domingo, março 17, 2024

ERVAS SECAS (Kuru Otlar Üstüne)



A primeira vez que ouvi falar em Nuri Bilge Ceylan foi quando do lançamento de ERA UMA VEZ NA ANATÓLIA (2011) no Brasil. O filme foi bastante concorrido na reta final do prêmio Abraccine de 2013, mas o longa só havia sido exibido em São Paulo, no CineSesc, e isso talvez tenha prejudicado sua eleição como melhor longa-metragem estrangeiro pela associação, que acabou indo para TABU, de Miguel Gomes. O restante do país só receberia o filme de Ceylan nos cinemas no ano seguinte, como foi o caso de Fortaleza, que contou com uma gloriosa exibição (em película, se não me engano), em maio de 2014, no Cinema do Dragão.

De lá para cá, mais dois filmes do cineasta pintaram: WINTER SLEEP (2014), que recebeu a Palma de Ouro em Cannes, e A ÁRVORE DOS FRUTOS PROIBIDOS (2018). Curiosamente, o próprio cineasta também dirigiu documentários longos sobre o making of desses filmes. Mas creio que o mais novo trabalho do realizador, ERVAS SECAS (2023), seja o que mais me encantou, pelo menos desde ERA UMA VEZ NA ANATÓLIA. Talvez até mais que esse, eu diria, pois mexeu com questões pessoais minhas, não apenas me deixando deslumbrado com uma direção primorosa e imagens em plano geral e close-up magníficas.

O ideal é chegar ao cinema sabendo o mínimo possível da trama ou dos personagens e se pegar envolvido com as quase 3h20min de projeção, que na verdade passam voando. No entanto, vou tomar a liberdade de encher meu texto de spoilers, já que sinto a necessidade de falar de certas cenas. Por isso, deixo aqui o aviso.

O protagonista de ERVAS ECAS é Samet (Deni̇z Celi̇loğlu), um professor de artes do ensino fundamental que vê a vida com muito amargor e isso é espelhado em suas aulas, pouco interessantes e com frequência criticadas pelos próprios alunos. Esse desgosto com a própria vida que leva faz com que certo grau de maldade o contamine, e faz com que se sinta superior às demais pessoas daquele vilarejo distante e inóspito da Turquia. 

Logo no começo do filme, ao voltar de um recesso escolar, ele presenteia uma de suas alunas favoritas com um espelho. A menina aceita com alegria e simpatia. O espelho, mais adiante, será confiscado por uma espécie de polícia da escola, que passa nas salas de aula verificando tudo o que as crianças trazem em suas mochilas. Entre os outros objetos confiscados, está também uma carta de amor de Sevim, a aluna favorita de Samet. Em determinado momento, Samet e outro colega, Kenan (Musab Eki̇ci̇), são acusados de estarem cometendo comportamentos inadequados com seus alunos e alunas. Eles acabam não sendo punidos pelo diretor da escola, mas saber dessas reclamações faz com que os dois fiquem bastante incomodados e curiosos sobre os exatos motivos das reclamações.  

Se o filme fosse só sobre essa questão, com o pano de fundo de um vilarejo situado onde o Judas perdeu as botas, com gelo por todos os lados e com cachorrinhos abandonados morrendo de frio pelas ruas, se fosse “só” sobre isso, já seria incrível, dada a capacidade de Ceylan de nos colocar naquele universo e fazendo, até então, uma espécie de “anti-filme de professor”. Ou seja, Samet é um sujeito que logo veremos como alguém no mínimo desagradável.

Mas eis que há uma espécie de lado B, algo inesperado e genial, que eleva o filme e o torna ainda mais incrível, em minha percepção, pois novas questões surgem, e o brilho na direção do mestre turco fica mais acentuado. Seu virtuosismo até então parecia contido. A cena do jantar entre o Samet e Nuray (Merve Dizdar, melhor atriz em Cannes), a militante de esquerda que perdeu uma perna numa explosão, já está entre as mais memoráveis do ano, ou da década.

Há um sentimento muito particular ali, que envolve o nosso próprio sentimento em relação a esse protagonista-narrador, mas não isento de nosso julgamento. Num mundo perfeito esse seria um estilo de caracterização vilanesca que gostaríamos de ver com frequência, tal a excelência e o tom mais sutis adotados na dramaturgia. O jantar entre Samet e Nurat era para ter sido a três. A mulher estava muito mais interessada em Kenan, um sujeito mais simpático, acolhedor e positivo que o cínico Samet. Ou seja, Samet, que não estava tão interessado na mulher, talvez por causa da perna amputada, aparece sozinho e entra no jogo de sedução mais para provar certa superioridade, além de fazer questão de magoar o amigo.

