quarta-feira, novembro 02, 2022

AFTERSUN



Ultimamente tenho pensado cada vez mais na memória. À medida que envelhecemos, nosso conjunto de recordações vai ficando cada vez mais distante e menos palpável. “Palpável”, aliás, é uma palavra que jamais deveria estar junto de “memória”. Mas quando estamos falando de cinema, isso até pode ser um pouco mais possível, pois se trata de uma quase materialização da memória, especialmente quando o filme se propõe a trabalhar esse assunto. O filme em questão é AFTERSUN (2022), longa-metragem de estreia da escocesa Charlotte Wells.

O filme acompanha um passeio de férias de pai e filha. Sabemos muito pouco a respeito dos dois e AFTERSUN demora a nos apresentar à situação. Com o tempo, ficamos sabendo que o pai, Calum, vivido por Paul Mescal, da ótima série NORMAL PEOPLE, vive separado da mãe de Sophie (Frankie Corio). A viagem que eles estão fazendo, em fins dos anos 1990, é para a Turquia, para uma parte do país mais turística, com lindas praias.

Na viagem, eles usam bastante uma camcorder, que registrará alguns dos momentos de alegria e descontração, mas que também poderá captar um ou outro sentimento de desconforto, algo que talvez possa ser lido nas entrelinhas. E é mais ou menos esse o interesse do filme: que muito de seu significado ou do que possa ser absorvido pela audiência seja nesses espaços, nas hesitações das conversas, em detalhes nos rostos, em certas falas. Por isso é uma obra que certamente se beneficiará bastante de uma revisão mais atenta.

Curioso como o filme foi me pegando muito mais em seu terço final, até chegar o momento de impacto que me deixou em um estado de fragilidade emocional e de angústia. E é um sentimento que não dá para descrever direito pois é construído a partir também de um mistério do personagem de Paul Mescal. Pouco sabemos pelo que ele está passando, mas a cena de sua ida à praia é um divisor de águas para a forma como passamos a ver a sua presença. É como se a simples possibilidade de sua morte, de sua ausência, passasse a tornar mais viva e mais importante a sua presença, me desse um puxão de orelha para que eu saísse do torpor de imaginar que naquela viagem nada de importante aparentemente acontece e passasse a valorizar mais cada momento, a valorizar mais o amor daquele pai, que sofre calado.

E o modo como a diretora Charlotte Wells vai trazendo de volta, em seguida, o personagem, como se numa nova materialização, me fez pensar muito em meu pai, no quanto também não tivemos tempo para nos conhecer, no quanto eu não o conheci de fato. A menina vivida pela estreante Frankie Corio é doce desde os instantes finais, mas o processo de primeiro amadurecimento de uma menina de onze anos surge e vemos que ela também pode ser capaz de magoar com palavras, como na cena anterior ao momento em que o pai sobe para o quarto e a deixa sozinha.

E adoro como a entrada em cena da protagonista adulta faz uma conexão com a lembrança de uma forma quase fantasmagórica. Usar "Under Pressure" do Bowie/Queen em determinada cena traz um sentido de dor e de finitude que eu estou ainda para compreender, pois sentimentos não são exatamente para ser compreendidos, mas podem ser racionalizados. Outra canção que é colocada de maneira mais sutil, “Tender”, do Blur, também tem um significado muito especial. Por ser uma espécie de canção meio gospel sobre a necessidade de curar a alma tanto traz luz para a dor do pai e da filha adulta quanto do próprio espectador que, ao contato com o filme, será tocado em algum momento, em maior ou menor grau.

Como AFTERSUN não é um filme que oferece respostas fáceis para seus mistérios, os sentimentos são conflitantes, confusos. Até consigo ver algo de lynchiano no final, embora muitos estejam comparando o filme com THE SOUVENIR, da Joanna Hogg, que é muito mais explícito em sua intenção de ser autobiográfico.

+ DOIS FILMES

RAPACE

Talvez seja preciso conhecer um pouco mais a poética de João Nicolau para apreciar RAPACE (2006), e como só vi TECHNOBOSS (2019), a estranheza ainda segue. Mas é uma estranheza boa e há muita inventividade. O filme acompanha um jovem recém-saído do mestrado e disposto a descansar a cabeça. Ele brinca com a senhora que cuida da casa, conversa com o amigo sobre uma festa e também conversa com uma bela moça sobre a letra de uma música (um rap) que acabara de escrever. Muito interessante o trabalho de experimentação: o atender ao telefone, a transformação de gestos em música, o som e a sombra no carro a caminho da festa. O filme é o primeiro trabalho de Nicolau. Ele estrearia em longa-metragem com A ESPADA E A ROSA (2010).

BAUNILHA

Antes de ficar mais famoso no circuito de festivais com os curtas NOVA IORQUE (2018) e MARIE (2019), Leo Tabosa fez este documentário muito interessante sobre BDSM, um assunto que costuma me interessar bastante. Em BAUNILHA (2017), o diretor entrevista um homem da área do direito, vivendo no Recife, que fala sobre esse seu estilo de vida. Como, segundo o entrevistado, o BDSM é uma arte, Tabosa também mostra várias imagens bem explícitas da prática, com um cuidado plástico que mais se deve ao ritual em si e ao espaço do dono da casa do que à direção de arte do filme, eu diria. Uma cena de ATA-ME!, do Almodóvar, e imagens de livros na estante, nos lembram o quanto essa prática está presente em maior ou menor grau na arte e em nossas vidas.

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