terça-feira, junho 26, 2007

BAIXIO DAS BESTAS



Em certo momento de BAIXIO DAS BESTAS (2007), Matheus Nachtergaele olha para a câmera, para o espectador, e diz: "sabe o que eu mais gosto no cinema? É que no cinema a gente pode tudo." E é muito bom saber que no Brasil um cineasta nordestino está tendo a liberdade de fazer o que quer, mesmo que isso incomode muita gente. Se AMARELO MANGA (2005) já era um filme forte e incômodo, o segundo longa de Cláudio Assis tem muito mais excessos. Claro que não é com cenas de estupro, prostituição, incesto, nudez, violência e consumo de drogas que se faz um bom filme, mas o cinema brasileiro contemporâneo anda muito bem comportado e estava mesmo precisando de uma boa chacoalhada. É bom ir ao cinema e ficar de vez em quando com o corpo entoxicado e o coração batendo mais forte. Mas o melhor é que Cláudio Assis revela nesse novo trabalho um amadurecimento técnico impressionante em relação ao seu primeiro longa. E a fotografia de Walter Carvalho, em super 35 mm, é de encher a tela (cinemascope) e os olhos.

Cláudio Assis é desses sujeitos radicais que não aceitam fazer filmes de encomenda. Para ele, cinema é algo pessoal, tem que vir de dentro. Ele é um sujeito raivoso - xingou até o Hector Babenco numa premiação - e BAIXIO DAS BESTAS é um pouco a cara dele: raivoso, convicto do que pensa e adora uns palavrões. Há um constraste forte entre a fotografia bonita, de visual esplendoroso, com o cenário da sarjeta. Esse constraste está também no personagem do Seu Heitor (Fernando Teixeira), o velho ranzinza que vive dando lições de moral no povo da região, mas que abusa de sua pobre neta das mais diversas maneiras.

O filme começa com a cena desse velho levando Auxiliadora (Mariah Teixeira), a neta adolescente, para um local próximo de um posto de gasolina. Ele tira a roupa dela e a deixa à mostra para que um grupo de homens possa olhar para ela e se masturbar. Quem se escandalizar com essa cena, é melhor sair logo do cinema, pois depois dela a coisa só piora - ou melhora, dependendo do ponto de vista. Além do avô e da neta, temos outros dois núcleos que se cruzam: o do grupo de amigos, onde se destacam os personagens de Caio Blat e Matheus Nachtergaele, e o das prostitutas - as principais são as personagens de Dira Paes, Marcélia Cartaxo e Hermila Guedes. Os homens passam os dias fumando maconha, dormindo ou pensando em sexo; as prostitutas até gostam da sacanagem, mas sonham em mudar de vida, arranjar um velho rico e sair daquele lugar.

É no puteiro onde acontece uma das cenas mais impactantes do filme. Everardo (Nachtergaele) se revela um verdadeiro psicopata e o que ele faz com a personagem de Hermila Guedes é extremamente cruel, algo semelhante ao que acontece em IRREVERSÍVEL, de Gaspar Noë. O auge dessa seqüência é visto com a câmera posicionada no teto. A crueldade da cena e a beleza de como ela é filmada passa uma sensação incômoda, misto de prazer e dor. E se o cinema americano é cheio de psicopatas memoráveis, o cinema nacional acaba de arranjar mais um, um sujeito tão cruel quanto o Zé Pequeno, de CIDADE DE DEUS. Se o núcleo masculino do filme está de parabéns, o que dizer da coragem de grandes atrizes como Dira Paes e Hermila Guedes de fazerem tais cenas?

BAIXIO DAS BESTAS é, entre outras coisas, uma denúncia da violência contra a mulher e uma crônica sobre os instintos mais baixos, violentos e vulgares do bicho-homem. Não que BAIXIO DAS BESTAS seja realista, no sentido de ser quase um documentário. Na verdade, misturado à realidade, há no filme um clima de pesadelo povoado de monstros embriagados, como se tivéssemos atravessado as portas do inferno, coisa que eu não vejo na cinematografia nacional desde os trabalhos de Mojica. Em certa altura do filme, um personagem reclama do mau cheiro. Outro responde dizendo ser da usina. E ele responde: "você acha que eu não conheço o cheiro da usina? Isso aí é a podridão do mundo."