quinta-feira, agosto 17, 2023

AS DUAS FACES DA FELICIDADE (Le Bonheur)



Que tenho ainda metade de uma vida inteira para conhecer obras-primas de me deixar sem chão, disso eu não tenho dúvida. O que acontece é que nem sempre acho justo chegar até elas com o corpo cansado, com a mente cansada ou com preocupações que possam atrapalhar a minha relação com a obra. Nesse sentido, acabo optando por obras menores, ou pelo menos que acredito serem menores, e deixando as obras-primas para outro dia. Mas eis que neste último feriado, aproveitei a tarde livre para escolher AS DUAS FACES DA FELICIDADE (1965) como sessão para o dia. Não que eu duvidasse da grandeza desse filme de Agnès Varda, pois adoro o longa de estreia CLÉO DAS 5 ÀS 7 (1962) e a ode feminista pró-aborto UMA CANTA, A OUTRA NÃO (1977), mas esses dois filmes não me prepararam para esse drama sobre infidelidade, tão delicado quanto cruel. Aliás, “delicado” e “cruel” são dois adjetivos que podem ser aplicados ao imaginário masculino sobre a mulher, presente em canções, filmes, poemas e romances. Saber que o filme é dirigido por uma mulher talvez ajude a compreender um pouco sua força e seu impacto.

Diferente de tantos outros filmes sobre adultério, que lidam com o assunto como se fosse como um crime, já que temos uma questão moral envolvida, AS DUAS FACES DA FELICIDADE não torna o personagem masculino exatamente perverso ou cruel com sua esposa. Talvez ele seja egoísta ou ingênuo, ou as duas coisas, e talvez, ao final do filme, crie-se, em alguns espectadores, uma imagem ruim dele. A crueldade está no modo como a vida de uma mulher é interrompida e como sua presença é substituída tão rapidamente. Isso gera um mal-estar no espectador, embora não seja um mal-estar que esteja em sintonia com o protagonista, que parece passar pela experiência do luto de maneira um pouco mais tranquila.

Mas acho que estou passando o carro na frente dos bois, e já metendo um monte de spoilers, sem sequer ter comentado sobre o que trata deste clássico de Varda. E nem adianta eu avisar para o leitor não ler o texto, pois agora é tarde: o estrago está feito. Se bem que a trama, embora muito importante, não é o ponto mais importante do filme. Na verdade, todo o cuidado com a forma tira de AS DUAS FACES DA FELICIDADE qualquer traço de vulgaridade. Trata-se, desde o começo, de uma obra que adota um tipo de decupagem tão ousada quanto a que Jean-Luc Godard usou em ACOSSADO, por exemplo, mas aqui os cortes têm uma função narrativa evidente no modo como os personagens estão passando por certas situações. O melhor exemplo aparece no momento do primeiro encontro de natureza sexual entre o protagonista e a amante. O campo/contracampo é mostrado de maneira tão rápida que parece simular a pressa ou o nervosismo dos dois (ou do espectador), assim como as rápidas imagens das mobílias da casa, antes dos dois irem para a cama.

Uma das coisas mais bonitas nos filmes franceses é o modo como os personagens geralmente costumam falar do amor como se estivessem racionalizando seus sentimentos, ou como se estivessem num divã, se despindo de muitas travas ou daquilo que se costuma esconder, ou talvez como se não estivessem se desvencilhado do romantismo de séculos passados com o avanço da modernidade, sem, no entanto, deixarem de ser um exemplo de modernidade. Talvez eu esteja generalizando demais, e acho que estou mesmo, mas o que digo vale para muitos filmes dessa cinematografia, e vale também para este filme de Varda, especialmente nos momentos em que os personagens do triângulo amoroso conversam sobre seus sentimentos em relação ao parceiro, muitas vezes tornando claro o sentimento de ciúme, mas querendo se livrar dele, de uma forma ou de outra.

