domingo, agosto 29, 2021

FALE COM ELA (Hable com Ella)



Alguns filmes são tão especiais que até temos medo de rever e o impacto inicial diminuir. No caso de FALE COM ELA (2002), creio que houve sim um impacto um pouco menor na revisão, mas continua sendo uma obra-prima para mim. Ocorre que filmes que utilizam a música como elemento de intensidade dramática acabam se beneficiando muito mais da experiência da imersão da tela grande. Então, na época que vi este filme no Cinema do Dragão, saí tão impactado com sua beleza e tão comovido com o drama de Benigno (Javier Cámara), que me vi chorando ainda na parada de ônibus, no caminho de volta para casa. Alguém que estivesse ali me vendo pode ter imaginado que eu estivesse passando por um problema muito grave.

É bom demais poder rever o trabalho de um cineasta que havia chegado ao ápice de suas habilidades, até então. Ao contrário do anterior, TUDO SOBRE MINHA MÃE (1999), que acho mais preocupado com a forma, este aqui (talvez por não ter a direção de fotografia dos colaboradores habituais de Almodóvar, os mestres Affonso Beato e José Luís Alcaine) me pareceu mais preocupado com a narrativa e com seus personagens masculinos, Benigno e Marco (o argentino Darío Grandinetti). É, dentro da classificação que se poderia fazer dos filmes do cineasta, que vão de masculinos ou femininos, um filme masculino, mais até do que CARNE TRÊMULA (1997), já que em FALE COM ELA as mulheres são silenciadas, em suas condições comatosas.

E aqui, Almodóvar, mais do que nunca, embaralha as convenções dos sexos masculino e feminino em seus personagens, sem necessariamente tratar de homens ou mulheres trans, como no filme anterior. Benigno, por exemplo, suas colegas enfermeiras acreditam que ele é gay; Lydia (Rosario Flores) é uma toureira, profissão geralmente masculina; e Marco é um homem extremamente sensível. Na primeira cena do filme, se destacam suas lágrimas na apresentação de “Café Müller”, balé de Pina Bausch. No livro Conversas com Almodóvar, de Frederic Strauss, o diretor diz: “a abertura de Café Müller de fato me fez chorar, tal como a primeira vez que ouvi a versão de Caetano de ‘Cucurrucucú Paloma’. É uma canção de uma ternura tão comovente que se torna quase violenta...”.

E, de fato, tanto a cena da canção, quanto as cenas do balé, correspondem a esses dois elementos que o diretor menciona: a ternura e a violência, que comparecem no ato ao mesmo tempo terrível, mas, muito provavelmente inocente, perpetrado por Benigno, ao violar o corpo de Alicia (Leonor Watling). Isso se deve ao fato de que Benigno parece uma espécie de stalker/psicopata do bem, por assim dizer, já que ele acaba agindo inspirado em um curta-metragem mudo (genial, aliás!) que ele assistira e que mexeu com sua cabeça. E entra-se em um tema muito espinhoso que nos dias de hoje traria muita dor de cabeça para o cineasta. O ato de Benigno, aliás, lembra o apresentado em A MARQUESA D’O, de Éric Rohmer.

Almodóvar, no entanto, prefere não trazer sensacionalismo para o ocorrido, nem julgar o personagem. Vale lembrar que esses atos de violência masculina apareceram em obras anteriores do cineasta, como ATA-ME! (1989) e KIKA (1993), em tons de comédia, e pelo menos em um posterior, A PELE QUE HABITO (2011), em tom de horror. Em todas as vezes, porém, se explicita um desejo sexual tão intenso que ultrapassa a linha da moralidade. É algo tão espinhoso que é difícil até falar a respeito, mas que, justamente por isso, acho ousado da parte do cineasta em trazer para suas obras.

Uma das coisas que mais me encantou nesta revisão de FALE COM ELA foi o quanto as transições de tempo - os flashbacks, as elipses, os saltos – são apresentadas de forma tão sutil, tão delicada, tão perfeita. E se lembrarmos que o roteiro é um tanto intrincado, o feito de Almodóvar é ainda mais louvável. Talvez por isso ele tenha sido indicado ao Oscar nas categorias de direção e roteiro – surpreendentemente ganhou roteiro, coisa que eu havia esquecido. Assim, esse seu trabalho com uma narrativa mais clássica muito me fez lembrar o cinema da velha Hollywood, como melodramas ou filmes noir (graças à excelente trilha sonora de Alberto Iglesias, que traz ares de mistério). 

É importante lembrar também que FALE COM ELA é um filme sobre solidão. E talvez por isso ele tenha me comovido tanto na primeira vez que o vi. A solidão está presente principalmente em Benigno, uma pessoa que passou a vida inteira cuidando da mãe doente, e que não tinha muita noção da vida lá fora. Mas há também a solidão dos corpos em estado de coma da toureira Lydia e da jovem Alicia. Ou a solidão de Marco, que não consegue dialogar com o corpo inerte de Lydia. Mas nada tão capaz de comover tanto quanto o diálogo entre Marco e Benigno, e a necessidade tamanha deste último de um abraço amigo. Quem nunca?

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

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