domingo, dezembro 03, 2023

EU MATEI JESSE JAMES (I Shot Jesse James)



Aproveitemos a animação do dia para dar início oficialmente à minha peregrinação pelo cinema de Samuel Fuller. Vou fazer o possível para não me demorar muito desta vez, como fiz (tenho feito) com a filmografia do Brian De Palma – ainda faltam três filmes para eu ver/rever e comentar aqui no blog e até o fim deste ano pretendo fazer o encerramento. Mas não resisti à vontade que me deu de rever EU MATEI JESSE JAMES (1949), a estreia na direção de Fuller, um dos cineastas mais queridos de Carlos Reichenbach e Jean-Luc Godard. Não à toa, os dois mestres o homenageiam em ALMA CORSÁRIA e O DEMÔNIO DAS ONZE HORAS, respectivamente. Não ter me aprofundado na obra de Fuller nesses anos todos está mais próximo de falta de vergonha na cara de minha parte. Mas ninguém é perfeito, certo?

Falando em ser imperfeito, o protagonista de EU MATEI JESSE JAMES é um sujeito que comete um ato espúrio, abominável, de difícil adjetivação. Mas é pela ótica desse homem confuso que acompanhamos o filme. Se Nicholas Ray era um cineasta que abraçava os marginalizados com humanidade e Alfred Hitchcock nos aproximava dos culpados, Fuller vai mais fundo e nos carrega para as profundezas infernais da consciência de Bob Ford (John Ireland), o braço direito do lendário fora-da-lei Jesse James, que o mata pelas costas, quando sabe que há uma recompensa para quem o capturar. Ele também sonha em se casar e transitar tranquilamente pelas ruas sem ser preso – a vida de foragido estava cansativa. Cynthy (Barbara Britton), a atriz por quem ele se apaixona, porém, fica horrorizada com o ato do pretendente e tem por ele repulsa. 

Já havia visto o filme em DVD há 15 anos (há texto meu no blog) e a revisão o tornou ainda maior, já que pude perceber mais detalhes, como opções de enquadramento (destaque para os close-ups para acentuar as tensões), iluminação, diálogos. Acho incríveis, por exemplo, as imagens finais de Bob Ford (John Ireland) aparecendo na escuridão, como se, pela primeira vez, o filme mostrasse de fato onde está sua alma: numa noite densa. Na cena, o xerife John Kelley (Preston Foster) está pronto para prendê-lo e impedi-lo de se casar com Cynthy, até porque a jovem não queria se casar com ele. Sentia por ele um terrível medo.

O filme é de um amargor admirável e em nenhum momento odiamos o personagem, mas lamentamos sua condição de homem caído e, no entanto, ainda à procura de algo que traga "um inferno mais tranquilo" (como cantou Lobão) para sua vida, como fazer a sorte nas minas do oeste para poder se casar rico e cuidar de uma fazenda com sua esposa. No entanto, desde que ele aceita participar de uma dramatização no teatro de como foi matar Jesse James e não conseguir repetir o ato em cena, e depois ainda de ouvir uma canção narrando seu ato da mais pura covardia, Ford passa a buscar algum ripo de redenção, inclusive chegando a dizer, durante um tiroteio num saloon, que odeia as pessoas que atiram nas outras pelas costas. Ou seja, estava admitindo que odiava a si mesmo.

Há vários artigos que comentam sobre questões homoeróticas no filme, graças principalmente a cena em que Jesse James estã na banheira e pede a Ford que traga a toalha e use a escova para escovar suas costas. Isso, logo após presentear Ford com uma arma nova. A arma que seria usada para matá-lo. Ford estaria trocando um amor por outro ao matar James. Sob esse aspecto, ele teria cometido também um ato de violência contra seu próprio desejo, ainda que reprimido. Quando se vê numa situação de não ser amado pela mulher e de ter matado seu objeto de desejo, a aceitação da morte no final, com suas últimas palavras no ouvido de Cynthy, surge como um presente para o personagem.

Fuller, por ser uma pessoa que teve experiência na guerra, talvez tenha trazido para seus filmes esse mal-estar, um mal-estar que também era, de certa forma, característico daquela década sombria que estava se encerrando. Havia também a experiência de Fuller como jornalista, tendo trabalhado em redações de jornal desde a adolescência, e depois passando a ser roteirista em Hollywood, o que lhe deu muita frustração, já que ele pensava o filme de uma maneira muito diferente daquilo que via concretizado na tela. Eis o motivo de ele ter se tornado diretor de seus próprios roteiros, em produções baratas, mas com uma elegância que se misturava com uma espécie de brutalidade e de amor.

Não à toa, o escritor Phil Hardy, em seu livro Samuel Fuller (1970), ao optar por dividir as obras do diretor em subtemas, coloca EU MATEI JESSE JAMES dentro do subtema “The Violence of Love”, onde inclui também as obras O BARÃO AVENTUREIRO (1950), DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957) e O BEIJO AMARGO (1964). Enfim, ainda não estou íntimo da obra de Fuller, mas a intenção é estar, à medida que vou entrando em contato com seus filmes.

Filme visto no box Cinema Faroeste - Faroeste Noir.

+ DOIS FILMES

A BREVE NOITE DAS BONECAS DE VIDRO ((La Corta Notte delle Bambole di Vetro)

O filme escolhido por mim para homenagear Aldo Lado, falecido no último dia 25, foi sua estreia como diretor, talvez seu título mais famoso, junto com outro giallo, QUEM A VIU MORRER? (1972). A BREVE NOITE DAS BONECAS DE VIDRO (1971) tem uma narrativa confusa, kafkiana, apoiada na beleza das cores da fotografia que destaca bastante o verde, mas também na angústia do protagonista, um homem que começa o filme em estado de catalepsia, vivido por Jean Sorel. O problema é que, apesar da falta de um rigor mortis, ele é considerado morto pelos médicos legistas. Enquanto isso, ele busca recordações de como chegou até aquele momento de horror. A trama envolve, a princípio, o desaparecimento de uma moça (Barbara Bach) e uma organização secreta de ricos idosos de um país do leste europeu, lugar que fornece uma ambientação interessante e que é valorizada em suas pontes, igrejas com gárgulas e ruas estreitas. Belo filme, que ainda por cima conta com uma trilha memorável de Ennio Morricone. Filme presente no box Giallo Vol. 2.

A FILHA DO NILO (Ni Luo He Nu Er)

Em outubro, soube da aposentadoria de Hou Hsiao-Hsien, ocasionada pela demência. E fiquei triste. Com o empurrãozinho do livro da Versátil sobre novos cinemas, peguei para ver A FILHA DO NILO (1987), que nem é um dos filmes mais celebrados do realizador. Posso até não ter ficado feliz da vida com a experiência, mas tinha certeza de que estava vendo grande cinema, feito por alguém que se importa tanto com os enquadramentos, que cada imagem, com frequência, se situa dentro de um outro quadro, e muitas vezes um quadro recortado, como nas cenas dentro da casa, com uso de câmera estática, que ajudam a educar o nosso olhar e nos mantém mais atentos. Até diria que essas cenas dentro da casa, em que a gente vai percebendo a construção do quadro e daquilo que se movimenta dentro dele, são as que mais me interessaram. Eu tive que voltar o filme cerca de meia dúzia de vezes por me perder na narrativa ou nos personagens, mas sempre que retornava percebia algo especial. A opção por mostrar mais as ações "menos importantes" e esconder especialmente o que acontece com o irmão envolvido com (ou incomodando) o crime organizado da cidade me fez lembrar Yasujiro Ozu. A FILHA DO NILO é também um belo retrato de uma época, a década de 1980, com Taiwan sendo muito marcada pela cultura norte-americana, presente nas roupas, no corte de cabelo, na música. O filme demora um pouco para nos situar na família da protagonista e até gosto dessa coisa de não ter uma narrativa que nos segure pelo braço e seja tão didática. Visto no box Nouvelle Vague Taiwanesa.

sábado, dezembro 02, 2023

FLORA E FILHO – MÚSICA EM FAMÍLIA (Flora and Son)



Tem dias que a gente está mais sensível. Na quinta-feira, testei positivo para Covid e fiquei um tanto triste. Afinal, eu tinha planejado algumas coisas especiais para o fim de semana. Com isso, nem vi nada do Cine Ceará. Ao menos estou conseguindo ver, ainda que lentamente, alguns filmes em casa. Quando se está doente, perde-se um pouco a paciência até para ver filmes. Mas na quinta-feira estava mais sensibilizado com tudo, muito grato pelo carinho da Giselle, de todos os meus amigos do trabalho e da minha família. Cheguei a chorar vendo algumas coisas pelo celular, como o vídeo do Alexandre Linck sobre AFTERSUN enviado pelo Renato e um vídeo com a canção “Céu de Santo Amaro” (com Flávio Venturini e Caetano Veloso cantando), enviado pela Giselle. Juntou tudo isso e lá fui eu escolher para ver um filme de um diretor que geralmente me emociona muito.

Adoro John Carney. E além de tudo ele fez com que eu me envolvesse bastante com um filme, mesmo enfrentando a chateação de estar doente. Isso se dá por ele ser um cineasta que não tem medo de enfiar o pé na jaca no que se refere à manifestação dos sentimentos em seus filmes. Seus trabalhos não são arthouse e também não se enquadram em produções para grandes audiências. Então, acabam ficando numa espécie de limbo, ainda que seja um limbo frequentado por muita gente. 

FLORA E FILHO – MÚSICA EM FAMÍLIA (2023), por exemplo, teve uma disputa acirrada de compra por duas empresas gigantes do streaming: a Amazon Prime e a Apple TV+. A Apple venceu, comprando o filme por U$ 20 milhões. Lembremos que a empresa deu muita sorte quando apostou suas fichas em NO RITMO DO CORAÇÃO, de Sian Heder, e o filme acabou surpreendentemente ganhando o Oscar na categoria principal no ano passado. Então, essa opção por trabalhos com cara de independentes e potencial de agradar um público maior sem muito esforço pode render bons frutos.

O que me encanta nos filmes de Carney é o modo como ele coloca a música como uma espécie de remédio para a vida das pessoas. Em FLORA E FILHO, a música une uma jovem mãe e um filho adolescente que não costumavam se dar muito bem. E há também a relação dessa mulher (Eve Hewson, ótima) com um professor de violão pela internet, vivido por Joseph Gordon-Levitt. São nas cenas entre os dois que eu mais vejo a mágica acontecer, embora a cena que tenha mais me feito chorar foi numa situação entre mãe e filho.

Assim como nos deliciosos APENAS UMA VEZ (2007), MESMO SE NADA DER CERTO (2013) e SING STREET – MÚSICA E SONHO (2016), a música comparece como elemento quebrantador de corações e modificador de vidas. A cena em que Gordon-Levitt fala sobre a boa música ser capaz de mudar a vida de alguém em apenas três minutos é representativo de um forte sentimento de gratidão do cineasta pela música e por seus criadores.

