do cinema africano, infelizmente invisibilizado pela dominação europeia e hollywoodiana. Poder ver MANDABI (1968), de Ousmane Sembène, em cópia remasterizada é uma beleza, tanto para termos acesso a uma estética nova quanto pelo seu valor antropológico. O filme acompanha a jornada de um homem casado com duas mulheres e que mora numa área extremamente pobre de Dakar, Senegal. Ele recebe uma ordem de pagamento pelo correio endereçada a seu nome de um sobrinho que está trabalhando na França. Aquilo parece ser uma alegria para ele e para as esposas, mas é também o começo de várias situações que parecem saídas de O Processo, de Kafka. A diferença é que o personagem é alguém despido de documentação básica e também de instrução, o que torna sua jornada para conseguir o dinheiro no mínimo complicada. MANDABI também tem um valor histórico: foi o primeiro filme feito numa língua africana, no caso, o uólofe.

domingo, fevereiro 05, 2023

BATEM À PORTA (Knock at the Cabin)



M. Night Shyamalan é um dos cineastas mais singulares em atividade. E é impressionante como ele também se tornou controverso no meio cinéfilo já desde seu segundo sucesso, CORPO FECHADO (2000), talvez por entregar algo diferente do celebrado O SEXTO SENTIDO (1999) e ter se tornado desde então um mestre dos plot twists, embora nem sempre ele tenha usado esse recurso em seus trabalhos posteriores. Mas é impressionante o quanto as opiniões sobre seus filmes variam, o quanto o amor e o ódio pelo diretor seguem em intensidade, embora hoje em dia o cineasta tenha recuperado, com alguns filmes recentes, o respeito de certos cinéfilos que o tinham já colocado na lista negra.

No meu caso, sempre gostei muito de seu trabalho e procuro acompanhar até mesmo as séries de televisão que ele cria ou dirige, como foi o caso de WAYWARD PINES (2015-2016) e a atual SERVANT (2019-2023). Diria, inclusive, que o formato de séries combina muito com suas ideias. Enquanto via seu novo trabalho, BATEM À PORTA (2023), por exemplo, fiquei imaginando como o filme se beneficiaria no formato de série, trazendo, além dos flashbacks da família feita de refém, flashbacks também dos chamados “quatro cavaleiros do apocalipse”, por mais que a estrutura pudesse ficar parecido com a de LOST.

Lendo, porém, uma entrevista de Shymalan para o site Collider, ele menciona que, para chegar ao resultado final de BATEM À PORTA, ele enxugou ao máximo as cenas, de modo que nada ficasse sobrando. Não sei se ele foi tão bem-sucedido assim, mas também não tenho muito do que reclamar. Afinal, o interesse do filme, que já é instigante desde o primeiro diálogo de Leonard, o personagem de Dave Bautista, com a menininha Wen (Kristen Cui), permanece assim até os instantes finais. Dave Bautista é uma surpresa e tanto com sua atuação amorosa, fazendo um contraponto com seu físico gigantesco. É dele a melhor atuação do filme.

Ver BATEM À PORTA nos ajuda a valorizar ainda mais a obra de Shyamalan. Isso porque temos um filme que dialoga muito bem com pelo menos duas obras suas, FIM DOS TEMPOS (2008) e TEMPO (2021). Assim como os filmes citados, há no novo a questão do fim (do mundo ou do mundo a partir da morte, de um ponto de vista mais subjetivo), ainda que visto de uma maneira mais desesperada pelo casal.

Como o diretor usa de um requinte visual que salta aos olhos, esse poder da imagem está presente na própria maneira como vemos "os quatro cavaleiros do apocalipse", usando o que eles chamam de ferramentas (não são, para eles, armas, como a garotinha diz). O ponto de partida é tão genial quanto o de TEMPO (ambos são adaptações: o anterior de uma graphic novel, este de um romance) e a gente torce para que desta vez o filme se mantenha muito bom até o fim. Felizmente este aqui é o caso e o último ato é tão bonito quanto emocionante. Mais uma vez, Shyamalan trata no mesmo filme de família, amor e a aproximação da morte, com um misto de horror e ternura.

