domingo, setembro 03, 2023

DÁLIA NEGRA (The Black Dhalia)



“I see the family as a structure that brings about the manipulation and destruction of the individual.”
Brian De Palma


A frase acima, dita em longa entrevista do cineasta para o livro de Samuel Blumenfeld e Laurent Vachaud, deixa claro, mais uma vez, o quanto a imagem que ele guarda da instituição familiar é de mais danos do que de aspectos positivos. É uma visão extremamente pessimista e amarga, mas não é novidade para quem acompanha a obra de De Palma e sabe da relação de proximidade de seus personagens e sua biografia.  E quando o cineasta parecia estar disposto a deixar para trás todos os seus traumas num filme como MISSÃO: MARTE (2000), tudo volta, de maneira ainda pior, com DÁLIA NEGRA (2006), seu filme noir sangrento e bastante sombrio que envereda pelos medos e pelas inseguranças mais profundas do ser humano.

O problema é que o filme é uma de suas obras mais difíceis. Não por causa dessas questões mais pesadas e autobiográficas, mas por apresentar um diretor que parecia um pouco perdido e talvez menos inspirado. Porém, estudar e acompanhar com atenção a poética de seu cinema tem me ajudado a gostar (ou quase) até de seus (supostos) tropeços. DÁLIA NEGRA é um noir confuso (de certa forma normal para o subgênero, mas que podia trazer um encanto maior através das imagens), com um problema às vezes de escolha de elenco (não consigo entender escalarem Hilary Swank para viver uma femme fatale, sem falar que dizer que ela é a cara da falecida Elizabeth, vivida por Mia Kirshner, é difícil de engolir).

Mesmo Josh Hartnett, o protagonista, parece um herói com pouca força, com aquela cara de menino. Porém, dentro das obsessões do diretor é fácil entender a oposição tanto moral quanto visual entre os personagens de Hartnett e Aaron Eckhart (aqui, com uma cara de psicopata assustadora). Toda essa questão entre irmãos tão frequente na obra de De Palma, volta com força aqui. A cena de boxe do início, em que o personagem de Hartnett perde os dentes numa luta com Eckhart, a considero de extrema crueldade, até por ser vista com olhares de risos e escárnio, inclusive pela personagem de Scarlett Johansson, que mais tarde se mostrará apaixonada pelo herói vivido por Hartnett.

Por outro lado, foi um acerto monstruoso ter Fiona Shaw como uma milionária meio maluca e suicida (inspirada na mãe do próprio De Palma). Aliás, toda aquela família da personagem de Swank é uma “homenagem” à família do cineasta. Também é bom ver as interseções entre o filme e outras obras do diretor, como DUBLÊ DE CORPO (1984), OS INTOCÁVEIS (1987), OLHOS DE SERPENTE (1998), entre outros. Há também toda uma relação com o filme clássico hollywoodiano dos anos 1940, numa intenção de homenageá-lo, mas à maneira do diretor, com aquele jeito meio torto, estranho e bonito. Infelizmente é um filme que poderia ser uma obra-prima, se realizado na fase de maior inspiração de De Palma, mas que no novo milênio se provou menor. Ainda assim, há momentos surpreendentes que geram aflição, estupefação e dor. Para o cineasta, o fracasso comercial de DÁLIA NEGRA foi mais um golpe. O filme custou 50 milhões de dólares e não conseguiu se pagar.

Tem sido muito bom ler os capítulos dedicados aos filmes do cineasta no livro Brian De Palma’s Split Screen, de Douglas Keesey, logo após ver ou rever cada um deles. É quando aprendemos mais sobre as circunstâncias da realização das obras. Fiquei sabendo, por exemplo, que o filme foi feito um ano após a morte do pai do realizador, aos 100 anos de idade. Há uma cena em DÁLIA NEGRA em que Bucky (Hartnett) vê seu pai senil atirando e matando um monte de pombos. O pai de De Palma, antes de morrer, provavelmente havia se transformado numa figura muito frágil, mas que ainda era capaz de machucar, pelos traumas que deixou no cineasta.

A relação de excessiva competitividade entre Bucky e Lee (Eckhart) se apresenta de maneira mais brutal na cena da luta de boxe, mas de maneira também incômoda no triângulo amoroso que se forma com Kay (Scarlett Johansson), mulher de Lee, e portanto, alguém que é vista como proibida para Bucky, apesar da atração sexual intensa que ele sente por ela. Esse desejo por Kay, Bucky optou por satisfazer com outra mulher, menos idealizado, a Madeleine, de Hilary Swank, que mais tarde seria morta pelo próprio Bucky, numa espécie de descida aos infernos do personagem que até então representava um herói puro. O moralismo de Bucky, aliás, fica evidente quando ele deixa a casa de Madeleine com muita raiva, logo após ela contar o fato de ela ter feito sexo com outra mulher.