Há uma canção linda que comparece no filme, de Hoagy Carmichael, que eu conheci através do Renato Russo. Chama-se "I get along without very well" e traz a dor como elemento essencial para a constituição e crescimento de uma pessoa. Essa dor é valorizada também nos diálogos dos dois, quando eles estão se conhecendo e reconhecendo as cicatrizes que carregam. Outra canção famosa que ganha destaque como uma obra-prima no filme é “Both sides now”, de Joni Mitchell.

O modo como o filme termina também me deixou muito surpreso. Por mais que seja uma obra muito leve e capaz até de ser exibida numa Sessão da Tarde, não dá para dizer que é previsível ou banal. Carney opta mais por sentimentos que flutuam no ar do que por um tipo de relacionamento mais concreto, e é isso que o torna tão especial e singular. Assim como o casal de APENAS UMA VEZ nunca concretiza seu amor, mesmo estando tão próximos, e assim como os personagens de Keira Knightley e Mark Ruffalo em MESMO SE NADA DER CERTO não chegam a se beijar (que eu me lembre). Em ambos os filmes o amor à música fica à frente do amor romântico. No caso de FLORA E FILHO, há uma questão envolvendo o filho que fará com que os planos da protagonista tomem outro rumo, ou pelo menos sejam adiados.

As canções originais que o filme traz nem são tão brilhantes assim (Carney podia ter conseguido melhores parceiros musicais, como anteriormente), mas elas são honestas e coerentes com o fato de terem sido compostas por pessoas comuns fazendo música a partir de suas limitações, mas também a partir daquilo que as move, seja o amor romântico, seja o relacionamento em família, ou mesmo a intenção nem tão simples assim de conquistar uma garota, como é o caso do rap composto pelo filho de Flora, Max (Orén Kinlan).

No mais, é interessante notar a queda de popularidade das comédias românticas e até dos dramas românticos em língua inglesa na atualidade, pelo menos nos cinemas. Eles estão mais presentes nos streamings, como foi o caso no ano passado de CHA CHA REAL SMOTH – O PRÓXIMO PASSO, de Cooper Raif. Alias, é bom lembrar que o próprio John Carney é o principal nome por trás de uma das séries de antologia mais legais da atualidade, AMOR MODERNO, que rendeu até agora duas temporadas, uma em 2019 e outra em 2022. Recomendo bastante para os apreciadores de histórias de amor à moda antiga, mas com cenários e personagens bem atuais.

+ DOIS CURTAS

NOW AND THEN – THE LAST BEATLES SONG

Este doc de apenas 12 minutos sobre a última canção dos Beatles, lançada dias atrás, passa tão rápido que parece ter apenas três minutos. NOW AND THEN – THE LAST BEATLES SONG (2023), de Oliver Murray, é bonito de ver, dá aquele quentinho no coração, mas também dá aquela sensação triste de que para chegar ao fim definitivo é só questão de tempo. O documentário tem a intenção maior de mostrar o interessante processo de destacar a voz de John Lennon de uma fitinha cassete com qualidade ruim, graças à tecnologia que Peter Jackson desenvolveu para a  maravilhosa minissérie THE BEATLES – GET BACK (2021). Os Beatles remanescentes fizeram bem em esperar, portanto, embora eu não tenha gostado muito da canção. 

THE BEATLES – NOW AND THEN

Confesso que bateu uma sensação de estranheza quando vi a montagem das imagens que mostram John e George junto com Ringo e Paul. Podiam ter caprichado um pouco mais. Não sei se Peter Jackson fez o videoclipe de NOW AND THEN (2023) com alguma pressa. Se bem que, dentro desse cenário mais artificial e cheio de efeitos, até o Ringo ficou parecendo uma figura criada no computador. De todo modo, é interessante poder dar atenção à música e às lembranças materializadas em fotografias e vídeos do passado, dos quatro quando jovens. Achei lindo o instante rápido em que vemos John e George pertinho, no último concerto ao vivo que fizeram, em 1966. Quanto à canção em si, está mais para um trecho de canção que foi expandido e realizado com uma produção classe A do que algo completo. Mas, se é o que tem, então, tudo bem.

domingo, novembro 26, 2023

PELOS CAMINHOS DO INFERNO (Wake in Fright)



- What’s the matter with him? He'd rather talk to a woman than drink?
- Schoolteacher.
- Oh.


Estava prometendo não reclamar da falta de tempo, mas quando vejo que a última vez que consegui escrever para o blog foi no sábado da semana passada, então vejo que as coisas estão mesmo difíceis e tempo é uma coisinha muito preciosa. Talvez a mais preciosa do mundo. E uma coisa que me traz um misto de emoções é a excitação com a existência de grandes filmes a ver e a frustração de não conseguir ver o bastante. Ou o mínimo possível – seja lá o que signifique “mínimo”, nesse caso.

Recentemente, dei de cara novamente com a famosa lista dos 60 filmes notáveis que Carlos Reichenbach nos deixou*. E acho que é possível tentar administrar o tempo, com esforço e paixão, de modo a ver as coisas que valem muito ver. E por isso deixo a lista aqui nesta própria postagem, para facilitar para mim e para eu sempre voltar a ela sempre que quiser pegar um ou outro filme presente. Um detalhe é que o Carlão optou por citar apenas um filme por diretor. Ou seja, sabemos que outros filmes de cineastas queridos dele, como Zurlini, Lang ou Fuller, para citar apenas três, poderiam facilmente ser incluídos. Até porque ele costumava dizer que seu filme favorito era DOIS DESTINOS, do Zurlini, e optou por incluir outro.  

Foi revendo essa lista que percebi que eu tinha PELOS CAMINHOS DO INFERNO (1971), de Ted Kotcheff, facinho aqui comigo, numa dessas coleções caprichadas da Versátil. E melhor: com direito a ótimos extras que ajudam a contextualizar a produção. O incrível deste filme de Kotcheff, cujas imagens teimam em permanecer em minha memória, é que ele nos impressiona a cada nova cena, a cada nova aventura (ou desventura) que o protagonista vivencia.

Na trama, Gary Bond é um professor de escola que passa uns dias numa cidade escaldante do interior da Austrália. O que chama a atenção, a princípio, é a pouca quantidade de mulheres e a alta concentração de homens, bebendo muita cerveja (muita mesmo!), e às vezes também brigando muito, o que, com frequência, nos remete aos westerns. Existe mesmo esse tipo de cidade no interior da Austrália profunda, o espaço preferido para cineastas que gostam de mostrar esse lado mais feio da grande ilha. Nos extras, Kotcheff conta que esteve numa dessas cidades e notou que havia pouquíssimas mulheres. Ele perguntou se havia um bordel na cidade e disseram que não havia. O que esses homens faziam, então? Brigavam e bebiam. Inclusive, quando o filme estreou na Austrália, muitos australianos ficaram incomodados com o modo como eles foram retratados por um cineasta estrangeiro (Kotcheff é canadense).

Eu ousaria dizer que nunca vi um filme com tanta testosterona sendo despejada na tela quanto aqui. E por mais que tenha ficado muito envolvido com as cenas das apostas e toda a relação que vai se estabelecendo entre o protagonista e aqueles homens desconhecidos (destaque para a presença de Donald Pleasance, como um médico que perdeu a licença para trabalhar), nada me preparava para a cena da caça aos cangurus. A alegria inicial e o movimento do carro e das pessoas dentro dele nessa cena me remeteu à obra-prima HATARI!, de Howard Hawks. Mas isso só durou um instante. Depois tudo vira um grande pesadelo, mas um pesadelo incrível de ver, de deixar o queixo caído. Detalhe: há várias cenas em que Kotcheff filmou no assoalho do carro, o que dá um ar de verdade impressionante.

Há também todo o cuidado do diretor em tornar o ambiente ainda mais quente aos nossos olhos e ouvidos, com o uso de figurinos sempre claros – com cores amarelas ou cor de terra – para somar à luz intensa e ao calor pingando nos corpos. Mas o mais importante, pelo menos do ponto de vista da trama e da construção de personagens, é a trajetória do protagonista, chegando ao inferno de sua própria existência naquele lugar. Além do mais, o filme provoca uma reflexão muito interessante sobre masculinidade. Um verdadeiro estudo do homem e do quanto os aspectos mais sombrios de nossa personalidade estão escondidos, só esperando um instante para aflorar e nos surpreender. 

Filme visto no box Ozploitation.

* 60 Filmes Notáveis.

Por Carlos Reichenbach.

1. A PRIMEIRA NOITE DE TRANQUILIDADE (1972, de Valério Zurlini)
2. A TERCEIRA VOZ (1960, de Humbert Cornfield)
3. OS AMORES DE PANDORA (1951, de Albert Lewin)
4. CONFISSÕES DE UM COMISSÁRIO DE POLÍCIA AO PROCURADOR DA REPÚBLICA (1971, de Damiano Damiani)
5. DOMÍNIO DE BÁRBAROS (1947, de John Ford)
6. SANGUE SOBRE A NEVE (1959, de Nicholas Ray)
7. O DESPREZO (1963, de Jean-Luc Godart)
8. PORTAL DA CARNE (1964, de Seijun Suzuki)
9. O PEQUENO RINCÃO DE DEUS (1957, de Anthony Mann)
10. STROMBOLI (1949, de Roberto Rossellini)
11. O ESTRANHO SEGREDO DO BOSQUE DOS SONHOS (1972, de Lucio Fulci)
12. ASSIM ESTAVA ESCRITO (1952, de Vincent Minelli)
13. CÃO BRANCO (1982, de Samuel Fuller)
14. DUBLÊ DE CORPO (1984, de Brian De Palma)
15. TAXI DRIVER – MOTORISTA DE TÁXI (1976, de Martin Scorsese)
16. VIVER E MORRER EM LOS ANGELES (1985, de William Friedkin)
17. VIDEODROME – A SÍNDROME DO VÍDEO (1983, de David Cronenberg)
18. O PODEROSO CHEFÃO – PARTE II (1974, de Francis Ford Coppola)
19. O ESPÍRITO DA COLMEIA (1973, de Victor Erice)
20. QUANDO DESCERAM AS TREVAS (1944, de Fritz Lang)
21. O GRANDE ÊXTASE DO ESCULTOR STEINER (1974, de Werner Herzog)
22. PELOS CAMINHOS DO INFERNO (1971, de Ted Kotcheff)
23. PRIVILÉGIO (1967, de Peter Watkins)
24. SE... (1968, de Lindsay Anderson)
25. AS PORTAS DA JUSTIÇA (1990, de Gianni Amelio)
26. OS 5.000 DEDOS DO DR. T (1953, de Roy Rowland)
27. O UIVO (1968, de Tinto Brass)
28. LÁBIOS VERMELHOS (1960, de Giuseppe Bennati)
29. OS REIS DO IÊ, IÊ, IÊ (1964, de Richard Lester)
30. SEGREDO DE UMA ESPOSA (1964, de Shôhei Imamura)
31. PANDEMÔNIO (1941, de H. C. Potter)
32. ÁGUIA SOLITÁRIA (1957, de Billy Wilder)
33. PAIXONITE AGUDA (1939, de A. Edward Sutherland)
34. QUANDO OS BRUTOS SE DEFRONTAM (1967, de Sergio Solima)
35. OS PÁSSAROS (1963, de Alfred Hitchcock)
36. O INTENDENTE SANSHO (1954, de Kenji Mizoguchi)
37. VOLÚPIA DA VINGANÇA (1974, de Eizo Sugawa)
38. A PALAVRA (1955, de Carl Theodor Dreyer)
39. MINHA ESPERANÇA É VOCÊ (1963, de John Cassavetes)
40. TRAGAM-ME A CABEÇA DE ALFREDO GARCIA (1974, de Sam Peckinpah)
41. W.R. – MISTÉRIOS DO ORGANISMO (1971, de Dusan Mukavejev)
42. R. A. S. – REGIMENTO DE ARTILHARIA ESPECIAL (1973, de Yves Boisset)
43. RAÍZES (1953, de Benito Alazraki)
44. A BESTA HUMANA (1938, de Jean Renoir)
45. ED WOOD (1994, de Tim Burton)
46. ILHA DOS TRÓPICOS (1957, de Robert Rossen)
47. NAS GARRAS DO VÍCIO (1958, de Claude Chabrol)
48. VENDAVAL NA JAMAICA (1965, de Alexander Mackendrick)
49. O MÍSTICO (1948, de Bernard Vorhaus)
50. CREPÚSCULO (1981, de Govindan Aravindan)
51. O DRAMA DE UM SOBREVIVENTE (1959, de Jukichi Uno)
52. O GRITO (1957, de Michelangelo Antonioni)
53. QUANDO O AMOR É CRUEL (1966, de Luigi Comencini)
54. MASSACRE DE CHICAGO (1967, de Roger Corman)
55. HATARI! (1962, de Howard Hawks)
56. O EXÉRCITO DAS SOMBRAS (1969, de Jean-Pierre Melville)
57. O JOVEM TÖRLESS (1966, de Volker Schlöndorff)
58. PERDIDOS NO KALAHARI (1965, de Cy Endfield)
59. O REI DOS MÁGICOS (1958, de Frank Tashlin)
60. ORIGEM DO SEXO (1967, de Kaneto Shindô)

+ DOIS FILMES

A FLOR DO BURITI (Crowrã)

Ter realizadores indígenas fazendo seus próprios filmes com seus olhares é muito importante para que no futuro tenhamos obras cada vez mais representativas de seus sentimentos e pensamentos. Em A FLOR DO BURITI (2023) temos dois realizadores: uma mulher brasileira (Renée Nader Messora ) e um homem português (João Salaviza), mas um indígena é um dos roteiristas (Henrique Ihjãc Krahô), e isso faz a diferença, especialmente quando o filme procura lidar com o dia a dia da vida na tribo Krahô, mas principalmente na narração de uma invasão ocorrida no passado por fazendeiros – infelizmente uma realidade ainda presente. Há alguns momentos que lembram Apichatpong Weerasethakul e talvez sejam os momentos que eu mais gostei, quando o filme se investe de uma aura de mistério, auxiliada pelo poder da floresta e pelo modo como a luz da noite é filmada. O começo do filme chama a atenção também pelo belo cuidado com o som: em determinado momento, tem-se a impressão de que são os próprios espectadores que estão cantando junto com o pajé. Que bom que o filme teve essa premiação em Cannes que chamou mais a atenção para si.

SAMSARA – A JORNADA DA ALMA (Samsara)

Antes de mais nada, SAMSARA – A JORNADA DA ALMA (2023) deveria conter um aviso para quem tem sensibilidade a efeitos de luzes em demasia – meu caso. Até o bad boy Gaspar Noé toma esse cuidado com o espectador, ele que usa esse recurso com frequência. No caso de SAMSARA, o momento das luzes chega próximo a uma sessão de tortura. De todo modo, Los Patiño é um diretor interessante. Gostei muito de LUA VERMELHA (2020). E acredito que este novo filme tem momentos brilhantes, especialmente na segunda parte. Perde quando usa a fala para expressar a profundidade da experiência da vida, mas ganha quando expressa isso com imagens. Adorei a cabritinha e o diretor sabe captar as imagens da natureza pensando numa direção de arte. Uma pena eu ter saído da sessão tão incomodado com a experiência, ao mesmo tempo que guardo a memória dos bons momentos.

sábado, novembro 18, 2023

CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (Chronique d'une Liaison Passagère)



Nesses dias tenho pensado com frequência na cena final de CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (2022), o novo filme de Emmanuel Mouret. O tom agridoce ocasionado pela situação dos personagens tem voltado à minha mente, assim como a abertura para o caminho da felicidade que os últimos segundos deixam no ar. Até falei para a Giselle que, quando vi o filme, lembrei-me de nós dois. Principalmente pelo fato de eu ser o sujeito mais lento e mais tímido, e ela, a pessoa mais disposta aos saltos e mais extrovertida.

Mouret mais uma vez abraça esse personagem que aparentemente é uma espécie de alter-ego do realizador. É um personagem que lembra tanto Woody Allen quanto Charlie Brown, o personagem de Charles M. Schultz. O novo filme pode ser visto como o NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA do diretor francês, pois é contado em cerca de vinte tomadas focadas única e exclusivamente nos encontros entre Charlotte (Sandrine Kiberlain) e Simon (Vincent Macaigne), desde a primeira vez em que se conhecem, através de um aplicativo de relacionamento. Charlotte é uma mulher divorciada e com três filhos crescidos; Simon não tem filhos e é casado.

O fato de nunca vermos a esposa de Simon faz com que não haja no ar um sentimento de culpa, presente noutras obras do cineasta, como ROMANCE À FRANCESA (2015) e AMORES INFIÉIS (2020). A intenção de Charlotte e Simon, pelo menos inicialmente, é manter uma relação centrada mais no prazer que eles podem dar um ao outro. Cada encontro dos dois tem um gosto de um possível último encontro, principalmente por parte de Simon. Com o tempo, essa relação vai cada vez mais se transformando em amor. O problema é que eles não querem admitir isso numa conversa, achando que o sentimento poderia significar o fim do relacionamento. 

Ultimamente Mouret tem evitado protagonizar seus próprios filmes, como fazia nos primeiros trabalhos. A partir de MADEMOISELLE VINGANÇA (2018), o diretor tem optado por outros atores como protagonistas masculinos, trabalhando apenas por trás das câmeras. É até de se admirar que sua parceria com Vincent Macaigne tenha surgido tão tardiamente, já que esse ator tem o tipo perfeito para os papéis de seus filmes, além de ser ótimo quando faz homens desengonçados. No novo filme, ele interpreta o típico personagem mouretiano: tímido e que faz rir justamente por sua insegurança.

Cada cena é um encontro dos dois num formato que lembra vinhetas. Às vezes vemos apenas os carros, com os dois conversando, apenas o som de suas vozes. Às vezes a sequência é mais complexa e mais cheia de rigor, quando eles adentram a casa de uma terceira e importante personagem (Georgia Scalliet). A propósito, como é gostoso comungar com o momento em que Mouret, já tendo ganhado a plateia, faz o cinema inteiro (e lotado) rir a valer desse encontro a três.

CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA talvez seja o filme mais verborrágico do diretor, mas o texto é tão bom que não ouso reclamar. Além do mais, os personagens estão sempre em movimento, nunca estão parados e sentados. Estão na cama, em museus, passeando em bosques, viajando etc. Além do mais, há também a força dos olhares. E isso a Kiberlain, especialmente, faz muitíssimo bem. Em determinado momento, o personagem de Macaigne fala pelos cotovelos, desconfortável e nervoso, enquanto ela cala, olha para ele, manifesta seus sentimentos ainda um tanto misteriosos. O filme é mais um exemplar do rigor formal que o cineasta vem desenvolvendo a cada novo trabalho.

Numa entrevista para o site Cineuropa, foi-lhe perguntado sobre três referências no filme: cartazes de SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO, de Alfred Hitchcock, e AS DAMAS DO BOIS DE BOLOGNE, de Robert Bresson, e uma cena em que os protagonistas assistem no cinema a CENAS DE UM CASAMENTO, de Ingmar Bergman. O filme do Bergman pareceu de certa forma óbvio de se relacionar. Do Hitchcock, há o uso de apenas planos-sequência por cena. E do Bresson, há o remake, por assim dizer, do filme, pelo realizador, em MADEMOISELLE VINGANÇA. Eu, que acompanho, há algum tempo o cinema de Mouret, gostei de ver na mesma pergunta/resposta uma associação do cineasta com esses três monstros sagrados.

+ DOIS FILMES

DISFARCE DIVINO (Magnificat)

Um filme muito estranho que trafega pelo respeito à fé e ao ofício do sacerdócio, ao mesmo tempo que é transgressor ao aceitar que uma mulher consiga se disfarçar de homem para ser padre, o que, aliás, é também algo muito bizarro (na minha cabeça). Achei que DISFARCE DIVINO (2023), de Virginie Sauveur, não tinha muito a dizer após apresentar a situação logo no início, e de fato demora a ficar interessante de novo. Lá pelo meio, a viagem da protagonista para conversar com um grupo de ciganos ao lado do filho dá aquele respiro necessário e uma esperança que se tornasse mais interessante para mim. Não foi o que aconteceu, mas segue sendo uma obra no mínimo curiosa.

O DESAFIO DE MARGUERITE (Le Théorème de Marguerite)

Filmes que tratam de matemática nem sempre funcionam (não gosto, por exemplo, de O HOMEM QUE VIU O INFINITO). É preciso que a direção esteja atenta àquilo que importa ao espectador leigo, ou seja, à grande maioria das pessoas. Nesse sentido, O DESAFIO DE MARGUERITE (2023), de Anne Novion, esta comédia dramática muito bonita sabe tanto lidar com as questões mais obsessivas da protagonista, quanto apresentar situações muito divertidas e por vezes tocantes dela com outras pessoas, sendo ela alguém muito fechada (o filme não dá diagnóstico algum para a personagem, se não me engano, e até prefiro assim). O final é de encher o coração e Ella Rumpf (presente em RAW, de Julia Docournau) está adorável como a gênio da matemática que, após se dar conta que errou uma fórmula revolucionária, resolve sair do curso e tentar uma vida normal.

quinta-feira, novembro 16, 2023

O EXORCISTA (The Exorcist)



Minha primeira relação com O EXORCISTA (1973) não foi com o filme de William Friedkin, mas na pré-adolescência, quando um amigo da vizinhança me emprestou o romance de 1971 de William Peter Blatty. Fiquei bem impressionado com os diálogos entre o padre e o demônio e com detalhamentos sobre coisas que não aparecem no filme, um texto lido por um personagem da trama, pesquisando sobre missas negras ministradas com hóstias feitas de farinha, fezes, sangue de menstruação e pus. Entre outros detalhes blasfemos e não vistos nem em filmes como OS DEMÔNIOS, de Ken Russell. Se eu, que não sou católico, achei isso chocante, imagine os católicos devotos.

