domingo, dezembro 11, 2022

PROPRIEDADE



Há filmes que logo percebemos seu potencial de impacto para além de um pequeno círculo de cinéfilos. E é uma pena que boa parte desses filmes acabem não conseguindo chegar a uma audiência maior, por mais que mereçam demais. Mas claro que há esperança e PROPRIEDADE (2022), o segundo longa-metragem de Daniel Bandeira, poderá ser um sucesso tão grande quanto foi BACURAU, de Kleber Mendonça Filho. A comparação com os dois filmes tem razão de ser pois ambos os autores embarcam no cinema de gênero para tratar de questões sociais. Eu diria que Daniel Bandeira abraça o gênero de maneira ainda mais intensa. Ao final da sessão, e depois de passar por uma sucessão de emoções, fiquei sonhando com o surgimento de uma onda de produções de terror e suspense brasileiros que chamasse a atenção do grande público e que gerasse, dentro da quantidade, o consequente nascimento de obras-primas do gênero, como aconteceu com o giallo na Itália nos anos 1970, por exemplo.

Falando especificamente de PROPRIEDADE, trata-se de um caso empolgante de obra dirigida com maestria. Na minha cabeça, em vários momentos, passaram imagens de filmes de Brian De Palma, Steven Spielberg e George A. Romero. E até de CUJO, de Lewis Teague, aquele filme do cão raivoso que ataca uma mulher com crianças dentro de um carro. Um filme menor e um pouco esquecido, mas que definitivamente é um caso especial de condução de suspense de fazer o espectador se segurar com força em seu acento. Além do mais, percebemos a influência dos filmes de zumbis criados por George A. Romero a partir de seu A NOITE DOS MORTOS-VIVOS.

A diferença é que Bandeira utiliza esses códigos dentro de uma estrutura mais realista. Em vez de zumbis ou um cão raivoso há uma turba de trabalhadores furiosos, tenham eles razão ou não. O modo como o filme é recebido por parte do espectador pode depender de seu viés político, pois nesse sentido o filme borra as fronteiras entre heróis e vilões. Principalmente pelo fato de que o ponto de vista do filme é de uma mulher burguesa.

Na trama, Malu Galli (PARAÍSO PERDIDO) é Tereza, uma mulher que sofre de um trauma após ter sido refém de um criminoso seguido de um tiro na cabeça do bandido. Após o ocorrido, Tereza fica cada vez mais presa em sua casa, com medo de tudo. O marido (Tavinho Teixeira, de O CLUBE DOS CANIBAIS) procura uma maneira de ela sair de casa e espairecer. Chega com um carro blindado e moderno e a leva para sua fazenda, na zona rural de Pernambuco.

O fato de o filme já começar com o ponto de vista dos personagens burgueses pode interferir na dificuldade de identificação com os personagens que aparecerão a seguir, os trabalhadores da fazenda, que começam a ficar muito preocupados quando passam a saber que aquele espaço será transformado num hotel de luxo e eles perderão seus empregos. O trabalho de montagem da cena que faz intersecção com as duas histórias é brilhante e amplia o suspense logo de cara. E muito suspense ainda viria em doses cavalares ao longo de todo o filme.

A excelência do trabalho dos atores, de todos eles, é outro elemento que deve ser mencionado. Lembrando que eu não me importo muito com filmes de terror ou suspense com atores abaixo da média. Nem acho que isso seja tão importante. Mas ter um filme de gênero com um trabalho de atuação tão boa faz com que o alcemos a um outro patamar, e sem dúvida esse é o caso de PROPRIEDADE.

Uma das questões que o filme tem levantado, especialmente em debates com a crítica, vem do fato de que é mais fácil se solidarizar com a causa da mulher burguesa do que com os trabalhadores assalariados. Isso talvez se dê pela falta de um maior aprofundamento na história daquelas pessoas em particular, embora seja compreensível que o diretor espere dos espectadores uma compreensão histórica das condições de exploração e escravidão de um sistema de casa grande e senzala que teima em se perpetuar, ainda que de maneira menos explícita do que no século XIX.

