domingo, setembro 11, 2022

MARTE UM



Uma pequena amostra da sensibilidade de Gabriel Martins está no curta MOVIMENTO (2020), realizado na pandemia do coronavírus, com o próprio diretor mostrando o cuidado com seu filhinho pequeno dentro de casa, enquanto do lado de fora, além do vírus, as pessoas pretas ainda teriam que conviver com um racismo que cada vez se mostrava mais vivo na sociedade brasileira, ainda mais depois que o bolsonarismo deixou cair as máscaras de quem era escroto mas que pagava de boa pessoa.

MARTE UM (2022), recentemente escolhido pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Visuais para representar o Brasil no Oscar 2023, é o primeiro longa-metragem solo de Martins, depois do ótimo NO CORAÇÃO DO MUNDO (2019), dirigido em parceria com Maurílio Martins. O novo filme traz uma proposta bem diferente, um olhar mais para dentro do que para fora de seus personagens, embora inicie com a informação de que a história se passa pouco depois da eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Essa informação talvez não chegue a ser tão essencial para a história, mas acredito que, para o futuro, ela será de fundamental importância.

Apesar de ter uma trama, MARTE UM não é bem um filme de trama, mas um filme de personagens. E esses personagens são quatro pessoas de uma família negra de classe média baixa da região metropolitana de Belo Horizonte. O que temos aqui é uma dessas obras que nos pega pelas emoções, à medida que vamos nos afeiçoando a esses personagens. Como cada um tem um tipo de problema, de visão de mundo e de intenções para o futuro (ou presente), é bem possível que nos identifiquemos com alguns deles por algum motivo.

Como já passei por um momento de sofrer com transtorno de ansiedade e ataque de pânico, me identifiquei em parte com a mãe Tércia (Rejane Faria), uma mulher que, vítima de uma pegadinha, passa a ter ataques de pânico e até a achar que está causando algum mal para a família, em determinado momento. Mas talvez eu tenha me identificado mais com o pequeno Deivinho (Cícero Lucas), que sofre pressão do pai para ser jogador de futebol, quando na verdade suas ambições para o futuro são outras bem diferentes: ele quer ser astrofísico, e quer, inclusive, participar da primeira missão de colonização para Marte. (No meu caso, meu pai também era um pouco frustrado por eu não jogar nem me interessar por futebol.)

Mas claro que o filme não vilaniza o pai, o carinhoso Wellington (Carlos Francisco, de BACURAU), um senhor que frequenta reuniões do AA e tem uma paixão imensa pelo futebol e por seu time. Ele quer quer fazer uma espécie de transferência do sonho de algo que ele mesmo não é mais capaz de concretizar, agora que não tem mais idade para ser jogador de futebol. Wellington trabalha como porteiro em um prédio de luxo há alguns anos e costuma tratar bem todos os habitantes do edifício. Não tem, por exemplo, uma visão mais revolucionária e raivosa como o novo rapaz que começa a trabalhar lá, que enxerga muito claramente a luta de classes. O rapaz, aliás, vivido por Russo APR (presente em TEMPORADA e NO CORAÇÃO MUNDO), parece uma versão menos melancólica do protagonista de ARÁBIA, outro grande filme mineiro da última década.

E chegamos à quarta personagem do filme, a jovem Eunice (Camilla Damião), que está atualmente apaixonada por uma outra garota e resolve sair de casa e tomar seu próprio rumo. A primeira pessoa a quem ela conta sobre seu namoro é Deivinho, em um momento intimo lindo do filme, quando os dois personagens contam seus segredos um ao outro. Eunice talvez represente a maior revolução daquela família, ao trazer a namorada para a casa e deixar claro que gosta de meninas, para a surpresa dos pais.

MARTE UM passa de maneira muito bonita um carinho especial por esses personagens. As suas quase duas horas passam voando, já que estamos imersos nos dramas pessoais de cada um deles. E vez ou outra nos vemos chorando em determinados momentos. Destaco a cena da cadeira, com a despedida de Eunice da casa, quando ela vai morar com a namorada. As emoções de Wellington e de Eunice passam a ser nossas também. Além do mais, há um trabalho formal que merece ser destacado e mais observado em futuras revisões. Percebi uma ênfase nos rostos dos personagens nas cenas, com poucos momentos de campo-contracampo.

Apesar de ser exibido ainda em salas de nicho, em circuitos comerciais, ao que parece, depois da escolha para o Oscar, MARTE UM também está sendo exibido em algumas salas de circuito mais comercial, de shopping, dando a chance para que outros espectadores também possam vê-lo no cinema. MARTE UM é daqueles filmes que deixam o coração da gente mais quentinho. A vida não é fácil, mas correr atrás dos sonhos e de uma vida melhor ainda nos é permitido.

+ DOIS FILMES

RAPSÓDIA PARA O HOMEM NEGRO

Com os holofotes apontados para MARTE UM (2022), o interesse pelas obras anteriores de Gabriel Martins pode-se fazer presente. Caso o IMDB não esteja errado, RAPSÓDIA PARA O HOMEM NEGRO (2015) é o segundo trabalho na direção de Martins e uma obra que carrega uma valorização da ancestralidade negra e uma complexidade na forma, que também requer um pouco de conhecimento do candomblé. Na história, o jovem Odé prepara uma vingança para a morte de seu irmão mais velho, Luiz. O bonito é que há em determinado diálogo entre os irmãos a questão da vilania e do heroísmo e a cena final do filme tem uma beleza plástica que combina com os gestos do herói vingador. E se em 2015 havia uma sociedade que parecia esconder um pouco seu sentimento de preconceito com os negros, de uns anos para cá as máscaras caíram um bocado. No mais, bom rever em cena Carlos Francisco e Rejane Faria, dois dos protagonistas de MARTE UM.

MEU AMIGO MINEIRO

Uma feliz surpresa este curta produzido pelo coletivo Alumbramento, que traz dois jovens diretores, o cearense Victor Furtado e o mineiro Gabriel Martins, trabalhando em conjunto e como personagens também. Em MEU AMIGO MINEIRO (2012), Martins vem visitar o amigo Vitinho em Fortaleza e, devido a algum desencontro, o mineiro fica sozinho, passeando pela cidade o dia todo. Vamos acompanhando essa sua jornada, que vai da Praça dos Leões a um bar karaokê. Gosto muito de como o filme extrai a experiência da contemplação quando se está sozinho (e em paz). Há tanto uma valorização do estar só quanto da amizade. Uma celebração da vida que ainda traz imagens bonitas de minha cidade.

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