quarta-feira, agosto 23, 2023

RETRATOS FANTASMAS



Lembro que meu primeiro contato com o cinema de Kleber Mendonça Filho foi com seus curtas-metragens, naquelas sessões das 18h que a Petrobrás patrocinava em várias salas de cinema do país. Foi numa dessas salas que vi pela primeira vez VINIL VERDE (2004) e NOITE DE SEXTA, MANHÃ DE SÁBADO (2007). E durante vários anos ficava me perguntando: já que KMF é tão bom, por que não lança logo um longa-metragem? Demorou, mas depois do pouco visto documentário O CRÍTICO (2008) o cineasta começou sua carreira com longas de ficção de forma gloriosa com O SOM AO REDOR (2012), que eu tive a honra de ver em primeira mão no Festival de Gramado. De lá para cá, e com a repercussão em festivais internacionais e com a crítica estrangeira, os filmes do realizador têm se tornado um acontecimento. Seu longa de ficção anterior, aliás, BACURAU (2019), foi mais que isso, já que representou um gesto de resistência para a ala mais progressista da sociedade brasileira, então vivendo sob um governo de extrema direita.

Até achei que voltar ao documentário, que exige menos contato com atores e técnicos que a ficção, tenha se dado por causa da pandemia, mas depois soube que RETRATOS FANTASMAS (2023) é um projeto desenvolvido ao longo de anos. O resultado foi esta obra bem intimista, e é muito provavelmente seu filme mais pessoal. Tão pessoal que o próprio Kleber surge como personagem (interpretando a si mesmo em determinado momento) e principalmente como narrador de sua própria história, mais especificamente, da história de sua casa na infância (com a forte e afetuosa presença da mãe até certo momento), e de sua relação de amor e proximidade com as salas de exibição do Recife, salas que ele viu fecharem ao longo do processo de decadência dos centros das grandes cidades e do crescimento do número de multiplexes nos shopping centers.

É bom perceber que Kleber Mendonça Filho chegou num momento de sua carreira em que pode se dar ao luxo de fazer o que quiser que terá no mínimo um bom resultado – pelo menos, é essa a impressão que tenho. Aliás, não é luxo: é talento mesmo, já que saber o que quer com a câmera, saber como dispor cenas já existentes com outras novas, saber fazer uma obra que flui como um diário pessoal, tudo isso é fruto de talento e também de labor. No caso de RETRATOS FANTASMAS, por ser um documentário/ensaio em que a montagem é crucial para o resultado, muito do mérito se deve ao montador Matheus Farias, o mesmo de PROPRIEDADE, filme excelente que está demorando a estrear comercialmente.

A primeira parte do filme é incrível. Ela é dedicada à casa, e todo o jogo envolvendo as imagens atuais com cenas de seus próprios filmes em que o lugar foi usado como cenário é muito saboroso. O cachorro que não parava de latir, a proliferação de gatos na vizinhança, o abandono da casa vizinha que depois seria tomada por cupins, a questão da falta de segurança e a transformação das residências em bunkers, a visita de Maeve Jinkins, toda a brincadeira com a trilha sonora relacionada a filmes de terror tão caros ao cineasta; enfim, todas essas coisas trazem muita graça e uma maior aproximação do cineasta com a audiência.

Quem acompanha Kleber Mendonça Filho pelas redes há um par de décadas vai lembrar que ele foi um dos críticos cinematográficos de destaque no auge dos sites e blogs de cinema, e que foi cada vez mais levando seu amor para a realização de filmes, e até para a gestão de uma das mais importantes salas de exibição do Recife. Mas quem não acompanhou, certamente vai gostar de descobrir um pouco mais do diretor na narrativa em primeira pessoa deste seu novo trabalho.

Ver RETRATOS FANTASMAS é também identificar-se com várias cenas, como o despedir-se de cinemas de rua queridos, conversar com projecionistas, ter uma relação de afeto com o centro da cidade, ter saudade dos pôsteres e das fotos de divulgação nas paredes como elementos de introdução inicial aos filmes num mundo mais analógico. E como é incrível o jogo que ele faz entre O SOM AO REDOR (e outros filmes) e imagens do passado e do presente, na casa onde habitou. O aspecto de filme-ensaio faz lembrar o cinema de Jean-Luc Godard e Chris Marker, com a liberdade de fazer colagens que têm uma relação mais afetiva do que intelectual. 

Não dá para reclamar muito de lançamentos do cinema brasileiro nas telonas neste 2023. Com filmes novos de Kleber Mendonça Filho e Júlio Bressane em cartaz – e até com um inédito de José Mojica Marins, vejam só! –, estamos muito bem, obrigado. Além do mais, em breve teremos o novo filme de Paula Gaitán em nossa cidade. Isso só para citar diretores já há bastante tempo celebrados.

+ DOIS FILMES

MÔA, RAIZ AFRO MÃE

Infelizmente a primeira vez que ouvi o nome de mestre Môa do Katendê foi na notícia de seu assassinato, a facadas, por um bolsonarista, no fervor do primeiro turno das eleições de 2018. Ter um documentário que nos apresente, até que de maneira didática, à sua história e à sua importância na cultura e no carnaval baianos é homenageá-lo, é fazer com que as pessoas que não são baianas, nem familiarizadas com os blocos de Salvador, saibam o que foi e o que representou o Badauê, nome que se tornou nacionalmente famoso graças a Caetano Veloso, que cantou uma das composições de Môa no álbum Cinema Transcendental. Ver MÔA, RAIZ AFRO MÃE (2022), de Gustavo McNair, é também saber um pouco mais sobre o afoxé, o candomblé de rua, e entender um pouco mais as ligações entre religião, música, filosofia e dança promovidas pelos afoxés. E no caso de Môa havia também a capoeira. Como documentário, achei o trabalho de McNair até um pouco cansativo, provavelmente precisando de uma melhor montagem. Mas o filme é um convite ao brasileiro a pensar sua cultura.

MÁQUINA DO DESEJO

José Celso Martinez Corrêa foi um homem que sempre apareceu pra mim como uma figura interessante, mas não o suficiente para que eu procurasse me aproximar e saber mais sobre seu trabalho, até por causa de meu distanciamento com o teatro. Por isso, por essa ignorância de minha parte, fiquei muito impressionado com a festa imensa que foi sua despedida, recentemente. MÁQUINA DO DESEJO (2021), de Joaquim Castro e Lucas Weglinski, me ajudou a apresentar ao dramaturgo e ao Teatro Oficina. O filme começa sua história lá nos anos 1960, pouco antes do Golpe de 64, e segue apresentando sua luta e sua resistência ao longo dos anos, mesmo depois de ter sofrido tortura no pau-de-arara. Há o duelo de Davi e Golias que foi a disputa pelo espaço contra Sílvio Santos, e termina com imagens de uma peça que parece saída dos domínios do deus Dionísio. Essencial para compreendermos pelo menos um pouco de seu teatro revolucionário e cheio de tesão.

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