sábado, janeiro 14, 2023

15 CURTAS BRASILEIROS



O formato curta-metragem é um formato quase invisível e infelizmente poucas pessoas têm acesso a eles. Algumas pessoas dão sorte de vê-los quando frequentam sessões especiais ou festivais. Na maior parte das vezes quem tem acesso a eles são mesmo os críticos de cinema. Não sei o quanto isso é justo, pois alguns deles são verdadeiras pérolas. Abaixo, alguns dos filmes que vi entre o fim do ano passado e início deste ano.

PROCURA-SE BIXAS PRETAS

Um dos maiores méritos PROCURA-SE BIXAS PRETAS (2022), de Vinícius Eliziário, é brincar com um tipo de jogo de cena utilizado por Eduardo Coutinho e fazer com que o que parece ser um documentário tradicional e vitimista sobre personagens gays e/ou trans confessando seus sentimentos de rejeição, ao se virem usados sexualmente em diversos momentos por parceiros encontrados em aplicativo de encontro e depois jogados fora, acaba se tornando uma interessante história contada com pontos de vista diferentes. Poderia ter aproveitado melhor essa ideia, mas funciona bem. Como se trata de um documentário que promete ser um longa futuramente, é possível imaginar um bom trabalho como um longa.

NA ESTRADA SEM FIM HÁ LAMPEJOS DO ESPLENDOR

Curta cearense que tem um ar de mistério e de valorização da noite que me chamou a atenção. Há diálogos em NA ESTRADA SEM FIM HÁ LAMPEJOS DO ESPLENDOR (2021, foto acima), de Liv Costa e Sunny Maia, mas é interessante como eles parece não fazer muita diferença: as imagens é que fazem. As imagens dos quatro personagens, todos saindo de uma noção tradicional de masculino e feminino e curtindo a noite de uma cidadezinha do interior em suas motos, apreciando as estradas, a bebida, suas próprias companhias e a arquitetura local. É um filme que se beneficiaria de uma revisão para uma melhor compreensão.

PROMESSA DE UM AMOR SELVAGEM

Considero Davi Mello um dos mais talentosos cineastas da novíssima geração. Quando vi A BORDO (2015) e AS VIAJANTES (2019), logo percebi o gosto do diretor por caminhos que parecem portais para novos universos. Em PROMESSA DE UM AMOR SELVAGEM (2022), temos uma primeira parte que parece uma história simples sobre um rapaz que adentra uma festa e conversa com pessoas de lá. Entre elas um grupo de moças que leem sua mão e um rapaz com quem ele flerta e beija. A surpresa aparece logo a seguir e o ato final do filme é tão cheio de mistério e beleza que entender a trama passa a ser menos importante do que curtir aqueles instantes mágicos.

QUANDO CHEGAR A NOITE, PISE DEVAGAR

O cinema pernambucano já tem o dom de parecer sempre atraente sem fazer muito esforço. O que temos em QUANDO CHEGAR A NOITE, PISE DEVAGAR (2021), de Gabriela Alcântara, é uma história de mistério envolvendo uma jovem mulher que se muda para um apartamento e começa a suspeitar que o lugar é provavelmente mal assombrado. Enquanto isso, ela sofre com o ciúme da namorada e é às vezes quase aborrecida com as investidas do vizinho. A protagonista Mohana Uchôa (ótima) havia aparecido no ótimo AZOUGUE NAZARÉ, longa de Tiago Melo.

QUANDO MORREMOS A NOITE

Quem viu e amou A MORTE HABITA À NOITE (2020), de Eduardo Morotó, certamente vai amar ver este curta-metragem, que funciona como uma cartão de apresentação para o longa com a mesma história-base e o mesmo Roney Villela interpretando o escritor decadente inspirado em Charles Bukowski. Acho lindo e amargo o tom de ambos os filmes e no curta já estava tudo lá, em forma condensada. Na trama de QUANDO MORREMOS A NOITE (2011), homem de meia idade encontra uma jovem garota de programa num bar e iniciam um relacionamento. Mas a força do filme está mesmo nas sutilezas e no carisma de Villela. No modo como o filme abraça as trevas daquela vida de pouco sentido e de como as tristezas não são devidamente enlutadas pelo amargo da existência. Achei muito interessante o jogo de falta/presença de sinal de crase em ambos os títulos dos filmes, deixando no ar sentidos poéticos.

