sábado, setembro 16, 2023
ENTRE DEUS E O PECADO (Elmer Gantry)
O pouco tempo que tenho acaba por me privar de algumas coisas incríveis que sequer estavam no meu radar nesses mais de trinta anos de cinefilia. No começo minha formação cinéfila se deu quase que exclusivamente pela revista SET, que trazia holofotes para muitos cineastas, mas, obviamente, por falta de espaço ou mesmo de lançamentos de certas obras no Brasil, muita coisa passou batida. Depois, nos anos 2000, as fontes de conhecimento foram ampliadas imensamente pela internet, pelos blogs de cinema, pelas listas de discussão, pela gentileza de amigos de gravarem fitinhas para mim de certos filmes inéditos em nosso circuito e só conseguidos através de cópias clandestinas gravadas de DVDs e laserdiscs estrangeiros. Muitas maravilhas do cinema de horror, eu conheci nesses anos.
E agora vivo um outro momento, a partir do primeiro ano da pandemia, quando passei a prestar atenção na curadoria e nos filmes distribuídos pela Versátil Home Video. Vejam bem: não estou fazendo propaganda, não. A questão é que ter parado para ver, só para citar exemplos deste ano, filmes como OS NOVOS CENTURIÕES, de Richard Fleischer, e À PROCURA DE MR. GOODBAR (1977), de Richard Brooks, foi essencial. Sobre esse último, com o convite de escrever um texto a respeito para um dos novos livros temáticos da Versátil, me vi na obrigação de conhecer um pouco mais da carreira de Brooks, cineasta que me era conhecido apenas por GATA EM TETO DE ZINCO QUENTE (1958) e OS PROFISSIONAIS (1966), mas já faz tanto tempo que os vi, que nem dá para contar como vistos.
E por mais que À PROCURA DE MR. GOODBAR seja uma obra muito alinhada com a Nova Hollywood, ela já faz parte dos últimos trabalhos de Brooks. O realizador pertenceria mais à geração dos anos 1950, e está entre os 31 cineastas que ganharam textos de Olivier-René Veillon para o livro O Cinema Americano dos Anos Cinquenta, publicado pela editora Martins Fontes. O livro é uma delícia, aliás, com textos que destacam as obras mais importantes, as obsessões dos diretores e sua trajetória em cerca de sete páginas. E Veillon destaca a obra máxima de Brooks como sendo ENTRE DEUS E O PECADO (1960).
Como alguém que veio do jornalismo, o olhar de Brooks é um olhar de curiosidade e interesse. Por isso o personagem cético e ao mesmo tempo humanista de Arthur Kennedy, vivendo o jornalista, parece tão próximo do perfil do cineasta. Kennedy interpreta um profissional da comunicação que está fazendo um trabalho de observação da atuação de uma jovem mulher que está arrebanhando multidões com cultos de avivamento em cidades do interior dos Estados Unidos. A mulher, a irmã Sharon Falconer (Jean Simmons), parece de fato acreditar naquilo que está pregando. As coisas mudam um bocado com o aparecimento de um homem chamado Elmer Gantry (Burt Lancaster), com seu sorriso resplandecente, palavras bonitas, incrível eloquência (embora não exatamente sofisticada) e seu conhecimento e experiência com o evangelismo, faz com que a caravana de Sharon Falconer alcance ainda mais multidões. Só na primeira pregação de Gantry, centenas de pessoas se converteram.
Isso chama a atenção dos demais pastores e das demais igrejas evangélicas dos Estados Unidos, e logo a caravana de Falconer é chamada para estrear numa cidade grande, ou seja, um lugar com mais pessoas sofridas, mas também com mais pessoas céticas, menos ingênuas. A primeira meia hora de filme nos acompanha a Gantry sozinho e sua dificuldade para conseguir vender aspiradores de pó. Pouco sabemos de seu passado, mas, numa cena num bar, já percebemos sua habilidade com as palavras e sua capacidade de persuasão, ao conseguir arrecadar dinheiro para o natal de duas jovens. O rosto sempre sorridente de Gantry, mesmo quando tem que andar de trem às escondidas num vagão, é um convite para aceitarmos o personagem como um querido e irresistível charlatão. Até porque ele de fato acredita em Deus, e a cena em que ele adentra uma igreja evangélica constituída basicamente por pessoas negras, cantando o clássico gospel “I’m on my way to Canaan land”, é de arrepiar.
