quarta-feira, setembro 10, 2008

ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO



Provavelmente o filme mais esperado do ano. Ou dos últimos quarenta anos, por Mojica e pelos fãs de seu trabalho. E quando finalmente estréia, depois de aparições na mídia e capa em revista de cinema pop brasileira, pouca gente vai ver o filme. Na sala onde eu estava, só havia eu e mais dois rapazes. Um deles, coincidentemente, um amigo meu, o Alex. Foi até engraçado, eu entrando na sala quase vazia e o Alex chamando o meu nome. A expectativa - ou a esperança - dos envolvidos com a produção de ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO (2008) era que o filme se tornasse um sucesso comercial, que as novas gerações abraçassem com interesse o retorno de Zé do Caixão. Infelizmente, para ratificar a fama de maldito de Mojica, além da morte no meio das filmagens de Jece Valadão, o filme foi um grande fracasso de bilheteria, apesar de ter produção da Fox, trailers veiculados em filmes de horror e do fato de a geração de hoje curtir filmes de tortura, como JOGOS MORTAIS e O ALBERGUE. Parecia o momento certo para o retorno à telona do homem de unhas enormes e roupa e cartola pretas.

Mas sabe de uma coisa? Que se dane se o filme foi ou não for um sucesso de bilheteria. O importante é que ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO é um prazer para os olhos dos apreciadores do trabalho de José Mojica Marins, especialmente dos dois primeiros filmes de Zé do Caixão – À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA (1964) e ESTA NOITE ENCARNAREI NO TEU CADÁVER (1967). Inclusive, só pela inteligência de refazer a seqüência final de ESTA NOITE...o filme já merece aplausos. A seqüência havia sido modificada a mando da censura, que fez com que o cético coveiro, enquanto afundava no pântano com os esqueletos de suas vítimas, tivesse que dizer que acreditava em Deus. Desta vez, com a liberdade de expressão dos dias de hoje, essa seqüência pôde ser refeita, num momento que tanto mostra a cena original de 1967 quanto a refilmada, com o sósia americano de Zé do Caixão interpretando o protagonista em fotografia em preto e branco. Mas o filme não começa exatamente aí. Começa dentro de uma prisão, com os policiais soltando, depois de 30 anos, o assassino Zé do Caixão, que sai às ruas e encara um mundo perdido, com crianças cheirando cola na rua e a violência reinante de uma cidade grande comtemporânea.

Antes disso, difícil não ficar entusiasmado com os créditos iniciais, que se iniciam com o elenco: José Mojica Marins, Jece Valadão, Adriano Stuart, José Celso Martinez Corrêa, Helena Ignez, Milhem Cortaz, Cristina Aché, Débora Muniz. Mário Lima, sempre presente nos filmes de Mojica, também está no filme em papel pequeno, bem como Satã, o famoso guarda-costas de Mojica. E quem não piscar pode ver uma aparição relâmpago de crítico Carlos Primati. A maior parte do elenco principal foi parte importante da história do cinema nacional. Temos desde uma musa do cinema novo (Helena Ignez) a uma musa da boca do lixo e da pornografia (Débora Muniz), as duas fazendo o papel de duas bruxas cegas com a coragem de peitar o Zé do Caixão. Elas cuidam de uma sobrinha que Mojica está de olho. Para ele, a moça tem potencial para ser uma mulher perfeita para gerar o seu filho. Sim, Zé ainda tem como missão de vida gerar o "filho perfeito".

E se antes, Zé tinha um pouco de dificuldade para conseguir arranjar a tal mulher, tendo que raptar um grupo delas para submetê-las ao famoso teste das aranhas e das cobras do segundo filme, desta vez, as mulheres vêm até ele. Uma delas, inclusive, é belíssima (Cleo de Paris), uma cientista que desfruta da mesma linha de pensamento de Zé e que fica muito feliz ao ser raptada por Bruno, o fiel servo de Zé, e ser usada para experimentos pelo maníaco e seu grupo de seguidores. É numa cena com essa bela jovem que o filme apresenta uma das seqüências mais arrepiantes: a do esquartejamento da bunda da moça. Nessa hora, não resta dúvida de que Mojica esteve muito bem assessorado, com profissionais que entendem de verdade de efeitos especiais e de maquiagem, que não ficam nada a dever aos técnicos americanos. Para se ter uma idéia, há uma cena fantástica de uma mulher nua saindo de dentro de um porco de verdade. Não foi à toa que o filme ganhou os principais prêmios técnicos do Festival de Paulínia (fotografia de José Roberto Eliezer, montagem de Paulo Sacramento, direção de arte de Cássio Amarante, trilha sonora de André Abujamra e Marcio Nigro e edição de som de Ricardo Reis). Pra completar, ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO ainda saiu do festival com o prêmio de melhor filme pelo júri oficial e pela crítica.

Tudo bem que o filme não é tão bom quanto os anteriores; não tem o mesmo charme. O próprio Mojica, que dessa vez não mais conta com o excelente dublador dos primeiros filmes, que tornava sua performance muito boa, surge com a sua própria voz e com o mesmo jeitão um tanto engraçado do Zé do Caixão da tevê e do rádio, acostumado a ser visto rogando pragas e começando sempre com o tradicional "você!". Pode-se dizer que o filme acaba um pouco prejudicado pela canastrice de Mojica, que não convence quando está sendo atormentado pelos espíritos dos mortos assassinados por ele no passado. Mas em se tratando de filme de horror, ser canastrão não chega a ser exatamente um problema, é algo que pode ser relevado e até visto como momento de diversão para a platéia. E basta lembrar que alguns dos maiores ícones do cinema de horror do mundo (Bela Lugosi, Lon Chaney, Vincent Price) eram um pouco canastrões mesmo.

Ao final, quando o filme é dedicado à memória de Rogério Sganzerla e Jairo Ferreira, lembramos mais uma vez, depois de quase duas horas de diversão e bom cinema, que ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO representa um tributo ao cinema brasileiro produzido nos anos 60 e 70, as duas décadas mais ricas de nossa cinematografia. E um exemplo da resistência de um homem que revolucionou o cinema e se fundiu à sua própria criação.

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