Não me recordo bem da primeira vez que vi o filme de Friedkin. Foi em meu primeiro ano de cinefilia, quando estreou na TV aberta em 1989, no SBT.  Na época a emissora investia bastante em grandes filmes e fazia uma disputa bem saudável e divertida com a Rede Globo. Cheguei a rever no cinema, em 2001, se não me engano, na versão estendida, com cerca de 10 minutos adicionais, e trazendo pelo menos uma cena então famosa por ter sido deletada da versão original, a que Regan (Linda Blair) desce as escadas de costas.

Depois de mais de duas décadas da última vez em que revi o filme, retorno a este clássico do cinema de horror, que, ao contrário do que muita gente pensa ou lembra dele, é uma obra que guarda muita distância de quase todos os títulos que lidam com possessão demoníaca, que foram influenciados por ele. O fato de a direção ser de um expoente da Nova Hollywood faz toda a diferença, dando um ar de estranheza e dureza até para quem está acostumado com o gênero. Há também o aspecto pessimista que impregnava a sociedade americana da época, ajudando a tornar a experiência do filme bem singular. 

O prólogo se passa numa expedição arqueológica que só se liga ao filme próximo de sua conclusão. E há toda a luta da mãe para descobrir o que há de errado com a filha, inicialmente submetendo-a a exames cerebrais com aparelhos que parecem saídos de câmaras de  tortura. Hoje em dia essas cenas causam até mais desconforto que as próprias cenas de exorcismo, que, por conta da maquiagem verde, talvez nos tire um pouco da suspensão da descrença. Não há como negar, porém, a grandeza do filme de Friedkin, de como ele dialoga com sua obra – lembrei-me, por exemplo, de PARCEIROS DA NOITE (1980), visto recentemente por mim por ocasião da morte do cineasta.

Gosto do final misterioso e em aberto de ambos os filmes, de como eles deixam no ar mais dúvidas que certezas. Há também algo que representou um sucesso para as plateias mais rebeldes da época, que foi uma espécie de simpatia pelo demônio, pelo modo como ele perturba os sacerdotes da igreja. Assim, não vejo O EXORCISTA como um filme tão cristão quanto um INVOCAÇÃO DO MAL, por exemplo. Ele é mais complexo, mais contraditório, mais enviesado. Não à toa o filme não foi visto com bons olhos por certos evangelistas, como foi o caso de Billy Graham, que declarou que cada frame do celuloide era maligno.

Essa suposta simpatia pelo mal caia como uma luva com aquele momento de rebeldia da juventude, em que o rock, com frequência, trazia uma aproximação com o satanismo, como uma forma de quebrar paradigmas, de incomodar a sociedade tradicional e de chocar. O próprio filme também tem essa intenção de causar choque. Se bem que o romance de Blatty já era assim, trazendo coisas que se distanciavam do caso real do menino possuído, novidades como a masturbação com o crucifixo, os jatos de vômito verde e as quedas de temperatura dentro do quarto.

Quanto ao clima no set, conta-se que Friedkin tinha o hábito de atirar com uma arma para cima para aumentar as tensões, ou usar música com o som nas alturas, de modo a incomodar a todos. Há também o caso de lesão da coluna de Linda Blair nas cenas em que ela aparece na cama sendo arremessada para frente e para trás pelo demônio, como uma boneca. Quem também teve a coluna lesionada foi Ellen Burstyn, na cena em que ela é arremessada pela adolescente endemoniada. 

No livro Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock’n’Roll Salvou Hollywood, de Peter Biskind, não há quase nada sobre situações delicadas envolvendo Linda Blair, mas é um pouco chocante para quem gosta do artista Friedkin dar de cara com coisas terríveis que ele fazia com as mulheres. Certamente não é um diretor que trabalharia da mesma maneira na Hollywood de hoje. E sobre outras tantas coisas relativas às filmagens tumultuadas de O EXORCISTA, o livro de Biskind também não entrega muito. Até porque é preciso um livro inteiro para dar conta dos fatos e da mitologia que se criou em torno do filme.

+ DOIS FILMES

O EXORCISTA – O DEVOTO (The Exorcist – Believer)

Que horror este filme que se pretende ser uma continuação direta do original de William Friedkin, ignorando as outras continuações. O diretor da nova trilogia HALLOWEEN (2018-21-22) parece não ter entendido nada do filme original, de suas ambiguidades e do modo como se sente a presença do mal, sem precisar se ater a nada muito explícito. Este aqui não consegue nem mesmo ser um genérico filme de possessão. E o que é o papel da Ellen Burstyn, tentando reprisar a atriz de cinema mãe da Regan? Que maldade com a atriz. Há também um monte de frases de autoajuda constrangedoras em O EXORCISTA – O DEVOTO (2023), além de personagens despidos de personalidade. Não faltam também jump scares vagabundos aqui e acolá. Enfim, se David Gordon Green já tinha decepcionado com a trilogia HALLOWEEN, que eu nem acho tão ruins, com este aqui (e terão continuações, vejam só!!) ele entra na lista negra de muitos cinéfilos que têm o mínimo de respeito pela obra clássica de 1973.

CUANDO ACECHA LA MALDAD

A primeira metade de CUANDO ACECHA LA MALDAD (2023) é tão boa que é difícil não ficar empolgado com o suspense, a velocidade dos acontecimentos, as imagens gráficas feitas para grudar no subconsciente, a mitologia nova que Demián Rugna cria. É como uma variação dos filmes de zumbis, mas com o mal sendo destacado. Mais ou menos como em EVIL DEAD, mas com um tom mais dramático e mais apocalíptico. A trama acontece numa área rural da Argentina, e dois irmãos ficam sabendo que uma pessoa do povoado está infectada por um demônio. Vendo como única possibilidade de livrar a vila daquele demônio o transporte daquele corpo infectado ainda com vida, os dois acabam enfrentando o mal em outros momentos. Acho que o filme perde um pouco a força quando há um aumento do número de personagens e um crescimento considerável das regras para combater ou se desviar desse mal. Acharia fantástico poder ver esse filme no cinema. Ainda não sei se o discreto burburinho entre os cinéfilos fará isso acontecer.

quarta-feira, novembro 15, 2023

AS MARVELS (The Marvels)



As pessoas estão muito cansadas da fórmula Marvel para o cinema. Mas será que é pela exaustão dos filmes de super-herói ou por que estão cansadas de tantas produções ruins ou medíocres sendo despejadas com a velha desculpa de que serão importantes para a compreensão dos próximos e dos próximos filmes? Isso até pode funcionar na lógica dos quadrinhos, mas no cinema é muito dinheiro sendo gasto e não se perde apenas duas horas ou mais de tempo vendo um filme. Esse mesmo filme vira conteúdo em um monte de canais de YouTube e de críticas escritas também, seja em jornais, seja na internet. 

No caso de AS MARVELS (2023), é impressionante ver o quanto o trailer já era visto pelo público como algo no mínimo bastante desinteressante. O resultado é esse: fracasso de bilheteria enquanto as salas que exibem o Festival Varilux de Cinema Francês lotam para vários filmes. Certo: estamos falando de produtos diferentes, mas imagino o quanto a Disney e os Estúdios Marvel estão preocupados com seu futuro. Afinal, 2023 vem trazendo algumas surpresas boas de bilheteria. 

Diferentemente dos anteriores do estúdio, não vi AS MARVELS numa sala IMAX. Aqui só estavam exibindo dublado (e no horroroso 3D convertido) nas sessões mais viáveis, enquanto a única sessão legendada dessa sala exibia o filme no último horário. Mesmo assim, vendo numa sala normal, senti falta da tela IMAX. É como se a fotografia não funcionasse em salas normais, como se a minha retina procurasse algo melhor e não encontrasse. Tive a mesma sensação quando vi ETERNOS numa sala normal (e boa). (Curiosamente, até as imagens que a gente procura dos filmes da Marvel na internet são ruins. Imagens de divulgação, digo. Não entendo isso porque isso ocorre, mas deve haver algum motivo.)

Antes que eu me esqueça, acho que o único momento que abri os olhos com interesse para o filme foi com a breve aparição de a lindíssima Thessa Thompson como a Rei Valquíria (deslumbrava-me sempre que Thessa aparecia no divertido THOR – AMOR E TROVÃO). A cena é rápida, mas acho que tem uma importância crucial para o quanto AS MARVELS quer trazer de homoafetividade para o Universo Marvel. Rei Valquíria é uma personagem queer e o modo como ela fala com a Capitã Marvel (Brie Larson) deixa no ar algumas possibilidades. Assim como fica no ar o amor (e a saudade) que Monica Rambeau sente pela Capitã, sua “tia” que a abandonara. São coisas que podem ficar no ar, mostradas de maneira muito discreta e tímida. E dentro de uma estrutura de filme sem respiro, sem tempo para desenvolver personagens minimamente.

O filme já começa com aquela brincadeira de mexer com o espaço-tempo das três personagens, como já havia sido antecipado na cena pós-créditos da série MS. MARVEL (2022). Trata-se de uma desculpa para fazer com que as três personagens ajam como um time. E aproveitando um elemento clássico dos quadrinhos, que são os braceletes quânticos, usados pelo Capitão Marvel, especialmente na época em que ele trocava de lugar com Rick Jones. Ou seja, não há tempo para parar um pouco e mostrar a rotina de vida comum dos personagens, algo que é justamente o que diferencia os quadrinhos da Marvel dos da DC, inclusive.

Ver a Marvel no cinema cada vez mais perdida me deixa um tanto triste. Claramente a preocupação na construção de tijolos que se tornarão parte de um futuro filme-evento faz muito mal para os títulos em si. GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 é lindo e todo coração, mas é exceção atualmente e é algo que pode ser visto à parte dos demais títulos – uma das vantagens, além da excelente direção de James Gunn.

Já AS MARVELS, com suas várias conexões entre filmes e séries, não consegue se manter de pé nem como filme ruim. Nada funciona: humor, direção de arte, texto, atuações. E é triste por manchar o currículo de Nia da Costa (do ótimo A LENDA DE CANDYMAN, 2021), como tem manchado o de outros bons realizadores. O filme desperdiça uma personagem simpática como Kamala Khan (Iman Vellani), que na série era uma coisa e aqui é só uma adolescente deslumbrada quando se percebe ao lado de sua ídola, uma Capitã Marvel próxima da antipatia.

