quinta-feira, agosto 10, 2023

A MORTE NUM BEIJO (Kiss Me Deadly)



Cerca de duas décadas atrás o Cine Benfica começou a exibir, em sessões matutinas, alguns filmes do ciclo noir. Não cheguei a ir às demais sessões (todas em DVD, se não me engano), mas resolvi ir para a sessão de A MORTE NUM BEIJO (1955), de Robert Aldrich. Saí do cinema absolutamente impressionado. Na verdade, a impressão que eu tive, desde a primeira cena, da mulher vestindo apenas um roupão, abordando, desesperada, qualquer motorista na estrada escura, seguida da cena de créditos, foi de absoluta estupefação.

Os créditos mostrados de ponta-cabeça logo em seguida, nos deixam com os olhos arregalados. Ou seja, desde o começo, o filme já antecipa o quanto se trata de uma obra virada do avesso, de certa forma, ou como um espelho distorcido do próprio gênero de thriller de detetive que vinha sendo feito em Hollywood desde o início da década anterior. Isso foi o suficiente para que esta obra-prima do diretor me ganhasse, no início da carreira, mesmo que o miolo do filme seja confuso.

Acho que estava numa vibe de querer ver filmes de histórias confusas, mas viajantes, como certos gialli e até mesmo alguns títulos noir hollywoodianos mesmo – o caso clássico seria o de À BEIRA DO ABISMO, de Howard Hawks. E, se o prólogo é um cartão de visitas impressionante, o que dizer daquele final? Acho que só tinha visto algo tão desconcertante nos filmes de David Lynch. No caso do filme do Aldrich, porém, é possível entender a obra como um fruto da era atômica, como já estava acontecendo na época com o gênero sci-fi. O que Aldrich fez foi adicionar um elemento fantástico como a grande surpresa de seu filme.

Na revisão de A MORTE NUM BEIJO, prestei atenção em mais aspectos, como o fato de o herói ser quase tão grosseiro (e sádico) quanto os vilões, ou o espírito que o filme pega emprestado da obra adaptada, uma ficção pulp de Mickey Spillane. O herói, Mike Hammer (Ralph Meeker), se diferencia bastante de outros detetives do gênero, como Phillip Marlowe e Sam Spade, exemplos de classe e estilo. Em certo momento, depois que Hammer descobre que puseram uma bomba em seu carro, um dos vilões principais reconhece que o subestimou, que não entende o que ele fará a seguir. O tom de imprevisibilidade faz parte do filme.

Sendo um noir B dos anos 1950 (um noir B e independente), o filme tem uma característica maior de autoconsciência. Isso faz toda a diferença na dramaturgia, nos diálogos, no modo como os personagens se comportam. E há a beleza da fotografia expressionista, da trilha sonora sinistra, de opções estranhas e intrigantes de onde colocar a câmera, das surpresas que se apresentam no desenvolvimento e principalmente em sua conclusão, na sensualidade e na violência apelativas para a época. Não à toa virou um dos favoritos para tantos cineastas, que o referenciaram, como Lynch, Tarantino, Spielberg.

Filme revisto no box Filme Noir (o primeiro). 

+ DOIS FILMES

DISCO BOY – CHOQUE ENTRE DOIS MUNDOS (Disco Boy)

Ok, que eu acabei vendo o filme numa crise alérgica que ajuda a promover o sono, ainda mais após um dia de trabalho, mas tenho a impressão que isso aqui é um soporífero. Ajuda também o fato de DISCO BOY – CHOQUE ENTRE DOIS MUNDOS (2023), de Giacomo Abbruzzese, ser um filme de imagens mais do que palavras (eu adoro palavras). Em alguns momentos isso até parece interessante, mas mesmo quando é interessante não tem um poder de mistério, de emoção ou de perturbação que pudesse provocar meu interesse. Na hora que terminou, inclusive, até considerei o filme uma espécie de pegadinha de mau gosto, até por usar os personagens africanos de maneira muito folclórica ou exótica e um tanto deslocados da trama em Paris. Quem sabe eu revejo num dia melhor e passo a apreciá-lo um pouco mais. Por enquanto, a impressão que ficou não foi feliz.

FOGO-FÁTUO

Tenho achado interessante essa nova leva de filmes homoeróticos, de como eles têm se mostrado ousados na explicitação de sua sexualidade, como se os realizadores gays estivessem finalmente aproveitando a liberdade que há tanto tempo lhes fora negada, como manifestação proibida ou mesmo criminosa, em certos países. Em FOGO-FÁTUO (2022), João Pedro Rodrigues faz uma espécie de musical sobre o desejo entre um príncipe franzino que deseja ser bombeiro e um outro rapaz, negro e musculoso, da corporação. Acredito que há coisas que só serão compreendidas de fato por quem tem a mesma orientação sexual dos personagens. Refiro-me a compreender no sentido de sentir, mais do que uma compreensão distante, racional. Mesmo para quem acompanha à distância, por assim dizer, é possível ver o belo trabalho de construção visual do diretor, especialmente nos interiores. Falando em distância, não sei se seria possível, no auge da pandemia, fazer uma cena como a de uma revelação de morte por Covid, presente no filme, dada a ambiguidade entre o drama e a comédia da proposta.

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