quinta-feira, abril 06, 2023

NUVENS FLUTUANTES (Ukigumo)



Às vezes temos a impressão de que não temos muito controle sobre nossas vidas. E quando a vida apresenta uma série de baques, de situações duras, restam dois caminhos: buscar um pouco de fé para seguir em frente, ou seguir em frente, mesmo assim, esperando, quem sabe, que os ventos da sorte mudem a nosso favor. Nem sempre esse segundo caminho é o ideal, mas é muito comum que aconteça e pode ser visto de maneira impactante e triste em NUVENS FLUTUANTES (1955), meu primeiro contato com o cinema de Mikio Naruse.

Os filmes de Naruse eram até pouco tempo atrás inéditos em mídia física no Brasil, até que a Versátil Home Video começou a trazer vários de seus filmes em suas coleções. Inicialmente, saíram quatro obras do realizador no box A Arte de Mikio Naruse, que inclui QUANDO A MULHER SOBE A ESCADA (1960); depois mais 13 filmes nos boxes O Cinema de Mikio Naruse (volumes 1 e 2), que trazem obras aclamadas como VIDA DE CASADO (1951) e MULHER INDOMADA (1957); além do DVD duplo de O SOM DA MONTANHA (1954), que contém vários extras e cinco filmes da fase silenciosa do diretor. Optar pelo lançamento de obras com pouco apelo comercial como esses, num mercado cada vez mais segmentado, que é o da mídia física, é um ato de amor e de coragem por parte da distribuidora. E, portanto, é algo que merece não só nosso respeito, mas também nossa contribuição para valorizar esse trabalho tão importante.

Como NUVENS FLUTUANTES foi meu primeiro contato com Naruse, não tenho ainda intimidade com a poética do realizador, embora vontade não falte para adentrar o seu universo. Ainda mais porque esse filme é um dos mais brilhantes melodramas que eu já vi. E um dos mais tristes. Podemos até pensar em A VIDA DE O’HARU, de Kenji Mizoguchi, como um exemplar do mesmo período, como uma dupla de histórias devastadoras sobre espíritos quebrados e desesperança, mas o filme de Naruse é até mais moderno na forma (será?) e mais complexo no modo como apresenta o drama de seus personagens. 

Afinal, há algo misterioso que une o casal de protagonistas. Enquanto a mulher, Yukiko (Hideko Takamine, presença constante em vários filmes de Naruse), ama demais o homem, a ponto de isso se tornar o sentido para sua existência; o homem, Tomioka (Masayuki Mori, de O IDIOTA, de Akira Kurosawa), carrega em si uma espécie de desencanto pela vida, de amargor, que nem mesmo o amor devotado de uma mulher é capaz de fazê-lo mudar seu comportamento. No entanto, não é apenas Yukiko que o procura: ele também a procura em momentos distintos de suas vidas. Porém, com frequência, ele magoa Tomioka com palavras e gestos (como ter casos com outras mulheres, ou se voltar mais para sua esposa, já que ele é um homem casado).

Em determinado momento, quando os dois viajam para um hotel numa montanha, ele diz que pensava em cometer duplo suicídio com ela, mas depois diz que ela não é bonita o suficiente para morrer com ele. E há o sorriso, às vezes sem graça, e às vezes carregado de alguma esperança de Yukiko, que nos deixa desolados. E Naruse vai conseguindo nos prender a essa relação turbulenta e cheia de dor paulatinamente, sem pressa.

Assim, à medida que nos aproximamos da conclusão, essa relação vai também nos consumindo, em especial nas cenas em que os dois partem para uma ilha onde Tomioka trabalhará como guarda florestal. No meio da viagem, a chuva torrencial entra em sintonia com a angústia da relação dos dois, cujo sentimento é muito claro para Yukiko, mas que talvez seja ainda mais doloroso para Tomioka, que carrega em si tanto sentimentos de culpa quanto um espírito despedaçado pela dúvida.