Há uma cena musical à Bollywood que chama a atenção, mas é tudo tão apagado que logo a cena deixa de existir na nossa memória imediata, perder sua função. Além do mais, as sequências de ação com a inimiga da vez são um tédio só. Enquanto isso, o público desanimado ainda espera até o final as cenas pós-créditos. Um público que tem diminuído consideravelmente. Numa das cenas finais, uma promessa para a criação dos Jovens Vingadores pode funcionar para chamar a atenção de um público mais jovem. Sem falar que foi bom rever uma jovem atriz de que gosto muito aparecendo, ainda que muito rapidamente.

+ DOIS FILMES

DEZESSEIS FACADAS (Totally Killer)

Eis um filme feito com a intenção clara de ser leve e engraçado, embora tenha seus momentos de suspense. Em DEZESSEIS FACADAS (2023), de Nahnatchka Khan, a mãe da jovem protagonista é assassinada por um serial killer que não atacava havia 35 anos numa cidadezinha que até ganha com o turismo relacionado às mortes. Sua amiga, um gênio da ciência, a coloca numa máquina do tempo com o objetivo de deter as mortes e o assassino lá em 1987. O divertido no começo do filme é vê-la perguntando se as pessoas viram DE VOLTA PARA O FUTURO, de modo a compreenderem seu drama e sua missão, assim como as conversas com sua própria mãe. É mais um filme que busca homenagear a década de 1980 do que os slashers. talvez por esses já terem sido referenciados, parodiados e recuperados tantas vezes ao longo dos anos.

A FREIRA II (The Nun II)

Esse Michael Chaves deve ser muito amigo de James Wan, já que nada do que ele dirigiu para a empresa Atomic Monster (do Wan) teve um resultado sequer razoável. A primeira metade de A FREIRA 2 (2023) é mais "atmosférico", por assim dizer. Mas se ao menos fosse eficiente. O filme se torna um pouco mais interessante lá pela metade, quando as duas tramas se encontram e surge uma luz para a resolução das investigações da freira vivida por Taissa Farmiga. E não nego que achei bem curioso o caso da santa em questão. Outro ponto positivo é o bode, que se fosse apresentado na franquia INVOCAÇÃO DO MAL também se tornaria um spin-off. Ainda assim, por mais horrível que seja a conclusão, confesso que me causou menos vergonha que a do primeiro A FREIRA (2018). Enfim, alguém precisa falar com o James Wan e dar aquele toque. Dinheiro não é tudo na vida.

domingo, novembro 12, 2023

VIVER (Ikiru)



Com frequência, eu acordo cedo para ir trabalhar e vejo um dos vizinhos, um homem aposentado de meia idade, sentado à sombra que o prédio do condomínio faz em frente à minha casa. Ele nada faz a não ser olhar para o movimento da rua. Parece estar em paz consigo mesmo, embora essa impressão seja errônea – inclusive, recentemente soube que sua esposa está muito mal: teve um AVC e está na UTI. Mas antes de saber disso, eu costumava olhar para ele e ficar irritado, depois de assistir ou ouvir um desses vídeos no YouTube sobre quadrinhos ou cinema enquanto tomava meu café-da-manhã às pressas. Irritado com o fato de eu estar com muita vontade de ler ou ver algo em paz, mas não me ser permitido, por causa do trabalho. Além do mais, depois do trabalho, com o cansaço, também não tenho muita disposição física para ver filmes ou ler. Logo me dá vontade de dormir. Por isso que às vezes acho melhor ir ao cinema, mesmo cansado, depois do trabalho

Corte para outro momento, desta vez no trabalho. Na sexta-feira passada, os professores organizaram uma festa para homenagear o diretor da escola - Dia do Diretor Escolar. Essa festinha foi feita pela manhã e também à tarde (à tarde, há professores que não vêm no período da manhã). Como pela manhã, eu estava com janela (ou seja, sem ter que entrar em sala de aula), à tarde eu também fui incumbido de pegar o bolo e os salgados. Quando voltei, com meu amigo e colega Roger para a escola, olhei brevemente para o céu. As nuvens formavam aquele aspecto escamado sob o azul ao fundo, que dá uma beleza muito particular. Comentei com o Roger, sobre como o céu estava bonito, e de que, como vivemos muitas vezes tão estressados ou tão focados no trabalho e em ter que cumprir horários, mal temos tempo de olhar para o céu, olhar para a beleza da natureza.

Há uma cena parecida em VIVER (1952), de Akira Kurosawa. Kanji Watanabe, o protagonista interpretado por Takashi Shimura, ator presente em outros filmes do diretor, como OS SETE SAMURAIS (1954), olha para o céu e fala sobre o fato de não ter visto o pôr-do-sol há trinta anos e de achar aquela imagem tão bonita. Naquele momento, Watanabe já sabe que tem apenas alguns meses de vida e sabe também que dedicou sua vida ao trabalho burocrático, não tendo faltado um dia sequer em 30 anos. O pior é que é um trabalho que não presta os serviços necessários à comunidade. Logo no começo do filme, vemos o escritório onde ele trabalha passar as responsabilidades para outros setores, de modo a não se envolverem. Aquela repartição municipal é mostrada como um lugar cheio de montanhas de papéis por todos os lados que não serve para nada. 

Watanabe, depois que descobre o câncer fatal, passa a buscar um meio desesperado de compensar um pouco o fato de ter desperdiçado sua vida. No começo, acha que o caminho está na boemia. E sai pela noite com um escritor boêmio, que lhe apresenta a vida noturna daquele Japão urbano do pós-guerra. E o cenário nem sempre é muito agradável, ainda mais quando olhamos para aquele homem de olhos esbugalhados, ombros cansados e uma expressão doente frequentando lugares em que as pessoas se espremem para dançar ou conseguir um drinque.

Depois, o herói do filme, ao conversar com a jovem colega de trabalho que o encontra na rua, passa a acreditar que é possível encontrar um pouco do sentido na vida ao se aproximar de alguém tão jovem e que parece estar cheia daquela vitalidade que ele não tem. Mas é conversando com ela que ele tem uma ideia, que ele percebe que há ainda uma forma de ele encontrar um meio de ele dar sentido a sua existência. E ele pode fazer isso sem deixar seu trabalho. Ou seja, VIVER não é um filme que condena o trabalho nem o coloca como algo que suga a energia de viver – OS SETE SAMURAIS também é um filme sobre sacrificar-se num trabalho nobre. Watanabe percebe que é no fazer que ele encontrará o sentido para a vida, trazendo, inclusive, até mais forças para que consiga alcançar seu objetivo.

Há tempos eu me devia ver este filme de Kurosawa. Acho que ver a lista dos dez filmes favoritos de Martin Scorsese recentemente deu um empurrãozinho para que eu finalmente visse este que é um dos mais festejados títulos do mais popular realizador japonês. Não vou dizer que fiquei encantado pelo filme, pois minha relação com o Kurosawa ainda não é de paixão, mas gosto de muita coisa, especialmente das cenas pós-hiato, quando o narrador clássico é substituído por um estilo mais despojado e às vezes teatral de direção. Fiquei positivamente surpreso com o salto temporal de cinco meses que indica que o personagem está morto e que havia ainda muito de metragem pela frente. Toda a cena do funeral é composta por diversos pontos de vista que lembram um pouco CIDADÃO KANE, de Orson Welles, na busca por saber quem foi o morto. E a partir daí vemos o protagonista reaparecer em diversos flashbacks.

Um dos méritos do filme é que o diretor consegue driblar nossas expectativas. Enquanto se espera um melodrama tradicional sobre um homem com câncer terminal, seguido de um possível relacionamento do protagonista com uma mulher bem mais jovem, o que temos é outra coisa bem diferente. VIVER é, entre outras coisas, uma crítica à burocracia, à falta de iniciativa e à hipocrisia dos homens públicos. É também uma obra com traços fortes de melancolia, compreensíveis para um cineasta que tem um histórico de depressão e até a uma tentativa de suicídio em 1971, após o fracasso de DODESKADEN – O CAMINHO DA VIDA (1970).

Incomodou-me um pouco a interpretação de Tadashi Shimura, com seus olhos esbugalhados e fala rouca afetada, e achei que isso fosse culpa de minha pouca intimidade com a cinematografia nipônica e um estilo mais particular de interpretação. Porém, lendo o capítulo sobre VIVER no livro Os Filmes de Kurosawa, de Donald Ritchie, soube que o próprio cineasta não ficou tão satisfeito com a interpretação de Shimura. Em suas palavras: “Ele fez o papel tirando todas as pausas e eu teria preferido algo mais descontraído. É claro, nesse ponto, tanto eu como o roteiro tivemos culpa. Mesmo assim, eu gostaria de algo concebido de uma forma um pouco mais ampla, algo não muito tenso”.

Na primeira parte do filme, há umas cenas muito dinâmicas e que remetem a estilos e escolas diferentes de cinema (expressionismo, impressionismo, algumas fusões e outras experimentações) e com um fundo que destaca uma interessante profundidade de campo. VIVER é também uma obra que flagra um momento de bem maior ocidentalização do Japão do pós-guerra. Fiquei até surpreso com a cena do pianista tocando algo muito parecido com o que Jerry Lee Lewis faria ainda em alguns anos nos Estados Unidos. O rock já existia e já era internacional; apenas não tinha esse nome, na verdade.

Filme visto no box Kurosawa Essencial.

+ DOIS FILMES

A INCRÍVEL SUZANA (The Major and the Minor)

O curioso de ver esta estreia de Billy Wilder em Hollywood como diretor é que, em muitos momentos, parece haver algo de muito errado na relação de atração que nasce entre o oficial do exército vivido por Ray Milland e a mulher disfarçada de criança de 12 anos vivida por Ginger Rogers. Na época a atriz já estava nos seus 30 anos e aceitar o fato de que (quase) ninguém percebe que ela não é uma criança acaba funcionando como parte da graça do filme. Gosto muito do primeiro ato de A INCRÍVEL SUZANA (1942), no trem, mas o ritmo vai ficando um pouco prejudicado na academia de cadetes e ver Rogers se fazendo de criança para os outros acaba virando uma piada repetitiva, embora também funcione como uma espécie de obstáculo para o romance entre ela e o oficial, que só funciona para quem torce pelo casal, o que não foi exatamente o meu caso. Ainda assim, gosto da cena em que Milland conversa com a suposta mãe de Sue-Sue. Visto no box A Arte de Billy Wilder.