Nesse sentido, levando em consideração essa compreensão de um Brasil desigual e que parece um barril de pólvora, a cena do carro blindado sendo levado para seu destino final na conclusão do filme é de um poder simbólico absurdo. Além do mais, essa falta de uma delimitação mais clara de bem e mal, acaba tornando PROPRIEDADE uma obra ainda mais provocadora do que o próprio BACURAU, que trazia um tipo de violência mais facilmente aceita, principalmente por parte da esquerda, por trabalhar de maneira mais clara o maniqueísmo. O filme de Bandeira, mesmo que não seja visto de um ponto de vista político, oferece um final tão amargo quanto coerente com certos filmes de terror e suspense.

Quando falei da questão da distribuição e da necessidade de um trabalho de marketing maior para um filme como PROPRIEDADE é porque o meu desejo é que um número cada vez maior de espectadores possa conferir o filme. Espectadores que não têm o hábito de ir ao cinema, inclusive. De modo que isso provoque uma procura maior de produções do gênero, além de uma valorização, uma conscientização e um orgulho maior do que se produz no Brasil.

+ DOIS FILMES

FIM DE SEMANA NO PARAÍSO SELVAGEM

O fato de eu estar com sono enquanto via FIM DE SEMANA NO PARAÍSO SELVAGEM (2022) (o horário pós 18h é cruel pra mim), resultou em sentimentos conflituosos em relação a ele. Mas acho que não tem importância deixar registradas umas impressões quase etílicas, já que o filme de Severino tem um quê de noir delirante, de pesadelo, ao mostrar a investigação da morte de um homem, afogado em circunstâncias misteriosas. Sua irmã claramente desconfia da elite econômica da cidadezinha à beira-mar, em especial da antagonista que parece chefiar a família. A especulação imobiliária e a luta de classes, tema caro ao cinema pernambucano, comparece aqui quase como um personagem. Há questões pouco claras no filme, mas isso, além de contribuir para seu charme, faz parte da tradição do noir, sub-gênero favorito do diretor, segundo ele mesmo disse em coletiva de imprensa.

BIA

Um dos aspectos que mais encanta em BIA (2022), o novo filme de Taciano Valério, é o quanto ele passa uma carga de verdade em sua dramaturgia. E nem me refiro às cenas em que a protagonista entrevista mulheres do MST para seu trabalho de doutorado, mas principalmente das cenas de convivência entre ela e seus pais. Isso se deve muito ao método do diretor de utilizar muita improvisação e optar por se desprender de um roteiro de ferro. Na verdade, não havia exatamente um roteiro para o filme, mas orientações e uma busca para que cada momento se aproximasse mais de uma verdade. E, claro: ajuda muito ter um trio de atores excelentes, como Verônica Cavalcanti (O BARCO), Fernando Teixeira (BAIXIO DAS BESTAS) e Zezita Matos (PACARRETE). Eles são, respectivamente, filha, pai e mãe vivendo em situações delicadas. A filha não dá conta de estudar e cuidar de seus pais idosos, sendo que a mãe tem dificuldade de mobilidade. A personagem Bia foi inspirada numa amiga do diretor Taciano e as cenas de entrevistas adotam naturalmente um tom documental. Ter Verônica Cavalcanti como corroteirista ajuda a trazer mais verdade para a condição da mulher em uma sociedade patriarcal ainda mais forte no espaço do sertão. Por mais que haja um carinho da filha pelo pai, acho muito interessante quando ela se nega a fazer o jantar para ele, já que ele claramente está mal acostumado. Há uma discussão mais explícita sobre a independência da mulher (ou algo próximo a essa conquista) também nas entrevistas. Ao menos há essa compreensão maior do espaço de conquista da mulher. Na coletiva de imprensa, após a exibição do filme no Fest Aruanda, Fernando Teixeira disse que essa foi sua melhor experiência como ator, tendo em vista a liberdade criativa dos diálogos, e houve uma declaração amorosa e emocionante de Zezita Matos, ao dizer que as cenas que fez foi imaginando ser mãe de verdade de Verônica. Certamente, é um filme que merece uma maior visibilidade quando de sua estreia no circuito.

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