A cena do jantar é dividida em alguns momentos, todos pontos altos. A princípio, o realizador, de modo a nos manter interessados na discussão filosófica entre os dois, que guardam pensamentos muito distintos sobre a necessidade de se ter ou não um papel social, mantém um estilo mais discreto de direção. Samet é um homem egoísta, como ele mesmo afirma ser, que acredita que não temos a obrigação de sermos todos heróis. Nurat é idealista, e por isso acredita que a ação individual deve contribuir para a evolução e o bem-estar geral da sociedade. A conversa entre os dois é muito mais profunda do que tentei descrever nesse parágrafo e passa a impressão de que o trabalho de Ceylan é semelhante, de certa forma, ao de um grande novelista. A comparação com Fiodor Dostoiévski não tem sido à toa, já que o próprio protagonista guarda relação com o anti-herói de Crime e Castigo.

Acontece que, logo após a acalorada discussão, toda apresentada na simplicidade clássica do campo e contracampo, Ceylan aponta sua câmera de maneira muito particular, de modo a nos chamar a atenção para outros aspectos do filme, de nos deixar mais atentos a seu trabalho de direção. A câmera é apontada para as costas de cada um dos dois, como se criasse uma espécie de eclipse parcial do rosto deles, e a inquietação em nosso espírito se intensifica, especialmente quando Nurat se senta no sofá. O beijo e o que mais vem naquela noite parecem inevitáveis, mas nunca um beijo me pareceu tão desagradável. As lágrimas de Nurat são quase como lágrimas de uma mulher que estaria fazendo algo contra sua vontade, e o toque de Samet tem algo de repulsivo. Depois disso, há uma cena de natureza metalinguística, quando Nurat pede para que Samet apague as luzes da sala, e depois há a entrada no quarto para os momentos de maior intimidade.

Em determinado momento cheguei a pensar que ela pede para apagar as luzes, não por causa de seu corpo incompleto, mas como uma forma de se sentir menos incômoda em fazer sexo com aquele homem que está ali. Depois disso, há pelo menos uma outra sequência incrível, que é quando Nurat, chega sozinha à residência dos dois companheiros de casa, a fim de saber os motivos de Kenan não estar respondendo às suas ligações. O coitado havia ficado completamente arrasado ao saber da noite de sexo entre ela e Samet. E que espetáculo, a interpretação de Merve Dizdar! E que linda que é a cena dos três voltando de carro, vendo a neve caindo no parachoque. É novamente Ceylan mostrando que também é um mestre das paisagens no cinema.

Não é sempre que somos levados a esse tipo de experiência transcendental no cinema, em que questionamos até mesmo nossos níveis de maldade a partir da introdução de um personagem com toques dostoievskianos como Samet. ERVAS SECAS é uma obra que também nos faz mais empáticos com a dor do outro. Sim, o grande cinema nos encanta e ainda nos faz pessoas melhores.

+ DOIS FILMES

EU, CAPITÃO (Io Capitano)

Conheço pouco da filmografia de Matteo Garrone, mas o pouco que vi não me deixou muito animado. Junte-se isso às críticas negativas que EU, CAPITÃO (2023) tem recebido e o resultado foi algo melhor do que eu esperava, embora no final fique aquela sensação de mal estar que não necessariamente tem a ver com a jornada dura do herói. Garrone parece gostar de contos perversos e talvez por isso tenha feito PINÓQUIO (2019). Este novo filme até tem um quê da história do boneco de madeira, mas voltado muito mais para o mundo cão da vida real. Logo no começo, o jovem Seydou fala com a mãe sobre seu desejo de deixar o Senegal e ir embora para a Europa. A mãe fica revoltada e triste e logo o avisa que ele encontrará morte pelo caminho e coisas do tipo. Mesmo assim, Seydou e Moussa, seu primo, encaram atravessar meio mundo, com pouquíssimo dinheiro e pelo caminho ilegal, a fim de chegar ao continente rico. Garrone não se importa em pesar a mão na maldade humana e o resultado é uma espécie de road movie de sofrimento e dor. Talvez tenha me incomodado um pouco ser a visão de um italiano e não a de um senegalês contando a história. Mais do que a história em si.

A MENINA SILENCIOSA (An Cailín Ciúin / The Quiet Girl)

A simplicidade de A MENINA SILENCIOSA (2022), de Colm Bairéad, me encantou. Acontece que tenho um problema que me incomoda muito, que envolve quase todo filme protagonizado por crianças: acabam me dando sono. Com este não foi diferente, mas fiquei muito envolvido, especialmente na primeira e na última partes. Inclusive, aquele final, é difícil não se emocionar. O filme acompanha uma garotinha de família muito humilde e de educação embrutecedora. Ao ter a chance de ter contato com outra família, um casal mais velho que seus pais, ela passa a perceber outro tipo de sensibilidade, outro cuidar. O diretor, com experiência na televisão, em documentários e em séries, tem um cuidado visual que valoriza tanto os close-ups, trazendo muita ternura nas expressões, quanto na paisagem rural daquela Irlanda que parece um lugar esquecido do mundo.

Nenhum comentário: