segunda-feira, janeiro 09, 2023

O PAGAMENTO FINAL (Carlito's Way)



Brian De Palma, seu filho da mãe! Você conseguiu de novo me fazer chorar! Quase desidratei ontem com o final, como aconteceu lá naquele comecinho de 1994, quando vi o filme pela primeira vez no saudoso Cine Fortaleza e saí do cinema em estado de graça, mas com o coração bem machucado. Acho muito curioso dizer isso, ainda mais sobre um filme desse diretor considerado por muitos, e até por mim, como alguém bastante racional, que age mais com a mente do que com o coração em suas obras. Afinal, não é De Palma o cineasta virtuoso que elabora planos impressionantes que nos fazem retornar para ver a cena e estudar cada detalhe? E se O PAGAMENTO FINAL (1993) não é o melhor filme dirigido por ele, é certamente o que mais soube unir esse talento na construção de cenas tão bem pensadas com um coração pulsante.

É possível que isso tenha se dado pelo fato de o cineasta ter se divorciado havia pouco tempo. Seu segundo casamento, com a produtora Gale Ann Hurd, durou de 1991 a 1993. Curiosamente, o filme anterior do cineasta, SÍNDROME DE CAIM (1992), tratava justamente da ideia e da vontade de ele ser um pai mais presente do que o próprio pai (que fora ausente). 

Em O PAGAMENTO FINAL temos a figura de um homem que acabou de sair de um período de cinco anos na prisão, que teve um passado com o crime organizado e que agora sente a necessidade de "se aposentar" daquela vida. Está com uma ideia fixa de juntar uma grana e montar uma empresa de aluguel de carros. Assim como o próprio De Palma havia criado o sonho de um futuro feliz com a esposa e um filho, um sonho que não se concretizou.

Assim, desde o começo da narrativa, estamos diante do dilema de Carlito Brigante (Al Pacino), que se encontra cercado pelo universo do crime, cercado por propostas indecentes, e até por tentativas de ser incriminado, como na fantástica e única cena com Viggo Mortensen, um criminoso que aparece de cadeira de rodas e com um grampo, com o objetivo de tentar arrancar alguma prova de crime que Carlito tenha cometido naquele período em liberdade. Mas nada como receber uma proposta de um homem que ele se sente em débito, Dave Kleinfeld (Sean Penn), o advogado que conseguiu diminuir consideravelmente sua pena na prisão. Assim, quando Kleinfeld pede para que ele o ajude a tirar um homem de uma prisão na ilha Ryker, ele, Carlito, não consegue dizer não, por mais que sua amada, Gail (Penelope Ann Miller), tenha lhe dito que isso é uma roubada e que ele acabará sendo morto. Ou seja, estamos diante de uma tragédia tão linda quanto as feitas pelos gregos ou por Shakespeare. Carlito é um personagem trágico por excelência.

O PAGAMENTO FINAL costuma ser subestimado e tido como uma obra que é citada como o segundo filme de gângster estrelado por Al Pacino que De Palma dirigiu. No próprio livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, vê-se SCARFACE (1983), mas não se vê este filme tão mais belo e mais delicado. Há uma série de situações que remetem ao filme de 1983, mas no fim das contas, acho mais interessante fazer as conexões com outras obras do realizador, como VESTIDA PARA MATAR (1980), a cena do elevador, e OS INTOCÁVEIS (1987), a sequência na estação de trem. Ambas as cenas, se comparadas com os filmes dos anos 1980, inclusive, são mais eficientes no que se refere ao impacto dramático, justamente por nos conectarmos com muito mais facilidade com os personagens de O PAGAMENTO FINAL.

Inclusive, acho uma pena que o filme não tenha sido visualizado na temporada de premiações. Também não chegou a ser um grande sucesso de bilheteria: custou 30 milhões de dólares e rendeu apenas 37 milhões em território americano. Ou seja, muito pouco. Por sorte, Tom Cruise adorou o filme e chamaria De Palma para dirigi-lo em MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996), que se tornaria seu título mais bem-sucedido comercialmente. Ainda assim, O PAGAMENTO FINAL foi bastante exaltado por boa parte da crítica, em especial da revista francesa Cahiérs du Cinéma, que o colocou na primeira posição no top 10 da década de 1990, empatado com AS PONTES DE MADISON, de Clint Eastwood, e ADEUS, AO SUL, de Hou Hsiao-Hsien.

Além do mais, temos as performances. Já citei a pequena e brilhante participação de Viggo Mortensen, mas como não destacar Sean Penn em seu papel mais impressionante? Ele não está apenas fisicamente diferente, mas parece se “outrar” de tal forma que até o tom de voz e os gestos parecem os de outro ator bem distinto. Também adoro Penelope Ann Miller, que imprime um tom de dramaticidade na cena final que me arrancou lágrimas e arrepios. Sua personagem é essencial para dar ainda mais coração para Carlito Brigante. Gail é a materialização da vida boa e estável de uma pessoa comum, e Penelope defende muito bem sua personagem. E não há muito a dizer de Al Pacino, que não é apenas um grande ator, mas um dos mais carismáticos astros que pudemos testemunhar na história do cinema. Aqui ele aparece o tempo todo com aquele sobretudo preto, como que num estado de luto pela própria morte passada/futura no longo flashback que é o filme. E aquele super-close de seus olhos no final, hein?! 