No livro, o capítulo sobre DÁLIA NEGRA também fala de outra relação de competitividade: a de Brian De Palma com Martin Scorsese. De Palma se vê como “o outro cara”, enquanto Scorsese é geralmente encarado por muitos como o maior cineasta americano vivo. Enquanto Scorsese quase sempre ganha boas críticas e repercussão, De Palma tem que encarar críticas negativas e bilheterias quase sempre baixas. De Palma também cita a competição dos diretores até mesmo em temáticas e tempo de planos-sequências. E até mesmo na escolha de um ator para seu filme. Mark Wahlberg era o ator que De Palma queria para viver Lee, mas Scorsese o escalou para OS INFILTRADOS. Embora De Palma tenha feito dois filmes com cenas de boxe, foi Scorsese quem fez uma obra definitiva, TOURO INDOMÁVEL. Sobre os planos-sequência, De Palma ultrapassou o tempo de TOURO INDOMÁVEL com OS INTOCÁVEIS, mas Scorsese bateu o recorde dele com OS BONS COMPANHEIROS, o que fez com De Palma respondesse com A FOGUEIRA DAS VAIDADES (1990) e OLHOS DE SERPENTE.

Acredito que ler o romance de James Ellroy pode ajudar a tornar a trama um pouco mais compreensível. Refiro-me ao quebra-cabeças envolvendo quem matou quem, quem ajudou a matar, as motivações, os detalhes etc. É como se De Palma não conseguisse dar conta de tanta coisa. Ou talvez não quisesse tornar seu filme um pouco mais fácil de compreender. Ou talvez algumas cenas tenham ficado na sala de montagem. Não sei dizer. Mas, por mais que eu não tenha sentido muito prazer vendo DÁLIA NEGRA (o que geralmente ocorre vendo os filmes do realizador), esta talvez seja a obra mais importante que ele fez no século XXI.

+ DOIS FILMES

PASSAGENS (Passages)

O cineasta americano Ira Sachs está cada vez mais olhando para o mercado fora dos Estados Unidos, depois de ganhar as graças da crítica a partir de DEIXE A LUZ ACESA (2012) e abordar de diferentes maneiras as relações homoafetivas. Este PASSAGENS (2023) é um de seus filmes mais internacionais, com um trio de atores de diferentes países: Franz Rogowski (Alemanha), Ben Whishaw (Inglaterra) e Adèle Exarchopoulos (França). O que me incomoda no filme desde o começo é a própria presença do personagem de Rogowski. E nem é por seu egoísmo, mas talvez por ser difícil comprá-lo como par romântico de Exarchopoulos. Além do mais, falta química entre os dois e a personagem feminina está quase sempre na posição de obstáculo surgido na relação entre os dois homens. Ainda assim, o filme foi me ganhando em seu terceiro ato, quando torna mais complexa a dificuldade que o protagonista encontra de lidar com seus dois amores, por assim dizer. Minhas cenas favoritas são justamente as três últimas, dos três últimos diálogos. Ira Sachs é um diretor a se prestar atenção sempre.

RHEINGOLD – O ROUBO DO SUCESSO (Rheingold)

Fatih Akin havia me chamado a atenção com seu suspense brutal e sujo O BAR LUVA DOURADA (2019) e aqui ele até parece brincar mais uma vez com o uso da violência de maneira muito interessante, mas, quando começa a ficar tudo muito parecido com os filmes de Guy Ritchie, este novo trabalho chega a incomodar, além de se estender além do necessário. O que achei mais interessante em RHEINGOLD – O ROUBO DO SUCESSO (2022) foi ver as histórias de sobrevivência do protagonista antes de se tornar rapper e também de seus pais, que enfrentaram regimes totalitários e teocráticos que os levaram à tortura. Memorável a cena da mãe de Xatar dando à luz numa caverna cheia de morcegos, por exemplo. Akin parece perder o interesse por seu próprio filme quando resolve fazer uma biopic bem tradicional de alguém que se torna um músico de sucesso. Depois disso, tudo de bom que havia visto então (adoro as cenas de vingança de Xatar a seus algozes nas ruas) acaba ficando quase esquecido.

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