Em NUVENS FLUTUANTES, apesar do sofrimento de Yukiko, é ela a personagem mais forte, é ela que tem a certeza do amor e que sente esse amor de maneira mais intensa. Outro diretor poderia abordar isso de maneira inversa – há quem diga que quem ama mais sofre mais e por isso é mais fraco. Mas, ao que parece, não é bem assim que as coisas são. E Naruse, já numa fase madura de sua vida, nos ensina um bocado sobre a vida, o amor e os relacionamentos. Por outro lado, ver apenas fortaleza em Yukiko é também cruel de nossa parte, é glorificar seu sofrimento, já que ela passa, ao longo da narrativa, por diversas situações, inclusive tendo que viver como prostituta para sobreviver naquele Japão do pós-guerra, mostrado de maneira tão miserável. Apesar disso, no meio das favelas e becos em que é ambientada boa parte da história, a elegância dos personagens teima em resistir.

NUVENS FLUTUANTES tem uma estrutura diferente do que se espera de uma história de amor ou de fim de amor, já começando com a relação destruída, uma relação que havia começado anos atrás na Indochina, quando o Japão ainda não havia perdido a Segunda Guerra Mundial, não estava com o ego tão ferido e com a sociedade tão empobrecida. Aliás, é bem possível fazer um paralelo entre a glória do passado e a tristeza do presente, tanto do país quanto da relação em questão. E há o estilo de Naruse, as várias cenas das pessoas indo embora das ruas e becos, sempre vistas de costas. É um filme bem dolorido, um dos mais tristes já realizados, e por esse outros motivos, essencial.

+ TRÊS FILMES

O MONSTRO RESSUSCITADO (El Monstruo Resucitado)

Quando a Versátil lançou o box de cinema de horror mexicano, o primeiro filme que peguei para ver foi O ESPELHO DA BRUXA (1962). E fiquei absolutamente encantado com tanta beleza visual, mas principalmente com a imensa criatividade do diretor e seus roteiristas (curiosamente, entre eles está o mestre Carlos Enrique Taboada). Então, fiquei curioso para ver este filme mais antigo de Chano Urueta, O MONSTRO RESSUSCITADO (1953), que não é tão brilhante quanto o filme de 62, mas é impressionante em muitos aspectos, pegando tanto influências dos filmes de monstros da Universal quanto, provavelmente, dos quadrinhos de terror dos anos 1950. Na trama, um homem com o rosto desfigurado convida uma bela jornalista (Miroslava) para conhecer a mansão onde ele realiza experimentos bizarros. Na verdade, ele tem interesse na mulher e ela dá a entender que tem um interesse mútuo. Mas, quando esse homem descobre que ela está tentando apenas se aproveitar dele e escrever uma grande história jornalística, ele tenta se vingar dela. Acho que o filme funcionaria melhor se o tal homem desfigurado não falasse tanto, até porque Urueta tem um cuidado visual que se destaca bastante nas cenas sem diálogos. Ainda assim, há momentos inacreditáveis que valem demais a apreciação. Visto no box Obras-Primas do Terror - Horror Mexicano 3.

UM DE NÓS MORRERÁ (The Left Handed Gun)

O filme de estreia de Arthur Penn, UM DE NÓS MORRERÁ (1958), é esta história com tintas trágicas com o objetivo de mostrar um Billy the Kid diferente, despido da glória e mais parecendo um garoto sem muita capacidade de pensamento e um tanto desorientado e angustiado. Um dos momentos mais representativos desse aspecto de revisionismo do personagem é a conversa rápida que ele tem com o sujeito responsável por espalhar suas "glórias" para o leste do país. O filme é também importante ser visto por ser dirigido por Penn, o homem que daria o pontapé inicial na chamada Nova Hollywood. Visto no box O Cinema de Arthur Penn.

CONTRASTES HUMANOS (Sullivan's Travels)

Meu primeiro Preston Sturges, graças ao box lançado pela Versátil recentemente (O Cinema de Preston Sturges). Por algum motivo, o cineasta não foi tão incensado quanto vários contemporâneos seus. E vendo CONTRASTES HUMANOS (1941), esta bela comédia com uma inteligente crítica social, vemos o quanto o diretor é bom. Na divertida trama, Joel McCrea é um diretor de cinema que, percebendo que não tem experiência com a pobreza, resolve sair sem nenhum tostão e experimentar essa vida para adquirir expertise. No caminho, conhece uma bela loira (Veronika Lake), que quer lhe acompanhar na empreitada. Adoro o ato final, que eleva bastante o resultado da obra.

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