Quanto aos personagens de Pacino e Penn, podemos muito bem vê-los como duas faces de uma mesma pessoa. Lembremos que De Palma havia dirigido anteriormente um filme sobre um homem com múltiplas personalidades (SÍNDROME DE CAIM) e um outro também nessa mesma linha (IRMÃS DIABÓLICAS, 1972). Sem falar que podemos ver a maldade e a bondade entre os personagens de Sean Penn e Michael J. Fox como também aspectos de uma única pessoa em PECADOS DE GUERRA (1989).

Em O PAGAMENTO FINAL, há uma cena muito representativa dessa dualidade: quando Gail está dançando com um homem, Carlito olha com carinho para a namorada, sem nenhum aparente ciúme. Mas Dave está vendo e diz que acha um absurdo aquele mafioso estar passando a mão em sua namorada e Carlito não concorda com ele, mas o encoraja a desabafar, tirar do peito aquilo que ele sente. Logo depois ele percebe que foi um erro, já que a situação quase foge do controle. A cena, inclusive, é quase o oposto de uma muito parecida de SCARFACE, mas que se apresenta mais complexa e rica por apresentar essa dualidade bem depalmiana. O próprio Carlito é também um homem duplo em si, por adorar a figura angelical de Gail, quando a vê num balé, e depois se encher de ciúme quando a vê no pole dancing num bar de strip-tease, embora logo depois ele procure vencer o ciúme e agir com candura e aceitação.

É depalmiana também a cena do arrombamento da porta do quarto de Gail por Carlito, num rompante de desejo, ao ver a amada tirando a roupa e dançando sensualmente para ele. Carlito representa aqui um autêntico herói de Brian De Palma, ao precisar da sedução para partir para a ação, como acontece com seus protagonistas de DUBLÊ DE CORPO (1984) e SÍNDROME DE CAIM, embora neste numa chave mais sombria.

No mais, o clímax prolongado final é uma das coisas mais perfeitas produzidas no cinema americano. Ao entregar os bilhetes a Gail, Carlito tem a missão de encerrar alguns assuntos pendentes antes de encontrar a amada no horário indicado, na estação central. Então, a visita ao quarto do advogado traidor, toda a cena no clube, tentando escapar dos mafiosos que suspeitam que ele participou da morte de seus dois familiares, e a perseguição no metrô, até chegar ao “Benny Blanco from the Bronx” (John Leguizamo) na estação e ao choro e às palavras finais com Gail, tudo isso é de um valor inestimável.

É a constatação não apenas do gênio de Brian De Palma (isso já se sabe desde pelo menos os anos 1970), mas do quanto a sua genialidade podia também se atrelar da forma mais comovente possível ao seu coração. Obra-prima imensa, que ainda encerra com aquela voz rouca de Joe Cocker cantando “You Are Sou Beautiful”. Tão lindo que o próprio De Palma disse que nunca conseguirá superar o que fez neste filme.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.    

+ DOIS FILMES

RUÍDO BRANCO (White Noise)

Uma boa surpresa este RUÍDO BRANCO (2022), novo trabalho de Noah Baumbach, que aqui aproveita para mostrar de maneira mais explícita seu apreço por Brian De Palma em cenas que homenageiam alguns de seus filmes (não foi à toa que ele dirigiu um documentário sobre o mestre em 2015). É bem provável que eu não tivesse gostado do filme se o visse em casa e não no cinema, que faz uma diferença enorme. Sim, é uma obra um tanto irregular, mas eu fiquei encantado com várias coisas, em especial com a família apresentada. A família dos pais vividos por Adam Driver e Greta Gerwig é adorável e há também um prazer de viver aquela época (os anos 1970, aparentemente) que transparece em cada imagem. O filme, baseado em romance de Don DeLillo, tem uma estrutura bem estranha, assim como é estranha, pelo menos a princípio, o estilo de atuação adotado. Mas, uma vez que nos acostumamos, fica parecendo quase naturalista. Gosto dos três atos, mas acho que meu preferido é o segundo, que trata de uma nuvem tóxica que poderia trazer a morte a quem estivesse nas proximidades. É muito interessante o namoro de Baumbach com o gênero terror: às vezes funciona, como no caso de um sonho do personagem de Driver; na maioria das vezes funciona em registro de comédia. E é na comédia que ele se sente mais à vontade e por isso o tom do filme é leve, mesmo lidando com temas pesados, como o medo da morte, a insegurança e a paranoia.

PATERNO

Marco Ricca é um arquiteto que comanda, junto com o irmão, a empresa do pai, que está prestes a morrer. Seu personagem tem maiores ambições profissionais, ambições de pessoas burguesas com o poder de comprar o espaço de moradia dos pobres para dar lugar a um projeto maior que os interesses do irmão. Enquanto isso, ele vê o filho adolescente se formar de maneira mais humana e percebe o quanto foi perdendo de humanidade ao longo dos anos. PATERNO (2022), de Marcelo Lordello, é um fábula moderna sobre a consciência da perda da alma de seu anti-herói. Há um cuidado especial com o trabalho dos atores, que dá ao filme um tom de produção de primeira classe, embora nem sempre seja uma obra empolgante.

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