VIAGEM AO FIM DO UNIVERSO (Ikarie XB 1)

O que mais me encantou em VIAGEM AO FIM DO UNIVERSO (1963) nem foi sua trama, nem sua discussão humana a partir de preocupações sociopolíticas da época: foram as imagens em preto e branco, a incrível construção da nave a partir de uma inventividade surgida da falta de um orçamento milionário e a estranheza do corte nas cenas de conversas entre os tripulantes da Ikarie XB-1. Muito se fala que o filme foi um precursor e possível influenciador de 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO, e de fato há algumas semelhanças. Mas comparar os dois filmes pode ser um pouco injusto com o trabalho de Jindrich Polák. Na verdade, há também muitas semelhanças com outras obras de ficção científica que surgiriam nos Estados Unidos, principalmente a série STAR TREK, que estrearia três anos depois. Na trama, uma tripulação multigeracional do ano 2163 faz uma viagem entre dois planetas da constelação Alpha Centauri. Muito interessante o quanto naquela época todo o aspecto tóxico e genocida do século XX é mostrado como um passado muito distante, mas ainda um fantasma que ronda, especialmente a partir do encontro com a uma nave abandonada.

quinta-feira, novembro 09, 2023

GATA EM TETO DE ZINCO QUENTE (Cat on a Hot Tin Roof)



Ver GATA EM TETO DE ZINCO QUENTE (1958) me fez pensar no quanto o desejo sexual estava à flor da pele na sociedade americana, e, consequentemente, estava espelhado nos filmes de Hollywood. Naquele tempo, a sexualidade parecia uma panela de pressão prestes a explodir. Não fiz nenhum estudo ou pesquisa, mas lembrei-me, por exemplo, de UM CORPO QUE CAI, do Hitchcock, que é do mesmo ano, e é também carregado dessa sexualidade em erupção. E podemos pensar em outras obras do mesmo período que também possuem essa sensibilidade, como DE REPENTE, NO ÚLTIMO VERÃO, de Joseph L. Mankiewicz (também com Elizabeth Taylor), JANELA INDISCRETA e LADRÃO DE CASACA (também de Hitchcock e ambos com Grace Kelly), FÉRIAS DE AMOR, de Joshua Logan (também com a Kim Novak de UM CORPO QUE CAI). Enfim, havia um novo tipo de percepção sensual no ar, embora saibamos ser uma continuação do que havia sido apresentado/sentido na década antecessora.

No caso deste filme de Richard Brooks, baseado na peça de Tennessee Williams premiada com o Pulitzer, fico pensando se as exibições no teatro causaram a mesma sensação no público. E imagino que esse efeito tem muito a ver com a escolha da atriz para a personagem Margaret, também conhecida como "Maggie, a gata".

Nesse sentido, a presença de Elizabeth Taylor, em toda sua exuberância, na pele da personagem, faz toda a diferença. Além do mais, o cinema tem, mais do que o teatro, penso eu, mais ferramentas para que esse desejo à flor da pele da personagem, se manifeste de maneira mais eficaz. O cuidado com os figurinos, tanto do ponto de vista da produção, quanto da intenção sensual das peças, acredito ser também mais bem resolvido numa produção classe A hollywoodiana do que numa peça da Broadway.  

Em determinado momento, por exemplo, Liz Taylor usa roupas íntimas, quando está no quarto com o marido. Ainda que muito decentes para os padrões de hoje, esses trajes seguem contribuindo muito bem para o sentimento de desejo intenso vivido pela personagem, que está recebendo uma espécie de castigo do marido, Brick, interpretado por Paul Newman. Ela deseja sexo e ele há semanas a despreza, lhe dá um gelo, preferindo se embebedar de uísque. Aos poucos, a trama vai nos mostrando os motivos da amargura de Brick e da angústia de Maggie.

GATA EM TETO DE ZINCO QUENTE foi um daqueles filmes vistos por mim nos tempos do VHS e cuja lembrança ficou nas brumas. Então, rever agora, na busca por uma compreensão da poética do diretor Richard Brooks, foi como se o visse pela primeira vez. Além do mais, filmes baseados em obras teatrais, não era sempre que eu tinha paciência de ver, e mesmo hoje sinto que há um momento em que a duração parece um pouco maior do que deveria, embora compreenda a necessidade de se trabalhar os pormenores dos personagens e o clima mais tenso da trama, que aqui acontece durante uma tempestade.

O texto de Tennessee Williams é tão bom e tão envolvente que logo o drama familiar passa a ocupar o lugar de maior destaque e as presenças de Taylor e Newman são fundamentais para solidificá-los como os personagens mais simpáticos – ou menos antipáticos, já que parte dos familiares é composta de pessoas dotadas de falsidade. Há o patriarca rabugento que não sabe que está com câncer (Burl Ives) e sua esposa devotada como símbolos da riqueza da família e de objeto de interesse por parte de alguns. 

Richard Brooks opta por uma direção sóbria, sem muitos efeitos de câmera, de modo a não desviar a atenção para o que há de mais importante: o texto e as interpretações. Mas há algo que chama a atenção na questão envolvendo Brick e seu melhor amigo morto. A relação dos dois passa a impressão de ser mais do que amizade. A verdade é que a questão da homossexualidade foi censurada na versão para cinema da peça. E isso acaba deixando alguns furos e indagações. Não deixa de ser uma marca que denuncia as regras vigentes em Hollywood, ainda sob controle do Código Hays, mas também as próprias autocensuras da sociedade americana mais tradicional. Desse modo, ironicamente, o não-dito se destaca numa obra calcada em muitos diálogos.

Brooks voltaria a adaptar outra peça de Williams, DOCE PÁSSARO DA JUVENTUDE (1962), mais uma vez com Paul Newman.

+ DOIS FILMES

A SANGUE FRIO (In Cold Blood)

Meu coração fica muito inquieto e triste quando assisto a filmes sobre pessoas no corredor da morte. A SANGUE FRIO (1967) não é apenas sobre isso, mas já sabemos que se encaminha para esses momentos, ao menos para quem já ouviu falar da história, leu o livro homônimo de Truman Capote ou assistiu ao filme CAPOTE (2005), de Bennett Miller. Este filme de Richard Brooks é um acerto em muitos aspectos. A fotografia em preto e branco de Conrad L. Hall tanto traz mais realismo para algo que é baseado em fatos, quanto tem uma estilização toda própria, que combina, inclusive, com a trilha quase sempre jazzística de Quincy Jones, que opera no suspense, no teor mais sombrio e em aspectos supostamente mais felizes da vida. Uma felicidade prestes a ser encerrada por um quádruplo assassinato. Robert Blake, que para sempre atormentará meus sonhos como o homem misterioso de ESTRADA PERDIDA, de David Lynch, aqui é o mais humano e mais atormentado da dupla que perpetrou o crime chocante. O outro tem um quê de sociopata cínico. Quando A SANGUE FRIO acaba, fica um misto de vontade de rever imediatamente e de ficar longe do filme por um bom tempo. Mas dei play novamente para ver o início, e entender melhor as escolhas da montagem nas cenas iniciais. Mas o que mais me pegou foi o flashback da noite fatal. A partir daí o filme ganha contornos ainda mais incômodos. E a rapidez com que as coisas chegam a um desfecho não deixa de ser representativa de certa vontade de mostrar a frieza do próprio estado ao optar pela pena capital. Além de ampliar e ressignificar o título do filme.

A HORA DA VINGANÇA (Deadline – U.S.A.)

Sendo A HORA DA VINGANÇA (1952) o filme de um cineasta que veio do jornalismo (Richard Brooks), é interessante ver esta ode à imprensa independente, que hoje se apresenta um tanto acima do tom na maneira como coloca o personagem de Humphrey Bogart, o editor de um jornal, e um gângster que está prestes a comprá-lo. Essa distância para o estilo que o próprio cinema americano passou a adotar em sua dramaturgia já na década de 1960 faz uma diferença e tanto no modo como compramos a ação. Mas isso não tira o brilho do filme e nosso interesse em ver essa batalha entre o bem, representado pela verdade e pela coragem, e o gangsterismo, que desde muito tempo quer calar e/ou manipular a informação.

domingo, novembro 05, 2023

MUSSUM – O FILMIS



Lembro-me com carinho de quando eu era criança e minha família se reunia para ver OS TRAPALHÕES na televisão. Quando meu avô paterno vinha nos visitar, ele também ria a valer do humor, um tipo de humor que era ingênuo e simples, muitas vezes herdeiro dos palhaços de circo. Também tive a sorte de minha mãe me levar ao cinema para ver os filmes dos Trapalhões quando criança. Não tenho tanta certeza, mas meu primeiro filme pode ter sido O TRAPALHÃO NAS MINAS DO REI SALOMÃO, de 1977 (perguntei à minha mãe e ela diz não se lembrar). Fazendo as contas, eu tinha cinco anos, é possível que tenha sido esse mesmo. Tenho uma rara lembrança de uma cena envolvendo joias preciosas. Esse filme, aliás, foi o maior sucesso de bilheteria do grupo.

Outra coisa de que me lembro, com relação aos filmes, é do quanto a Praça do Ferreira ficava cheia de cambistas, que compravam com antecedência os ingressos para revender mais caros para os espectadores que não queriam ficar por horas nas filas quilométricas. Isso quando o filme estava nas primeiras semanas de exibição, no Cine São Luiz, pois depois ele mudava com frequência para o Cine Fortaleza, uma sala bem menor, nas semanas seguintes.

Acho que deixei de me interessar pelo trabalho do quarteto, e até pelos filmes, já no finzinho dos anos 1980 e início dos 90, quando me tornei cinéfilo. Meus interesses passaram a ser outros. Já considerava tudo muito bobo ou muito infantil. Aliás, não me recordo de ver nenhum outro filme deles no cinema nesse período. Lembro de ter visto apenas a versão deles da peça do Ariano Suassuna na televisão, OS TRAPALHÕES NO AUTO DA COMPADECIDA, que já é de 1987. É uma boa adaptação e o personagem Didi Mocó combina com a figura do João Grilo, hoje muito mais lembrado pela interpretação de Matheus Nachtergaele, na minissérie de Guel Arraes, depois tornada filme.

Escrevi dois parágrafos e ainda não citei Mussum, que hoje eu e muita gente considera o Trapalhão mais engraçado e querido. Tempos depois, vendo entrevista no YouTube de Antônio Carlos Bernardes, ainda jovem, num especial da TV Cultura de 1972 dos Originais do Samba, fiquei maravilhado com a alegria de viver que aquele homem passava. É possível ver o programa inteiro na internet e ficar encantado com a simpatia e o encanto dele, e consequentemente adorar a música do grupo. Quem ainda não viu/ouviu, dê uma olhada ao menos em “Tenha fé”, composição do Jorge Ben, cantada por Antônio Carlos. Coisa linda, viu. 