É bom deixar claro que não temos em BATEM À PORTA um trabalho de terror próximo do sadismo, como em VIOLÊNCIA GRATUITA, de Michael Haneke, e nem uma cena como a do “jogo” parecida com a de O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO, de Yorgos Lanthimos. Aliás, muito curioso eu trazer lembranças de filmes dirigidos por cineastas costumeiramente tidos como polêmicos. Shyamalan, mesmo sendo um mestre da condução do suspense e do horror, tem um estilo muito mais terno, muito mais próximo de um cinema cristão – SINAIS (2002) é um filme sobre a perda da fé, se não me engano.

Agora, sobre acreditar ou não nos homens que trazem a notícia do apocalipse e sua solução ao mesmo tempo simples (de um ponto de vista mais frio e prático) e extremamente difícil, isso pode incomodar um pouco, pode não ser visto com bons olhos em tempos de pós-verdade, e é justamente onde se enquadra BATE À PORTA, que inclusive podemos dizer se tratar do filme de pandemia do cineasta.

Ainda assim, sinto uma necessidade de revê-lo, de preferência numa sala de cinema melhor, para não apenas perceber melhor a beleza das imagens (a fotografia é assinada por dois profissionais e há o uso preferencial de luz natural), como também para repensar os simbolismos e o jogo de cena que o cineasta tão habilmente elabora, com seus close-ups, campo/contracampo e outras opções visuais.

+ DOIS FILMES

RESURRECTION

Achando bem curioso este caminho que o cinema está tomando, especialmente dentro do cinema de gênero, para lidar com os traumas que as mulheres enfrentam de homens abusadores, das mais diversas maneiras. Neste ano tivemos MEN – FACES DO MEDO, de Alex Garland; WATCHER, de Chole Okuno; e podemos incluir, ampliando o espectro, até mesmo SPENCER, de Pablo Larraín. Muito da força de RESURRECTION (2022), de Andrew Semans, está na performance intensa e vibrante de Rebecca Hall. Muito bom vê-la participando de filmes de horror para ajudar a valorizar o gênero - sem ela, o filme talvez não tivesse o mesmo sucesso. Aqui ela é uma mãe solteira com uma filha prestes a completar 18 anos que volta a ser assombrada pela presença do homem que a abusou na juventude. Há várias cenas que irritam, pois logo queremos uma ação imediata dela contra aquele homem, mas dentro da estratégia de construção do monstro, do vilão, Tim Roth em cena transmite uma carga bem maligna. Pena que o final, eu tenha achado um pouco previsível, embora haja muito o que pensar sobre o que o filme diz e o que ele apenas deixa implícito.

SPEAK NO EVIL (Gæsterne)

Se você quer um filme que vai deixá-lo com um quentinho no coração, definitivamente é melhor passar longe de SPEAK NO EVIL (2022), de Christian Tafdrup. O clima de algo ameaçador é antecipado pela trilha sonora e isso dá ao espectador uma sensação de certa superioridade ao saber mais do que os personagens principais, ou seja, os dinamarqueses que aceitam a estadia de um casal de neerlandeses para visitá-los em uma casa na área rural dos Países Baixos. A habilidade da direção de saber como ampliar gradativamente a tensão dentro da casa é admirável. O ideal é ver o filme sem saber muito coisa, ou até mesmo nada. Não sei se SPEAK NO EVIL passará nos cinemas brasileiros, mas quem sabe o fato de ser falado majoritariamente em inglês ajude. Mesmo assim, o silêncio das distribuidoras para filmes já bastante populares entre cinéfilos é desanimador. Ver este filme no cinema, por exemplo, ajudaria bastante, pois é uma obra que traz várias cenas em planos gerais, melhor visualizadas numa tela grande.