AINDA RESTARÃO ROBÔS NAS RUAS DO INTERIOR PROFUNDO

Interessante como AINDA RESTARÃO ROBÔS NAS RUAS DO INTERIOR PROFUNDO (2022), de Guilherme Xavier Ribeiro, apresenta personagens que aparentemente representam uma espécie de ameaça ao jovem protagonista, um rapaz que voltou a trabalhar (num McDonald's) e perdeu sua égua. O filme não é apenas surpreendente em sua conclusão, mas como também traz um sentimento de união e solidariedade que me emocionou. É também um filme sobre a luta de classes, de um país ainda governado (felizmente pelo último ano) por Bolsonaro, mas que também conclama para uma compreensão maior do outro, sem que seja, no entanto, panfletário ou coisa do tipo. Destaque também para a fotografia, que enfatiza tanto a pouco iluminação de quando o sol está prestes a ir embora, quanto as luzes dos faróis nas ruas, num efeito visual que se mistura com nosso pensar o filme.

BENZEDEIRA

Que filme bonito e que figura adorável que é Maria do Bairro, nome adotado por Manoel Amorim, benzedeira numa área rural do Pará. A primeira imagem que vemos de BENZEDEIRA (2021), de San Marcelo e Pedro Olaia, é uma tomada do alto, da floresta onde vive o personagem, que manifesta desde o início o prazer que sente em viver no mundo terreno, apesar das dificuldades. Há muito mais risos e sentimentos de gratidão do que reclamação por parte de Maria do Bairro, por mais que ele seja constantemente ameaçado por pessoas que querem derrubar as árvores e matar seus animais. Há sabedoria simples na fala do personagem, da importância de repassar os conhecimentos para as novas gerações e da importância das ervas como remédios substitutos dos remédios artificiais. É muito interessante também o modo como se misturam as crenças cristãs com a mitologia do candomblé nas rezas e nas canções. Adorei os tons crepusculares da fotografia.



BICHO AZUL

Fico encantando com esses filmes feitos com pouquíssimos recursos, com recursos que poderiam ser usados por qualquer pessoa com criatividade e que resultam em algo ao mesmo tempo simples e poderoso. No caso de BICHO AZUL (2021), de Rafael Spínola, o filme me pegou num momento em que a partida recente do Rick, o cachorrinho que morou por um tempo aqui em casa e que estava na casa da minha irmã e do meu sobrinho, num momento em que essa partida ainda me traz um tanto de tristeza. Ontem mesmo meu sobrinho esteve aqui e de vez em quando falava do cachorro, queria que eu o desenhasse na casa que ele tinha, quando propus que desenhássemos nossas casas. E há algo que o narrador do filme fala sobre o fim ser a única coisa que fica que me pegou. Ainda estou ruminando isso, eu que sou um canceriano que seleciona momentos felizes do passado, mas gostei muito da afirmativa. Ainda mais quando ela surge num e-mail encaminhado a uma pessoa que foi sua namorada. São sete minutos que calam fundo em nossa alma.

CANTAREIRA


A princípio senti um pouco de dificuldade de me conectar a CANTAREIRA (2021), de Rodrigo Ribeyro. Isso porque o filme tem um andamento lento, dois personagens que demoram um pouco a se reencontrar, mas quando isso acontece (ou melhor, antes disso acontecer) já nos vemos encantados com o quanto o diretor nos deixa pequenos diante da natureza apresentada (da Serra da Cantareira) e diante do mistério dos conflitos internos de seus personagens. Fica implícito o afastamento do jovem Bento da casa do avô Sylvio, é compreensível pelos olhares. Além de valorizar os grandes espaços, em especial a natureza, o diretor também valoriza os olhares, com close-ups muito bonitos e uma plasticidade que chama a atenção desde as primeiras imagens. A cena final é representativa tanto do espírito do filme quanto da relação de harmonia que parece se estabelecer entre os dois personagens principais. Premiado em Cannes-2021 na Mostra Cinéfondation

CANTOS DE UM LIVRO SAGRADO

O curta-metragem vencedor do É Tudo Verdade 2022 não foi dos filmes mais fáceis de eu compreender. Isso pelo meu total desconhecimento da história política da Armênia. Como CANTOS DE UM LIVRO SAGRADO (2022), de Cesar Gananian e Cassiana Der Haroutiounian, não é exatamente didático, é preciso um pouco de pré-requisito para se aproximar melhor. Ainda assim, uma das primeiras informações, que é a era das trevas do país ter acontecido em 1992, quando, com o fim da União Soviética, perdeu a energia elétrica, me pareceu no mínimo muito curioso. Após isso, o filme foca, em sua divisão em cantos, na história política mais recente do país, mais exatamente em 2018, sendo que a Armênia foi tema de uma de nossas escolas de samba no carnaval de 2019. Trata-se certamente de um filme que merece ser revisto, de preferência após estudar um pouco mais sobre a história desse país, que merece a nossa atenção.