Quanto à cinebiografia de Mussum/Antônio Carlos, dirigida por Silvio Guindane, tem seus prós e contras. É difícil fazer cinebios de figuras muito famosas. Às vezes se acerta (NOSSO SONHO é maravilhoso, mas a história da dupla é menor, o que ajuda, embora o segredo do filme não esteja em roteiro ou estratégias de estrutura), às vezes nem tanto (MEU NOME É GAL). A cinebio do Mussum fica acima da média, muito pela excelente performance do xará Ailton Graça, que está tão bom na pele de Mussum que às vezes esquecemos que é um ator ali e não o próprio humorista e músico. Por outro lado, o que justamente nos tira um pouco do filme são alguns personagens que surgem orbitando a vida do protagonista em maior ou menor grau, como Chico Anysio, Cartola e os próprios Trapalhões. A gente compra o quarteto no filme quase como se estivéssemos assistindo a uma versão de uma Terra bizarra.

Outra coisa de que gostei foi do recorte temporal, da escolha do momento certo para o filme acabar. Nem sempre mostrar a morte é um acerto e, ao contrário do filme da Gal, este aqui não parece se atropelar na narrativa, ainda que ela se passe num longo período de tempo, com direito a três atores para interpretar o personagem. Gostei muito do foco dado à mãe de Mussum. Isso confere mais humanidade ao personagem. A mãe é a única constante das três fases dele (criança, rapaz e homem feito). É linda a cena em que ela (quando interpretada por Cacau Protássio) escreve seu nome pela primeira vez, com a ajuda do filho, que havia entrado na escola e estava disposto a alfabetizá-la.

Há coisas que ficam bem destacadas como típicas dos anos 1970/80, mas gosto como essas coisas aparecem de maneira orgânica, como o uso excessivo do cigarro, a bebida naturalizada em programas para toda a família e pensando principalmente no público infantil, ou as piadas com mãe. Não é um filme militante na questão racista, assim como Mussum também não o era. Além do mais, é preciso respeitar as escolhas das pessoas que escreveram e pensaram o filme. Sem falar que muito desse racismo fica subentendido nos diálogos (a própria lição da mãe, que quer que o filho estude e não se torne um preto burro, evidencia a cor da pele). Vale também destacar uma cena bem bonita, em que Mussum dá uma aula de vida para estudantes da Mangueira.

MUSSUM – O FILMIS (2023) já está indo muito bem na bilheteria. Trata-se da maior estreia nacional do ano, com R$ 640 mil apenas no primeiro dia de exibição. Até então, NOSSO SONHO segue sendo a maior bilheteria brasileira de 2023, mas, infelizmente, como não teve uma primeira semana muito boa, começou a ter menos sessões disponíveis. Pelo menos foi se recuperando com o boca a boca. Já o filme do Mussum, deve passar do número de 450.000 espectadores/R$ 7,5 milhões logo, logo. O cinema brasileiro anda precisando de uma ótima bilheteria já faz um tempo.

+ DOIS FILMES

MEU NOME É GAL

Não dá para negar que MEU NOME É GAL (2023), de Dandara Ferreira e Lô Politi, é um filme que diverte e é cheio de momentos interessantes, mas é uma pena que a maior parte do que há de melhor no filme esteja principalmente na força das canções do repertório de Gal Costa, naquela virada dos anos 1960 para os 70, no clima de ebulição provocado por uma ditadura que contrastava com o desbunde que aquela geração, principalmente os baianos, trazia para o Brasil e para o mundo, e tendo total consciência de sua grandeza, como bem disse Caetano Veloso (Rodrigo Lelis) em determinado momento, quando fala para Gal que eles são foda. Uma pena, porém, que o filme seja tão superficial e que tenha optado por contar essa história de maneira tão rápida, de modo que me senti atropelado por tantos eventos acontecendo quase simultaneamente. Não que sejam coisas não conhecidas, mas isso não justifica esse atropelo, numa tentativa de não deixar passar as coisas básicas mais importantes da história. Assim como não justifica buscar intérpretes para os personagens principais como se fossem caricaturas, casos das intérpretes de Maria Bethânia, Waly Salomão e Tom Zé. No mais, é bonito ver, ainda que de forma tão rápida um pouco do lendário show que Gal fez em 1971, que se transformou no melhor disco ao vivo já lançado no Brasil. Sophie Charlotte, apesar de muito frágil e doce para interpretar Gal Costa, defende bem o papel, até porque é ao redor dela que tudo orbita no filme. Nada mais justo que sua personagem seja a melhor desenvolvida, tanto física quanto emocionalmente.

UM FILME DE CINEMA

Thiago B. Mendonça tem uma trajetória muito interessante. Percebe-se que é um cineasta de paixões e de aceitação do acaso como elemento para seu processo criativo. Com isso, surgem pérolas como CURTAS JORNADAS NOITE ADENTRO (2021) e OS GRANDES VULCÕES (2021). E podemos agora ver seu projeto feito a partir da vontade de documentar suas filhas de 3 e 7 anos. Na trama de UM FILME DE CINEMA (2018), a filha de 7 anos do cineasta, Bebel, prepara um trabalho com seus coleguinhas para apresentarem em forma de filme na escola. Ela pede emprestada a câmera do pai e passa a criar seu filme a partir de seu universo (escola, casa, pessoas que encontra). O filme de Mendonça é bastante livre para trazer a história do cinema para o universo infantil, e homenagear obras do passado em trechos e caracterizações. Sinto que o filme tem uns problemas de ritmo próximo do final, mas é bem bonito.

quinta-feira, novembro 02, 2023

OS DELINQUENTES (Los Delincuentes)



E se fôssemos preparados para ver um heist movie e déssemos de cara com uma obra que nos faz refletir sobre a vida, especialmente sobre o modelo de vida centrado no trabalho no sistema capitalista? No trabalho que só consome e dá muito pouco em troca? Trabalhos para pagar as contas e se ter uns poucos dias de férias com muito pouco dinheiro para fazer uma viagem, por exemplo. É pensando nisso que Morán (Daniel Elías) resolve cometer um crime muito bem pensado: ele sabe que será preso (ele mesmo se entrega à polícia), sabe quanto tempo ficará na cadeia, e já escolheu a pessoa que ficará segurando o dinheiro enquanto ele estiver fora. Ao saírem, o dinheiro será repartido 50/50. O colega é Román (Esteban Bigliardi, LA FLOR), um homem casado que terá dificuldade de lidar com a situação de guardar uma mala cheia de dinheiro enquanto rola uma investigação em seu ambiente de trabalho.

Podemos dizer que OS DELINQUENTES (2023) é um típico filme lado A/lado B, ou seja, um filme que ganha novos contornos (se modifica bastante) quando o disco vira. E o modo como o diretor Rodrigo Moreno vira a chave (entra aqui outro termo não literal para descrever essa mudança) é brilhante, poético e com muita certeza do que pretende fazer e mostrar.

Mesmo a primeira parte do filme, que nos coloca dentro da situação do crime, já se diferencia bastante dos títulos mais convencionais desse subgênero. Daí a necessidade que uma obra como esta seja exibida numa sala destinada a filmes arthouse, já que num cinema de shopping não seria muito bem recebida por um público impaciente ou incompreensivo. Na segunda metade da narrativa, o filme se mostra mais lento e mais disposto a pedir que o espectador aprecie os planos longos, as escolhas pelo olhar cadenciado da câmera, em bela fotografia com uma diferente janela em 1,55:1.

É na segunda parte que começamos a perceber que a trilha sonora mais dramática (e romântica) que se ensaiava durante a primeira parte tem sua razão de ser. Há algo de misterioso até nos nomes dos personagens (Roman e Morán, Norma e Morna) e esse jogo de letras surge, não em vão, na brincadeira de se falar o nome de uma cidade com a derradeira letra da falada anteriormente. A divisão (por dois), que no início acontece apenas no dinheiro, passa a tomar conta de outros aspectos do filme (em split-screens reveladoras e delicadas, por exemplo) e dos personagens. Além do mais, há um convite ao mistério e à reflexão acerca da própria vida cotidiana de trabalhador que também me encantou muito. Certamente, uma das melhores surpresas do ano.

OS DELINQUENTES é o título que a Argentina escolheu para representar o Oscar de filme internacional. E acredito que tenha mais chances de chegar lá do que o igualmente ótimo RETRATOS FANTASMAS, de Kleber Mendonça Filho, muito por ser um filme de ficção, mas também pela elegância da direção e pelo aspecto universal do tema. O filme de Moreno é uma obra que questiona o modelo de trabalho no sistema capitalista, mas não como ARÁBIA, por exemplo, que traz um tom de melancolia aliado à raiva. Se é que a comparação faz sentido, na verdade.

O filme até tem sido criticado por alguns poucos como uma obra que mostra o dinheiro como algo sujo. Não vejo dessa maneira. Mas já vimos tantas histórias em tom de fábula em que o dinheiro tem essa conotação e os personagens ganham um final trágico, e a obra de Moreno mostra sentidos transcendentais para seus personagens e o espectador. Para isso, é necessário se deixar levar pelas tomadas mais longas, pelas imagens das montanhas – a gente quase respira aquele ambiente –, pelos encontros que surgem pelos caminhos dos protagonistas, em especial a trupe de três pessoas que fazem um filme artesanalmente. 

A valorização da natureza, do bucólico, está claramente presente, mas não como sentido único: a arte, em especial a literatura e o cinema se atrelam à beleza da natureza. E há, antes de mais nada, o amor. O amor como grande catalizador do entusiasmo. E por mais que o final guarde um tom agridoce, o caráter revelador é tão compensador que todos os atos valem a pena. Até porque o horizonte, a imagem representativa do futuro, abre novas possibilidades para a vida.

+ DOIS FILMES

NARDJES A.

Karim Aïnouz, ao usar uma câmera de smartphone, consegue adentrar multidões sem que as pessoas se incomodem e isso acaba gerando reações naturais, exceto talvez da protagonista, a jovem militante argelina cuja jornada acompanhamos por um dia. O diretor tem um olhar muito especial e por isso algumas imagens têm uma beleza toda própria, como a cena em que a multidão é vista dentro de uma espécie de túnel. Além do mais, senti um tom de Nouvelle Vague francesa no registro, especialmente quando a personagem passeia à noite, após a manifestação. (O fato de o filme ser falado em francês boa parte do tempo acaba contribuindo para essa semelhança.) NARDJES A. (2020) valoriza o espírito juvenil e sua energia para efetuar as devidas mudanças na sociedade. Nesse sentido, é uma obra que se complementa com MARINHEIRO DAS MONTANHAS (2021), que apresenta personagens mais maduros e um pensamento mais no passado que no futuro.