A felicidade do título, embora mais tarde possa ser vista como algo também cruelmente irônico, se refere principalmente à felicidade de François, o protagonista, que se encontra num estado de exaltação espiritual ao estar amando duas mulheres: sua esposa e outra mulher que ele conhece no posto dos correios. “Minha esposa é uma planta em crescimento, você é um animal enjaulado. Há felicidade o suficiente em mim para ambas”, diz ele em determinado momento. Sua felicidade transbordante traz repercussões inesperadas e o filme tem um visual tão lindamente belo, colorido e enfatizando o esplendor da natureza, que tudo isso contribui para essa sensação um tanto contraditória e incômoda. Fiquei na dúvida se Varda quis criticar os atos de François, criticar a sociedade monogâmica (acho que não) ou se mostrou algo tão natural quanto a própria natureza em flor, no que ela tem de gentil e violenta. E as flores, tão presentes desde o começo, e inspiradas no tom impressionista da obra-prima UM DIA NO CAMPO, de Jean Renoir, parecem ganhar outra conotação, mais sombria, inclusive, de um funeral.

Se as cenas de François com Émillie transmitem uma espécie de contradição, envolvendo algo que parece muito errado, mas também muito libertador, a derradeira cena de conversa entre François e Thérèse no bosque e sua explosão de sentimentos é tão dolorosa, mesmo sendo mostrada de maneira tão delicada, que, sinceramente, não consigo encontrar paralelo em filme algum. E, assim, quando achamos que não encontraremos outra obra cinematográfica que nos arrebate a ponto de nos fazer pensar nela por dias e dias, surge um filme como este para nos dizer o contrário.

Vi o filme na MUBI, em imagem linda e cristalina, mas fiz questão de ver o debate de 15 minutos presente como extra no box em DVD Agnès Varda, lançado em digipack pela Obras-Primas do Cinema, e que ajuda a trazer luz, mais amor e mais admiração pelo filme.

+ DOIS FILMES

O CRIME É MEU (Mon Crime)

Gosto de François Ozon e admiro o quanto o diretor, muitas vezes, consegue entregar obras lindas, fazendo tantos filmes em curto espaço de tempo. Infelizmente, no meio dos bons e ótimos, há esses feitos sem inspiração e bem a cara da pior perfumaria que o cinema francês produz, por mais que haja um interessante senso de humor e um roteiro que brinca com o sucesso de um assassinato cometido por uma atriz de quinto escalão (Nadia Tereszkiewicz). Com a ajuda da melhor amiga e advogada (a ótima Rebecca Marder, de A GAROTA RADIANTE), ela enfrenta os tribunais de um tempo em que a mulher não votava (anos 1930) e os júris eram todos constituídos por homens. O que mais gosto em O CRIME É MEU (2023) são as performances de Marder e de Fabrice Luchini - até Isabelle Huppert está canastrona. Acho que é um filme para ver totalmente descompromissado e, caso se esteja com muito bom humor, pode divertir.

UMA VIDA SEM ELE (About Joan / À Propos de Joan)

O que me deixou sempre interessado e intrigado com UMA VIDA SEM ELE (2022, o título brasileiro é menos equivocado do que eu imaginei) foi o modo como o filme tratou a memória da protagonista Joan, na vida adulta vivida por Isabelle Huppert. O filme acompanha essa mulher, reencontrando um amor do passado, quando viveu na Irlanda, para em seguida, através de elipses, chegarmos a outros momentos de sua vida, principalmente a relação de afeto com o filho único. Os fragmentos de memórias de Joan coincidem com os fragmentos de anotações que o filho mostra para ela, de diários de diferentes épocas de sua vida, e com a carta da mãe de Joan, que deixa claro que sua própria carta é composta possivelmente por mentiras ou desejos. O filme se beneficia também da presença do alemão Lars Eidinger (que se destacou na minissérie IRMA VEP), no papel de um dos amores de Joan e um quase alívio cômico em alguns momentos.

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