CURIÓ

Filme que presta homenagem a um bairro da periferia de Fortaleza. Há destaque tanto para sua história de origem e construção, com moradores falando do esquema de mutirão, quanto da chacina que marcou a vida de muitos moradores, cometida por policiais. CURIÓ (2021), de Priscila Smiths e PH Diaz, apresenta uma mãe, por exemplo, que perdeu o filho nessa chacina e tem por hábito fazer lives para sensibilizar as pessoas do ocorrido. CURIÓ tem um formato híbrido, podendo ser tanto ficção livre quanto documentário, com cenas do cotidiano de jovens e de pessoas mais idosas. São cenas que aparentemente não têm ligação entre si, mas que funcionam como um álbum de fotos muito interessante.

CURUPIRA E A MÁQUINA DO DESTINO

Senti falta de ter visto o clássico moderno IRACEMA – UMA TRANSA AMAZÔNICA, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Uma lacuna enorme, uma falha terrível, é verdade. Enfim, a personagem principal deste curta é a Iracema do filme dos anos 1970 encontrando o Curupira, o personagem folclórico. CURUPIRA E A MÁQUINA DO DESTINO (2022), de Janaina Wagner, começa misterioso e mantém essa mesma pegada, embora misture, lá pelo meio, cenas que o aproximam do documentário. É uma obra que talvez não tivesse nascido se não fosse o bolsonarismo, interessado em um suposto desenvolvimentismo da região amazônica, leia-se, destruição da vegetação de maneira irresponsável. Falo assim, mas o filme se distancia do didatismo e acaba se destacando, no final, pela beleza plástica e pelos efeitos visuais bem construídos.

ESCASSO

Um dos curtas mais intrigantes e cheios de segurança que vi nos últimos anos. A atriz e diretora Clara Anastácia é uma mulher que se apresenta como alguém que entrou numa casa que estava vazia e agora está curtindo o ambiente que lhe foi presenteado até o momento que a dona da casa voltar. Disfarçado de documentário, ESCASSO (2022, foto acima), de Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles, apresenta uma entrevistada inteligente, debochada e com uma energia impressionante. O filme lida com questões sociais (é melhor uma casa ocupada do que uma casa vazia), questões religiosas tipicamente brasileiras e a questão da cor da pele. O filme é entrecortado por imagens bem divertidas, como a cena das moedas, ou a imagem da entrevistada em diferentes partes da casa. Eis um filme que merece os prêmios que vem recebendo no Brasil e no mundo.

TERREMOTO

É possível fazer uma conexão bem próxima entre TERREMOTO (2022) e MARTE UM (2022), ambos de Gabriel Martins, e ambos interessados em um cinema de afeto com base na família. TERREMOTO busca esse afeto através de um outro tipo de registro, o documentário, ao conhecermos uma família de haitianos que moram em Minas Gerais e que contam como foram suas experiências durante o terremoto de 2010, que fez com que muitos habitantes do país migrassem para o Brasil, e como é morar no Brasil. Escutamos os depoimentos da mãe e dos dois meninos. O mais jovem, com um português mais bem formulado parece mais adaptado, mas é do mais velho que surge o testemunho mais dramático, que vem da lembrança que ele tem desse terremoto. Tanto TERREMOTO quanto MARTE UM são filmes que mostram pessoas sofridas com um interesse num futuro melhor.

GAROTOS INGLESES


Já faz um tempinho que Marcus Curvelo se transformou numa das figuras mais interessantes dos curtas-metragens brasileiros (embora já tenha um longa, EU, EMPRESA, 2021). Seus filmes são garantia de diversão e têm um tipo de humor muito particular. Quem não viu, por exemplo, MAMATA (2017) e JODERISMO (2019) não sabe o que está perdendo. GAROTOS INGLESES (2022) talvez seja menos inspirado, mas não menos divertido e também ácido no modo como tenta lidar com o fato de que um traficante de escravos inglês tem direito a um dos melhores túmulos de Salvador. O filme se passa na pandemia de COVID e há dados bem tristes que atravessam o filme. Por causa disso, o riso que o filme tenta provocar tem uma natureza obviamente estranha.

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