sábado, agosto 14, 2021

A FONTE DA DONZELA (Jungfrukällan)



Se esses tempos de pandemia me fizeram ver mais filmes – menos do que gostaria, na verdade – e por um lado tive o prazer de retomar a fase de peregrinações que costumava fazer em outros tempos, por outro, notei que a quantidade de filmes essenciais de grandes diretores é tão imensa que vai demorar um bom tempo para que eu consiga vê-los, mesmo se eu tivesse muita dedicação e disciplina. Neste um ano e meio de pandemia, terminei apenas duas peregrinações: a de Abel Ferrara e a de Fritz Lang. E no momento, estou me dedicando à obra de Brian De Palma. Ou seja, ainda é muito pouco.

E aí me pego vendo uma obra de Ingmar Bergman, um cineasta que tem em seu currículo cerca de 70 créditos na direção. E fico um pouco assustado e triste, pois me interessa muito ver sua obra completa. Ou pelo menos tudo aquilo que estiver acessível. O meu caso com Bergman é curioso, pois as melhores experiências que tive foram no cinema, nas oportunidades de ouro que surgem de vez em quando. Ao sair, por exemplo, da sessão de PERSONA (1966), eu saí com a certeza de que jamais perderia outras oportunidades de rever esse filme. Talvez tenha se tornado o meu favorito. E olha que também tive a chance de ver na telona outras obras-primas, como O SÉTIMO SELO (1957), MORANGOS SILVESTRES (1957), GRITOS E SUSSURROS (1972) e SONATA DE OUTONO (1978).

Enquanto não é possível outras experiências desse tipo na sala escura, é no conforto do lar que temos uma maior possibilidade de ver seus filmes. O escolhido da vez foi A FONTE DA DONZELA (1960), um filme que, por se passar na Idade Média, guarda mais relação com O SÉTIMO SELO do que com os dramas contemporâneos que o cineasta costumava se debruçar com mais frequência. Para mim foi um deleite visual e catártico difícil de narrar. A beleza plástica encanta logo de cara. E fiquei me perguntando, assombrado, como um sujeito que veio do teatro tem um olhar tão cinematográfico. Mas talvez esse tipo de pergunta seja bobagem minha. Até porque eu acho que se William Shakespeare vivesse nos dias de hoje ele seria cineasta e não dramaturgo.

Muito da força visual de A FONTE DA DONZELA está no excelente trabalho de fotografia de Sven Nykvist. Sua fotografia linda em preto e branco valoriza tanto o céu (no formato “clássico” da janela de aspecto utilizada, o céu parece ser ainda maior frente aos mortais), quanto os rostos e as sombras. Naquele momento, Nykvist não era ainda o grande parceiro de Bergman que seria. Na verdade, ele entrou no filme por um desentendimento do cineasta com seu maior parceiro na fotografia, Gunnar Fisher. Nykvist passaria, a partir de então, a ser, nas próximas décadas, o seu maior parceiro de construção visual. Em fins dos anos 1970, inclusive, começaria a trabalhar em Hollywood também.

A FONTE DA DONZELA é um dos filmes mais acessíveis de Bergman, e também um dos mais compactos em sua estrutura narrativa. O que me impressionou logo de início foram os diferentes olhares para a vida, e depois há a questão da diferença de classes, a religião (o embate entre cristianismo e paganismo), e o tom de fábula que nos faz acompanhar a trajetória da jovem virgem Karin, uma espécie de princesa daquela família dos tempos do feudalismo.

A cena do ataque à garota (estupro, seguido de assassinato) é bem ousada, cruel e tensa. E aquele final de arrepiar, do pai (Max Von Sydow) olhando para o céu, para Deus, depois de tudo que houve, sendo que ele mesmo estava com as mãos sujas de sangue. Ele faz perguntas indignadas que normalmente também fazemos quando perdemos entes queridos, principalmente em circunstâncias extremamente cruéis. Será possível que Deus não está vendo nada? E, se está, por que não age para impedir?

Na verdade, o final até me pareceu uma concessão, levando em consideração o declarado ateísmo de Bergman, ou pelo menos o desencanto com sua herança cristã. Poderia ter acabado de maneira bem mais amarga, mas também gosto desse ar quase "dreyeriano" com que o filme se encerra, ao mostrar um milagre, a fonte que nasce debaixo da cabeça da jovem morta.

A água aparece aqui como um símbolo mais próximo do cristianismo, enquanto o fogo, presente logo no começo, com a figura de Kateri, a garota grávida e indignada por ser bastarda e estar prestes a dar à luz a um filho bastardo, amaldiçoa a virgem, clamando por Odin e preparando um feitiço. Essa questão água e fogo até tem sentido do ponto de vista da astrologia: Jesus veio instaurar a Era de Peixes (água), ajudando a enterrar a Era de Áries (fogo), dos deuses tidos como pagãos.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

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