Abro um parêntese aqui para falar um pouco de minha experiência nas igrejas evangélicas e no quanto os filmes que lidam com o assunto me trazem sentimentos mistos. Em geral, os filmes costumam tratar essas pessoas com um ar de desdém e julgamento. Quando vejo filmes que tratam isso com respeito, como numa cena linda de conversão em CARANDIRU, de Hector Babenco, ou a cena mais representativa da força da fé já feits no cinema, em A PALAVRA, de Carl Th. Dreyer, vejo o quanto ainda tenho em mim essa relação de proximidade com a fé, embora tenha me tornado mais humanista e mais desapontado com as igrejas evangélicas, especialmente quando elas passaram a abraçar o dinheiro como bem mais precioso, e mais ainda durante a ascensão do bolsonarismo. Na época que participava (na verdade, mais testemunhava) os avivamentos na igreja (Assembleia de Deus), ficava bastante incomodado e perturbado com todo aquele barulho e percebia que havia algo errado, percebia que havia portas abertas para o charlatanismo e para a hipocrisia. Por outro lado, tenho um carinho imenso pela lembrança da primeira vez que fui a um culto dominical e vi a igreja cantando aquelas canções do hinário e senti que aquele ambiente estava cheio de uma energia muito boa e feliz. Enfim, é uma história feita de bons e de maus momentos. Fecho o parêntese mais pessoal, por ora.
No caso de ENTRE DEUS E O PECADO, acredito que a hipocrisia parece estar mais presente na sociedade, especialmente nos líderes evangélicos, do que nos crentes, que de fato acreditavam no poder da fé e da força das palavras. As palavras são poderosas e servem a advogados, políticos e líderes religiosos quando ganham essa necessidade de persuadir determinada parcela de pessoas. E outra coisa que Jesus condenava é mostrada na multidão: o ato de julgar as pessoas.
Gosto particularmente do último ato, embora tenha percebido que a personagem da jovem prostituta compareça de maneira quase brusca no enredo, o que pode ser evidência da adaptação do romance de Sinclair Lewis e de possíveis cortes na montagem final. É grande a performance de Lancaster e há momentos muito emocionantes ao longo de sua jornada, que termina de maneira incendiária, catártica. Diferente, aliás, da catarse vista em À PROCURA DE MR. GOODBAR, já é que alinhada a um cinema mais clássico-narrativo. E por mais que o filme funcione como uma espécie de denúncia dos bastidores um tanto sujos das igrejas evangélicas, sendo até hoje uma obra um tanto controversa, ela celebra a humanidade de seu personagem-título.
+ DOIS FILMES
CEDDO
Oportunidade incrível esta que o Cinema do Dragão proporcionou de podermos conhecer boa parte da filmografia de Ousmane Sembène no cinema. CEDDO (1977) é uma obra um pouco mais "difícil" do que MANDABI (1968), no sentido de ser bastante apoiada em diálogos, que às vezes parecem se repetir, e soam quase teatrais, mas há uma clara intenção de causar inquietação, pois não apenas vemos, além da escravidão acontecendo no território senegalês, a invasão da religião muçulmana que, a princípio, parece pedir apenas a conversão pacífica das pessoas, para em seguida instalar uma espécie de teocracia violenta, que é uma realidade em vários países do norte da África e do Oriente Médio. O fato de termos apenas uma personagem feminina, e que é vista em toda sua glória, mas capturada, enquanto os homens tomam todas as decisões, é também um elemento que chama a atenção. Os ceddo do título são o grupo de pessoas que procuram ceder à dominação islâmica.
MOOLAADÉ
Ver MOOLAADÉ (2004), derradeiro filme de Ousmane Sembène, logo após CEDDO (1977) ajuda a deixar bem claro o quanto o diretor era um militante de causas difíceis de seu país. Aqui temos um filme que protesta contra a excisão, um nome bonito para o ato de mutilar a genitália feminina, cortando o clitóris e costurando a área, e gerando inclusive problemas urinários. Trata-se de uma prática antiga de várias regiões da África e que foi "incluída" como parte das leis islâmicas de certos países, como é o caso de Senegal. MOOLAADÉ começa com a fuga de quatro crianças desse rito que chamam de purificação. Elas procuram a casa de uma mulher que é conhecida no vilarejo por ter conseguido impedir o tal ritual em sua filha. Ao contrário do que se poderia pensar, não se trata de um filme de patriarcado versus mulheres, já que a maior parte das mulheres do lugar aceita a prática. Lá pelo terceiro ato, o grupo de personagens masculinos vai ficando mais ativo, depois que percebe que está havendo uma clara rebelião a esse costume. O filme é um tanto didático naquilo que quer combater e o final parece uma fuga do realismo até então reinante, mas isso não deixa de ser algo também revolucionário, com a intenção de mudar o mundo, de fato.
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