MARINHEIRO DAS MONTANHAS

Um dos melhores filmes de Karim Aïnouz, MARINHEIRO DAS MONTANHAS (2021) é sua obra mais pessoal, remetendo a um de seus primeiros curtas, SEAMS (1993), que já tratava de sua família, ou melhor, das mulheres de sua família. Aqui ele mergulha nas profundezas desconhecidas de suas origens paternas, ao viajar para o vilarejo onde nasceu seu pai, no interior da Argélia, e filmar o que acontece a cada passo dado. Karim conta em tom de diário poético suas andanças pelo país. Ao mesmo tempo, ele conversa com a mãe morta, e de vez em quando conhecemos um pouco da história pregressa da genitora, de quando ela conheceu seu pai, engravidou e teve que criá-lo sozinha. Talvez por isso o sentimento de rejeição seja algo presente em boa parte da obra do realizador das mais diferentes maneiras, como em O ABISMO PRATEADO (2011), PRAIA DO FUTURO (2014) e A VIDA INVISÍVEL (2019). Também é destaque em seus filmes o deslocamento de seus personagens, ou a busca ou o desejo desse deslocamento, como em O CÉU DE SUELY (2006). Aqui é o próprio cineasta que se desloca, que rememora a mãe, e busca seus parentes naquele cenário tão diferente.

terça-feira, outubro 31, 2023

ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES (Killers of the Flower Moon)



Tive que assistir a ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES (2023) duas vezes no cinema. Digo “tive” não no sentido de ser obrigado. Ninguém é obrigado a nada. A questão é que na primeira vez que vi o filme estava num estado de sono que me deixava com a mente nublada, embora eu não tenha de fato dormido em nenhum momento. A crise alérgica, que provoca uma sonolência muito particular, já estragou muitas sessões minhas. E olha que tento de tudo: muita cafeína, extrato de própolis, sucos que ajudam a aumentar a temperatura corporal (uva e laranja) e até uma refeição dentro da própria sala de cinema (um sanduíche ou um calzone). Às vezes funciona, viu? Lembro que antigamente chegava a levar dentes de alho para ficar mordendo, e o cheiro empestava o ambiente. Depende de uma série de coisas, sendo que uma delas é o horário do dia e outra é o contato com o ar condicionado. E eu havia conseguido o ingresso muito cedo e perambulei por horas no shopping Iguatemi para ver o filme na sala IMAX (o que significou mais tempo respirando no ar condicionado).

Aliás, um pequeno adendo: vi o filme na sala IMAX, mas não se trata de uma obra que se destaca especificamente nessa sala. Na verdade, as imperfeições da cópia, com uma imagem meio lavada, acabaram me incomodando um pouco. Isso é um problema que tenho percebido em alguns desses filmes feitos pensando inicialmente no lançamento em streamings. Para o lançamento nos cinemas, podiam ter pensado numa cópia de melhor qualidade. Nem precisaria ser em 4K, não. Isso acaba prejudicando a apreciação da fotografia de Rodrigo Prieto.

Essa coisa de rever um filme num intervalo de tempo pequeno (uma semana, por exemplo) nem sempre é algo tão positivo, embora eu tenha, sim, tido alguns exemplos muito positivos em minha história de cinéfilo – lembro, por exemplo, de A VILA, de M. Night Shyamalan, de MAGIA AO LUAR, de Woody Allen, e das três vezes que vi PARAÍSO PERDIDO, de Monique Gardenberg, e, mais recentemente, de CAPITU E O CAPÍTULO, de Júlio Bressane. Sem falar nas experiências que fiz questão de repetir com meus amigos na aurora da minha cinefilia, como UMA NOITE ALUCINANTE, de Sam Raimi, e CORRA QUE A POLÍCIA VEM AÍ, do trio Zaz.

O problema é que ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES tem a duração como um fator que pode depor contra a apreciação mais ligada ao prazer da obra. Nessa segunda vez, senti mais o peso do tempo, assim como senti ainda mais o sentimento de impotência com a questão dos indígenas – há uma série de filmes brasileiros que tratam dessas questões que me deixam muito triste, inclusive me privando de ter raiva, sentimento que provoca mais ação que a tristeza. É sempre uma história de covardia. O filme do Scorsese me fez lembrar, inclusive, de CREPÚSCULO DE UMA RAÇA, de John Ford, um pedido de desculpas do cineasta após tantos westerns mostrando os nativos americanos como vilões. 

Scorsese, como bom escorpiano, gosta de histórias de perdas, de amores envenenados, de pessoas consumidas pela culpa e perdidas nos abismos mais profundos de suas almas, de injustiças. Hoje eu vejo que até um filme mais juvenil como A INVENÇÃO DE HUGO CABRET (2011) também se encaixa nessa categoria – não se trata apenas de um filme sobre uma homenagem, uma declaração de amor ao cinema. Quando o personagem de Leonardo DiCaprio se vê, ao final, frente à pergunta definitiva de sua esposa, vivida por Lili Gladstone, ele percebe que ainda terá que conviver com a culpa por muito mais tempo, guardando semelhança com o personagem de Robert De Niro em O IRLANDÊS (2019), inclusive.

Como alguém que gosta de chafurdar a lama da história americana, sendo GANGUES DE NOVA YORK (2002) um outro exemplo, Scorsese nos apresenta também, ainda que indiretamente, em rápidas pinceladas, aos crimes cometidos contra os negros, assim como a influência política da Ku Klux Klan e da maçonaria nos destinos do país. Aliás, é por isso que a extrema direita é tão difícil de combater: ela estava desde o início na construção desse país.

Ver um filme do Scorsese tendo recepção semelhante a obras mais pop não deixa de ser muito bom. 2023, inclusive, está trazendo algumas surpresas, com filmes de super-heróis quebrando a cara, enquanto certos filmes de autor conseguem uma recepção muito boa, por mais que estejamos falando de obras com um investimento em marketing gigante, como foi o caso de BARBIE, de Greta Gerwig, e de OPPENHEIMER, de Christopher Nolan. Afinal, os filmes da Marvel e da DC também não investem horrores em propaganda?

Ter um filme de três horas e meia lotando uma sala grande e com os espectadores todos ali quietinhos e acompanhando bonitinho a sessão, nessa era de vídeos curtos e vícios em redes sociais quase inúteis, é um alívio. Representativo disso é a cena em que a personagem de Lily Gladstone pede para que o personagem de Di Caprio pare tudo o que está fazendo para ouvirem a tempestade.

Na trama, a tribo Osage, que hoje, depois de ter perdido um imenso território, vive num condado no estado de Oklahoma, sofre a opressão do estado americano. Após várias tratativas, a tribo resolve ficar com um pedaço de terra muito ruim. Acontece que é nesse pedaço de terra que eles encontram petróleo e ficam muito ricos. Com o tempo, são os brancos que passam a ser empregados deles, enquanto eles se vestem com roupas caríssimas e frequentam os melhores espaços da sociedade. O problema é que os brancos não iam largar o osso e logo eles se aproximam da tribo e arranjam casamentos com mulheres indígenas, como forma de enriquecimento. A morte de centenas de pessoas dessa etnia começa a se tornar comum. Além das doenças que o homem branco trouxe, havia uma aparente predisposição dos Osage de viverem até mais ou menos os 50 anos.

Depois do prólogo, com a imagem dos Osage descobrindo o petróleo, algo que se tornaria uma maldição para eles, o filme começa com imagens que simulam pequenos documentários, para em seguida nos mostrar Ernest Burkhart (Di Caprio) chegando de trem e conhecendo o vasto território que fica próximo das reservas de petróleo. Lá habita o autodenominado “Rei” William Hale (Robert De Niro), um homem que conquistou a confiança dos Osage, mas que logo vemos se tratar de uma raposa. E dessas pessoas que usam palavras de conforto cristãs e aprendem a língua daqueles que pretende destruir aos poucos, como um câncer comendo por dentro.

Ernest é um sujeito muito mais burro que malvado, embora essas duas "qualidades" costumem andar juntas. Está muito longe do ardiloso "King", um homem que representa o que se costuma chamar de "progresso", quando os nomes mais apropriados para o que ele faz são genocídio, estupro e destruição. O casamento de Ernest com a osage Mollie (Lilly Gladstone) aconteceria tanto pelo fato de que ambos se gostavam, quanto por questões envolvendo dinheiro, e muito bem acordado com William Hale. Aos poucos, a mãe e as irmãs de Mollie começam a morrer, de doença ou assassinato. E isso fará com que o incipiente FBI comece a investigar o caso. O livro homônimo em que o filme se baseia, de autoria de David Grann, é mais centrado nas investigações do FBI do que nos personagens que o filme explora. A mudança de ponto de vista acabou sendo uma decisão com a cara de Scorsese, que lida como ninguém com essa descida aos infernos de pessoas que adentram o mundo do crime ou enfrentam a morte como vítimas.

+ DOIS FILMES

A NOITE DAS BRUXAS (A Haunting in Venice)

Não sou muito fã de whodunits, ainda mais os que não passam de pequenos jogos racionais que convidam o público a adivinhar quem é o assassino. Mas gostei deste A NOITE DAS BRUXAS (2023). Kenneth Branagh, depois da pataquada que foi MORTE NO NILO (2022), fez certo em não desistir do personagem Hercule Poirot, especialmente ao trazer uma história que traz toques de horror gótico bem acentuados, um pouco de elegância (o que é aquele castelo que serviu de locação, meu Deus?!) e um pouco de vulgaridade charmosa, que até me fez lembrar o cinema de gênero italiano (em especial em determinada cena com Kelly Reilly). O filme surpreende, pois há determinados momentos em que também passamos a questionar a tal da racionalidade como forma de explicar todas as coisas, tão defendida por Poirot. Branagh opta por recursos visuais que saltam aos olhos, como os ângulos de câmera diferentes, ora de cima, ora de baixo. Como se trata de um filme com muitas falas (e que cansa um pouco lá pelo final), tentar fazer uma montagem mais dinâmica às vezes ajuda, mas às vezes contribui com o cansaço. Ainda assim, pelo charme, pelo belo elenco, por aquela locação maravilhosa e pelos toques de horror, Branagh faz seu melhor filme desde HAMLET (1996). Não que seja algo tão bom quanto, claro. Afinal, o diretor e ator já havia perdido a mão há um bom tempo. Foi ótimo ter visto numa sala IMAX: valorizou bastante os cenários e tudo o mais.

RESISTÊNCIA (The Creator)

Quarto longa-metragem de Gareth Edwards, RESISTÊNCIA (2023) é visualmente bonito e isso ajuda a chamar a atenção da audiência, junto com a trama intrigante envolvendo uma guerra entre humanos e robôs de alta inteligência no ano de 2060. John David Washington (INFILTRADO NA KLAN) é uma grande aquisição como um agente duplo, um homem com uma prótese no braço e outra na perna, apaixonado pela líder da resistência da I.A. (Gemma Chan, ETERNOS). O filme sofre com a longa duração, com um ritmo problemático e um final desinteressante. Algo que eu gosto é o modo como os robôs se comportam fisicamente, sendo tão frágeis quanto os humanos quando alvejados com armas. Isso faz que eles se pareçam mais com pessoas desabrigadas ou outra minoria social. Infelizmente o filme também não consegue emocionar quando a intenção é essa e em certo momento bate uma saudade de A.I. – INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, ficando claro que Edwards está longe demais de ser um Spielberg.