sábado, julho 08, 2023

A PRAGA



Uma das coisas que me deixa mais triste, em se tratando de arte no sentido geral, e de cinema especificamente, é quando fico sabendo que certas obras foram destruídas ou perdidas de alguma maneira. Se é possível vermos histórias de perda de filmes em cinematografias sólidas como a americana ou a alemã, essa história se repete muitas e muitas vezes na história do cinema brasileiro. O nosso país infelizmente não tem uma tradição de cuidar bem de nossa riqueza artística. E o cinema se torna um caso ainda mais complexo, por causa do aspecto mais delicado de seu material físico, que requer uma manutenção e um cuidado muito especiais.

Enfim, tudo isso para dizer que fiquei revoltado quando soube que as emissoras que exibiram as séries de antologia ALÉM, MUITO ALÉM DO ALÉM (1967-1968) e O ESTRANHO MUNDO DE ZÉ DO CAIXÃO (1968), Rede Bandeirantes e Rede Tupi, respectivamente, cometeram o ato criminoso de gravar por cima das fitas desses programas após suas exibições. A desculpa é que as fitas custavam caro e isso era uma rotina. Estranhamente, a informação que recebi quando vi A PRAGA (2021) no cinema na última quinta-feira, sobre as fitas de ALÉM, MUITO ALÉM DO ALÉM, que incluíam a primeira versão do roteiro de Rubens F. Lucchetti, é de que essas fitas foram perdidas num incêndio. Ou seja, não bate com a informação contida no livro Maldito – A Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão (prefiro usar o título da Editora 34, pois o lançamento da Darkside deixa dúvidas sobre qual é, afinal, o título do livro). 

A revolta aumenta quando pensamos que esses programas foram ao ar no auge criativo de Mojica, que corresponde aos anos de 1964, quando foi lançado À MEIA NOITE LEVAREI SUA ALMA, a 1969, ano de produção de O DESPERTAR DA BESTA, que só foi exibido publicamente por causa da censura, em 1983. Mal comparando (ou bem comparando, na verdade), é como se a CBS resolvesse destruir para sempre todos os registros de ALFRED HITCHCOCK APRESENTA. É até possível que esses episódios tenham saído aquém das realizações para cinema de Mojica, mas nos foi negado o direito de ver para opinar e principalmente apreciar.

Quanto ao A PRAGA, é possível que meu entusiasmo com o filme tenha se dado pelas circunstâncias tão especiais de sua recriação, pelo fato de representar uma celebração de vida de algo que até então estava morto. E há também aquela sensação estranha e muito gostosa de ver um filme como se saído diretamente do túnel do tempo, como se entrássemos numa sala de cinema na virada dos anos 70 para os 80. Esse anacronismo provoca uma relação muito especial com a obra que nos chega. E mesmo o distanciamento de um horror que não assusta mais não chega a ser um problema; ao contrário, parece ser um trunfo.

Além do mais, a estranheza de vermos super-closes muito provavelmente inspirados no western spaghetti e de sabermos que há uma dublagem nova para aqueles corpos (adorei mostrarem nos créditos iniciais as indicações de corpo e de voz, de ator e atrizes e dos dubladores), isso tudo contribui para a certeza de que estamos diante de uma experiência e de um acontecimento especiais.

Na trama, jovem casal passa perto da casa de uma velha bruxa, que fica irritada com o rapaz tirando fotos suas e roga-lhe uma praga. Adorei a montagem, as brincadeiras de efeitos com o fotograma antigo entre as cenas e o tom de história que parece contada por nossos pais ou avós, ou tom de história em quadrinhos antiga. 

Quem diria que, depois de 15 anos do lançamento de ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO teríamos um Mojica inédito nos cinemas! E se ENCARNAÇÃO era um trabalho feito com a intenção contemporizar o personagem para os novos tempos e as novas gerações, o trabalho feito em A PRAGA era o de manter a obra original, mesmo com os acréscimos e as filmagens extras feitas em 2007, pelo próprio Mojica, o mais próximo possível do clima da virada para a década de 1980, inclusive não tentando limpado demais as imagens, ainda que digitalizado em 4K após todo o processo de reconstrução. No final, vemos o tom de homenagem a um dos maiores e originais artistas nascidos no Brasil.

+ DOIS FILMES

A ÚLTIMA PRAGA DE MOJICA

O curta-documentário que abre a exibição de A PRAGA nos cinemas, A ÚLTIMA PRAGA DE MOJICA (2021), dirigido por Cédric Fanti, Pedro Junqueira, Eugenio Puppo e Matheus Sundfeld, é fundamental para que o público compreenda o ato heroico que foi encontrar a cópia desgastada em 8mm, de 1980, em seguida fazer um tratamento digital, depois contratar uma pessoa que lê lábios para poder chamar dubladores para os personagens (o que se tinha era apenas o quadrinho do R.F. Lucchetti), e ainda fazer cenas adicionais para a conclusão. Além do mais, o curta deixa claro também o quanto nosso cinema segue maltratado e que A PRAGA calhou de ter a sorte de ver a luz do dia e as salas de exibição.

LADRÃO DE CADÁVERES (Ladrón de Cadáveres)

Um caso de filme que carrega uma importância maior do que exatamente um valor estético apurado. O próprio Fernando Méndez faria um filme de gênero bem superior dois anos depois, MISTÉRIOS DO ALÉM-TÚMULO (1959). Mas LADRÃO DE CADÁVERES (1957) é costumeiramente lembrado pelo sucesso de público obtido e por mostrar para os investidores mexicanos que fazer cinema de horror naquele país era, não apenas possível, mas também bastante lucrativo. Há também a estranheza de ser um filme de terror misturado com um filme de lucha libre, que nos anos 1950 era uma verdadeira febre no México. Na trama, cientista louco vive roubando cadáveres nos cemitérios a fim de reavivá-los com o cérebro de um macaco. Em paralelo, acompanhamos a história de um homem simples que se vê atraído pelas lutas e também enredado numa trama policial perigosa. A fotografia em p&b é bem bonita, especialmente nas cenas noturnas, e é um filme que pode ser assistido de forma distante, como curiosidade, mas também como uma obra para divertir. Filme visto no box Obras-Primas do Terror - Horror Mexicano 3.

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